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E agora, José? A festa acabou (O mundo não é tão bão, Sebastião…)

O ponto alto da extensa agenda oficial de comemorações dos 250 anos (também oficiais) de Porto Alegre foi a apresentação da Maria Rita na Redenção. Grande show, com direito a “Ele Não”, “Fora, Bolsonaro” e outras perigosas subversões. Só tenho dúvida se o prefeito Melo ficou à vontade com isso, já que a sua eleição se deu justamente na onda Bolsonaro. Mas a festa acabou e restou uma cidade para governar. Uma cidade conflagrada.

A mídia grande não tem conseguido dar curvas nos registros de violência na periferia apagada. Ainda hoje pela manhã (segunda-feira), ouvi na rádio que já são 24 mortes no que eles estão chamando de guerra de facções. Qualquer pessoa que more, trabalhe ou de alguma maneira se interesse pelo que acontece nos bairros mais pobres da cidade sabe que essa manchete é risível. O número de pessoas que morre em condições violentas nas comunidades periféricas, de bala “perdida”, de doença que já deveria estar erradicada, de fome, por queima de arquivo, é muito maior do que o que chega ao GZH, ou melhor, do que o que entra na pauta das editorias do grupo. Essas pessoas, porém, integram um grupo social ainda menos considerado pela oficialidade, os órgãos de segurança e a grande mídia: o grupo de quem não vira nem estatística. A diferença agora é que as ações estão sendo articuladas de outra forma, com estratégias de divulgação que ainda não tinham sido exploradas em escala mais ampla. Circulam mensagens em grupos de WhatsApp, cuja autenticidade é muitas vezes questionada e até negada, mas que acabam se mostrando de alguma maneira conectadas com os fatos. Qual o interesse de quem está promovendo a violência em publicizar e anunciar as ações antecipadamente, inclusive com detalhes de local e hora? Não estamos diante de um thriller hollywoodiano, em que o serial killer deixa pistas para a investigação por vaidade e para mostrar que é melhor que o policial. Não, aqui é a vida real e os interesses são outros.

Há quatro anos, um inexpressivo parlamentar do Rio de Janeiro saiu da obscuridade de uma série de mandatos em que pouquíssimos projetos foram apresentados e menos ainda foram aprovados, para ocupar a primeira cadeira do Planalto. A agenda econômica do ultraliberalismo estava na ordem do dia da plataforma bolsonarista. Entretanto, fosse só isso, a elite dispensaria o testa de ferro e lançaria o próprio Paulo Guedes, a cabeça por trás do esquema econômico. Bolsonaro não teve nenhuma vergonha de dizer, em campanha, que não entende nada de economia. Mas uma sucessão presidencial envolve muito mais do que conhecimento teórico e técnico acerca do mercado e dos seus reflexos no bolso da população.

Bolsonaro sabia muito bem que a pauta econômica, tratada em nível mais elevado e complexo, interessa diretamente apenas às elites. Entre o povo, as duas demandas mais caras ao eleitorado, especialmente as classes médias, eram/são: fim da corrupção e segurança. O primeiro item já vinha sendo trabalhado há bastante tempo, desde as investigações que se notabilizaram como mensalão (o petista, não o tucano, por óbvio), depois o petrolão, Lava Jato, Dallagnol, Moro e por aí vai. Quanto à questão da pseudo-segurança, nisso, e provavelmente só nisso, Bolsonaro é bom. Distorcer fatos, mascarar a insegurança em segurança, criar um discurso para convencer uma população descrente das instituições e com sede de justiçamento, tudo isso foi tarefa fácil para ele e uma família com trânsito livre no crime, especialmente entre as milícias do Rio de Janeiro.

E o que isso tudo tem a ver com a nossa “guerra porto-alegrense”? Estamos em ano eleitoral. Mais do que isso, estamos diante das eleições (plural, porque há eleições parlamentares) mais importantes da história do Brasil, porque podemos chancelar de forma irreversível o projeto nazifascista, ultraliberal, entreguista e lesa-pátria do bolsonarismo, ou tentar recolocar o país nos trilhos de um sistema de maior democracia e justiça social. Bolsonaro já não tem o escudo da Lava Jato, o que enfraquece muito um dos flancos mais eficientes do programa. É preciso, então, reforçar outras áreas. Recrudescer o discurso da segurança, que passa pelo armamento em massa da população civil, é uma medida fundamental. Com uma população convencida da falência das instituições e da ineficácia dos órgãos de segurança, que não conseguem evitar o fechamento de escolas, os toques de recolher e muito menos garantir que alguém não seja assassinado, por encomenda ou por engano, ao sair ou voltar do trabalho, torna-se muito mais fácil vender o discurso da “justiça com as próprias mãos”. Não se faz justiça com as próprias mãos sem armar a população. Qual o único programa eleitoral que defende abertamente o armamento civil como forma de garantir a segurança privada?

Embora não haja eleições municipais agora, as relações entre as esferas administrativas exercem muita influência nos pleitos. Ter uma base sólida de apoio nos estados e munícipios é essencial para qualquer candidato/a ao Executivo nacional. Dessa forma, o prefeito Sebsatião Melo vai ter de se posicionar, escolher um lado, e, a julgar pelo histórico da sua eleição em 2020, o apoio à reeleição de Jair Bolsonaro é a perspectiva. Com isso, apresentar a uma cidade assolada pela violência e criminalidade a narrativa de uma solução para a segurança é um prato cheio para o bolsonarismo e, por outro lado, pavimenta o caminho para uma repetição do mandato de Melo, que poderá usar a afinidade com o governo central em sua campanha em dois anos, caso o projeto fascista do bolsonarismo seja novamente bem sucedido.

Por isso, com a clareza de que a violência e a criminalidade não começaram em Porto Alegre há 15 dias, é hora de investigar a razão de somente agora, às portas das eleições nacionais, a atenção da grande mídia ter sido atraída para isso. Observar o posicionamento do prefeito Melo a partir da necessidade de dar uma resposta às demandas de segurança da população é uma boa providência e pode indicar o rumo das ações governamentais da prefeitura a partir de 2023. Se alguém pretende perder tempo dizendo que estou misturando as competências, que segurança pública é atribuição do governo estadual, peço que atente para o fato de ser essa uma discussão de políticas públicas em que todos os entes federativos estão implicados, outra não seria a razão da ampliação da atuação das guardas civis, por exemplo.

Sebastião Melo precisará tirar a máscara que usou no baile da cidade e mostrar a sua verdadeira cara, se é a do bolsonarista autoritário que se elegeu na carona do “mito” ou do democrata e conhecedor dos anseios do povo, cuja imagem ele tenta vender em suas andanças pela cidade. Melo será Lula, Bolsonaro ou observará a tudo do alto do muro da terceira via?

*Imagem de destaque copiada de: https://www.brasildefato.com.br/2020/12/10/bolsonaro-inaugura-ponte-em-porto-alegre-e-diz-que-pandemia-esta-no-finalzinho. Acesso em: 12 de abr. 2022.

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Direitos Humanos, História, Política, Porto Alegre

Porto Alegre é de mais

Segunda-feira, 21 de março, 6 horas da manhã, barullhos que parecem ser de tiros são ouvidos pros lados da zona sul. Logo em seguida a confirmação: troca de tiros, provavelmente entre facções criminosas, no Santa Tereza. Resultado atualizado pelo rádio até às 8h30: uma pessoa morta, duas feridas e o posto de saúde, que se não me engano é o maior da cidade, fechado. Que jeito de abrir uma semana! Pior ainda quando é a semana em que se comemora 250 anos da cidade. Comemorar exatamente o que, sr. prefeito?

Vamos falar um pouco de história. Porto Alegre ainda não tinha porto, mas provavelmente era alegre antes do século 18. Do mesmo jeito que o navegador Cabral não “descobriu” nada quando chegou na Bahia, o estancieiro Jerônimo Dorneles também não descobriu a cidade a partir do Morro Santana. Aqui havia Guaranis, Kaingangues e Charruas. E havia aos montes. O que os abnegados e nobilíssimos portugueses de espírito empreendedor fizeram com essa gente? Tomaram suas terras, violentaram as mulheres, escravizaram, mataram. Heroicos portugueses, exaltados pelos cronistas dos primeiros tempos. Dois séculos e meio passados, em Itapuã, que já é Viamão, mas fica no extremo sul de Porto Alegre, onde estão confinados os guaranis que insistiram em sobreviver, alguém tocou fogo numa casa de orações e num depósito de alimentos. Que repercussão teve? Na mídia grande, zero, afinal, espaços generosos precisavam ser destinados aos preparativos para os 250 anos.

Mas não foram só os “selvagens indígenas” que pereceram nas mãos dos civilizadores europeus. Negras e negros arrancados à força das suas terras foram enfiados nos tumbeiros e se tiveram a “sorte” de não virar comida de tubarão no Atlântico, chegaram aqui para contribuir com a construção desta nossa mui leal e valerosa metrópole. É claro que se no Brasil todo houve um lindo processo de miscigenação que resultou no povo brasileiro típico, como Gilberto Freire teorizou, no sul, particularmente, os portugueses foram muito carinhosos com os seus escravizados/as. Essa narrativa vigeu durante muito tempo na voz de cronistas e historiadores consagrados, como Walter Spalding, que disse: “O estancieiro, embora uma espécie de senhor feudal nos primeiros tempos, melhor: no primeiro século e meio de vida da Capitania de São Pedro, jamais dominou pelo terror.” (SPALDING, Walter. Pequena história de Porto Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967. p. 22-23)

Essa convivência pacífica de que fala o professor Spalding, começou a ser questionada nos últimos anos. Tivemos a oportunidade de conferir que a história não é bem essa, quando, por exemplo, vimos que, em meados do século passado, as comunidades da Ilhota e adjacências (povo pobre e preto) foram despejadas e atiradas num lugar quase inóspito, que recebeu o sugestivo nome de Restinga, e hoje é estigmatizado como um dos mais perigosos bairros da cidade sorriso, embora seja o espaço onde vive uma enorme comunidade trabalhadora, que transformou aquela área de alagamento numa região possível de construir uma vida digna. E vimos de novo quando o carnaval, a festa do povo (preto e pobre), que tantos transtornos trazia a quem mora nas áreas centrais, foi deslocado para o extremo da zona norte, no Complexo Cultural do Porto Seco. O que incomoda em fevereiro não incomoda em setembro, e a gauchada descendente dos herois caudilhos farrapos segue comemorando lindamente a derrota (ops!) na nossa guerra fundadora. O MTG e a RBS agradecem a compreensão da municipalidade com a a grandeza da causa farroupilha.

Neste 2022, chegando aos 250 anos oficialmente contados, Porto Alegre tem a cesta básica mais cara do Brasil (talvez seja a segunda, o que faz pouca diferença); um sistema de transporte coletivo dominado pelo empresariado, com uma das passagens mais caras e com recentes restrições aos benefícios históricos concedidos a quem mais precisa (estudantes, pessoas de mais idade); uma galopante política de privatização dos espaços públicos e elitização das áreas mais nobres da cidade (Cais Embarcadero, Shopping Pontal, Condomínio Golden Lake, Parque da Harmonia); ausência de uma política para áreas (que deveriam ser) de preservação histórica e ambiental (Fazenda do Arado, áreas rurais da zona sul); descaso com as populações vulneráveis, com o aumento em progressão geométrica da população em situação de rua e o despejo violento das ocupações, sem que haja nenhuma destinação que beneficie o povo para os prédios esvaziados (Lanceiros Negros, Saraí); o avanço do mercado imobiliário sobre as áreas populares, quilombolas e indígenas (o já citado Pontal do Arado, Quilombo dos Lemos, Areal da Baronesa); aumento das restrições aos espaços de lazer e diversão (privatização de praças e parques, repressão violenta nos bares do Centro Histórico e da Cidade Baixa); falta de uma política efetiva para o saneamento público (alagamentos frequentes); e por aí vai.

Imagem copiada de: https://www.suder.com.br/luxo-e-seguranca-veja-os-melhores-condominios-em-porto-alegre. Acesso em: 21 de mar 2022.

Diante disso tudo, parece que há muito mais motivos para preocupação do que para comemoração no próximo sábado. Mas a prefeitura vai trazer a filha da Elis para cantar na Redenção, ou melhor, no Parque Farroupilha, e o Porto voltará a ser Alegre.

Realmente, Porto Alegre é de mais. De mais pobreza, de mais desigualdades, de mais tristeza.

*Imagem de destaque: acervo do autor.

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