Política

Hora de derrubar mitos

Não foi ontem que as pessoas progressistas e amantes das liberdades e da democracia descobriram que as coisas no Brasil vão de mal a pior. Nem foi no golpe engendrado para tirar do governo uma presidenta legitimamente eleita. Presidenta, aliás, que soube que não levaria a cabo o segundo mandato no exato instante em que o TSE proclamou a sua reeleição, em 2014. Naquele momento, o candidato derrotado anunciou que as forças conservadoras tornariam o país ingovernável. E cumpriu o prometido. Só que também não foi naquela ocasião que passamos a entender o que estava acontecendo. A gênese de tudo está no aeroporto, quando a socialite começou a encontrar o porteiro do prédio em Paris, e na Universidade, quando o filho preto da empregada pobre começou a dividir a sala de aula com a filha do patrão. (Sobre isso, recomendo “Que horas ela volta?”, filme brasileiro de 2015, dirigido por Anna Muylaert e magnificamente estrelado por Regina Casé.) “A Casa-Grande pira quando a Senzala vira médica”, foi o que disse a estudante Bruna Sena, ao ser aprovada em primeiro lugar para Medicina na USP, vestibular mais concorrido do país. E num país de elite historicamente escravocrata, como é o  nosso, quando a Casa-Grande pira, as consequências podem ser trágicas.

A eleição de um projeto autoritário e com matizes notadamente fascistas, porém, não é fruto somente de uma insatisfação das elites. Acreditar nisso é seguir trilhando o caminho de um erro que já provocou um resultado devastador. É preciso ir além, é preciso olhar para o nosso interior e detectar precisamente o ponto em que começamos a nos equivocar. A avaliação mais precisa do contexto político que se estabeleceu nas eleições deste ano não foi feita por um cientista político e nem por um jornalista, mas pelo rapper Mano Brown. E aconteceu durante um evento do próprio Partido dos Trabalhadores. Ao dizer que o PT deveria voltar a dialogar com as bases, Mano Brown não fez mais do que a crítica que o próprio partido deveria ter feito internamente há muito tempo e que vinha sendo feita, a bem da verdade, por alguns quadros históricos, como Olívio Dutra. Mas da mesma maneira que a dura reprimenda feita corajosamente por Mano Brown às vésperas do pleito não significou que ele estivesse “passando para o outro lado”, ou “dando um tiro no pé”, como tentaram dizer algumas figuras petistas de expressão, também as reflexões de Olívio não o afastaram das lutas democráticas. Pelo contrário, Olívio, do alto de seus mais de 70 anos, esteve engajado de corpo e alma na campanha pró-Haddad e Manuela, e no último sábado esteve de casa em casa em alguns bairros populares de Porto Alegre, fazendo a luta pela “virada”. E as palavras de Mano Brown, que certamente foram extremamente incômodas a quem sempre fechou os olhos para os erros cometidos pelo PT, estimularam a militância a seguir firme na busca por votos possíveis de inversão. Como depoimento pessoal, posso dizer que conquistei alguns votos para a chapa Haddad/Manuela a partir do discurso dele, pois algo que sempre incomodou e irritou os antipetistas é a incapacidade do partido em assumir os seus próprios erros. Quando o partido reconhece que não foi perfeito, as barreiras e restrições começam a ser relativizadas.

Todavia, a coisa toda não se explica somente por essas constatações. Há que se analisar também o caso do antipetismo, que teria levado milhões de brasileiros e brasileiras a eleger Bolsonaro e sua plataforma antidemocrática pela via da exclusão e da rejeição. Essa é uma meia verdade. Fosse a intenção do eleitorado bolsonarista tão somente barrar o PT, havia outras possibilidades, à direita e ao centro, ainda no primeiro turno. Alckmin, Marina, Amoedo e o próprio Ciro eram candidaturas viáveis a combater a ascensão petista, mas foram preteridas em favor de um discurso extremado, que agradou, sim, ao povo ávido por vingança. Eu escrevi vingança. O que pode agradar mais a chamada classe média do que a promessa de poder se vingar de quem lhe ameaça a segurança? E nesse caso, pouco importa se quem promete nada fez pela segurança pública nas últimas trés décadas, mesmo ocupando um cargo político importante. O cidadão mediano, que vive com medo de ser assaltado na rua, é seduzido pelo canto da sereia que representa a possibilidade poder usar uma arma de fogo para se defender. E empolgado com essa ideia, certamente não vai buscar informações sobre o que realmente está por trás dessa conversa, sobre que interesses serão contemplados com isso. Sequer essa pessoa vai se informar sobre o que acontece em países cuja posse e porte de arma de fogo é facilitada, como os EUA. A ele basta sonhar que vai poder dar um tiro na cara do assaltante, afinal, bandido bom é bandido morto. As causas que levaram esse bandido ao mundo da criminalidade também pouco lhe interessam, pois é suficiente que ele esteja morto. Se morrer um inocente, paciência, o próprio Messias já aliviou essa culpa. Ou seja, se há um componente de antipetismo na eleição do capitão, há muito mais do lado Mr. Hyde que habita o interior de cada “cidadão de bem”, que clama por justiça, mas quer ter o mórbido prazer de executá-la com as próprias mãos. Esse é o pensamento de quem reduz a luta pelos direitos humanos a uma defesa da bandidagem e é o pensamento que elegeu um projeto que afirma abertamente legitimar o justiçamento.

Conforme muito bem observou um amigo, Marcelo Cougo, o eleitor e a eleitora de Bolsonaro são as únicas pessoas que acreditam que ele não vai fazer o que prometeu. Isso leva a uma situação surreal, em que o voto é dado pela certeza do não cumprimento das promessas de campanha. Pessoas minimamente politizadas e conscientes votam em candidatos/as na esperança de que cumpram com o que se comprometeram, caso sejam eleitos/as. Algumas até mesmo deixam de votar em qualquer candidatura por entenderem que nenhum/a agente político é capaz ou tem interesse em cumprir as suas promessas. Mas votar num candidato porque ele não vai cumprir o que prometeu parece ser um caso singular na história democrática do Brasil e talvez do mundo. Ao longo da campanha, circularam inúmeros vídeos que mostram Bolsonaro afirmando com convicção as suas ideias de defesa da tortura e de admiração por torturadores, por exemplo. E não foram falas descontextualizadas. Estão aí disponíveis no Youtube. Também é da própria boca do presidente eleito que se ouviu a exortação à expulsão dos adversários políticos do país, assim como a defesa da tese de que o voto não pode mudar nada, que é preciso um golpe e que se for necessário matar alguns inocentes, não tem problema. Não vou me dar ao trabalho de incluir aqui os links para essas declarações, porque é só jogar no Google. O bolsonarianismo, porém, insiste em dizer que não é bem assim, que ele não disse o que disse, embora esteja tudo gravado e registrado, ou que ele disse isso em contexto diferente, ou ainda pior, que ele estava só brincando. Se alguém se dispõe a brincar de elogiar o maior facínora e mais sádico torturador da história do Brasil no momento mais crítico da história política recente do país (o voto no processo de impeachment da Presidenta Dilma), a coisa é ainda muito mais grave.

Com isso quero dizer que o processo que levou Bolsonaro ao cargo político máximo da República não se explica pela ideia simplista do antipetismo, e também afirmo que o próprio antipetismo não se explica pelas próprias mazelas do Partido dos Trabalhadores. Todos esses elementos estão presentes, por óbvio, na eleição de Bolsonaro, mas o que está na origem de tudo é o desejo de vingança, o ódio que o “cidadão de bem” passou a nutrir por tudo aquilo que ele não pode explicar racionalmente, seja por incapacidade mesmo ou por preguiça intelectual. Ao fugir da análise dos fatos geradores das desigualdades sociais e optar por trilhar o caminho fácil da eliminação da “bandidagem”, o eleitorado bolsonarista escancarou a sua face fascista, gostem ou não os meus amigos e as minhas amigas que votaram no B17. A prova de que a luta não é anticorrupção é o elemento que se tornou simbólico dessa cruzada moralista: a camisa da CBF, uma entidade mergulhada na roubalheira e na corrupção. E a prova de que a questão central nunca foi a segurança é a falta (ou omissão) de conhecimento de que o presidente eleito não apresentou sequer um projeto na área da segurança pública em quase 30 anos de atividade parlamentar.

De um lado, então, cabe à esquerda e as forças do campo democrático uma reflexão séria sobre os próprios equívocos, e a união em torno de um projeto de resistência e reconquista do terreno perdido nas áreas sociais, a fim de que o projeto fascista representado pela eleição de Bolsonaro não consiga se consolidar. E ao eleitorado bolosonarista não assumidamente fascista (porque fascismo não se discute, se combate) cumpre fazer uma reanálise acerca do discurso de ódio que motivou a votação em massa na plataforma autoritária de um candidato que, agora eleito, tem sim as condições de cumprir tudo aquilo que prometeu durante a campanha e ao longo da sua trajetória na vida pública. É preciso, em resumo, derrubar alguns mitos para que possamos recolocar o país no rumo de crescimento em que estava há pouco tempo. A minha esperança é que isso não seja um problema muito difícil de resolver, porque, como ouvi muito durante esses últimos tempos, se ficar ruim a gente tira…

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Legislação, Republicados

Interesse: vale o público ou o privado?*

Está escrito no artigo 37 da Constituição Federal que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Daí decorre a ideia da transparência, tão em voga de uns tempos pra cá. E, baseados no conceito de transparência, os gestores públicos vêm efetivando a disponibilização pela internet dos vencimentos dos servidores. Acontece que o artigo 5º da Carta, no seu inciso X, diz que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. E agora, José? A remuneração, ainda que oriunda do erário e, por consequência, do bolso do contribuinte, não constitui elemento ligado à vida privada do cidadão? Ou será que ao assumir um cargo público a pessoa perde a sua cidadania?

Não quero ser o gênio da nação, até porque a ideia que vou expor é a mesma que o Desembargador Irineu Mariani referiu hoje pela manhã na rádio Guaíba, e, portanto, certamente é partilhada por muitas pessoas que não têm preguiça de pensar. É simples: todo o funcionário público, em qualquer esfera administrativa, tem, ou deve ter, um número de matrícula registrado por ocasião da sua investidura. Publique-se, então, a remuneração do servidor, ao lado do número de sua matrícula, não declinando o seu nome. Entenda-se por remuneração, neste momento, o valor bruto dos vencimentos e os descontos legais (previdenciários e fiscais). Nada de descontos de empréstimos, pensão alímentícia, etc. E se alguém achar que um determinado funcionário ganha muito e quiser saber o motivo, denunciar, etc.? A Constituição, sempre ela, ainda no artigo 5º, mas agora no inciso XXXIII, assegura que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. O interessado entra em contato com o órgão ao qual o servidor está vinculado e faz a petição, que naturalmente deve ser instruída com os motivos por que se deseja a informação.

Com isso serão evitados muitos problemas, desde uma simples crise de ciúme de algum colega de setor, até a possibilidade do sequestro de um familiar de algum servidor que tenha o salário elevado.

Não parece muito difícil.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 9/7/2012.

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