Ideologia, Política, Republicados, Servidor/a Público/a

Como se constrói um pensamento hipócrita*

No último quarto de século da minha vida, boa parte da discussões que travei foram no sentido de desconstruir um mito que se constituiu há muito tempo no imaginário popular, que é a famigerada ideia que todo/a servidor/a público/a (chamarei de SP a partir daqui) é vagabundo/a. Olha que não é fácil explicar pra quem não quer entender que SP tem aposentadoria integral porque a sua contribuição previdenciária ao longo de todo o tempo de serviço é calculada sobre a integralidade dos seus vencimentos, ao contrário dos/as trabalhadores/as celetistas, cujo desconto nunca ultrapassa um teto pré-definido, não importando o valor do seu salário. Justificar a estabilidade, então, é quase uma heresia, mesmo que se mostre que ela tem fundamento na inexistência de um fundo que garanta o/a SP em caso de perda do cargo, como existe o FGTS na iniciativa privada. Enfim, o/a SP foi eleito, já há bastante tempo, como vilão/ã do país, responsável por todas as mazelas sociais que vivemos, desde a “quebra” da previdência, até a falência do próprio serviço público.

O que está por trás disso, porém, é algo muito mais grave e que a maioria dos/as cidadãos/as que reproduz essas críticas e acusações sem nenhuma reflexão prévia não se interessa por saber. A quem interessa o estado mínimo ou até mesmo a ausência do estado? Quem se beneficia quando o estado deixa de atender os setores estratégicos da soberania nacional? Não vou entrar na discussão do pré-sal, porque é longa e desvirtuaria o propósito imediato deste escrito, mas há setores de suma importância para que um país possa se estabelecer entre os grandes e que devem ser controlados pelo estado. Acontece que isso fere justamente os interesses – ou interÉsses como diria um grande político já falecido – de quem comanda as estruturas do sistema e, por essa mesma razão, faz com que essas ideias sejam marteladas em tempo integral na cabeça das pessoas, que as reproduzem sem nem saber do que estão falando. A velha e surrada, porém muito eficaz, técnica de propaganda do 3º Reich, de dizer mentiras de forma sistemática, até que elas acabem se consolidando como verdades.

Então, é absolutamente surpreendente o que se viu nos últimos dias, principalmente pelas redes sociais. Pessoas dos mais diversos setores sociais caindo tal qual carcarás famintos em cima do Lula por uma declaração que supostamente teria ofendido a categoria dos/as SPs. A falta de coerência e a cara de pau, para usar um português “menos castiço”, grassam em postagens que dizem que isso é um absurdo, que o Lula nunca trabalhou na vida, que não pode criticar os/as honrados/as SPs; em notas de repúdio publicadas por sindicatos que se podem chamar sem nenhum remorso de pelegos; em manifestações de gente que minutos antes do Lula ter dito isso aplaudia como macaca de auditório os ataques do presidente golpista e seu séquito ao serviço público. Mas como assim? Todo mundo pode falar malar de “barnabé”, menos o Lula? E aqui já faço o link para o próximo ponto da abordagem: o que teria dito o Lula de tão grave, que maculou de forma tão cruel a imagem dos/as SPs?

Eu não consigo ver inverdade na afirmação que a briga pelos cargos político-eletivos expõe candidatos e candidatas a um processo de seleção que faz com que tenham que mostrar lisura, honestidade, decência e todas aquelas características que deveriam estar presentes em qualquer indivíduo. O que há de errado nisso? Se o eleitorado não dá bola pra isso, se vota em qualquer um/a ou nem vota, se não lembra em quem votou, se elege ladrões, ladras, corruptas e corruptos, é outra questão, mas a essência da democracia, levada ao cabo no processo eletivo, não pode ser desconsiderada para atacar de forma pontual aquele que foi colocado na condição de ladrão número 1 da república (seria algo tipo Robin Hood?…).

Por outro lado, é um equívoco dizer que servidor/a público/a, aprovado/a em concurso, deixa de ter de prestar prova dessas características, ficando imune aos métodos de controle? Sim, é RELATIVAMENTE equivocada essa afirmação, e notem que estou dando uma interpretação para além do que realmente foi dito, apenas para puder sustentar melhor a minha argumentação. A estabilidade na carreira não prescinde da avaliação feita ao longo dos três anos do estágio probatório, durante os quais o/a SP é observado/a a partir de uma série de critérios, que visam a atestar as suas habilidades para o desempenho do cargo e também a sua conduta e postura, inclusive a partir da perspectiva ética. Passado esse tempo, adquire estabilidade, pelas razões já superficialmente colocadas neste texto, mas ainda assim não está “livre para voar”, ou seja, a implementação do estágio probatório e a garantia da estabilidade não lhe conferem uma espécie de salvo-conduto para fazer o que bem entender. Cada vez mais os mecanismos de controle estão sendo aperfeiçoados. E há um lado negativo nisso, porque paralelamente aos sistemas de controle legítimos, há uma série de fatores subjetivos, que podem transformar a vida do/a SP num verdadeiro inferno, mas isso também é assunto para outro momento. O que interessa aqui é dizer que o grande erro do Lula foi a generalização. Entretanto, quem tem acompanhado os fatos que compõem a história recentíssima do país, deve, sob pena de assinar declaração de mau-caratismo, pelo menos tentar compreender o verdadeiro sentido das palavras do Lula. Negar que ele é vítima de uma perseguição cruel e quase implacável, cujos objetivos nada têm a ver com a luta anti-corrupção, é, no mínimo, preguiça mental e falta de interesse em limpar o vidro para enxergar um pouquinho além do capô do carro.

Eu, como a grande massa da população do Brasil, quero que qualquer pessoa que esteja envolvida em qualquer ato ilícito, agente político/a ou não, seja punida nos rigores da lei e a punição nos rigores da lei exige PROVAS e não meras convicções. Se o Lula roubou, que seja preso quando isso restar provado. O que é lamentável é o senso de justiça seletivo, que leva as pessoas ao êxtase quando um verdadeiro circo é armado pelos comandantes do picadeiro, a saber, os “heróis” da República de Curitiba, para levar o Lula a prestar depoimento, mas que impede essas mesmas pessoas de bradarem as suas espadas justiceiras, quando o “presidente” daquela república deixa de citar a senhora Cunha por não saber o seu endereço… O que não pode é a comoção nacional em torno da decisão pelo impedimento de uma presidenta legitimamente eleita, sobre a qual não há sequer acusação formal, e o silêncio diante meia tonelada de cocaína achada no helicóptero de gente ligada a… vocês sabem quem. Não pode um ministro da mais alta corte postergar o processo de cassação do presidente da Câmara por ser ele o único que poderia conduzir com segurança o processo de impeachment. Tudo isso aconteceu e não há como negar.

Voltando especificamente ao tema, li uma postagem muito interessante no facebook, atribuída à Cristine Amaral Bertolino, que sintetiza quase tudo o que eu quero dizer aqui: “Você começa a acreditar que servidores públicos são pouco politizados quando eles se ofendem mais com uma frase do Lula do que com o Temer querendo tirar todos os seus direitos, inclusive sua estabilidade de emprego!” É exatamente isso. No órgão em que trabalho, o Ministério Público da União, boa parte dos/as servidores/as tem mostrado uma revolta absoluta contra os governos PT. Revolta até certo ponto justificada, pois a nossa categoria especificamente tem sido bastante bastante prejudicada pela política governamental. Mas eu não poderia ter defendido a queda de um governos porque ele não me deu aumento, certo? Incrivelmente, vejo pouquíssima movimentação entre colegas, e aqui incluo o Judiciário da União, contra o que está sendo urdido nos porões da administração golpista. Por que o nosso sindicato, o SINASEMPU – Sindicato Nacional dos Servidores do Ministério Público da União, assim como os outros que representam as categorias do serviço público, não se integra aos movimentos que lutam contra a política obscurantista que está sendo levada à execução pelo gabinete golpista? Acham eles que o alvo é mesmo o Lula e suas declarações (que podem ser até consideradas infelizes, mas que não tem uma ínfima fração do potencial destrutivo que a política governamental golpista)? É preciso que se repense as estratégias com urgência, porque essa pirotecnia, que cria uma cortina de fumaça que desvia os olhos do que realmente interessa pode ser a responsável pela abertura do caminho rumo a um período de trevas.

Encerro dizendo que o emburrecimento, em muitos casos, é provocado por fatores externos, mas a hipocrisia, esta não, esta é muito consciente e racional.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 19/9/2016.

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Revoluções e rEVOLUÇÕES*

As Revoluções deixam marcas indeléveis na história da humanidade. As revoluções também, mas dessas a gente deveria se envergonhar. Há três dias se comemorou, embora eu não tenha visto nenhuma notinha nos jornais (impressos, radiofônicos ou televisivos), a passagem da data que marca simbolicamente o início da maior de todas as Revoluções, aquela que mostrou ao mundo que TODOS os cidadãos têm direitos. Já o 1º de abril (poderia ter data mais sugestiva?), é o dia da revolução que tentou mostrar que só alguns cidadãos têm direitos, ou melhor, que alguns cidadãos sequer merecem essa qualificação e não têm direito nenhum. Esta data sempre enseja comentários na mídia, principalmente dos saudosos que gostam de dizer que naquela época sim se vivia bem, com segurança, ordem, respeito e blá, blá, blá.

A história do Brasil se caracteriza pelas relações de compadrio e isso está bem claro em Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda e outros que tentaram interpretar o nosso belo patropi. Nos tempos do revolucionário (com R ou r?) Getúlio (“Bota o retrato do velho no mesmo lugar…”), era comum os amigos serem agraciados com cartórios e outros presentinhos. É por isso, por exemplo, que ainda hoje se veem placas como “Primeiro Tabelionato de Notas – Antigo Cartório Trindade” e coisas do tipo. O revolucionário período que teve início em 64, e que nos salvou, entre outras coisas, de mais um “ataque do monstro comunista”, foi pródigo na distribuição de cargos e empregos públicos aos correligionários. Muitos desses distintos senhores (e senhoras), cuja maior, senão única, qualificação era a capacidade de se relacionar e prestar favores para as pessoas certas, ainda andam por aí deixando seus paletós e casacos nas cadeiras.

E é aqui que eu entro no assunto que quero abordar. A abertura política elegeu como inimigo número 1 da sociedade o funcionário público. Sei que hoje se diz servidor, mas eu sou velho e além disso me soa melhor a ideia de exercer uma função do que a de servir. Independentemente da nomenclatura que se queira usar, o fato é que a partir do fim dos anos de chumbo ficou fácil bater em barnabé. Funcionário público virou sinônimo de marajá. Aliás, o célebre caçador está aí de novo, lépido e faceiro a presidir comissões no Senado…

Costuma-se dizer que funcionário público ganha bem. Mas em que dados essa gente se baseia para alardear esse tipo de coisa? Se a gente pegar dez caras que ganham 500 reais e dois que ganham 1.000, a média salarial vai dar 583,33. A coisa foi puxada pra baixo. Mas se acrescentarmos um outro que ganha 50.000, a média sobe pra 4.400. Este último número reflete a realidade? Muito menos do que o primeiro! Pois é, mas é esse tipo de manipulação que vira “informação” e denúncia na voz de um Lasier Martins, de um Rogério Mendelski, de um Diego Casagrande. Tem razão o jornalista que usa um horário nobre da TV, uma coluna de um jornal lido por milhares de pessoas, ou um microfone de 100kW para dizer que é uma aberração um funcionário de nível médio da Assembleia Legislativa receber 25 mil por mês para trabalhar 3 horas por dia. Só que pra notícia ficar mais completa, ele também tem que dizer que dezenas de outros funcionários da Casa muitas vezes não ganham um salário sequer compatível com as suas funções e os seus horários. E propugnar pela correção das duas distorções. Isso seria um jornalismo sério e ético. Mas não é isso que acontece na prática e a maneira atravessada que eles usam para prestar a informação forma uma ideia totalmente equivocada na cabeça da população, que passa a acreditar na verdade goebeliana que tem se fazer de tudo pra acabar com a “mamata” no serviço público.

Volta e meia os caras vêm denunciar o absurdo que é a aposentadoria integral do funcionário público, quando um “trabalhador comum” (e o funcionário é um “trabalhador incomum”?) se aposenta com um benefício muito menor do que era o seu salário na ativa. Só que eles largam essa conversa e se “esquecem” de explicar a situação como ela é de fato. O funcionário público contribui para a Previdência com um percentual de 11% que incide sobre todo o seu salário. Já o celetista paga uma faixa de 8 a 11% e somente até um determinado limite, a partir do que o seus vencimentos estão totalmente livres. Para que se entenda melhor, vou usar alguns números hipotéticos: um funcionário público e um trabalhador privado ganham um salário de 10 mil reais cada um. O primeiro recolhe para a Previdência todos os meses o valor de 1.100 reais, que corresponde à porcentagem de 11% do total dos vencimentos. Já o segundo vai pagar, arredondando os números, cerca de 400 reais, porque a tributação considera apenas o valor de 3.000 reais, enquanto os outros 7.000 estão isentos. Se essa situação perdurar durante 35 anos, até a aposentadoria de ambos, e a matemática continuar a ser uma ciência exata, a diferença vai ser bem razoável, creio eu. Repito que usei números hipotéticos, mas em essência é isso.

Além disso, o funcionário público, com exceção de alguns casos previstos em lei, não pode exercer uma segunda função remunerada, não é beneficiário do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, não pode acumular um cargo eletivo com a sua função pública, entre outras condições que o diferenciam de forma desvantajosa do trabalhador da iniciativa privada. Só que isso a nossa isenta e ética mídia sempre deixa passar ao largo.

Sobre a tão atual questão da divulgação dos salários já falei em outra postagem (INTERESSE: VALE O PÚBLICO OU O PRIVADO?), mas nunca é demais lembrar que os direitos humanos, cuja primeira notícia veio com a Revolução Francesa, não distinguem funcionários públicos ou privados. Se por um lado o cidadão, e aí se inclui o funcionário público, tem todo o direito de saber como o dinheiro do seu imposto é empregado, não se pode negar a este o direito à privacidade, como se fosse um cidadão de segunda classe. Então que se divulgue tudo, menos o nome e algumas informações de interesse exclusivamente particular (pensões, empréstimos, etc.). E, principalmente, que se transmitam  informações verdadeiras e completas, não pela metade e de forma distorcida, conforme certos interesses que sustentam a nossa imprensa gigante.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 17/7/2012.

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Legislação, Republicados

Interesse: vale o público ou o privado?*

Está escrito no artigo 37 da Constituição Federal que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Daí decorre a ideia da transparência, tão em voga de uns tempos pra cá. E, baseados no conceito de transparência, os gestores públicos vêm efetivando a disponibilização pela internet dos vencimentos dos servidores. Acontece que o artigo 5º da Carta, no seu inciso X, diz que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. E agora, José? A remuneração, ainda que oriunda do erário e, por consequência, do bolso do contribuinte, não constitui elemento ligado à vida privada do cidadão? Ou será que ao assumir um cargo público a pessoa perde a sua cidadania?

Não quero ser o gênio da nação, até porque a ideia que vou expor é a mesma que o Desembargador Irineu Mariani referiu hoje pela manhã na rádio Guaíba, e, portanto, certamente é partilhada por muitas pessoas que não têm preguiça de pensar. É simples: todo o funcionário público, em qualquer esfera administrativa, tem, ou deve ter, um número de matrícula registrado por ocasião da sua investidura. Publique-se, então, a remuneração do servidor, ao lado do número de sua matrícula, não declinando o seu nome. Entenda-se por remuneração, neste momento, o valor bruto dos vencimentos e os descontos legais (previdenciários e fiscais). Nada de descontos de empréstimos, pensão alímentícia, etc. E se alguém achar que um determinado funcionário ganha muito e quiser saber o motivo, denunciar, etc.? A Constituição, sempre ela, ainda no artigo 5º, mas agora no inciso XXXIII, assegura que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. O interessado entra em contato com o órgão ao qual o servidor está vinculado e faz a petição, que naturalmente deve ser instruída com os motivos por que se deseja a informação.

Com isso serão evitados muitos problemas, desde uma simples crise de ciúme de algum colega de setor, até a possibilidade do sequestro de um familiar de algum servidor que tenha o salário elevado.

Não parece muito difícil.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 9/7/2012.

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