No sábado passado ocorreu o 113.074.825º caso isolado de racismo no futebol brasileiro. Talvez algum tenha passado esquecido, então o número pode não ser exato, mas são casos isolados (não esqueçamos que desde os anos de 1930 sabe-se que aqui vivemos no paraíso da democracia racial).


Caralho e macaco têm de semelhança fonética apenas o fato de serem paroxítonas, como a maioria das palavras usadas pelo português brasileiro oficializado: ca-rá-lho – ma-cá-co. Se alguém diz foda-se, caralho, eu posso facilmente entender foda-se, carvalho e até foda-se, baralho, mas se no meio do caminho o caralho virar macaco alguma coisa está errada com o meu aparelho auditivo. Ninguém vai preso por dizer caralho. Pelo menos não só por isso. E aqui começa de verdade o problema, porque também quase ninguém vai preso por chamar outra pessoa de macaco. É sempre em tom de brincadeira ou algo dito no calor do momento. Se a coisa for adiante, a criatividade linguística do povo braZileiro resolve com um divertido mi-mi-mi (mi mi mi, talvez?).
Recordemos alguns fatos, sem precisar viajar no tempo, até a Liga da Canela Preta, por exemplo. Vamos ficar no século 21 mesmo. Antes, porém, aviso que não vou citar nomes, porque o tipo de gente que naturaliza o racismo é o mesmo que adora processar quem se insurge contra ele. Vamos lá.
Certa feita, o presidente de um clube de futebol porto-alegrense se defendeu de acusações de racismo dizendo que a sua empregada era negra; houve também o caso de um dirigente de outro – ênfase na palavra outro – clube de futebol de Porto Alegre que queria substituir o mascote histórico deste clube, por achar que aquela figura, recolhida do mais legítimo folclore brasileiro, fazia alusão ao uso de drogas e passava uma imagem de perdedor – a palavra é esta mesmo, perdedor – por não ter uma perna; recentemente, em reunião do Conselho Deliberativo de um clube de futebol da capital, que não digo ser um ou o outro, um importante conselheiro, que viria a ocupar cargo na gestão, manifestou-se com expressões de forte cunho racista, como “época negra” para falar de um tempo sem vitórias, e por aí afora. Confrontado pelo chat da reunião, que se realizava na modalidade virtual, fez pouco caso, tratando isso como mimimi (aqui uma terceira forma gráfica da expressão).
No plano coletivo, e aqui não se fala em nomes, parte da torcida do Grêmio, tem o hábito de entoar cânticos racistas contra a torcida do Inter. Por seu lado, parte da torcida do Inter entoa cânticos homofóbicos contra a torcida do Grêmio. E sabem como isso historicamente foi tratado pela crônica esportiva gaúcha? Folclore, que, neste caso, a riqueza linguística brasileira aceita como um eufemismo para mimimi.
Em paralelo aos casos de racismo que têm ganhado as manchetes nos últimos tempos, e que graças ao trabalho magnífico de entidades como o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, estão se deslocando do campo do folclore para ganhar um debate mais sério, tivemos recentemente a notícia de um torcedor do Brasil de Pelotas que se viu envolvido em uma briga de torcidas, foi detido, junto com tantos outros, pela Brigada Militar, deixou o estádio em condições físicas muito boas e hoje luta pela vida numa UTI. O que houve no trajeto entre o estádio e o hospital é objeto de investigação, mas ouvi hoje pelo rádio uma entrevista com o advogado da vítima, que categoricamente atribuiu a culpa a policiais militares e disse, ainda, que este torcedor teria falado, quando ainda estava consciente, em alerta às outras pessoas detidas, palavras mais ou menos como “Se me matarem vocês sabem quem foi”.
Esses fatos mostram uma vez mais que a violência, o racismo e a homofobia são naturalizados no futebol. Entretanto, o problema é bem maior, porque a violência, o racismo e a homofobia na sociedade estão não só naturalizados como, de certa forma, institucionalizados pela plataforma nazifascista que assumiu o poder em 2019. Bolsonaro e sua família estimulam esses comportamentos a todo momento e isso faz com que a massa descerebrada de seus seguidores se entenda no direito de fazer o mesmo. E isso acontece com a conivência, quando não com a participação ativa de pessoas que deveriam atuar no lado contrário. Em tempos em que o STF proíbe a criação de dossiês antifascistas ordenados por Bolsonaro – e isso é grave, porque atesta que eles existem e certamente vão continuar a ser produzidos ao arrepio das decisões dos/das neocomunistas da Corte -, já que estamos falando de futebol, ou de coisas que envolvem o futebol, não custa lembrar que homens de escol de um clube da capital se reuniram há uns três anos, para, entre vinhos e cervejas importadas e generosos nacos de filé num restaurante tradicional da cidade, estabelecerem estratégias de perseguição a torcedores e torcedoras deste clube que se declaravam antifascistas e realizavam ações de combate a essas práticas. Esses macartistas continuam dando as cartas no tal clube.
Tudo isso leva a uma constatação: o racismo, a homofobia e tantas outras formas de discriminação estão na estrutura social do país e não é lançando notas e manifestos, ditando decisões judiciais que não terão nenhum efeito prático, enfim, não é jogando para a torcida, para ficar no jargão futebolístico, que as coisas vão mudar. É preciso uma tomada de consciência por parte da sociedade no sentido de que é necessária uma varredura – para a lata do lixo e não para debaixo do tapete – de toda essa escória desumana que comanda o país e é tolerada, senão apoiada, por quem representa a sociedade em outras esferas, como no âmbito do futebol, que, como já se disse, das coisas menos importantes é a mais importante. Se não aproveitarmos os fatos lamentáveis que estão sendo noticiados diariamente para virar o jogo e recolocar o país no lado certo da estrada, vamos homologar a falência da sociedade humana. Ou talvez possamos simplesmente percorrer os escritos de Camões para ver que palavra ele usaria para expressar o mimimi.
Imagem de destaque: acervo do autor.