Direitos Humanos, Língua Portuguesa, Mulheres, Política

Saudades da Presidenta

Em abril de 2012, quando o Brasil era presidido por Dilma Rousseff, foi publicada, no dia 3 daquele mês, uma lei daquelas que acabam passando batidas pela população de uma forma geral, dada a pouca importância que se dá a ela. A ementa desta lei diz o seguinte:

Determina o emprego obrigatório da flexão de gênero para nomear profissão ou grau em diplomas. (Lei 12.605)

Para quem não está muito acostumado com as nomenclaturas da gramática – e a maneira como a língua portuguesa é abordada nas nossas escolas faz com que a imensa maioria da população de brasileiros e brasileiras não esteja acostumada mesmo com isso -, explico o que a lei determina: a partir da sua vigência, as mulheres ganharam o direito de se apresentarem como mestras, caso obtenham o título de mestrado, ou doutoras, no caso do doutoramento. Mais do que isso, uma cirurgiã-dentista pode escrever a plaquinha do consultório dessa forma e não mais “Joana… Cirurgião-Dentista”.

Na prática, qual a implicação dessa mudança? Pouca, porque há muito as mulheres já se valiam desse direito natural, e, em face de outro preconceito, o social, não eram contestadas, já que beiraria o ridículo alguém advertir uma profissional de nível superior que ela deveria utilizar a designação na forma masculina. Há uma hierarquização no machismo, como há em todas as formas de discriminação social. Mas, oficialmente, elas estavam fora da lei.

Isso diz muito mais do que a simples prática linguística, fala com o machismo que está na estrutura da formação do Brasil como uma nação autônoma. Se pensarmos que até poucas décadas as mulheres não tinham direito de votar e que a legítima defesa da honra, quando o homem é “traído” pela mulher, não raro ainda é aceita como excludente em casos de feminicídio, vemos que cada conquista, por menos importante que pareça, deve ser muito comemorada.

A propósito de legislação, o Código Penal Militar, uma das leis mais obsoletas que ainda existem no ordenamento jurídico brasileiro, que, pouca gente sabe, ainda prevê caso de aplicação da pena de morte, traz no seu artigo 407 a seguinte redação:

Art. 407. Raptar mulher honesta, mediante violência ou grave ameaça, para fim libidinoso, em lugar de efetivas operações militares: (…). O grifo é meu.

Tudo isso mostra que vivemos em um país machista, patriarcal, misógino, e que nada adianta o mise èn scnene da grande mídia e das instituições (bem pouco) republicanas em repudiar o escrotismo do Mamãe Falei enquanto quase nada fazem para combater a estrutura que ainda permite discriminações salariais de mulheres, que naturaliza a violência doméstica sob a máxima “em briga de marido e mulher estranho não mete a colher”, que admite que meninas e mulheres pobres não possam sair de casa porque não têm dinheiro para comprar absorventes e, sobretudo, aceita a manutenção no poder de um homem que diz que a filha nasceu de uma fraquejada, diz que certas mulheres não merecem o estupro por serem feias, mantém como ministra da mulher alguém que afirma que meninos vestem azul e meninas vestem rosa e que a culpa pelos estupros de vulneráveis é o não uso de calcinhas.

É evidente que, diante desse circo de horrores, uma lei que autoriza a flexão feminina na designação das profissões pode parecer de pouca relevância. Entretanto, contrariando o velho Aristóteles, que definiu… o homem (e a mulher, onde fica?) como um animal político, o filósofo Ernst Cassirer disse que o… homem (e a mulher, onde fica?) é um animal simbólico. Os símbolos nos constituem, Jung e os linguistas clássicos já provaram isso. Então, vamos passar a dar maior importância aos símbolos dos preconceitos e das opressões, porque de referencial inconsciente à prática, o caminho é bem curto.

E, sim, viva o Dia 8 de Março como Dia da Mulher!!

Imagem de destaque copiada de: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/area-imprensa/ultimas_noticias/2013/03/08-03-pronunciamento-da-presidenta-dilma-rousseff-sobre-o-dia-internacional-da-mulher. Acesso em: 8 de mar. 2022.

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Direitos Humanos, Linguística, Política

O tal do Lácio lá é planta pra dar flor?

Na semana passada, conversava com dois queridos amigos sobre questões de gênero, especificamente linguagem inclusiva e leinguagem neutra. Nenhum desses meus amigos se importaria que eu citasse os seus nomes aqui, mesmo porque eles têm opiniões fortes e muito consolidadas, das quais não se envergonham e nem têm medo de expor, por isso as defendem em qualquer debate. Entretanto, ainda levo a sério os preceitos éticos, e como não pedi autorização para declinar os nomes, não vou fazê-lo.

Esses meus amigos, que se não me engano nem se conhecem pessoalmente, têm muitas coisas em comum e a maneira como entendem este tema é basicamente a mesma. Para eles, as pautas identitárias, que são normalmente associadas à Esquerda, foram capturadas pelo capitalismo, viraram discurso da burguesia. Ambos têm argumentos fortes na defesa dessa ideia, que passam pelo fato de que essas lutas, segundo os próprios, acabam por deixar de lado ou colocar em segundo plano os problemas decorrentes do desequilíbrio das classes sociais, em outra palavra, a luta de classes. Esse debate dá pano pra manga. Pode começar na discussão objetiva sobre a precedência da luta de classes sobre as das liberdades individuais e/ou de grupos não hegemônicos e chegar até um embate filosófico sobre stalinismo, trotskismo, imperialismo, colonialismo, e outros tantos ismos. Não é o caso, não pretendo ir tão longe por aqui.

O uso das linguagem neutra e inclusiva é um assunto que me desperta grande interesse, mas sobre o qual ainda não tenho opinião bem formada. Em relação à língua, o que mais me atrai a atenção é a maneira como ela pode ser manipulada para manter sistemas de opressão e poder. Um exemplo contundente: por mais títulos de Doutor Honoris Causa com que possa ser agraciado, o Lula sempre vai ser tratado pelas1 que dele não gostam – e muitas vezes até por quem gosta – como um analfabeto, na melhor das hipóteses funcional. Por mais absurdo que seja acreditar que alguém que não sabe falar chegaria ao maior cargo eletivo do país e conquistaria respeito e admiração mundo afora. Aceitar isso seria mesmo desqualificar as universidades que lhe concederam títulos honoríficos, mas é o que se diz por aí: “Lula é um analfabeto, um capiau!”. Se pelo menos dissessem que é um doutor capiau… Isso mostra que língua (também) é política, nos sentidos concretos e abstratos do termo, porque, por exemplo, muitas das que se beneficiam dos programas sociais implementados durante o governo Lula não vão votar nele por ser um “analfabeto”. E o pior é que um grande número dessas nem se deu conta que votou em 2018 num sujeito, este sim, de pouquíssimas luzes. (Apenas para não deixar passar “in albis”, a impossibilidade ou dificuldade de falar está necessariamente relacionada a problemas de saúde, como malformação do aparelho fonador, transtornos neurológicos etc.)

Política institucional colocada em stand by, voltemos à vaca fria. Engenharia é uma ciência. Uma leiga, que nada entende dos cálculos matemáticos necessários a um projeto de construção de um prédio ou de abertura de um túnel, não discutiria com a engenheira responsável pela obra e muito menos diria que eles, os cálculos, estão errados. Mas em se tratando do uso da língua, ela não teria nenhum receio em corrigir alguém que fala pobrema por problema, mesmo que as CIENTISTAS linguísticas já tenham feito exaustivos estudos e comprovado que isso não é um erro, apenas uma variação, provocada por diversos fatores, às vezes até fisiológicos. (Abro um parêntese – parentesis, talvez? – para render uma homenagem à profissão das engenheiras, que conseguem, a partir de uma ciência hermética, Matemática, fazer tudo o que fazem. Fecha parênteses.) A propósito de erro, não é tão incomum vermos um pé de fruta, laranjeira, por exemplo, dar eventualmente um fruto um pouco diferente do padrão daquela árvore, maior que as outras, de cor ou formato um pouco diferente. Pensando melhor, vou dar um exemplo mais radical pra chegar aonde (ou onde?…) quero: há pessoas que nascem hermafroditas2. Ora, o padrão da espécie humana é que uma pessoa nasça com um aparelho reprodutor masculino ou feminino, mas não com os dois (e obviamente estou falando sem nenhum rigor científico, como determina a minha condição de leigo). No caso de alguém que tenha nascido com testículos e ovários, posso então dizer que essa pessoa nasceu errada, não posso? Assim como posso chamar de errada a laranja que nasce um pouco diferente do padrão das outras da mesma árvore. Não posso? Não? Devo aceitar isso como algo natural, raro, mas natural? Estranho! Então por que cargas d’água posso carimbar alguém que fala diferente de mim, ou melhor, alguém que fala diferente do que as gramáticas normativas determinam, como uma má falante? Sendo mais claro, como posso dizer simplesmente que essa mulher fala errado? Eu não digo que a laranja diferente está errada, mas digo que está errada a moça que fala frecha quando deveria falar flecha. Por quê?

A gramática, aquele livro chatíssimo que a gente estuda no colégio e desde o primeiro ano primário até o último do ensino médio tenta nos ensinar (e não consegue) que o certo é dizer voz fazeis e não vocês fazem, é simplesmente um código que busca sistematizar algumas questões da língua, a fim de facilitar as comunicações escritas ou eventualmente destinadas a um ambiente mais formal. Acabei de descrever um pedaço de um mundo ideal que não existe, porque infelizmente não é assim que a banda toca. Elas, as guardiãs da língua, conseguiram botar a carreta pra puxar o caminhão. Podemos fazer uma analogia com o Direito, área em que, a propósito, ainda se valoriza muito a língua “correta” (castiça, segregatória, horrorosa, enfadonha…), a Última Flor do Lácio, a nossa inculta e bela Língua Portuguesa, como dizem as românticas da língua de Camões. O Código Penal diz o que é ou não crime nas condutas sociais. Mas pra fazer isso, a legisladora parte da observação dos comportamentos humanos, verifica as condutas que causam problemas nas relações entre as mulheres, codifica e cria mecanismos pra evitá-las e, se for o caso, puni-las. Imaginem, então, se amanhã essa legisladora resolver que começar uma caminhada usando o pé esquerdo é crime. As inúmeras pessoas que usam o pé esquerdo pra dar o primeiro passo vão ser consideradas criminosas. Por outro lado, o senhor Napoleão Mendes de Almeida, a senhora Dad Squarisi e tantas outras, incluindo as que elaboram as provas dos vestibulares, dizem que uma pessoa não pode dizer… (“dizem que uma pessoa não pode dizer”: que repetição feia!), enfim, dizem que uma pessoa não pode falar “a gente vai” porque o certo é “nós vamos”. E vejam que estou dando como exemplo uma construção que nem é tão estigmatizada, mas substituam “a gente vai” por “nóis vai”. Posso ver as caras de nojo das gramáticas de plantão! Agora me digam se alguma dessas paladinas da norma… culta vai corrigir publicamente o Sílvio Santos pelos inúmeros “erros” dele ao falar, ou, como adoram dizer, pelos assassinatos contra o português que o hômi do baú comete todos os dias. Já a motorista do carro do patrão, se trocar bão por bom vai ser trucidada. O mundo não é tão bão, Sebastião…

Imagem copiada de: <https://www.saci.ufscar.br/servico_clipping?id=1194.&gt; Acesso em: 19 de jan. 2022.

Uma última situação hipotética pra encerrar (se é a última só pode ser pra encerrar…): duas pessoas ascendem socialmente e conquistam destaque social, poder e riqueza. Não obstante (agora mandei bem!), continuam a falar e até escrever de acordo com as variantes linguísticas em que se comunicam melhor. Uma é branca e outra é negra. Qual vai ser chamada de analfabeta?

O preconceito linguístico é cruel, um dos mais cruéis, na minha opinião, porque vai direto na subjetividade da pessoa e naquilo que pode ser considerando o único patrimônio inerente à sua condição humana, que é a língua. “Minha pátria é minha língua”, cantou Caê (ou foi outro Pessoa?). E é ainda mais cruel porque é disseminado em quase todos os ambientes, principalmente nas escolas tradicionais, que estabelecem níveis para enquadrar as alunas de acordo com a sua capacidade ou falta de capacidade de conjugar o verbo fazer no pretérito mais-que-perfeito do subjuntivo. É mais-que-passada a hora, então, de incluir com força o preconceito linguístico na paleta das lutas.

Agora que cheguei ao fim, alguém deve estar se perguntando porque eu falei lá no início sobre a conversa com os meus dois amigos, se pouco falei de linguagem inclusiva, que era o tema do papo, afinal. Ora, fi-lo porque qui-lo!3 Mas acho provável que volto a esse assunto quando tiver uma opinião pouco mais consolidada, como os meus amigos.

*Imagem de destaque copiada de: <https://redes.moderna.com.br/2017/06/29/preconceito-linguistico-combate/.&gt;. Acesso em 19 de jan. 2022.

1A marca universal de gênero será sempre feminina neste texto.

2Hermafroditas é termo em desuso, que foi mantido no texto apenas para maior clareza da ideia que se quer expressar. Para a espécie humana se usa a palavra intersexual e na Biologia monoica e dioica, respectivamente para a presença ou não dos dois aparelhos reprodutores na mesma indivídua.

3À guisa de explicação, pra que não fiquem pontos sem is, diz que o velho JQ mandou mal nessa, porque o “certo” é fi-lo porque o quis.

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Língua Portuguesa, Linguística, Republicados

O cientista e o…*

Assuntos referentes à língua portuguesa constituem um dos temas recorrentes por aqui. Não tenho habilitação profissional pra falar disso de forma científica, mas quanta gente também não tem e fala mesmo assim? De qualquer sorte, sou um profundo conhecedor da língua falada no Brasil, ou melhor, de uma(s) das línguas faladas no Brasil. Alguns dirão que eu estou viajando, porque, afinal a língua falada no Brasil é uma só, o português (será mesmo?). Outros me acharão pretensioso e arrogante, além de contraditório, afinal eu disse ali em cima que não tenho habilitação pra falar e agora digo que conheço profundamente a língua. Corro, então, a clarear o que eu disse.

Assim como eu sou um profundo conhecedor da língua falada no Brasil (vou deixar assim pra não ficar chato, mas a observação já foi feita e continua valendo), a minha filha, Alexandra, de 4 anos, também é, e o carinha que “cuida” os carros na Getúlio com a Barbedo, igualmente, mesmo que ele já tenha me dito que não sabe ler nem escrever. Quem já leu algum outro texto sobre o assunto por aqui ou, ainda melhor, quem gosta do assunto e já leu alguma coisa escrita pelos grandes linguistas que temos no Brasil, não vai achar nada estranho isso que eu estou dizendo. Mas pra quem não está habituado com isso, dou mais uma clareadinha, dizendo que a diferença entre mim, a Alexandra e o negãozinho da casinha (é assim que ele gosta de ser chamado, porque sempre fica perto de uma casinha de chaveiro) é que eu certamente tenho um léxico um pouco mais amplo e estou mais acostumado a identificar que tipo de linguagem usar em cada ocasião da vida (mais informal entre amigos, mais técnica quando necessário, mais formal em determinadas circunstâncias).

O que eu quero (re)afirmar com este escrito é que a língua é um dos mais importantes e eficientes mecanismos de propagação do preconceito social, seja por conta da classe social, do lugar onde mora e outros fatores determinantes para a exclusão. E isso fica bem claro nos dois textos que eu transcrevo na íntegra a seguir, ambos publicados na (excelente) Revista Língua Portuguesa, da editora Segmento (edição nº 89, março de 2013, páginas 51 E 44-45, respectivamente). O segundo é de autoria de Sírio Possenti, que tem assim definida a sua qualificação no final do texto: Professor Titular do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Humor, Língua e Discurso (Contexto). O outro é do Jornalista e autor de Língua sem Vergonha (Civilização Brasileira, 2011), Josué Machado. Ao final da leitura dos dois textos, gostaria que fosse feita uma reflexão sobre quem tem habilitação e, portanto, fala com mais propriedade sobre a CIÊNCIA LINGUÍSTICA, não esquecendo que a revista, embora possa ser lida com prazer por qualquer pessoa, pode ser considerada uma publicação técnica, que trata da língua como um objeto científico, da mesma maneira que há revistas específicas sobre a Ciência do Direito, a Ciência da Medicina, a Ciência da Física etc.

Antes, porém, de passar aos textos, quero referir outra matéria surpreendente da revista, que mostra que uma pesquisa feita nos EE.UU. revela que o primeiro fator de atração a ser considerado por um homem quando tem interesse numa mulher é o estado geral dos dentes, e o segundo, pasmem, é o uso “correto” da língua. Dessa reportagem, destaco a fala de um tal Flávio Vianna, citado no texto, paulistano de 41 anos, que assim se manifestou: “Há pouco tempo, conheci uma garota bonita, com um corpo bonito, mas quando abriu a boca foi um desastre. (…) Realmente me incomoda, a ponto de eu sentir vergonha. Vai que um amigo escuta? Ter um relacionamento com alguém que não sabe falar direito é um retrocesso.” De minha parte, acho que o verdadeiro retrocesso é ainda acreditar que uma mulher brasileira, em idade apta a ter um relacionamento amoroso (pelo menos eu espero que tenha idade pra isso) e que, portanto, já precisou se comunicar usando a linguagem milhões de vezes na vida, não sabe falar direito. E retrocesso ainda maior é considerar esse “não falar direito” motivo de vergonha perante os amigos (todos súditos do Napoleão Mendes de Almeida e do Pasquale Cipro, decerto…).

Sem mais delongas, vamos aos textos.

“Aumentos sofrem (seção Dito & escrito). 

Por motivos misteriosos, o verbo ‘sofrer’ aparece em notícias sobre aumentos de preços e outros valores

Por Josué Machado

Em noticiário de rádio, a repórter revela que a milionária avenida Faria Lima ‘é aquela em que o metro quadrado dos edifícios comerciais mais sofreu aumento em São Paulo’. Na TV, a âncora do noticiário lembra que o auxílio-moradia concedido pela prefeitura às vítimas de enchentes ‘não sofre reajuste’ desde 2009. Pelo jornal, sabemos que o então presidente do Supremo, ministro Ayres Britto, enviou ao Congresso proposta de reajuste salarial para o Judiciário; desse modo, quando o reajuste for confirmado, ‘os salários de todos os servidores que recebem o teto salarial vão sofrer aumento‘.

Anunciava-se  mais ou menos na mesma época que o salário mínimo sofreria aumento, mas não se sabia ainda que aumento sofreriam os proventos dos aposentados. Na análise do índice de inflação, tomamos ciência de que o preço do tomate é o que sofreu o maior aumento por causa do excesso de chuvas. (Às vezes é pela falta de chuvas.) Somos lembrados também, por um mestre, de que ‘a língua sofre mudanças com o correr do tempo’.

Por que tanto sofrimento? Que razões levam um redator a estabelecer relação entre aumentos de preços ou salários e sofrimento? Talvez porque aumentos em geral resultem em sofrimento. Ou pagar mais sempre dói ou os aumentos de salários são insuficientes, o que resulta em dor pela impotência de não poder pagar o que é preciso.

Sofrimentos

Em todos os casos, ‘sofrer’ ganha o curioso significado aproximado de ‘ganhar’, ‘receber’. Ou, nas transformações da língua, transformar-se ou mudar passa a ser ‘sofrer’. Por que não usam simplesmente os verbos ‘aumentar’ e ‘reajustar’, ainda que no particípio? Assim: ‘A avenida Faria Lima é aquela em que mais aumentou o preço do metro quadrado dos edifícios comerciais em São Paulo.’

‘O auxílio-moradia concedido pela prefeitura às vítimas de enchentes não é reajustado desde 2009.’

Ou: ‘A prefeitura não reajusta o auxílio-moradia às vítimas de enchentes desde 2009.’

‘Os salários de todos os servidores que recebem o teto salarial serão aumentados.’

‘A língua muda com o correr do tempo’.

Enfim, por que tanto fazem sofrer o coitado do verbo ‘sofrer’?

*Grifos no original.

Bueno, em primeiro lugar, o cara é jornalista e se acha no direito de deitar regras sobre o uso da língua para os milhões de falantes dela. É bem provável (ou não) que ele fale um português castiço, que se usava (ou não também) lá no tempo de Camões. A propósito, essa patrulha gramatical adora citar o português de Camões, mas ou eles não leram sequer “Os Lusíadas” ou são muito cretinos mesmo (eu, particularmente, acho as duas coisas), porque lá no poema tão reverenciado por eles, aparecem como traíra de açude muitas palavras que eles condenam. O pior, nesse caso, é que o cara se contradiz no próprio texto. Ele mesmo sugere (com absoluta razão) que a língua é um organismo vivo, em constante transformação (“Ou, nas transformações da língua, transformar-se ou mudar passa a ser ‘sofrer.’”). Se ele refletisse por um segundo sobre essa própria observação, nem escreveria o texto. E dá como exemplo uma afirmação: “A língua muda com o correr do tempo”. (Grifo no original.)

Ora se a língua muda, o que é reconhecido pelo próprio autor, por que não aceitar a mudança que se verifica com o uso do verbo sofrer em outros sentidos além do original (ou mais comum)?

Então tá, vejamos o que diz o CIENTISTA DA LÍNGUA, Sírio Possenti mais ou menos sobre o mesmo assunto.

“A língua não é dos falantes

Analisar as novas formas linguísticas deveria fazer parte do dia a dia de alunos e professores

Por Sírio Possenti

Três questões devem reger o ensino de gramática. Ao lado delas, outras poderiam ser destacadas, como leitura e escrita. O conjunto formaria a ‘área’ de português, digamos:

a) A variação e a mudança da língua;

b) O desenvolvimentos da capacidade de análise;

c) O domínio da norma.

Começo pela última. Não faria sentido tratar da língua portuguesa na escola, em sociedades como a nossa, se um dos objetivos não fosse que os alunos tivessem, ao fim de anos de trabalho, razoável domínio da norma culta (até variavelmente, conforme seus usos reais). Ou seja: que soubessem escrever textos publicáveis, resumos adequados, cartas a autoridades ou a jornais, relatos / relatórios de viagem, etc.

A melhor maneira de aprender a fazer isso é fazendo, e não estudar gramática ou corrigir listas de erros. É claro que a escrita e a rescrita de textos implica consultar dicionários, gramáticas normativas e manuais de redação, para verificar quais as expectativas ‘sociais’, especialmente em caso de dúvida. Aliás, boas aulas ensinam a ter dúvidas na hora certa.

Variação

Em seguida, a questão da variação e da mudança da língua. Não faz sentido, numa era de domínio da ciência (quando se tenta explicar tudo), que os alunos não possam ter ideia razoável de por que as línguas variam conforme a região, a idade, a escolaridade, eventualmente, o sexo, etc. dos falantes.

Talvez a única verdade indiscutível em relação às línguas é que não são faladas uniformemente por todos. A heterogeneidade social implica, ao menos coocorre, na heterogeneidade linguística – em todas as sociedades! Seria simplificador supor (e impor) uma única variedade, tratando o restante das formas da língua simplesmente como erros. Mas o resultado mais interessante da consideração da variedade da língua é que ela pode ser tratada juntamente com sua mudança. 

Suponha um professor de história que parasse na queda do Muro de Berlim e considerasse que o que veio depois não é história (é erro!). Ou defendesse o correio a cavalo, pois assim D. Pedro I soube das pressões de Lisboa para sua volta a Portugal. Por que a invasão ao Iraque não seria história? E por que excluir o envio de dados pela internet? 

A história do português continuou após Machado ou Graciliano. Ou Camões (que, aliás, escreveu ‘que outro valor mais alto se alevanta’!) e Eça. Se o latim pigritia deu ‘preguiça’, por metátese, e isso não é um erro, nem por isso se deve aceitar que ‘estrupo’ é a forma correta, mas por que não se pode aceitar o processo de formação da palavra, em vez de (por falta de saber do que se trata!) rir dela? Principalmente, por que não se pode aceitar que regências mudaram (como as de ‘assistir’ e ‘preferir’)? Por que insistir nos pronomes ‘o’, ‘a’, ‘os’, ‘as’ como objetos diretos pronominais exclusivos (condenando ‘lhe’ (s) nessa função, se, para citar só um estudo, a tese de que ‘lhe’ substitui ‘o’, ‘a’, etc. foi proposta por Mattoso já em 1957? Mais fundamental: não é uma tese nascida da cabeça de Mattoso, mas dos dados do português do Brasil!

Aliás, o estudo é exemplar: não só atesta o desaparecimento do antigo pronome reto, mas o uso de ‘ele’, ‘ela’, etc. como objeto direto, sem propor que isso seja parte da norma, reconhecendo que é estigmatizado. A recusa em reconhecer os fatos, as novas formas da norma (visto que a forma aparece mesmo em textos de escritores profissionais) é equivalente a não reconhecer a internet, o rock, o DNA, as células, pois estes objetos não estão na história do século 19. 

Menos valorizadas

Ser capaz de analisar as formas novas (usadas por pessoas cultas ou não) deveria fazer parte da capacidade do aluno (ao menos, do professor). Aulas de história falam de globalização; as de física, de átomos. Por que as de português não podem falar de formas dialetais menos valorizadas, nem dar-se conta de que formas do século 16 deixaram de existir e as novas estão nos textos dos literatos, que as gramáticas dizem que são suas fontes? Como se pode dizer que ‘Tinha uma pedra’ (no meio do caminho) é erro de português, assim como ‘Joga-se os grãos’ (na água do alguidar), se tais formas estão em Drummond e Cabral – embora não sejam suas criações, mas amplamente usadas pelos que tomamos por cultos?

Em terceiro lugar, é importante aprender a analisar, a observar dados com alguma sofisticação. Aceitar – só porque alguém lhe disse – que ‘o’ e ‘orelhudo’ são adjuntos adnominais de ‘cão’ em ‘O cão orelhudo’, em vez de dizer que ‘orelhudo’ é um adjunto adnominal de ‘cão’ e ‘o’ é adjunto adnominal de ‘cão orelhudo’, é renunciar às capacidade de observação. (sic) 

Análise

Aceitar sem discutir que ‘Livro para mim ler’ é erro porque ‘mim’ não pode ser sujeito, sem dar-se conta que nunca se diz ‘mim vou/vai’ nem ‘lhe vai/vem’, etc., é só engolir ou decorar uma norma.

Deve haver explicação para o fato raro. Provavelmente, decorre de que o falante ‘analisa’ ‘Livro para mim’ e ‘Livro para mim ler’ como casos em que ‘eu’ está no escopo de ‘para’, preposição que rege objeto indireto. Por que, ao se tentar eliminar tal ‘vício’ (!), nunca se leva em conta construções parecidas, como ‘Tenha dó de mim’ e ‘Hoje é dia de eu pagar’? A forma ajudaria a compreender porque a norma espera ‘para eu sair’.

Aprender a analisar (tanto estruturas de acordo com a norma quanto as descriminadas) ajuda a entender porque umas não devem ser usadas em certos tipos de texto: não é que estão erradas (a história da língua mostra qual o seu lugar); é que não são bem avaliadas. E por isso, dependendo do tipo de texto, devem ser incluídas, como o fizeram e fazem os melhores escritores.”

(Grifos no original.)

Este último eu não vou comentar, porque fala por si próprio.

O que acham?   

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 26/3/2013.

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Preconceito linguístico: existe mesmo? Faça uma REVISTA nos seus (pre)conceitos e VEJA com seus próprios olhos

Em outro texto, falei sobre o livrinho (ão) “Língua e liberdade”, do professor Celso Pedro Luft. Hoje vou falar sobre outro livro, que pelo tamanho é um livrinho, mas pelo conteúdo é um LIVRÃO (ÃO, ÃO, ÃO…). Trata-se do “Preconceito linguístico: o que é, como se faz”, do pesquisador, cientista, linguista, escritor, poeta… ufa!, enfim, do PROFESSOR Margos Bagno. A minha edição é a 21ª, de 2003, da editora Loyola.

O livro do Professor Luft e este têm muita coisa em comum, a começar pela escolha muito feliz dos títulos. Em “Língua e liberdade”, é demonstrada de maneira muito simples e direta, em linguagem acessível a todos, inclusive, e talvez principalmente, a leigos – se é que existem brasileiros leigos em relação ao português – como a língua, tomada em sentido amplo, pode ser ao mesmo tempo um poderoso instrumento de opressão e um artefato libertador, pelo qual qualquer pessoa, desde uma criança de 3 ou 4 anos até um idoso que nunca aprendeu a ler ou escrever, manifesta-se, comunica-se e expõe os seus pensamentos, desejos, anseios, posições, ideologias etc. Neste “Preconceito linguístico”, o Professor Marcos Bagno apresenta, escancara, desmascara, desmitifica e propõe formas para erradicar este que é um dos mais odiosos preconceitos sociais, que é usado de forma muito consciente pela elites dominantes, mas que, infelizmente, é disseminado de forma ingênua por milhões de brasileiros, que são convencidos de forma nefasta que não sabem o português, sua língua materna, com a qual se comunicam perfeitamente desde a mais tenra infância. 

Decidi adotar o mesmo sistema do texto referido anteriormente, citando trechos do livro e fazendo alguns comentários quando achar necessário. Os grifos estão no original, exceto quando indicado. As minhas intervenções aparecem em negrito. A grafia foi mantida como no original.

Não sendo linguista, sem formação na área, mas tendo muita preocupação com os preconceitos generalizados que a nossa sociedade propaga, especificamente este, valho-me da técnica de reproduzir o pensamento de estudiosos para tentar apresentar os fatos e fazer com que as pessoas tomem consciência e, se acharem por bem (e devem achar), engajem-se na luta contra as discriminações, que representam entraves para a construção de uma sociedade mais justa e que se constituem no arsenal das elites para a manutenção do estado atual das coisas. Muitos já disseram que a grande revolução não está em somente seguir as palavras dos grande líderes, mas que começa dentro de cada um de nós. Disse certa vez o meu Mestre: “Antes de escrever o livro que o guru lhe deu você precisa escrever o seu.” Sendo assim, 

À REVOLUÇÃO!

Capítulo I – A mitologia do preconceito lingüístico

Mito nº 1 – “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”

Este mito é muito prejudicial à educação porque, ao não reconhecer a verdadeira diversidade do português falado no Brasil, a escola tenta impor a sua norma lingüística como se ela fosse, de fato, a língua comum a todos os 160 milhões de brasileiros, independentemente de sua idade, de sua origem geográfica, de sua situação socioeconômica, de seu grau de escolarização etc. (p. 15)

Mito nº 2 – “Brasileiro não sabe português/Só em Portugal se fala bem português”

O brasileiro sabe português, sim. O que acontece é que nosso português é diferente do português falado em Portugal. Quando dizemos que no Brasil se fala português, usamos esse nome simplesmente por comodidade e por uma razão histórica, justamente a de termos sido uma colônica de Portugal. Do ponto de vista lingüístico, porém, a língua falada no Brasil já tem uma gramática – isto é, tem regras de funcionamento – que cada vez mais se diferencia da gramática da língua falada em Portugal. Por isso os lingüistas (os cientistas da linguagem) preferem usar o termo português brasileiro, por ser mais claro e marcar bem essa diferença. (p. 24)

Mito nº 3 – “Português é muito difícil”

Está provado e comprovado que uma criança entre os 3 e 4 anos de idade já domina perfeitamente as regras gramaticais de sua língua! O que ela não conhece são sutilezas, sofisticações e irregularidades no uso dessas regras, coisas que só a leitura e o estudo podem lhe dar. Mas nenhuma criança brasileira dessa idade vai dizer, por exemplo: “Uma meninos chegou aqui amanhã”. (p.35)

Por quê? Porque toda e qualquer língua é “fácil” para quem nasceu e cresceu rodeado por ela! (p. 36)

Se tanta gente continua a repetir que “português é difícil” é porque o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português. (p. 36)

O professor pode mandar o aluno copiar quinhentas mil vezes a frase: “Assisti ao filme”. Quando esse mesmo aluno puser o pé fora da sala de aula, ele vai dizer ao colega: “Ainda não assisti filme do Zorro!” (…)

(…) aquelas mesmas pessoas que, por causa da pressão policialesca da escola e da gramática tradicional, usam a preposição a depois do verbo assistir, também dizem que “o jogo foi assistido por vinte mil pessoas”. Ora, se o verbo assistir pede um preposição é porque ele não é transitivo direto, e só os verbos transitivos diretos podem, segundo as gramáticas assumir a voz passiva. Desse modo, quem diz “assisti ao jogo” não poderia, teoricamente, dizer “o jogo foi assistido”. (pp. 36 e 37)

No fundo, a idéia de que “português é muito difícil” serve como mais um dos instrumentos de manutenção do status quo das classes sociais privilegiadas.  (p. 39) (Grifos meus.)

Mito nº 4 – “As pessoas sem instrução falam tudo errado”

(…) do mesmo modo como existe o preconceito contra a fala de determinadas classes sociais, também existe o preconceito contra a fala característica de certas regiões. É um verdadeiro acinte aos direitos humanos, por exemplo, o modo como a fala nordestina é retratada nas novelas de televisão, principalmente da Rede Globo. Todo personagem de origem nordestina é, sem exceção, um tipo grotesco, rústico, atrasado, criado para provocar o riso, o escárnio e o deboche dos demais personagens e do espectador. No plano lingüístico, atores não-nordestinos expressam-se num arremedo de língua que não é falada em nenhum lugar do Brasil, muito menos no Nordeste. Costumo dizer que aquela deve ser a língua do Nordeste de Marte! Mas nós sabemos muito bem que essa atitude representa uma forma de marginalização e exclusão.(pp. 43 e 44) (Grifo meu.)

Abro um parêntese para acrescentar que esse artifício de exclusão utilizado de forma muito consciente pela Rede Globo vai muito além do preconceito linguístico. Até pouco tempo, aos atores negros eram sempre reservados os papéis de empregados, motoristas, ladrões etc. Esse panorama mudou. Hoje negros ocupam papéis de protagonismo. Contudo, examinemos um pouco melhor essa “mudança”. Na última novela das sete, um dos personagens principais era interpretado pela negra Thaís Araújo. Em outro folhetim, coube ao ator negro Lázaro Ramos o protagonismo. O que têm em comum esses dois atores, além do fato de serem negros e marido e mulher? Ambos são exemplos típicos da beleza padronizada pelo mundo ocidental, têm rostos e corpos bonitos, dentes perfeitos, cabelos perfeitamente ajustadosAtores negros, cuja beleza não possa ser facilmente reconhecida pelo senso comum, continuam a desempenhar papéis secundários ou que representem elementos negativos em relação ao caráter, conduta social etc. Caso alguém tenha algum exemplo em contrário, um único, por favor me aponte. Um negro “feio” que seja o mocinho da novela. Uma negra “gorda” a quem não seja destinado o papel da cozinheira. Não que ser cozinheira desmereça qualquer mulher, branca, negra, vermelha, mas a forma estereotipada com que é apresentado o papel faz com que o imaginário popular solidifique a ideia distorcida de que essas profissões são menos importantes e, portanto, possíveis a pessoas a quem faltem “maiores qualificações”, entre elas um “melhor trato com a língua”.  

Mito nº 5 – “O lugar onde melhor se fala o português no Brasil é no Maranhão”

Convém salientar que a determinação das normas culta e não-culta é uma questão de grau de freqüência das variantes (o que os normativistas consideram erros ou acertos). Por exemplo, coisas como “os menino tudo” ou “houveram fatos” podem aparecer na fala de brasileiros cultos.

É preciso abandonar essa ânsia de tentar atribuir a um único local ou a uma única comunidade de falantes o “melhor” ou o “pior” português e passar a respeitar igualmente todas as variedades da língua, que constituem um tesouro precioso de nossa cultura. Todas elas têm o seu valor, são veículos plenos e perfeitos de comunicação e de relação entre as pessoas que as falam. Se tivermos de incentivar o uso de uma norma culta, não podemos fazê-lo de modo absoluto, fonte do preconceito. Temos de levar em consideração a presença de regras variáveis em todas as variedades, a culta inclusive. (p. 51)

Mito nº 6 – “O certo é falar assim porque se escreve assim”

O que acontece é que em toda língua do mundo existe um fenômeno chamado variação, isto é, nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares, assim como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico. (p. 52)

É claro que é preciso ensinar a escrever de acordo com a ortografia oficial, mas não se pode fazer isso tentando criar uma língua falada “artificial” e reprovando como “erradas” as pronúncias que são resultado natural das forças internas que governam o idioma. Seria mais justo e democrático dizer ao aluno que ele pode dizer BUnito ou BOnito, mas que só pode escrever BONITO, porque é necessária uma ortografia única para toda a língua, para que todos possam ler e compreender o que está escrito, mas é preciso lembrar que ela funciona como a partitura de uma música: cada instrumentista vai interpretá-la de um modo todo seu, particular! (pp. 52 e 53) (Grifo meu.)

Com esta afirmação e esta orientação, o professor Bagno destrói o argumento raso dos conservadores e reacionários “defensores” da “Ultima Flor do Lácio”, que sempre dizem que os linguistas estão propondo uma deturpação total da língua portuguesa, que busca incutir na cabeça das pessoas a ideia de que vale tudo na língua. Não! O que se propõe é que a língua seja analisada e estudada como um organismo vivo e, como tal, em constante modificação, sem que se criem visões anacrônicas e preconceituosas de que a única forma correta de utilizar a língua é aquela de que se valem os detentores do conhecimento da gramática normativa. Mesmo porque esse suposto domínio total das regras gramaticais é impossível, mesmo aos gramáticos prescritivos e dicionaristas.

A língua escrita, por seu lado, é totalmente artificial, exige treinamento, memorização, exercício, e obedece a regras fixas, de tendência conservadora, além de ser uma representação não exaustiva da língua falada.

Faça você mesmo o teste: pegue uma palavra bem simples – fogo, por exemplo – e pronuncie-a com todas as inflexões e tons de voz que conseguir: espanto, medo, alegria, tristeza, saudade, ira, remorso, horror, felicidade, histeria, pavor… Depois tente reproduzir por escrito essas mesmas inflexões e tons de voz. É impossível. O máximo que a língua escrita oferece são os sinais de exclamação e de interrogação! A mera forma escrita não é capaz de traduzir as inflexões e as intenções pretendidas pelo falante. Por isso, os autores de textos teatrais indicam, entre parênteses, a emoção, sensação ou sentimento que o ator deve expressar numa dada fala. (p. 55)

A espécie humana tem, pelo menos, um milhão de anos. Ora, as primeiras formas de escrita, conforme a classificação tradicional dos historiadores, surgiram há apenas nove mil anos. A humanidade, portanto, passou 990.000 anos apenas falando! (p. 56)

Mito nº 7 – “É preciso saber gramática para falar e escrever bem”

É muito comum, também, os pais de alunos cobrarem dos professores o ensino dos “pontos” de gramática tais como eles próprios os aprenderam em seu tempo de escola. E não faltam casos de pais que protestaram veementemente contra professores e escolas que, tentando adotar uma prática de ensino da língua menos conservadora,não seguem rigorosamente “o que está nas gramáticas”. Conheço gente que triou seus filhos de uma escola porque o livro didático ali adotado não ensinava coisas “indispensáveis” como “antônimos”, “coletivos” e “análise sintática”…” (p. 62)

Acrescento às palavras do autor a observação que, em geral, nem os pais aprenderam de fato os “pontos” de gramática na escola. No máximo eles decoraram algumas regras arbitrárias, que, no mais das vezes, servem para muito pouca coisa além de demonstrar uma suposta erudição e… excluir os que não “dominam” essas regras.  

O que aconteceu, ao longo do tempo, foi uma inversão da realidade histórica. As gramáticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como “regras” e “padrões” as manifestações lingüísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração, modelos a ser imitados. Ou seja, a gramática normativa é decorrência da língua, é subordinada a ela, dependente dela. Como a gramática, porém, passou a ser um instrumento de poder e de controle, surgiu essa concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam da gramática, como se ela fosse uma espécie de fonte mística invisível da qual emana a língua “bonita”, “correta” e “pura”. (p. 64) (Grifo no original e meu.)

As plantas só existem porque os livros de botânica as descrevem? É claro que não. Os continentes só passaram a existir depois que os primeiros cartógrafos desenharam seus mapas? Difícil acreditar. A Terra só passou a ser esférica depois que as primeiras fotografias tiradas do espaço mostraram-na assim? Não. Sem os livros de receita não haveria culinária? (p. 66)

Mito nº 8 – “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social”

Ora, se o domínio da norma culta fosse realmente um instrumento de ascensão na sociedade, os professores de português ocupariam o topo da pirâmide social, econômica e política do país, não é mesmo? (p. 69)

(…) um grande fazendeiro que tenha apenas alguns poucos anos de estudo primário, mas que seja dono de milhares de cabeças de gado, de indústrias agrícolas e detentor de uma grande influência política em sua região vai poder falar à vontade sua língua de “caipira”, com todas as formas sintáticas consideradas “erradas” pela gramática tradicional, porque ninguém vai se atrever a corrigir seu modo de falar. 

O que estou tentando dizer é que o domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha todos os dentes, que não tenha casa decente para morar, água encanada, luz elétrica e rede de esgoto. O domínio da norma culta de nada vai servir a uma pessoa que não tenha acesso às tecnologias modernas, aos avanços  da medicina, aos empregos bem remunerados, à participação ativa e consciente nas decisões políticas que afetam sua vida e a de seus concidadãos. O domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha seus direitos de cidadão reconhecidos plenamente, a uma pessoa que viva numa zona rural onde um punhado de senhores feudais controlam extensões gigantescas de terra fértil, enquanto milhões de famílias de lavradores sem-terra não têm o que comer. (p. 70) (Grifos meus.)

Capítulo II – O círculo vicioso do preconceito lingüístico

1. Os três elementos que são quatro

(…) o sujeito que usa um termo em inglês no lugar do equivalente em português é, na minha opinião, um idiota. (p. 78) [Referência à afirmação de Pasquale Cipro Neto em uma entrevista concedida à revista Veja, edição de 10/09/1997.]

2. Sob o império de Napoleão

Os delinqüentes da língua portuguesa fazem do princípio histórico “quem faz a língua é o povo” verdadeiro moto para justificar o desprezo de seu estudo, de sua gramática, de seu vocabulário, esquecidos de que a falta de escola é que ocasiona a transformação, a deterioração, o apodrecimento de uma língua. Cozinheiras,babás,engraxates, trombadinhas, vagabundos, criminosos é que devem figurar, segundo esses derrotistas, como verdadeiros mestres da nossa sintaxe e legítimos defensores do nosso vocabulário. (p. 79) [Referência ao verbete “VERNÁCULO”, no “Dicionário de questões vernáculas”, de Napoleão Mendes de Almeida (2ª ed.: 1994. São Paulo, LCTE)]

Napoleão Mendes de Almeida, um dos expoentes da “língua pura” mais cultuados pelos que acreditam e defendem essa monstruosidade, considerado por eles um verdadeiro repositório do saber contido nas raízes latinas do idioma oficial do Brasil, oferece uma prova substancial de que o preconceito linguístico não anda sozinho. Vejam que ele associa cozinheiras, babás e engraxates a  trombadinhas, vagabundos e criminosos, todos responsáveis pelo “apodrecimento” da língua portuguesa. Um sujeito desses ainda hoje é (muito) citado como referencial de amor à língua e cultivo das formas mais elevadas de utilização do português. Ao perceber isso, tenho que me socorrer do calendário para me certificar que estamos em 2012 e não na Idade Média…

3. Um festival de asneiras

(…) tenta ensinar coisas perfeitamente inúteis, como a pronúncia “correta” do nome inglês do modelo de um carro que, por sinal, já deixou de ser fabricado (Monza Classic SE) e também das siglas FNM e DKW (igualmente extintas), a grafia “correta” do apelido da apresentadora de televisão Xuxa (que, segundo ele, deveria se escrever Chucha), ou a conjugação apropinquar-se, que ninguém em sã consciência usa no Brasil, a menos que queira provocar risos ou passar por pedante… (p. 83) [Referência ao livro “Não erre mais!”, de Luiz Antônio Sacconi (23ª ed.: 1998. São Paulo, Atual)

Julgo importante reproduzir na íntegra um texto da lavra de Dad Squarisi, famosa colunista que fornece dicas de português em conceituadas publicações do país. Segundo o autor, a coluna foi publicada no “Correio Braziliense”, de 22/06/1996, e no “Diário de Pernambuco”, em 15/11/1998. Vamos, então, a algumas dicas da professora Squarisi:

Português ou caipirês?
 
Dad Squarisi
 
 
     Fiat lux. E a luz se fez. Clareou este mundão cheinho de jecas-tatus. À direita, à esquerda, à frente, atrás, só se vê uma paisagem. Caipiras, caipiras e mais caipiras. Alguns deslumbrados, outros desconfiados. Um – só um – iluminado. Pobre peixinho fora d’água! Tão longe da Europa, mas tão perto de paulistas, cariocas, baianos e maranhenses.
 
     Antes tarde do que nunca. A definição do caráter tupiniquim lançou luz sobre um quebra-cabeça que atormenta este país capiau desde o século passado. Que língua falamos? A resposta veio das terras lusitanas.
 
     Falamos o caipirês. Sem nenhum compromisso com a gramática portuguesa. Vale tudo: eu era, tu era, nós era, eles era. Por isso não fazemos concordância em frases como “Não se ataca as causas” ou “Vende-se carros”.
 
     Na língua de Camões, o verbo está enquadrado na lei da concordância. Sujeito no plural? O verbo vai atrás. Sem choro nem vela. Os sujeitos causas e carros estão no plural. O verbo, vaquinha de presépio, deveria acompanhá-los. Mas se faz de morto. O matuto, ingênuo, passa batido. Sabe por quê?
 
     O sujeito pode ser ativo ou passivo. Ativo, pratica a ação expressa pelo verbo: Os caipiras (sujeito) desconhecem (ação) o outro lado. Passivo, sofre a ação: O outro lado (sujeito) é desconhecido (ação) pelos caipiras. Reparou? O sujeito – o outro lado – não pratica a ação.
 
      Há duas formas de construir a voz passiva:
 
     a. com o verbo ser (passiva analítica): A cultura caipira é estudada por ensaístas. Os carros são vendidos pela concessionária.
 
     b. com o pronome se (passiva sintética): estuda-se a cultura caipira. Vendem-se carros. No caso, não aparece o agente. Mas o sujeito está lá. Passivo,mas firme.
 
     Dica: use o truque dos tabaréus cuidadosos: troque a passiva sintética pela analítica. E faça a concordância com o sujeito. Vende-se casas ou vendem-se casas? Casas são vendidas (logo: Vendem-se casas). Não se ataca ou não se atacam as causas? As causas não são atacadas (não se atacam as causas). Fez-se ou fizeram-se a luz? A luz foi feita (fez-se a luz). Firmou-se ou firmaram-se acordos? Acordos foram firmados (firmaram-se acordos). 
 
     Na dúvida, não bobeie. Recorra ao truque. Só assim você chega lá e ganha o passaporte para o mundo. Adeus, Caipirolândia. (pp. 95 e 96)
Na sequência da reprodução do texto, além de discorrer sobre o preconceito explícito que escorre como veneno das palavras da colunista, o autor explica detalhadamente porque as dicas gramaticais não funcionam sob nenhum aspecto, mesmo à luz da gramática normativa. Como o meu objetivo é chamar a atenção para as formas preconceituosas com que se utiliza a língua, vou me abster de transcrever as lições do Professor Bagno, limitando-me a reproduzir um trecho do conto “O contador de pronomes”, de Monteiro Lobato,publicado em 1924. Neste conto, o professor Aldrovando Cantagalo, gramático normativista ortodoxo, depara-se com uma placa com os dizeres “Ferra-se cavalos” e tenta explicar ao ferreiro que o verbo deveria estar no plural, porque o sujeito da frase está no plural. Ao que o ferreiro respondeu:
 
– V. Sa. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele SE da tabuleta refere-se cá a este seu criado. (p. 104)  
     
Capítulo III – A desconstrução do preconceito lingüístico
 
1. Reconhecimento da crise
 
Uma coisa não podemos deixar de reconhecer: existe atualmente uma crise no ensino da língua portuguesa. (p. 105)
Não é difícil perceber que a norma culta – por diversas razões de ordem política, econômica, social, cultural – é algo reservado a poucas pessoas no Brasil. (p. 105)
 
A norma culta, como vimos, está tradicionalmente muito vinculada à norma literária, à língua escrita. Com tantos analfabetos, lamentar a “decadência” ou a “corrupção” da norma culta no Brasil é, no mínimo, uma atitude cínica. (p. 107)
2. Mudança de atitude
Enquanto essa gramática [gramática da norma culta brasileira] não chega, temos de combater o preconceito lingüístico com as armas de que dispomos. E a primeira campanha a ser feita, por todos na sociedade, é a favor da mudança de atitude. Cada um de nós, professor ou não, precisa elevar o grau da própria auto-estima lingüística: recusar com veemência os velhos argumentos que visem menosprezar o saber lingüístico individual de cada um de nós. Temos de nos impor como falantes competentes de nossa língua materna. Parar de acreditar que “brasileiro não sabe português”, que português é muito difícil”, que os habitantes da zona rural ou das classes sociais mais baixas “falam tudo errado”. Acionar nosso senso crítico toda vez que nos depararmos com um comando paragramatical [nome que o autor dá aos consultórios gramaticais, colunas de auxílio gramatical em jornais e revistas, programas de correção gramatical na televisão etc.] e saber filtrar as informações realmente úteis, deixando de lado (e denunciando, de preferência) as afirmações preconceituosas, autoritárias e intolerantes. (p. 115)
Se milhões de brasileiros de norte a sul, de leste a oeste, em todas as regiões e em todas as classes sociais falam e escrevem Aluga-se salas ou se há flutuação no uso de onde e aonde, o problema, evidentemente, não está nesses milhões de pessoas, mas na explicação insuficiente (errada, até, nesses casos) dada a esses fenômenos pela gramática tradicional. (p. 116)
3. O que é ensinar português?
Esforçar-se para que o aluno conheça de cor o nome de todas as classes de palavras, saiba identificar os termos da oração, classifique as orações segundo seus tipos, decore as definições tradicionais de sujeito, objeto, verbo, conjunção etc. – nada disso é garantia de que esse aluno se tornará um usuário competente da língua culta.
 
Quando alguém se matricula numa auto-escola, espera que o instrutor lhe ensine tudo o que for necessário para se tornar um bom motorista, não é? Imagine, porém, se o instrutor passar onze anos abrindo a tampa do motor e explicando o nome de cada peça, de cada parafuso (…) Esse aluno tem alguma chance de se tornar um bom motorista? Quando muito, estará se candidatando a um emprego de mecânico de automóveis… Mas quantas pessoas existem por aí, dirigindo tranqüilamente seus carros, tirando o máximo proveito deles, sem ter a menor idéia do que acontece dentro do motor? (…) 
 
(…) E então? O que pretendemos formar com nosso ensino: motoristas da língua ou mecânicos da gramática? (pp. 119 e 120)
Quando digo coisas assim em público, algumas pessoas levantam a objeção de que o ensino da nomenclatura tradicional, das definições, das classificações, da análise sintática é necessário porque são essas coisas que serão cobradas ao aluno no momento de fazer um concurso ou de prestar o vestibular. Se é assim, cabe a nós, professores, pressionar pelos meios de que dispomos – associações profissionais, sindicatos, cartas à imprensa – para que as provas de concursos sejam elaboradas de outra maneira, trocando as velhas concepções de língua por novas. Não temos de nos conformar passivamente com uma situação absurda e prosseguir na reprodução dos velhos vícios gramatiqueiros simplesmente porque haverá uma cobrança futura ao aluno. (p. 121)
Nunca consegui entender por que uma pessoa que quer estudar Direito precisa fazer prova de física, química, biologia e matemática, se o que ela prendeu dessas matérias já foi avaliado na conclusão do 2º grau.
 
Com o fim do vestibular, desaparecerá também – assim esperamos ardentemente – toda a indústria que se formou em torno dele: os nefandos “cursinhos” onde ninguém aprende nada, onde não há nenhuma produção de conhecimento mas apenas reprodução de informações desconexas, onde centenas de alunos se apinham numa sala, onde tudo o que se faz é entupir a cabeça do aluno com “truques” e “macetes” que em nada contribuem para a sua verdadeira formação intelectual e humanística. (pp. 122 e 123)
4. O que é erro?
 
(…) uma elevada porcentagem do que se rotula de “erro de português” é, na verdade,mero desvio da ortografia oficial. (p. 122)
(…) em cartazes e placas não aparecem “erros de português” e, sim, “erros” de ortografia. Escrever, digamos, LOGINHA DE ARTEZANATO onde a lei obriga a escrever LOJINHA DE ARTESANATO em nada vai prejudicar a intenção do autor da placa: informar que ali se vende objetos de artesanato. (p. 123)
No início do século XX o “certo” era escrever: EM NICHTEROY ELLE POUDE ESTUDAR SCIENCIAS NATURAES, CHIMICA E PHYSICA. Se hoje o “certo” é escrever: EM NITERÓI ELE PÔDE ESTUDAR CIÊNCIAS NATURAIS, QUÍMICA E FÍSICA, isso não altera a sintaxe nem a semântica do enunciado: o que mudou foi só a ortografia. (p. 123)
Todo falante nativo de uma língua é um falante plenamente competente dessa língua, capaz de discernir intuitivamente a gramaticalidade ou agramaticalidade de um enunciado, isto é, se um enunciado obedece ou não às regras de funcionamento da língua.
 
Ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna, assim como ninguém comete erros ao andar ou ao respirar. (p. 124) (Grifo meu.)
 
(…) podemos até dizer que existem “erros de português”, só que nenhum falante nativo da língua os comete! Por exemplo, seriam “errados” os enunciados abaixo (o asterisco indica construção agramatical)
 
(1) *Aquela garoto me xingou
(2) *Eu nos vimos ontem na escola
(3) *Júlia chegou semana que vem
(4) *Não duvido que ele não queira não vir aqui
(5) *Que o livro que a moça que Luís que trabalha comigo me apresentou escreveu é bom não nego
 
Esses enunciados, precisamente por serem agramaticais, isto é, por não respeitarem as regras de funcionamento da nossa língua, não aparecem na fala espontânea e natural de falantes nativos do português do Brasil, mesmo que sejam crianças pequenas que ainda não freqüentam escola ou adultos totalmente iletrados. (p. 125)
 
5. Então vale tudo?
 
Algumas pessoas me dizem que a eliminação da noção de erro dará a entender que, em termos de língua, vale tudo. Não é bem assim. Na verdade, em termos de língua, tudo vale alguma coisa, mas esse valor vai depender de uma série de fatores. Falar gíria vale? Claro que vale: no lugar certo, no contexto adequado, com as pessoas certas. E usar palavrão? A mesma coisa.
 
Uma das principais tarefas do professor de língua é conscientizar seu aluno de que a língua é como um grande guarda-roupa, onde é possível encontrar todo tipo de vestimenta. Ninguém vai só de maiô fazer compras num shopping-center, nem vai entrar na praia, num dia de sol quente, usando terno de lã, chapéu de feltro e luvas… (p. 130)
 
6. A paranóia ortográfica
 
Essa Gramática [“Gramática da língua portuguesa”, de Pasquale Cipro Neto & Ulisses Infante] filia-se à tradição que atribui ao domínio da escrita um elemento de distinção social, que é na verdade um elemento de dominação por parte dos letrados sobre os iletrados. 
Existe um mito ingênuo de que a linguagem humana tem a finalidade de “comunicar”, de “transmitir idéias” – mito que as modernas correntes da lingüística vêm tratando de demolir, provando que a linguagem é muitas vezes um poderoso instrumento de ocultação da verdade, de manipulação do outro, de controle, de intimidação, de opressão, de emudecimento. (p. 133)  (Grifo meu.) 
 
O aprendizado da ortografia se faz pelo contato íntimo e freqüente com textos bem escritos, e não com regras mal elaboradas ou com exercícios pouco esclarecedores. (p. 138)
7. Subvertendo o preconceito lingüístico
 
(…) talvez tenhamos de continuar ensinando aquelas coisas que nos são cobradas pela sociedade, pela direção das escolas, pelos pais dos nossos alunos. Mas podemos ensinar essas coisas criticando-as ao mesmo tempo e deixando bem claro que aquilo ali não é tudo o que se pode saber a respeito da língua, que há um milhão de outras coisas muito mais interessantes e gostosas para descobrir no universo da linguagem. (p. 141)
Capítulo IV – O preconceito contra a lingüísitca e os lingüistas
 
1. Uma “religião” mais velha que o cristianismo
 
A Gramática Tradicional permanece viva e forte porque, ao longo da história, ela deixou de ser apenas uma tentativa de explicação filosófica para os fenômenos da linguagem humana e foi transformada em mais um dos muitos elementos de dominação de uma parcela da sociedade sobre as demais(p. 149) (Grifo meu.)
 
Querer cobrar, hoje em dia, a observância dos mesmos padrões lingüísticos do passado é querer preservar, ao mesmo tempo, idéias, mentalidades e estruturas sociais do passado. (p. 150)
Ora, o novo assusta, o novo subverte as certezas, compromete as estruturas de poder e dominação há muito vigentes. (150)
(…) grupos de pessoas que dizem promover ridículos “movimentos de defesa da língua portuguesa”, como se fosse necessário defender a língua de seus próprios falantes nativos, a quem ela pertence de fato e de direito. (p. 151)
(…) o simples fato de pertencer à Academia Brasileira de Letras é exemplo de sua filiação a um ideário conservador e elitista – ele já declarou, por exemplo, que a função da escola é levar os alunos a falar “melhor e com os melhores” (…) (p. 158) [Referindo-se a Evanildo Bechara.] 
No mesmo momento em que eu escrevo, ou transcrevo, leio a frase para a Patrícia, minha esposa, e ela me faz a  pergunta, um tanto quanto retórica, mas que inevitavelmente salta à mente de quem tenha uma mínima capacidade de reflexão: “Quem são os melhores?” Eu respondo simplesmente, numa respeitosa “homenagem” ao professor Evanildo: “Os que sabem falar…”
4. A quem interessa calar os lingüistas?
(…) se um deputado sem formação em medicina inventasse um projeto de lei que tivesse relação com a prática cirúrgica e se todos os médicos do país se manifestassem contra o projeto, será que ele conseguiria ser aprovado? Por que toda e qualquer pessoa se acha no direito de dar palpites infundados e preconceituosos sobre as questões que dizem respeito à língua? (p. 164) [Referindo-se ao projeto do então deputado federal Aldo Rebelo, atual Ministro dos Esportes, de 1999, sobre “a promoção , a proteção, a defesa e o uso da língua portuguesa”.]
 
O autor lembra que o então deputado se refere à Napoleão Mendes de Almeida (aquele mesmo que comparou babás e engraxates com trombadinhas e criminosos) como um dos nossos maiores linguistas, sendo que na visão deste mesmo Napoleão, os linguistas são responsáveis, ao lado das babás, engraxates e criminosos, pelo apodrecimento da língua portuguesa.
 
Que ameaça ao tipo de sociedade em que vivemos representa a democratização do saber lingüístico, a divulgação ampla das descobertas deste campo científico, a liberação da voz de tantos milhões de pessoas condenadas ao silêncio por “não saber português” ou por “falar tudo errado”? A quem interessa defender o “português ortodoxo” de uns pouquíssimos “melhores” contra a suposta “heresia gramatical” de muitos milhões de outros? (p. 165) 

Na parte final de “Preconceito linguístico”, o autor transcreve uma carta que enviou ao editor da Veja, em resposta a uma matéria publicada na edição de número 1.725 (novembro de 2001), intitulada “Falar e escrever bem, eis a questão”, na qual o jornalista João Gabriel de Lima destila o mesmo veneno preconceituoso examinado ao longo do livro. Da extensa missiva, destaco dois trechos que de certa forma sintetizam tudo o que eu pretendi dizer com este texto e as transcrições nele feitas:

Segundo a reportagem, as críticas que o Sr. Pasquale Cipro Neto recebe dessa “corrente relativista”deixam-no “irritado”. Ora, o que parece realmente irritar o Sr. Pasquale é o fato de que, apesar de obter tanto sucesso entre os leigos, nada do que ele diz ou escreve é levado a sério nos centros de pesquisa científica sobre a linguagem, sediados nas mais importantes universidades do Brasil – centros de pesquisa lingüística, diga-se de passagem, reconhecidos internacionalmente como entre alguns dos melhores do mundo. Muito pelo contrário, se o nome do Sr. Pasquale é mencionado nas nossas universidades, é sempre como exemplo de uma atitude anticientífica dogmática e até obscurantista no que diz respeito à língua e seu ensino (em vários de seus artigos em jornais e revistas ele já chamou os lingüistas de “idiotas”, “ociosos”, “defensores do vale-tudo” e “deslumbrados”). (p. 170)

Se existe, porém, uma grande resistência contra o redimensionamento do lugar do ensino da gramática na escola é porque todos sabemos que, ao longo do tempo, o conhecimento mecânico da doutrina gramatical se transformou num instrumento de discriminação e de exclusão social. “Saber português”, na verdade, sempre significou “saber gramática”, isto é, ser capaz de identificar – por meio de uma terminologia falha e incoerente – o “sujeito’ e o “predicado” de uma frase, pouco importante o que essa frase queria dizer, os efeitos de sentido que podia provocar etc. Transformada num saber esotérico, reservado a uns poucos “iluminados”, a “gramática” passou a ser reverenciada como algo misterioso e inacessível – daí surgiu a necessidade de “mestres” e “guias”, capazes de levar o “ignorante” a atravessar o abismo que separa os que sabem dos que não sabem português…” (p. 182)

Infelizmente o livro não informa se a carta foi ou não publicada, por isso deixo a pergunta: 

será que Veja publicou a carta do professor Marcos Bagno ou deixou que as distorções da matéria sobre a língua adquirissem ares de verdade (nazismo?? – sei lá…)? 

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 14/11/2012.

 

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Língua e (é) liberdade*

As observações, afirmações e comentários que seguem são de um livrinho (ele mesmo chama assim, mas na verdade é um LIVRÃO) do saudoso professor Celso Pedro Luft, que recebeu o mais que apropriado nome de “Língua e liberdade”. A edição que eu tenho é a 8ª (5ª impressão), de 2002, da editora Ática. Na transcrição foi mantida a grafia original, anterior à norma vigente. Os grifos constam no original, salvo aqueles referidos expressamente. 

Leiam, pois, divirtam-se, pensem, reflitam, falem, escrevam, publiquem.

Capítulo 1 – Subversão lingüística?


1.1 O importante é comunicar


Qualquer ato de comunicação só é possível mediante a aplicação de todas as regras nele envolvidas. Mas, todas elas, regras naturais, da 
gramática natural, interior, dos falantes; na sua imensa maioria, regras que não são conscientes, não se explicitaram ou verbalizaram, nem se poderiam ter presentes ao falar ou escrever. (p. 16)

A língua toda: semântica, léxico, morfologia, fonologia e fonética – tudo é questão de USO. Vale o que a comunidade dos falantes tacitamente (raro explicitamente) determina que vale. A língua é autodeterminada pelos seus usuários. (p. 17)

O estudo da Gramática é indispensável para dominar a língua? Não;indispensável é aprender a língua, que contém a gramática. Indispensável é aprender a dominar o meio de comunicação. (p. 18)

1.2 Gramática e comunicação

Raros os grandes escritores familiarizados com regras de Gramática; e raros os familiarizados com a Gramática que sejam escritores.
(p. 19)

A boa comunicação verbal nada tem a ver com a memorização de regras de linguagem nem com a disciplina escolar que trata dessas regras, e que geralmente, em nossas escolas, toma o lugar do que deveriam ser as aulas de Português: leitura, comentário, análise e interpretação de bons textos, e tentativa constante de produzir, pessoalmente, textos bons – enfim, vivência criativa com o idioma. (p. 19)

Nada mais errôneo do que imaginar que “grandes escritores” escrevam “difícil”. (p. 20)

A Gramática disciplina ou livro, código normativo, está à margem dessas operações de talento. Não passa de um discurso assistemático e extremamente lacunoso a respeito das operações comuns. Discurso lacunoso? Sim: incontáveis regras, aplicadas na mais comum das linguagens, nunca foram sequer lembradas pelos gramáticos.” (p. 20)

Um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais, incute insegurança na linguagem, gera aversão ao estudo do idioma, medo à expressão livre e autêntica de si mesmo. (p. 21)

Vejam a estranha linha de “progresso” no nosso ensino de língua materna. Geralmente, nos começos de sua vida estudantil, a criança é levada a lidar com a língua, a ler e contar histórias, oralmente ou por escrito. Mas lá adiante, à medida que suas folhas se enchem de correções do professor, e ela é censurada na sua linguagem, submetida a normas puristas, à observância da Gramática, a criança perde a espontaneidade, e parte importante de sua personalidade se encolhe, fica tolhida, murcha. (p. 21)

Só línguas mortas são retratáveis num 
corpus fechado de regras. Portanto, o livro-gramática deveria estar sempre sendo revisto e atualizado, como todo bom dicionário. (p.22)

1.4 Escritores e Gramática

(…) é possível ser ótimo em português e ao mesmo tempo péssimo em aulas de Português. 
(p. 23)

Minha experiência de professor me ensinou que os alunos mais talentosos em linguagem, futuros escritores, são os mais avessos a aulas de Gramática. (p. 24)

Essa relação Escritores-Gramática me trouxe à mente a observação de Lins do Rego a propósito de Lima Barreto: “Os grandes escritores têm a sua língua; os medíocres, a sua gramática”. (p. 25)

1.7 O estudante de Português

(…) língua e gramática hão de ser muito mais do que aborrecimento em sala de aula, com muita regra e pouco texto, muita decoreba e pouca compreensão, muito susto e pouco prazer. 
(p. 30)

(…) o sistema de regras intuitivamente internalizado desde a infância, aperfeiçoado à medida que o indivíduo cresce intelectualmente, e compartilhado, também intuitivamente, pelos membros da comunidade, mesmo os que não vão à escola e nunca aprenderam a ler(p. 30) (Grifo meu.)

Em matérias de aulas de linguagem, infelizmente, a escola continua rotineira e bitolada: acúmulo de definições, regras e exceções, classificação de palavras, listagem de anomalias e irregularidades, conjugações inusitadas, análises, muita análise sintática. E, naturalmente, crase, a cada semestre mais crase, para saber cada vez menos (ou não é exatamente isso que a experiência mostra?)… (p. 31) (Grifo meu.)

1.8 Vida e artifício: gramática e Gramática

Infelizmente é muito expandida (mesmo entre pessoas cultas) uma noção ingênua de gramática como conjunto de regras que gramáticos, professores, academias ou outra autoridade não-identificada impõem, regras que devem ser observadas por todo aquele que queira falar ou escrever certo. 
(p. 31)

A essa afirmação, faço uma observação. Em alguns casos, como na maioria dos professores de Português de ensino básico, esse normativismo é de fato ingênuo. Entretanto, a história nos apresenta a língua como um dos mais eficazes instrumentos de segregação e manutenção de poder. Quando se convence uma pessoa que ela não sabe se expressar “corretamente” na sua língua materna, isso faz com que ela se sinta insegura frente a outras que supostamente detêm esse conhecimento. É muito comum, por exemplo, que os cidadãos mais humildes, cultural e economicamente falando, votem em candidatos que falam “difícil”, por julgar que esses são cultos e letrados o suficiente para desempenhar bem o papel que lhes cabe como representantes do povo. A história recente do Brasil nos mostra que isso é uma premissa falsa, porque, ideologias e posições políticas à parte, um dos maiores presidentes que o país já teve, conserva muito pouco dessa “cultura superior”, e mesmo os seus detratores só conseguem usar as suas supostas limitações linguísticas de forma acessória nas críticas que lhe são feitas. Mais adiante se verá que essa ideia do uso da língua como fator de dominação social é compartilhada pelo Professor Luft. 

Capítulo 2 – A teoria da linguagem

2.2 Essa gramática verdadeira


1. Esse sistema de regras que os falantes internalizam na infância é que constitui a 
verdadeira gramática da língua, a legítima, a autêntica, da qual todas as demais (livros, teorias de gramáticas, filólogos e lingüistas, etc.) não passam de reproduções. E não há como não acrescentar: por maiores e melhores que sejam, tais reproduções são inevitavelmente incompletas e defeituosas.

2. A 
gramática (saber lingüístico internalizado) dos falantes é sempre completa: sistema de todas as regras necessárias para se poder falar. Mesmo a criança de cinco ou seis anos que já fala com desembaraço, e o mais humilde dos analfabetos, necessariamente dominam a gramática completa que preside seus atos de fala. Do contrário, não haveria como falar. (p. 36) (Grifo meu.)

             4. Em que consiste essa construção de uma teoria lingüística por parte da criança? É um lançamento e verificação de hipóteses (…) (p. 37)

Pode-se depreende, na evolução da linguagem infantil, o caminho e efeito parcial ou provisório dessas hipóteses. Há estágios verdadeiramente clássicos. A chamada 
regularização, por exemplo, mostra a criança aplicando rigorosamente, também a formas sujeitas a casos especiais, as regras gerais que á internalizou. Assim, *fazi ou *trazi, pela aplicação das regras que geram as formas regulares como bati, comi, etc.; *abrido, *cobrido, *fazido, *escrevido, pelos modelos regulares dormido, comido, batido, etc.; *eu pego tu; *não empurra eu; *mais grande, *mais bom, como mais alto, mais fraco; etc. Idiossincrasias da morfologia e da sintaxe precisam ocorrer e repetir-se nos dados (falas, frases) para que a criança-teorista levante novas hipóteses até depreender e fixar também as regras especiais. (p. 38)

5. (…) A criança e o falante não escolarizado sabem tudo aquilo que precisam para falar em seu nível de comunicação. Apenas não conhecem os termos técnicos, os nomes daquilo que sabem. (p. 38)

É ilusão grosseira imaginar que se sabe a língua porque se estudou a Gramática¹. Já sabemos que esta (disciplina, livro) não recobre o sistema completo da gramática natural e, no que recobre, mostra incoerências, assistemacidade, lacunas.

Estarei exagerando? Então façam um estrangeiro aprender português estudando gramáticas, decorando regras e vocabulários, sem conviver com falantes da língua…


¹ “Nunca é demais repetir que aprender português unicamente pela gramática é tão absurdo como aprender a dançar por correspondência. Aprende-se a escrever lendo, da mesma  forma que se aprende a dançar bailando.” (Mário Quintana. 
Da preguiça como método de trabalho. Rio de aneiro, globo, 1987. p. 29) (p. 39)

              “(…) a verdadeira língua é a fala. (p. 39) (Grifo meu.)

Letras e outros sinais servem apenas para representar o que alguém falou, o que vai ou poderia falar. (p. 39)

2.5 Passos de um ensino equivocado

(…) o aluno faz redação – não para se expandir lingüísticamente e esgrimir idéias e argumentos, nem para aprender a estruturar e disciplinar o seu pensamento por escrito -, 
o aluno faz redação para o professor corrigir. (p. 46)

2.7 Consequências maléficas do ensino gramaticalista

E se convence o falante nativo de que ele não sabe a língua que fala, nem a saberá nunca, pois saber gramática (dominar regras intuídas, internalizadas) passou a confundir-se com saber Gramática (conhecer regras explícitas, em geral mal explicitadas).


Parece explicado por que a gramática, na versão escolar de aulas de Português, é tão desamada, detestada mesmo, pela maioria dos jovens. Não só é difícil amá-la; é preciso defender-se dela para resguardar o direito de se expressar natural e livremente. 
(p.49)

Capítulo 3 – Nascemos programados para falar

Lingüistas contemporâneos nos alertam para um axioma que diz exatamente o inverso do ingênuo pressuposto tradicional:

TODA PESSOA SABE A LÍNGUA QUE FALA. (p. 51)

3.1 Propensão inata para a linguagem

 

O falante, exposto a modelos de um ou outro nível, um ou outro dialeto, um ou outro conjunto de variantes, exercita-se e cresce linguisticamente, ao natural, sem necessidade alguma de enunciar ou decorar regras que apenas o confundem e tornam esse processo ineficaz, frustrante. (p. 53)

 

3.3 Aprender a língua é evolução natural, como crescer

 

(…) aprender uma língua não é complicado, como faz crer o ensino tradicional. É uma fato natural, ou seja, é da natureza do ser lingüístico que é o homem: um processo por assim dizer automático, até inevitável. (p. 56)

 

3.8 Utilidade de uma visão lingüística da gramática

 

Uma das principais causas de um ensino de língua materna mal orientado, na escola tradicional, é o pressuposto ingênuo que o aluno NÃO sabe a língua. (p.65)

 

Ora, um mínimo de noções de Lingüística moderna sobre a capacidade inata de linguagem, língua e gramática, evidencia o pressuposto inverso:

 

os alunos, como todos os falantes nativos, SABEM sua língua materna.

 

Sobre essa base é que o professor atualizado construirá o edifício de uma prática (não “ensino”) de língua realista, útil, produtiva. (p. 65)

 

3.10 Problemas técnicos das variantes de linguagem no ensino

 

Todas as variantes da língua são valores positivos. Não será negando-as, perseguindo-as, humilhando quem as usa, que se fará um trabalho produtivo no ensino. (p. 69)

 

Capítulo 4- Teoria gramatical: implícita e explícita

 

4.4 Características da teoria gramatical explícita

 

Em linguagem, somos todos autodidatas antes de mais nada. Com pleno êxito, aliás: problemas e fracassos podem vir depois, quando querem nos ensinar de fora para dentro a língua que já é nossa. (p. 81)

 

Mantida pela classe social dominante, a escola impõe no ensino obviamente a variedade idiomática culta, relegando  e desprestigiando as outras variedades, numa natural discriminação sociolingüística.

 

A teorização gramatical escolar se faz dentro de uma longa tradição normativa, essencialmente conservadora, quando não reacionária(p. 81) (Grifos meus.) 

 

Faço uma nova observação ao texto do autor. O que o professor Luft chama de norma culta, eu chamaria de norma cultuada, eis que idealizada, porém inviável. Valho-me de dois significados para o termo “culto”, extraídos do Dicionário Hoauiss (1ª edição, 2001, p. 887). Entre diversos outros significados, o dicionário define culto como que segue o padrão formal, erudito <o português c. e a língua informal>”, e ainda como próprio de pessoas cultas, escolarizadas <língua c. formal>”

 

As próprias definições do dicionário expõem a contradição de considerar um padrão de linguagem como sendo culto. Por seguir o padrão formal, estabelecido de forma arbitrária e em total desconformidade com a realidade da língua falada e usada por milhões de pessoas, a língua dita culta condena, por exemplo, a frase “Vocês foram lá?”, pois o “correto”, de acordo com esta norma “culta”, é “Vós fostes lá?”. Quem, por mais erudito e culto que seja, usa esta última forma? E ainda, ao definir como culta a pessoa escolarizada, o dicionário exclui os milhões de brasileiros que não frequentam as escolas e que, portanto, não poderiam dominar a língua “culta”. Esses brasileiros, que muitas vezes passam a vida sem sentar num banco escolar, por acaso passam a vida, também, sem se comunicar com outras pessoas? Ora, numa análise um tanto quanto simplificada não se pode dizer que a comunicação é a finalidade última da língua? Então, como se pode dizer que essas pessoas, por não dominarem as regras da norma “culta”, que, como vimos no exemplo vocês/vós, não é dominada nem pelo mais erudito gramático, não “sabem falar português”? (Ao fazer a observação sobre a língua como elemento primordial de comunicação, estou passando ao largo, evidentemente, de outras questões históricas, culturais e, principalmente, sociais, as quais são em algum momento abordadas neste texto, e faço isso apenas para facilitar a compreensão da ideia a ser transmitida neste momento específico. Todavia, não posso cometer a imprudência de deixar de assinalar que o entendimento restrito da língua como ferramenta de comunicação é altamente equivocado e muito perigoso.)

 

Por isso entendo que o reconhecimento da existência de uma norma cultuada e não culta, de forma a não eliminar por “erradas” todas as outras, contribuirá muito mais para uma verdadeira compreensão do que é a língua (ou as línguas) falada pelo povo brasileiro.

 

Ninguém conseguiria aprender qualquer língua com base em livros e aulas que a teorizam ou explicam – simplesmente porque nenhuma explicação ou teoria explícita é capaz de expor/desvendar integralmente a gramática de uma língua. (p. 82)

 

4.5 Conclusão

 

Diante de tudo isso, impõe-se a pergunta: Por que e para que ensinar/estudar teoria gramatical no primeiro e segundo grau? Difícil uma resposta.

 

Quem sabe, o único objetivo da toeira gramatical na escola talvez seja simplesmente cumprir programas, manter uma tradição multissecular. Afinal, não é assim que sempre se fez?

 

E o professor, se não tivesse sintaxes e concordâncias, regências e colocações de pronome, morfologias e fonéticas, regras e exceções a ensinar – o que faria o professor na sala de aula?

 

Tivesse a escola objetivos vitais, culturais, sociais ou político-educacionais bem definidos, certamente haveria maior clareza e funcionalidade nos programas e métodos de ensino da língua materna.

 

E não se apelaria tão rotineiramente para a superstição do teorismo gramatical ou do ensino gramaticalista.

 

Não parece minimamente razoável ensinar teoria gramatical de modo costumeiro a indivíduos que nem conseguiriam falar se não dominassem previamente a gramática da língua.

 

Praticar a gramática é o que falta na escola. Ler (ler e ler), debater, escrever (escrever e escrever). tudo isso é gramaticar – o melhor método de ampliar, reforçar e agilizar a gramática, a de todos e a de cada um em particular. (p. 84)

 

Adendo – O saber dos falantes e o saber dos lingüistas

 

É próprio do pensamento tradicional ingênuo supor que a gramática da língua está nos livros, e que os falantes, em maior ou menor grau, estropiam a língua, provocando afirmações de que “todo mundo fala errado”, como se, primeiro, os gramáticos inventassem as regras, para depois os falantes obedecerem a elas e poderem falar.

 

O inverso é que é verdadeiro: a gramática está na mente dos falantes, só ali existe em plenitude; as gramáticas (livros), em maior ou menor grau, mutilam a língua, e são, todas elas, lacunosas, falhas. (p. 85) (Grifos meus.)

 

Capítulo 5 – Sobre a inutilidade e nocividade do ensino gramaticalista da língua materna

 

5.4 A Gramática mal ensinada incute servilismo (Grifo meu)

 

Outro fruto nocivo do ensino da língua materna orientado pelo teorismo gramatical é a postura servil que incute nos estudantes diante de pretensas autoridades, dos que ditam a Gramática e comandam as regras, como se estas não fossem imanentes à língua, anteriores e superiores a qualquer gramático, ou como se os gramáticos fosse os donos da língua. Gramático (verdadeiro) é cada falante, e donos da língua somos todos nós(p. 93) (Grifos meus.)

 

Chegamos assim ao que constitui  o mais grave dano causado por um ensino de língua fundado na teorização gramatical: a relação negativa do falante com a sua própria língua. A convicção que se vai infiltrando de “não saber a língua”, e com isso o bloqueio da criatividade, a inibição da linguagem, sensação de incapacidade e insegurança. Já ouvi o absurdo de dizerem: “Em Portugal, sim, qualquer criança ou lavadeira fala bem o português; no Brasil, até o doutor fala errado”. (E era um professor… de Lógica.) (Grifo meu.)

 

De tanto ouvir definições e conceitos confusos e incoerentes, classificações e subclassificações, regras e exceções;de tanto enfrentar análises herméticas;de tanto ser obrigado a decorar coisas que não entende ou que são estranhas ao seu uso e até ao uso das pessoas mais cultas – o aluno vai sendo lingüisticamente arruinado. Conclui que sua língua é um universo esotérico, só acessível a iniciados. (Grifo meu.)

 

Daí os conceitos bizarros tão difundidos entre nós, e que já comentei acima: falamos errado, a língua está em decadência, etc. Por trás de tudo, a perigosa idéia: somos um povo inferior, cidadãos incapazes… até na língua do país. (p. 94) (Grifo meu.)

 

Entrando na escola, a criança fala com desembaraço e naturalidade, e em breve poderia escrever da mesma maneira, se bem orientada. mas, aí, o ensino vai lhe insinuando que não sabe a língua, que fala e escreve pior. (p.95)

 

(…) milhares de redações levam nota zero no concurso vestibular. Culpa dos alunos? Culpa do péssimo ensino da língua materna. Oito anos de Português no 1º Grau, três anos no 2º Grau, além do “cursinho” – e centenas, milhares de jovens conseguem tirar zero em redação na sua própria língua. Existe fracasso maior? (p. 95)

 

Este subtítulo, “A Gramática mal ensinada incute servilismo” é, para mim, talvez o mais emblemático do livro, pois de certa maneira sintetiza tudo o que eu quero expressar fazendo essas transcrições e alguns breves comentários. 

 

Como eu disse anteriormente, o professor Luft viria a concordar comigo (quanta pretensão! – obviamente quem concorda com ele sou eu…) na ideia de que a língua é um poderoso instrumento de dominação. As pessoas convencidas, de forma nefasta, de que não sabem o Português acabam se autoexcluindo da participação social e política mais efetiva. Quem não tem notícia de alguém que se recusa a conversar com um desembargador ou mesmo com um advogado por não se sentir à altura da linguagem deles? Ou quem não conhece alguém que diz que não lê autores clássicos porque não entende a sua linguagem? Esse é um tipo de segregação patrocinado pela forma como a língua materna, que TODOS os brasileiros dominam desde a primeira infância, é ensinada, como muito bem observa o professor Luft.

 

O preconceito linguístico, e disso trataremos especificamente em outro momento, é dos mais cruéis e eficazes que se pode ter notícia, pois é (nem sempre) sutil e aparece sub-repticiamente e até inconscientemente das formas mais diversas, como na ideia ingênua dos professores de Português, que despejando teorias e mais teorias acreditam que estão contribuindo para a educação dos alunos, e, principalmente, dos pais, que vão às escolas cobrar dos professores um ensino tradicional, sempre que estes ousam investir num ensino voltado à prática do idioma, pois, segundo ideias pré-concebidas, os filhos não estão “aprendendo” língua portuguesa. 


Na frase citada pelo autor: “Em Portugal, sim, qualquer criança ou lavadeira fala bem o português; no Brasil, até o doutor fala errado”, fica evidenciado o caráter preconceituoso de quem fez a afirmação. Ao dizer que em Portugal qualquer criança ou lavadeira fala bem, ele está dizendo de forma subjetiva que mesmo uma lavadeira, pertencente a uma classe social inferior, segundo o que fica implícito, sabe a língua. E quando diz que no Brasil até o doutor fala errado, poderia dizer, de outra forma, que mesmo o doutor, pertencente a uma elite, desconhece a sua própria língua. Está aí um caso claro de preconceito pela língua.     

Tanto quanto os preconceitos de natureza racial (étnica), sexual, econômica e todos os outros, o preconceito linguístico deve ser combatido, mas isso só será possível na medida em que o aceitarmos e procurarmos entender o seu funcionamento.

 

Capítulo 6 – Língua e liberdade

 

Uma língua viva está em constante evolução: dialetos, gírias, neologismos, estrangeirismos, tudo faz parte dela, dessa ebulição que a mantém animada. (p. 98)

 

Nada se presta melhor para instrumento de repressão e opressão do que a língua materna, cerne do nosso eu pensante, através da qual existimos enquanto seres racionais. (p. 99) (Grifos meus.)

 

Importante é ter bem claro que o aluno não precisa “aprender” a língua; precisa, sim, reforçar sua gramática implícita, internalizada na primeira e segunda infância, ampliá-la com os elementos do modelo culto padrão. (p. 99)

 

Não tem importância trazer de cor regras explícitas: não creio que todos os nossos bons escritores fossem aprovados num teste de Português à maneira tradicional;e no entanto, são eles os senhores da língua. (pp. 99 e 100)

 

Apêndice – Por um ensino natural da Gramática

 

Uma perseguição neurótica de erros só gera insegurança e desamor ao trato com a língua. Acaba convencendo o aluno, sub-repticiamente, de que não sabe sua língua e que o conhecimento dela (e da Gramática) é algo esotérico, reservado a professores, especialistas, gramáticos. (p. 107)

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 8/11/2012.

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A língua sob risco de vida. Ou de morte?*

Foi com grande satisfação que li, no último sábado, no caderno Vida, da Zero Hora, o título “Livre acesso ao risco de vida”, atribuído a uma matéria que tratava dos suplementos alimentares usados pelos praticantes de musculação e halterofilismo.

Hoje em dia, existe um ostensivo patrulhamento do uso da língua portuguesa, feito por pessoas que se julgam profundos conhecedores do idioma FALADO NO BRASIL, PELOS BRASILEIROS, e avocam o direito de determinar o que é certo e o que é errado na língua materna do povo. Sustentam-se, esses doutrinadores, nas cartilhas concebidas pelos gramáticos normativos, que, por sua vez, entendem ter poder para enquadrar, em suas regras arbitrárias, um organismo vivo, que é a língua, de acordo com uma norma pretensamente culta.

Algum tempo atrás, ouvi um desses iluminados detentores do conhecimento se insurgir violentamente contra um repórter de TV que transmitia um boletim sobre o desabamento de alguns prédios no Rio de Janeiro, e que informava o número estimado de pessoas soterradas. O guardião da língua em questão sugeriu a demissão de um jornalista que usa o termo soterrar para falar em pessoas que estavam debaixo de toneladas de concreto e não de terra. Certamente ele se regozijaria se o repórter tivesse dado o número de pessoas concretadas pelo desabamento…

Assim como o termo soterrar, que deveria ser usado apenas quando se trata de algo que está debaixo de terra, segundo a visão anacrônica desses experts, a expressão “risco de vida” também é alvo de ataques coléricos dos defensores da língua de Camões, que a entendem como absurda, eis que a vida não representa nenhum risco e que este se encontra na possibilidade de morrer, portanto, “risco de morte” é o certo.

Vejamos a expressão “risco de morte”: a palavra “risco” refere-se diretamente ao evento morte e a construção poderia ser substituída por “risco de morrer”. Teríamos, então,por exemplo: “o doente não corre mais risco de morrer.”

Já em “risco de vida”, podemos acrescentar um elemento à construção: “o doente corre risco de perder a vida”. Aqui, a palavra risco refere-se a um termo subentendido, que diz respeito à perda da vida. Ou seja, o que está em risco de extinção é a própria vida. Esse termo, que não aparece, mas faz parte do processo de compreensão da frase, aproxima esse caso ao do famoso “obrigado”, que usamos para expressar agradecimento. A palavra “obrigado” solta não parece ter muito sentido, mas quando lembramos que é uma simplificação da frase “fico obrigado a retribuir o obséquio”, tudo fica claro.  Alguém contesta o uso do singelo “obrigado”? Por que, então para um caso vale e para outro não?

Qual a diferença de usar “risco de morte” e “risco de vida”? Que regras gramaticais sustentam a correção da primeira e a incorreção da segunda? Nenhuma! Ambas as formas estão perfeitamente corretas.

Não obstante essa análise, há um fato mais importante, que autoriza plenamente que se fale em “risco de vida”: o seu uso continuado pelos falantes da língua, que são os seus verdadeiros donos, ao contrário do que pensam os gramáticos de plantão. A expressão é usada há muito tempo, por muitas pessoas e sempre atingiu o seu objetivo precípuo, que é estabelecer a comunicação entre quem fala e quem ouve.

Essa ideia tacanha de limitar o uso da língua a formas tidas como cultas, definindo de maneira absolutamente autoritária e arbitrária todas as outras como erradas, é responsável pela propagação do preconceito linguístico, que tal como todas as outras formas de preconceito, deve ser erradicada.

O que os cultores desse idioma padronizado, totalmente ilusório, não entendem, ou não querem entender, é que a língua, como já se disse, é um organismo vivo e está em constante mutação. Qualquer dicionário razoável inclui o verbete mouse. No míni Houaiss, edição de 2001, está lá no pé da página 515: “mou.se [ing.; PL.: mouses] s.m. INF dispositivo manual que controla a posição do cursor sobre a tela (…)”. Não acredito que o mais conservador e puritano defensor da “última flor do Lácio” advogue pelo uso de “rato” em vez de “mouse”… Acontece que de um dicionário editado há 30 ou 40 anos esse verbete não fazia parte, pelo simples fato de que se trata de uma palavra relativamente recente na língua, cujo uso contínuo fez com que fosse incorporada. Outro exemplo: alguém falaria em garagem no séc. XVIII? Claro que não, afinal não existiam carros para guardar naquela época e, portanto, não existia a palavra “garagem”.

As línguas, TODAS, mudam com o passar dos anos e isso é fruto do uso que delas é feito pelos seus falantes. Desconhecer ou negar esse fato, é aceitar a ideia que deveríamos hoje estar falando latim.

Sempre recomendo a leitura de “Preconceito lingüístico – o que é, como se faz”, de Marcos Bagno, e “Língua e liberdade”, de Celso Pedro Luft.  Ou, para quem prefere a comodidade e a facilidade de um teclado e uma telinha, http://www.marcosbagno.com.br

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 10/5/2012.

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Jornalismo?*

Gosto de ler o blog do David Coimbra. É um bom teste pra paciência. Ele é jornalista (?), tido por muitos como intelectual e se diz altamente racional e imparcial.

Desafio alguém a me apresentar algum texto escrito por ele que tenha uma profundidade maior do que citar escritores não muito conhecidos (pra dizer que lê muito) ou teses filosóficas, de cujos autores eu duvido que ele tenha lido algo além das orelhas dos livros.

Ele é, na verdade, o operário-padrão da RBS. Um cara que tem certa habilidade com as palavras, bom trânsito entre os jovens, consegue escrever com razoável poder de convencimento sobre assuntos que não domina e, sobretudo, tem o dom de transmitir as famosas mensagens subliminares, que se grudam que nem carrapato, como diria o Analista de Bagé, nas cabeças menos acostumadas ao raciocínio ou que têm alguma preguiça de pensar.

Basta ler com atenção alguns textos dele sobre assuntos mais polêmicos, como a recente discussão sobre as políticas afirmativas, as mudanças de paradigma (ainda muito incipientes) no ensino da Língua Portuguesa, entre outros temas, para que se tenha uma clara ideia da sua postura ideológica, que combina perfeitamente com a linha editorial do grupo jornalístico para o qual trabalha. De resto, são historinhas de centroavantes trogloditas, mulheres popozudas e por aí afora.

Tentei publicar três ou quatro comentários sobre algumas postagens no seu blog, mas, evidentemente, não foram aprovados pela moderação. Não terá sido mera coincidência o fato de haver neles algumas críticas ao próprio colunista e, principalmente, à globinho, quer dizer, RBS.

Esse definitivamente não é o modelo de jornalismo de que precisamos. Infelizmente é o que campeia por aí.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 30/4/2012.

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Certo x Errado*

Dias atrás, ouvindo o programa Bom Dia, na rádio Guaíba, me deparei com uma discussão dos apresentadores sobre a maneira correta de pronunciar o prefixo da rádio. Diziam eles que é um absurdo dizer 101 ponto 3, pois o “certo” é 101 vírgula 3, já que a separação dos números decimais é feita por vírgula e não por ponto.

Absurda é a discussão em torno disso. Já é mais que consagrado o uso do ponto. Ao ligar um rádio digital, então, esses senhores jamais conseguiriam sintonizar a frequência da emissora desejada, pois os números aparecem invariavelmente separados por pontos. Estariam errados os fabricantes dos equipamentos eletrônicos? Ora, por favor!

Pois bem, esse episódio me levou a reler dois livros que eu li quando ainda cursava Letras na UFRGS: “Preconceito linguístico – o que é, como se faz”, do linguista, escritor e professor Marcos Bagno, e “Língua e liberdade”, do professor Celso Pedro Luft. Recomendo a leitura dos dois àqueles que têm preocupação com as formas de discriminação no nosso país (racial, religiosa, por opção sexual, etc.), mas que em geral acabam deixando passar batido um tipo de preconceito bastante sutil, eis que não explícito, salvo em alguns casos, que é o preconceito linguístico.

Eu disse que o preconceito linguístico é, em geral, velado, porém há exceções, como no texto assinado pela “consultora gramatical” Dad Squarisi, publicado no Correio Braziliense em 22/06/1996 e no Diário de Pernambuco de 15/11/1998, o qual retirei do citado livro do professor Bagno¹, cujo sugestivo título é “Português ou Caipirês”. Abre o seu texto  assim: “Fiat lux. E a luz se fez. Clareou este mundão cheinho de jecas-tatus. […] A definição do caráter tupiniquim lançou luz sobre um quebra-cabeça que atormenta este país capiau desde o século passsado. Que língua falamos? A resposta veio das terras lusitanas. Falamos o caipirês. Sem nenhum compromisso com a gramática portuguesa. Vale tudo: eu era, tu era, nós era, eles era. Por isso não fazemos concordância em frases como ‘Não se ataca as causas’ ou ‘Vende-se carros’. Na língua de Camões, o verbo está enquadrado na lei da concordância. Sujeito no plural? O verbo vai atrás. Sem choro nem vela. Os sujeitos casas e carros estão no plural. O verbo, vaquinha de presépio, deveria acompanhá-los. Mas se faz de morto. O matuto, ingênuo, passa batido. […] Dica: use o truque dos tabaréus cuidadosos: troque a passiva analítica pela sintética. […] Na dúvida, não bobeie. Recorra ao truque. Só assim você chega lá e ganha o passaporte para o mundo. E encerra com chave de ouro: Adeus, Caipirolândia.”

O texto é tão elucidativo que fala por si próprio. Deixa ele aí por enquanto. Mais adiante comento mais.

¹BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico – o que é, como se faz. 21ª ed. São Paulo, Edições Loyola: 2003.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 7/3/2012.

 

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