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Brasil de Jesus X braZil de Messias: nações em chamas

Na madrugada de 13 para 14 de novembro, uma semana atrás, um incêndio destruiu a casa de orações da Aldeia Guarani Pindó Mirim, aqui em Itapuã. Não deu no Fantástico, não teve espaço na editoria local do G1.

Este crime, que também atingiu um local usado para a guarda de alimentos, não é um fato isolado. Na página do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) podem ser encontradas várias notícias de atentados recentes contra áreas indígenas. Raríssimos desses casos têm alguma repercussão na grande mídia e, quando isso acontece, é de passagem e sem que se dê o devido acompanhamento aos desdobramentos, principalmente no âmbito penal, se é que os há.

Proponho um teste rápido para ilustrar a minha afirmação: qual a primeira lembrança que traz o nome Galdino Jesus dos Santos? Apesar do sobrenome, Galdino é um cidadão indígena, nascido na nação Pataxó. E por que ele é chamado de Jesus dos Santos? Porque os indígenas precisam adotar um nome ocidental para o registro civil na terra que desde sempre foi deles. Trata-se de uma das mais cruéis expressões de violência humana, pois age diretamente na subjetividade, na construção identitária da pessoa, que é obrigada a ser reconhecida por um nome que não tem nenhuma relação com a sua cultura. Mas não é exatamente este o ponto que quero tocar agora. Interessa lembrar que em 19 de abril de 1997, data que integra o calendário civil brasileiro como Dia do Índio (“todo dia era dia de índio”, diziam Pepeu e Baby), Galdino se abrigou em uma parada de ônibus da capital federal, já que por conta do horário não tinha conseguido retornar para a pensão em que estava hospedado. Estava em Brasília para tratar com o governo FHC de questões indígenas. E, naquela madrugada, dormindo na parada de ônibus foi que encontrou o seu trágico destino, pelas mãos de alguns jovens de classe média, que resolveram “tirar uma onda” e tacaram gasolina e fogo nele. Galdino morreu no dia seguinte, com 95% do corpo queimado. No julgamento, os “meninos” alegaram que pensavam se tratar de um “mendigo” e resolveram fazer uma brincadeira com ele. Vale dar uma olhada na sentença que desclassificou o crime para “lesão corporal seguida de morte” (https://archive.md/lijQe).

Imagem copiada de: <https://www.brasildefato.com.br/2021/08/31/governo-bolsonaro-designou-assassino-do-indio-galdino-para-cargo-de-confianca-na-prf&gt;. Acesso em: 24 de nov. 2021.

Revoltante essa história, né? E que tal saber que um dos assassinos, Gutemberg Nader de Almeida Júnior, exerceu um cargo de confiança na Polícia Rodoviária Federal, na gestão do paladino da justiça Sérgio Moro à frente do Ministério da Justiça? Pois é, definitivamente o Brasil de Galdino Jesus não é o mesmo braZil de Messias Bolsonaro.

Vamos pegar um fato mais recente pra ver se alguma coisa mudou do final dos anos 90 pra cá. Lembram do então deputado que discursou para ruralistas dizendo que “índios, quilombolas e homossexuais são tudo o que não presta”? Minha memória, assim como meus dentes, às vezes me trai, mas disso eu me lembro: chama-se Luiz Carlos Heinze, foi eleito senador, é uma das vozes mais inflamadas na defesa do governo bolsofascista e é pré-candidato ao governo do RS. Na minha perspectiva, com boas chances de ser eleito, diante do poder da classe que representa, afinal, o agro é pop.

Nessa altura, alguém já estará dizendo que é uma injustiça (ou mimimi) afirmar que a grande mídia não se interessa pelas causas humanitárias, afinal o próprio Fantástico andou denunciando crimes e problemas graves em terras Yanomamis. Parece até que depois dessas matérias o Ministério Público Federal resolveu cobrar das autoridades providências para a saúde das comunidades noticiadas. Vamos colocar alguns pingos em alguns is e, pra não perder o hábito, lançar uma dúvida: (1) o MPF tem gente e estrutura suficiente, inclusive de inteligência, para não depender do Fantástico para agir nesses casos; (2) considerando que os crimes contra os povos originários não começaram a acontecer na semana passada, talvez seja interessante investigar o que está por trás do súbito interesse da casa dos marinhos na questão indígena. Diz a sabedoria popular que não há almoço de graça, enfim.

Pelo menos desde que os astecas pagaram caro a ingenuidade de Montezuma ao receber Hernan Cortez como um deus, os velhos habitantes do novo mundo são assassinados. Algumas vezes de forma ostensiva e coletiva, como se fazia na época das conquistas ultramarinas, outras pelo fogo, que é ateado contra a própria pessoa ou que destrói os seus locais sagrados e os reservatórios de alimentos nos espaços onde estão aldeados. Acontece que nos séculos passados o povo não podia decidir nada, a não ser pelas armas. Hoje também precisamos de arma, mas temos uma mais poderosa do que qualquer outra, que devemos a quem lutou e até morreu para que pudéssemos dispor dela: o voto. A questão que se impõe agora é que temos pouco menos de um ano para decidir, pelo voto, como queremos passar à história frente à questão indígena: se na condição de copartícipes do extermínio das nações que já estavam por aqui muito antes de nós, em pleno curso há 500 anos e em marcha acelerada no governo fascista atual; ou como pessoas que lutaram para o restabelecimento da democracia e dos caminhos para a construção de uma sociedade mais justa, em que todas e todos, independente de etnia ou cor, gênero ou afetos, filosofia ou credo, tenham direito a uma vida digna. Está nas nossas mãos dar um passo na direção de um país em que pessoas, mesmo que de fato sejam moradoras de rua (ou mendigas, como preferem aqueles ex-jovens mas sempre assassinos), não tenham seu corpo carbonizado por mera diversão. E em que mulheres não sejam estupradas apenas por não merecer, e em que quilombolas e homossexuais não sejam tratados como lixo, e por aí vai.

No caminho do voto, tudo aponta que Bolsonaro, acusado pela CPI de genocida de indígenas, seja candidato. Moro, seu ex-aliado de primeira hora, em cuja gestão como ministro da… justiça, um assassino cruel ganhou cargo de confiança, também será. Na esfera estadual, Heinze, que disse aquelas barbaridades antes citadas e considera a demarcação das terras indígenas um crime contra o país, disputará o pleito. E assim como esses, tantos e tantas candidatos/as comprometidos/as com os (mais sórdidos) interesses das elites concorrerão aos cargos no legislativo. Urge, então, que as forças de resistência assumam o compromisso de combater de forma séria e organizada essa escalada nazifascista e ponham termo ao incêndio que destrói a mata, as terras, as comunidades e as pessoas.

Enquanto nós, que temos o poder de usar o voto para mudar esse quadro, continuarmos acreditando que o massacre dos povos originários e as barbaridades cometidas contra as pessoas que a elite nazi considera diferentes não nos diz respeito, ou apenas olharmos com algum sentimento de pena e sem nenhuma intenção de assumir a culpa que temos pela omissão frente aos fatos revoltantes, como o assassinato de Galdino ou o atentado sofrido pelos Guaranis de Itapuã na semana passada, o risco da história nos carimbar como apoiadores de assassinos nos assombrará. E não adianta terceirizar a luta para o Fantástico ou o Jornal Nacional, que as pautas das editorias da rede são muito voláteis (ah, os eufemismos…) e talvez daqui a um ano ou menos os Yanomamis já tenham caído no esquecimento (de novo), como caíram Galdino e seus assassinos.

Quanto ao crime em Itapuã, nem no Jornal do Almoço…

*Imagem de destaque copiada de: <https://www.abrasco.org.br/site/comissaodecienciassociaisehumanasemsaude/o-que-se-trama-contra-os-povos-indigenas/716/&gt;. Acesso em: 24 de nov. 2021.

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Religiões, Republicados

And no religion too…*

… diria um Lennon esperançoso de que um mundo novo pudesse ser construído a partir da imaginação das pessoas e da crença na viabilidade desse novo mundo. No contexto em que está colocada, essa exortação ao abandono da religiosidade pode ensejar a discussão antiga, e para alguns datada, como tudo no marxismo, sobre a religião sendo o ópio do povo. Mas não quero propor esse debate, não pelo menos agora. Nem quero entrar na questão da prática religiosa propriamente dita. Apenas quero pegar uma carona num acontecimento recente pra apresentar algum questionamento sobre a relação entre religião e sociedade, esta última compreendida em sentido amplo, sem deixar de fora mesmo as instituições oficias.

O Brasil é um país laico, embora o preâmbulo da nossa Lei Maior exclua todos aqueles que não acreditam em Deus, eis que esses não estarão protegidos por ele (ou Ele). Não obstante, discussão das mais quentes no Rio Grande do Sul é sobre a retirada dos crucifixos das salas de audiências dos Foros e de outros ambientes públicos. E bota quente nisso, porque a “ala Opus Dei” da magistratura pegou em armas para defender o direito de Cristo de defender a todos que frequentam aqueles ambientes, talvez até mesmo aqueles que acham que ele (ou Ele) nem existiu. Por outro lado, questiona-se a existência de feriados religiosos – leia-se católicos -, como Natal, Páscoa etc. Basta isso para se atestar que o assunto é complexo. E mesmo diante dessa complexidade, na minha opinião, discutido com pouquíssima seriedade. Em qualquer debate são levantados argumentos que não passam de defesas intransigentes de um ponto de vista religioso contra defesas intransigentes de um ponto de vista não religioso. E assim não se chega a lugar nenhum.

Todavia, a influência da religião na sociedade deveria ser discutida com profundidade e, acima de tudo, com seriedade. No âmbito do Congresso Nacional estamos vendo como as questões de natureza religiosa são decisivas nas tomadas de decisões, e temos como exemplo o proselitismo feito pelo Pastor Marcos Feliciano, que se tornou uma das figuras mais importantes e influentes do nosso legislativo. (Usei este exemplo apenas para ilustrar a questão, e por ser ele bastante noticiado, estando, portanto, ao alcance de todos.)

Eis o acontecimento recente de que falei: tem algum tempo, fui preencher uma ficha de cadastro, que no espaço da identificação pedia que eu apontasse a minha religião e dava como opções: católica, evangélica, espírita e outra. A opção “outra”, ao contrário do que se possa imaginar, não era neutra nem genérica, pois em seguida perguntava qual. Deixei em branco. O atendente, ao receber a folha, me alertou para o esquecimento e quando eu disse que fora voluntário ele disse que eu deveria marcar a opção “outra”. De nada adiantou eu explicar que a minha resposta não era “outra”, ele praticamente me obrigou a escolher uma opção. Peguei de volta a folha, marquei a opção “outra” e apontei “ecumênica”. O moço, já de má vontade comigo (depois percebi que ele ostentava por dentro da camisa um vistoso crucifixo de madeira) consultou alguém lá dentro e voltou dizendo que era necessário eu identificar alguma religião.  – Antes que alguém pergunte, o cadastro não tinha nada a ver com qualquer instituição religiosa, mas apenas serviria para que eu recebesse informativos periódicos de um determinado centro cultural em Porto Alegre. – Nesse momento, também eu já estava disposto a complicar as coisas. Peguei a folha de novo, botei um asterisco junto à palavra ecumênica e anotei no verso o seguinte:

“Fui criado em família católica apostólica romana praticante, e coroinha na Igreja das Dores. Só que quando a Igreja de Paulo parou de me dar as respostas que eu queria (teriam as perguntas se tornado mais complexas?), fui me tornando cada vez mais ecumênico.” Exatamente como está escrito na minha identificação neste blog. Mas resolvi não parar por aí, já que o objetivo tinha se transformado por completo numa questão pessoal e o que eu queria a partir dali era encher o saco dos caras tanto quanto eles estavam me enchendo. Escrevi mais isto:

Caso os senhores não saibam, e visando a poupar-lhes o trabalho de consultar o dicionário, ecumênico refere-se a algo que é universal, ou seja, não se restringe, no caso da religião, a um tipo de doutrina especificamente. Assim, tenho grande simpatia com as religiões de matriz africana, por seus rituais e pela musicalidade, principalmente; admiro muito os ensinamentos das filosofias orientais, particularmente do Budismo; acho interessantíssima a tradição judaica, bem como a compenetração islamita; admiro a verve dos pastores protestantes e também alguns aspectos da teologia católica; gosto de ler coisas sobre o Kardecismo, sobre o Xintoísmo, sobre o Santo Daime e já pensei em me converter à Igreja de Maradona; aprecio por demais as consturções melódicas das ragas indianas concebidas em louvor a Vishnu; por vezes canto ou recito mantras Hare Krishna; enfim, sou E.C.U.M.Ê.N.I.C.O. Almejo que tenham me entendido, por supuesto, porque entre as minhas melhores habilidades não está a de deitar ao papel bons desenhos, por isso, se forem eles necessários para vossa compreensão, terei de voltar outro dia com um amigo cartunista que então poderá me ajudar a elucidar a questão.”

Estou reproduzindo exatamente o que escrevi, porque tive o cuidado de copiar num papel, pois sabia que um dia isso me seria útil de outra forma.

Não é preciso dizer que nunca recebi um informativo sequer do tal centro cultural e, pensando bem, não estão tais noticiosos me fazendo falta.

Mas, voltando ao tema, como se explica a preocupação extrema de uma instituição sem caráter religioso com uma questão tão prosaica, a tal ponto de os caras praticamente me coagirem a declinar a minha profissão de fé? Evidentemente a partir de um certo momento estabeleceu-se uma espécie de guerra entre mim e o atendente, um querendo incomodar mais o outro. Entretanto, o fato de ser necessário o apontamento de uma religião, não se admitindo simplesmente a forma genérica “outra”, denota uma importância mais do que normal atribuída a algo que deveria ser tratado dentro da sua esfera, como uma questão de natureza pessoal. No instante em que a informação sobre a prática religiosa passa a ser algo essencial na identificação de uma pessoa, algo está errado. E isso está na base de todo tipo de intolerância que vemos diariamente na nossa sociedade. Ainda não conseguimos avançar o suficiente, na condição de sociedade organizada, para que as questões religiosas recolham a sua importância e influência aos limites estabelecidos pelas áreas de suas práticas e cultos. Não é sequer razoável que em pleno século 21 uma pessoa seja avaliada em qualquer aspecto da sua personalidade ou conduta em função da religião que pratica. E não estou falando apenas de escolhas pessoais no âmbito das amizades, mas de preconceito, segregação, retaliações, favorecimentos e coisas dessa gravidade.

Lembro da polêmica (uma das tantas) arrumada pelo Bisol, quando era Secretário de Segurança no governo Olívio Dutra, ao dizer que a maioria dos magistrados atuantes no Rio Grande do Sul era vinculada à maçonaria. Ele, que é um cara de rara inteligência e desembargador aposentado, explicou em detalhes o que quis dizer, mas mesmo assim os caras queriam a sua cabeça em bandeja de prata (olha a sombra da bíblia aí…).

Vamos refletir um pouco sobre isso, desviando brevemente para outra área polêmica: um cara entra com uma ação judicial contra um clube de futebol e na distribuição o processo vai para um juiz que é torcedor fanático e conselheiro deste clube. Terá o magistrado isenção para julgar a ação? Talvez sim, talvez não. E foi isso que o Bisol quis mostrar. Um juiz maçom, julgando uma ação em que figura como parte um seu confrade, conseguirá deixar de lado os compromissos assumidos na Loja? Possivelmente sim, mas possivelmente não. Como fica, então? Retomando os trilhos da discussão acerca da religião, imaginem como deve se sentir um sujeito que é reu em algum processo e, sendo conhecido ministro de determinada religião afro, no dia da audiência entra na sala e vê um grande crucifixo na parede, outro no peito do juiz, e, não bastasse essa configuração católica apostólica romana estatal, reconhece o advogado do autor da ação como um célebre frequentador de programas de debate na tv, sempre chamado a defender a ideologia da Igreja. Se por um lado ele deve acreditar na metáfora da justiça como uma deusa cega, por outro dificilmente não imaginará que tem pouca chance de ter sucesso na sua defesa. E por aí vai o trem da história, entre erros e acertos, rezas e velas.

Como eu disse no início, o tema é complexo e pode ser discutido amplamente sob diversos pontos de vista. De minha parte, entendo que a religiosidade, ou a negação dela, deve fazer parte das questões subjetivas, encaradas como estritamente particulares de cada indivíduo, manifestando-se de forma coletiva apenas nos espaços reservados para tal. Fora de tais espaços, que o fato do cara ser cristão, ateu, agnóstico, judeu ou o que quer que seja, não exerça nenhuma interferência na sua vida e na maneira como ele se relaciona com a sociedade.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 6/11/2013.

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