bolsonarismo, Direitos Humanos, Eleições, Política

E agora, José? A festa acabou (O mundo não é tão bão, Sebastião…)

O ponto alto da extensa agenda oficial de comemorações dos 250 anos (também oficiais) de Porto Alegre foi a apresentação da Maria Rita na Redenção. Grande show, com direito a “Ele Não”, “Fora, Bolsonaro” e outras perigosas subversões. Só tenho dúvida se o prefeito Melo ficou à vontade com isso, já que a sua eleição se deu justamente na onda Bolsonaro. Mas a festa acabou e restou uma cidade para governar. Uma cidade conflagrada.

A mídia grande não tem conseguido dar curvas nos registros de violência na periferia apagada. Ainda hoje pela manhã (segunda-feira), ouvi na rádio que já são 24 mortes no que eles estão chamando de guerra de facções. Qualquer pessoa que more, trabalhe ou de alguma maneira se interesse pelo que acontece nos bairros mais pobres da cidade sabe que essa manchete é risível. O número de pessoas que morre em condições violentas nas comunidades periféricas, de bala “perdida”, de doença que já deveria estar erradicada, de fome, por queima de arquivo, é muito maior do que o que chega ao GZH, ou melhor, do que o que entra na pauta das editorias do grupo. Essas pessoas, porém, integram um grupo social ainda menos considerado pela oficialidade, os órgãos de segurança e a grande mídia: o grupo de quem não vira nem estatística. A diferença agora é que as ações estão sendo articuladas de outra forma, com estratégias de divulgação que ainda não tinham sido exploradas em escala mais ampla. Circulam mensagens em grupos de WhatsApp, cuja autenticidade é muitas vezes questionada e até negada, mas que acabam se mostrando de alguma maneira conectadas com os fatos. Qual o interesse de quem está promovendo a violência em publicizar e anunciar as ações antecipadamente, inclusive com detalhes de local e hora? Não estamos diante de um thriller hollywoodiano, em que o serial killer deixa pistas para a investigação por vaidade e para mostrar que é melhor que o policial. Não, aqui é a vida real e os interesses são outros.

Há quatro anos, um inexpressivo parlamentar do Rio de Janeiro saiu da obscuridade de uma série de mandatos em que pouquíssimos projetos foram apresentados e menos ainda foram aprovados, para ocupar a primeira cadeira do Planalto. A agenda econômica do ultraliberalismo estava na ordem do dia da plataforma bolsonarista. Entretanto, fosse só isso, a elite dispensaria o testa de ferro e lançaria o próprio Paulo Guedes, a cabeça por trás do esquema econômico. Bolsonaro não teve nenhuma vergonha de dizer, em campanha, que não entende nada de economia. Mas uma sucessão presidencial envolve muito mais do que conhecimento teórico e técnico acerca do mercado e dos seus reflexos no bolso da população.

Bolsonaro sabia muito bem que a pauta econômica, tratada em nível mais elevado e complexo, interessa diretamente apenas às elites. Entre o povo, as duas demandas mais caras ao eleitorado, especialmente as classes médias, eram/são: fim da corrupção e segurança. O primeiro item já vinha sendo trabalhado há bastante tempo, desde as investigações que se notabilizaram como mensalão (o petista, não o tucano, por óbvio), depois o petrolão, Lava Jato, Dallagnol, Moro e por aí vai. Quanto à questão da pseudo-segurança, nisso, e provavelmente só nisso, Bolsonaro é bom. Distorcer fatos, mascarar a insegurança em segurança, criar um discurso para convencer uma população descrente das instituições e com sede de justiçamento, tudo isso foi tarefa fácil para ele e uma família com trânsito livre no crime, especialmente entre as milícias do Rio de Janeiro.

E o que isso tudo tem a ver com a nossa “guerra porto-alegrense”? Estamos em ano eleitoral. Mais do que isso, estamos diante das eleições (plural, porque há eleições parlamentares) mais importantes da história do Brasil, porque podemos chancelar de forma irreversível o projeto nazifascista, ultraliberal, entreguista e lesa-pátria do bolsonarismo, ou tentar recolocar o país nos trilhos de um sistema de maior democracia e justiça social. Bolsonaro já não tem o escudo da Lava Jato, o que enfraquece muito um dos flancos mais eficientes do programa. É preciso, então, reforçar outras áreas. Recrudescer o discurso da segurança, que passa pelo armamento em massa da população civil, é uma medida fundamental. Com uma população convencida da falência das instituições e da ineficácia dos órgãos de segurança, que não conseguem evitar o fechamento de escolas, os toques de recolher e muito menos garantir que alguém não seja assassinado, por encomenda ou por engano, ao sair ou voltar do trabalho, torna-se muito mais fácil vender o discurso da “justiça com as próprias mãos”. Não se faz justiça com as próprias mãos sem armar a população. Qual o único programa eleitoral que defende abertamente o armamento civil como forma de garantir a segurança privada?

Embora não haja eleições municipais agora, as relações entre as esferas administrativas exercem muita influência nos pleitos. Ter uma base sólida de apoio nos estados e munícipios é essencial para qualquer candidato/a ao Executivo nacional. Dessa forma, o prefeito Sebsatião Melo vai ter de se posicionar, escolher um lado, e, a julgar pelo histórico da sua eleição em 2020, o apoio à reeleição de Jair Bolsonaro é a perspectiva. Com isso, apresentar a uma cidade assolada pela violência e criminalidade a narrativa de uma solução para a segurança é um prato cheio para o bolsonarismo e, por outro lado, pavimenta o caminho para uma repetição do mandato de Melo, que poderá usar a afinidade com o governo central em sua campanha em dois anos, caso o projeto fascista do bolsonarismo seja novamente bem sucedido.

Por isso, com a clareza de que a violência e a criminalidade não começaram em Porto Alegre há 15 dias, é hora de investigar a razão de somente agora, às portas das eleições nacionais, a atenção da grande mídia ter sido atraída para isso. Observar o posicionamento do prefeito Melo a partir da necessidade de dar uma resposta às demandas de segurança da população é uma boa providência e pode indicar o rumo das ações governamentais da prefeitura a partir de 2023. Se alguém pretende perder tempo dizendo que estou misturando as competências, que segurança pública é atribuição do governo estadual, peço que atente para o fato de ser essa uma discussão de políticas públicas em que todos os entes federativos estão implicados, outra não seria a razão da ampliação da atuação das guardas civis, por exemplo.

Sebastião Melo precisará tirar a máscara que usou no baile da cidade e mostrar a sua verdadeira cara, se é a do bolsonarista autoritário que se elegeu na carona do “mito” ou do democrata e conhecedor dos anseios do povo, cuja imagem ele tenta vender em suas andanças pela cidade. Melo será Lula, Bolsonaro ou observará a tudo do alto do muro da terceira via?

*Imagem de destaque copiada de: https://www.brasildefato.com.br/2020/12/10/bolsonaro-inaugura-ponte-em-porto-alegre-e-diz-que-pandemia-esta-no-finalzinho. Acesso em: 12 de abr. 2022.

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Direitos Humanos, História, Política, Porto Alegre

Porto Alegre é de mais

Segunda-feira, 21 de março, 6 horas da manhã, barullhos que parecem ser de tiros são ouvidos pros lados da zona sul. Logo em seguida a confirmação: troca de tiros, provavelmente entre facções criminosas, no Santa Tereza. Resultado atualizado pelo rádio até às 8h30: uma pessoa morta, duas feridas e o posto de saúde, que se não me engano é o maior da cidade, fechado. Que jeito de abrir uma semana! Pior ainda quando é a semana em que se comemora 250 anos da cidade. Comemorar exatamente o que, sr. prefeito?

Vamos falar um pouco de história. Porto Alegre ainda não tinha porto, mas provavelmente era alegre antes do século 18. Do mesmo jeito que o navegador Cabral não “descobriu” nada quando chegou na Bahia, o estancieiro Jerônimo Dorneles também não descobriu a cidade a partir do Morro Santana. Aqui havia Guaranis, Kaingangues e Charruas. E havia aos montes. O que os abnegados e nobilíssimos portugueses de espírito empreendedor fizeram com essa gente? Tomaram suas terras, violentaram as mulheres, escravizaram, mataram. Heroicos portugueses, exaltados pelos cronistas dos primeiros tempos. Dois séculos e meio passados, em Itapuã, que já é Viamão, mas fica no extremo sul de Porto Alegre, onde estão confinados os guaranis que insistiram em sobreviver, alguém tocou fogo numa casa de orações e num depósito de alimentos. Que repercussão teve? Na mídia grande, zero, afinal, espaços generosos precisavam ser destinados aos preparativos para os 250 anos.

Mas não foram só os “selvagens indígenas” que pereceram nas mãos dos civilizadores europeus. Negras e negros arrancados à força das suas terras foram enfiados nos tumbeiros e se tiveram a “sorte” de não virar comida de tubarão no Atlântico, chegaram aqui para contribuir com a construção desta nossa mui leal e valerosa metrópole. É claro que se no Brasil todo houve um lindo processo de miscigenação que resultou no povo brasileiro típico, como Gilberto Freire teorizou, no sul, particularmente, os portugueses foram muito carinhosos com os seus escravizados/as. Essa narrativa vigeu durante muito tempo na voz de cronistas e historiadores consagrados, como Walter Spalding, que disse: “O estancieiro, embora uma espécie de senhor feudal nos primeiros tempos, melhor: no primeiro século e meio de vida da Capitania de São Pedro, jamais dominou pelo terror.” (SPALDING, Walter. Pequena história de Porto Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967. p. 22-23)

Essa convivência pacífica de que fala o professor Spalding, começou a ser questionada nos últimos anos. Tivemos a oportunidade de conferir que a história não é bem essa, quando, por exemplo, vimos que, em meados do século passado, as comunidades da Ilhota e adjacências (povo pobre e preto) foram despejadas e atiradas num lugar quase inóspito, que recebeu o sugestivo nome de Restinga, e hoje é estigmatizado como um dos mais perigosos bairros da cidade sorriso, embora seja o espaço onde vive uma enorme comunidade trabalhadora, que transformou aquela área de alagamento numa região possível de construir uma vida digna. E vimos de novo quando o carnaval, a festa do povo (preto e pobre), que tantos transtornos trazia a quem mora nas áreas centrais, foi deslocado para o extremo da zona norte, no Complexo Cultural do Porto Seco. O que incomoda em fevereiro não incomoda em setembro, e a gauchada descendente dos herois caudilhos farrapos segue comemorando lindamente a derrota (ops!) na nossa guerra fundadora. O MTG e a RBS agradecem a compreensão da municipalidade com a a grandeza da causa farroupilha.

Neste 2022, chegando aos 250 anos oficialmente contados, Porto Alegre tem a cesta básica mais cara do Brasil (talvez seja a segunda, o que faz pouca diferença); um sistema de transporte coletivo dominado pelo empresariado, com uma das passagens mais caras e com recentes restrições aos benefícios históricos concedidos a quem mais precisa (estudantes, pessoas de mais idade); uma galopante política de privatização dos espaços públicos e elitização das áreas mais nobres da cidade (Cais Embarcadero, Shopping Pontal, Condomínio Golden Lake, Parque da Harmonia); ausência de uma política para áreas (que deveriam ser) de preservação histórica e ambiental (Fazenda do Arado, áreas rurais da zona sul); descaso com as populações vulneráveis, com o aumento em progressão geométrica da população em situação de rua e o despejo violento das ocupações, sem que haja nenhuma destinação que beneficie o povo para os prédios esvaziados (Lanceiros Negros, Saraí); o avanço do mercado imobiliário sobre as áreas populares, quilombolas e indígenas (o já citado Pontal do Arado, Quilombo dos Lemos, Areal da Baronesa); aumento das restrições aos espaços de lazer e diversão (privatização de praças e parques, repressão violenta nos bares do Centro Histórico e da Cidade Baixa); falta de uma política efetiva para o saneamento público (alagamentos frequentes); e por aí vai.

Imagem copiada de: https://www.suder.com.br/luxo-e-seguranca-veja-os-melhores-condominios-em-porto-alegre. Acesso em: 21 de mar 2022.

Diante disso tudo, parece que há muito mais motivos para preocupação do que para comemoração no próximo sábado. Mas a prefeitura vai trazer a filha da Elis para cantar na Redenção, ou melhor, no Parque Farroupilha, e o Porto voltará a ser Alegre.

Realmente, Porto Alegre é de mais. De mais pobreza, de mais desigualdades, de mais tristeza.

*Imagem de destaque: acervo do autor.

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Agronegócio, bolsonarismo, Direitos Humanos, Política, Rio Grande do Sul

A neve nos campos de soja: ou o estado das três capitais

O que não tem faltado ultimamente é assunto para a crônica política. Hoje poderia especular, por exemplo, o que está por trás do suposto desentendimento entre Bolsonaro e o chicago boy na taxação das elites. Poderia fazer um crossover de esporte e política, pensando que a rede goebbels, ops, Globo, poderia terminar de vez com o discurso quadrienal hipócrita da superação e do heroísmo dos e das atletas olímpicas do BraSil – que se superam e são heróis e heroínas – e usar todo o seu poder para cobrar incentivos reais dos governos e da classe empresarial para que o esporte seja realmente um caminho para melhorar o país. Seria legal ir mais especificamente a um ponto alto desta olimpíada, onde tem aqui sim um crossover maravilhoso que une Bach e MC João. E o Mário Frias? Não daria pano pra manga falar sobre a desgraceira cultural no braZil com essa gente no poder?

Imagem copiada de https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/07/4940245-planalto-homenageia-dia-do-agricultor-com-imagem-de-homem-armado.html

Só que esta semana um amigo me mandou por WhatsApp algo que ele escreveu. Este meu amigo é uma das referências mais importantes no meu envolvimento com coisas da política, desde as lutas sindicais do serviço público federal nos anos 90 e da formalização do Diretório Acadêmico Osvaldo Oppitz, no velho colegião do Direito da Ritter dos Reis, em Canoas, ainda nos 90’s. A análise que ele faz da conjuntura política do enclave europeu em terras brazilis é preciosa. Pedi autorização para compartilhar o texto e ele disse que sim, mas que por algumas razões não queria que fosse revelada a autoria dele. Sugeriu que eu assinasse como meu. Jamais faria isso! Seria uma sacanagem com ele, que mesmo com a sua decisão de anonimato respeitada, claro, é o autor; mas seria uma sacanagem ainda maior comigo mesmo, porque as pessoas que me leem esperariam daqui pra diante que eu escrevesse dessa maneira e eu preciso de muita estrada pra chegar perto do que o A… – ops, quase entreguei a rapadura! – faz. E, ademais, a proposta aqui é divulgar ideias e não autorias. Então, muito obrigado pela generosidade de partilhar o teu pensamento, meu querido amigo, e me permitir a honra de ser o teu porta-voz neste momento! Segue aí o teu texto, que agora é de todes.

“Hoje no Rio de Janeiro, faz 32 graus e quem pode, se mandou para a praia. Mais tarde, os infelizes cariocas vão tomar uma cerveja antes de dormir, escutando os inúmeros tiroteios que já fazem parte da ecologia acústica local. Quem sobreviver à Guerra Civil, poderá ver reality shows idiotas com pessoas mascaradas cantando.

O gaúcho empobrecido não se importa em andar de Havaianas no meio da chuva congelada. Importante mesmo é saber que os estancieiros da Farsul estão produzindo soja pelos poros e pressionando pela dragagem do Super Porto. Enquanto o gaúcho pobre, separatista de Extrema Direita e chauvinista odeia a China e denuncia o seu vírus fabricado em laboratório, os estancieiros gaúchos supremacistas brancos, risonhos e rechonchudos vendem soja para Pequim.

Imagem copiada de https://oglobo.globo.com/brasil/em-campanha-no-sul-bolsonaro-diz-que-nao-sera-jairzinho-paz-amor-23020818

É fato: os cariocas e os fluminenses são analfabetos políticos porque conseguiram eleger Jair Bolsonaro, seus filhos sádicos e o pastor Marcelo Crivella. Os cariocas gostam de figuras sebosas e criminosas que usam a política para se valer do Foro privilegiado. São portanto diferentes dos gaúchos: os gaúchos são politizados, e elegeram Antônio Britto, Germano Rigotto, Yeda Crusius, Lasier Matins, Ana Amélia Lemos, e o garoto do governo perfeito sem questionamentos, Eduardo Leite. Também conseguiram transformar em deputados Onyx Lorenzoni e Danrlei de Deus, e catapultaram ao senado o líder da SS local, Luis Carlos Heinze.

Heinze é um racista patético, bolsonarista inflamado e que não nega a gloriosa tradição ariana: lidera pesquisas para o governo do estado. Em 2014, então deputado federal, Heinze se referiu aos quilombolas, indígenas e homossexuais como “tudo o que não presta”. Eleito pelos europeus “o racista do ano” naquele longínquo 2014, Heinze agora se tornou famoso por dizer que Cloroquina cura de berne no gado à Covid. Naquele ano, nosso vereador de Rio Grande, Wilson Batista (PMDB), vulgo Kanelão, se nivelou a Luis Carlos Heinze ao dizer que na Democracia rural gaúcha, os negros podiam até comer em restaurantes. Os gaúchos elegem esta gente graças ao seu projeto: uma pátria que seja um Reich. Avante gaúchos da Gestapo!

Imagem copiada de https://www.correiodopovo.com.br/colunistas/eduardo-conill/senador-heinze-recebe-condecora%C3%A7%C3%A3o-1.511846

Os gaúchos colocaram Heinze no senado porque são politizados e inteligentes. São inteligentes graças à sua genealogia, pois conforme a RBS são todos brancos, não fazem parte do Brasil e estão no topo da ciência vitoriana, com sangue caucasoide. No Rio Grande do sul da RBS, qualquer um que morrer de hipotermia, estará dando a sua vida pelo grande projeto da pátria pampeana: o sonhado Reich local.

Enquanto as multinacionais lavam dinheiro em consórcios nacionais, e compram nossas estatais por preços de terrenos nos subúrbios de Rio Grande, os gaúchos empobrecidos, sem bombachas e sem chimarrão, guardam para si o único souvenir da enorme pátria pampeana que lhes resta: o frio. Há frio para todos aqui. Falo de frio de verdade. Há muito frio hoje no Rio Grande do Sul. O povo gaúcho é frio: odeia o magistério, odeia os indígenas, odeia os sem terra. O gaúcho não tem onde morar, mas defende o direito dos latifundiários armados. O gaúcho também é homofóbico, mas engole Eduardo Leite, porque ele é o gay que não afronta os estancieiros heteronormativos que manobram o relho no interior.

Nossas frentes frias não vêm da Terra do fogo e nem do pampa argentino, mas sim da nossa gênese positivista: os gaúchos acreditam na meritocracia e quem nela não se encaixa, que seja banido pelo Darwinismo social, com a nossa seleção natural. Educados pela Farsul e pela RBS, conglomerado do jornalismo canalha e conservador, boa parte dos gaúchos é separatista e quer expulsar daqui índios e negros. Nesta lógica, a lógica patife da Rede Brasil Sul, o estado terá 3 capitais: Porto Alegre será a capital administrativa, para o empresariado negociar como comprará nossa infraestrutura a preços baixos. Torres será a capital no verão, para receber turistas brancos. Milícias de brigadianos cercarão Gramado, que será a capital de inverno: uma cidade fortificada onde pobres não entram.

Ao lembrar que logo será setembro, e que milícias de bombachudos gaúchos sairão a dar relhadas em gays que se atreverem a desfilar com a bandeira LGBT, lembro enfim do que fizeram deste estado e da propaganda do McDonald´s: Eu odeio muito tudo isto.”

Imagem copiada de https://www.portaldasmissoes.com.br/noticias/view/id/3608/pobre,-mestico,-sem-terra,-marginalizado…–o-gau.html

*Imagem de destaque copiada de https://domtotal.com/artigo/7517/2018/06/latifundio-violencia-campesinato-classe-social-que-luta-pela-terra/

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Hierarquização racial, História, Memórias, Política, Porto Alegre

A rua que não há

Num domingo anuviado desses, na esperança de pouca gente pela rua e todo mundo de máscara, fomos, minha esposa, minha filha menor e eu, conhecer a nova atração turística de Porto Alegre, o Cais Embarcadero, que vende a seguinte ideia: “O Guaíba como você nunca viu.” Talvez fosse melhor dizer o Guaíba QUE você nunca viu, já que a muralha erguida nos 1970 por conta dos estragos da Grande Enchente de… 41, faz com que uma boa parte da gente moradora, e mesmo quem anda por aqui só de passagem rumo à Europa brasileira da região das hortênsias, pense que o limite oeste da cidade é o próprio Muro da Mauá. Pois bem, a visita, de que vou falar um pouco mais logo na frente, me trouxe à memória um tempo antigo, de quem nasceu, cresceu, viveu por quase 30 anos na Volta do Gasômetro, que naqueles 70’s não era mais que um grande prédio em franca degradação, que cumpria a nobre função de proteger a Vilinha do Fumaça, e cuja enorme chaminé, com o perdão do trocadilho, já não expelia mais fumaça (sobre isso há controvérsias), e que uma galera corajosa ousava escalar pra fazer a cabeça procurando a foz dos rios que talvez tenha nomeado a vizinha Viamão.

Mais precisamente, morei de 1972, quando nasci, até 2000 no número 330 da General Vasco Alves, que em tempos bem antigos foi chamada de Beco dos Guaranis. Pra ir pro colégio, o velho Paula Soares, subia a Duque de Caxias, às vezes com o Minuano subindo junto pra gelar daquele jeito que se dizia de renguear cusco. A primeira rua que cruzava era a General Portinho e em seguida vinha à esquerda a General Canabarro e à direita a General Cipriano Ferreira. Que nenhum dos excelsos militares venha puxar meus pés à noite, porque quando voltava do colégio as coisas se invertiam e o da direita ia pra esquerda e vice-versa. A próxima rua era a General Bento Martins, que segundo o Sérgio da Costa Franco¹, já teve o curioso e poético nome de Rua dos Nabos a Doze. Logo em seguida a General João Manoel, um caso à parte. Do lado esquerdo e (depois direito) ela descia numa lomba até a beira do rio ou quase. Do outro lado, se transformava num beco sem saída, que terminava numa sinistra escadaria, de trânsito que a mãe me proibia, por razões que eu não sei bem, embora sempre tenha desconfiado que ela tivesse medo que o José Ramos, o Linguiceiro da Rua do Arvoredo, assombrasse algum casarão dos que ainda existem (e resistem) por lá. Rua do Arvoredo que era o antigo nome da Coronel Fernando Machado dos meus tempos de colégio. (A propósito, é um desses casarões, bem no pé da escada, que hoje abriga a Catarse.) Na trilha da minha infância, a próxima rua, à direita, era a do colégio, General Auto, quase em frente ao Palácio Farroupilha e um pouquinho antes do Palácio Piratini, que fica de fronte à Praça Marechal Deodoro. E seguindo em frente – e pros lados – teríamos a Marechal Floriano, a Coronel Genuíno e por aí afora.

Nascer no ano da graça de 1972 é uma alegria para um porto-alegrense convicto e orgulhoso, que por vezes acredita no crepúsculo mais belo do mundo, porque este foi o ano em que se comemorou o bicentenário de Pôrto (nós podemos chamar assim, mas para os de fora é sempre Porto Alegre). As controvérsias que até pouco existiam sobre o aniversário se davam por conta de alguém insistir que o marco foi a chegada do Jerônimo de Ornelas no Morro Santana e outras pessoas entenderem que foram os casais Açorianos que fundaram a cidade, mesmo que a turma vencedora da contenda já tivesse definido que foi quando um tal de Manoel Sepúlveda, que matou um militar em Portugal e veio pra cá transmutado em José Marcelino de Figueiredo, conseguiu a provisão régia que criou a Freguesia de São Francisco do Porto dos Casais, de 26 de março de 1772. Superado esse debate, o que se tem é a gratidão pelos patrícios portugueses, por terem vencido com coragem, bravura e valentia todas as dificuldades que se impunham, trazido a civilização e criado a nossa mui leal e valorosa (valerosa?) capital. E serão eles os grandes homenageados quando, em 2022, comemoraremos 250 anos. E digo elEs mesmo sabendo que os casais, formados por homens e mulheres, também serão lembrados. Mas elAs são elemento acessório para a oficialidade que vai organizar a festa. Assim como são também acessórios – ou nem isso – os Guaranis que aqui viviam bem antes do povo d’além mar chegar, e que por alguma razão batizaram a minha rua da infância pelo seu antigo nome; também não serão homenageados nas comemorações oficiais os negros e as negras que vieram nas correntes pra trabalhar nas terras que os Ornelas, depois Dorneles, da vida ganharam pra povoar a cidade; não teremos, por certo, uma rua batizada ou rebatizada para Mestre Borel ou Bataclã, muito menos Olívio Alfaiate. Não, as ruas continuarão cheias de medalhas e títulos honoríficos nas placas.

Imagem copiada de https://www.bahtchevolta.com.br/post/o-antigo-nome-das-atuais-ruas-do-centro-hist%C3%B3rico-de-porto-alegre, em 29/6/2021

Do mesmo jeito, o empreendimento que quer devolver o rio à cidade não vai lembrar que boa parte do povo que nela (sobre)vive não tem carro pra chegar lá (é praticamente impossível chegar a pé no Cais) e provavelmente não tem condições de pagar 15 reais por um café ou 18 por uma cerveja. No pouco tempo em que estivemos lá, as gurias tomaram um café e um capuccino, porque temos o privilégio de integrar um segmento social que (ainda) pode pagar por isso, e eu, porque sou implicante, não consumi nada. Vi duas pessoas negras, uma mulher e um homem, entre as que visitavam, e muitas entre as que trabalhavam. Nenhuma pessoa com traços indígenas. Fico pensando se o Gilberto Freire estava certo quando dizia que somos o fruto de um processo miscigenatório cordial e amoroso. Desconfio que não estava. Saí de lá com a forte convicção que o muro não vai ser destruído. Não, ele vai ser mantido, porque é a garantia que nenhum descendente de alguma realeza africana vai aparecer pra… denegrir² a festa do high society. A propósito, alguém sabe onde fica a Rua Príncipe Custódio?

¹FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. 2. ed. ampl. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1992.

²O termo é usado com efeito de ironia.

*Imagem de destaque copiada de https://www.geledes.org.br/na-capital-gaucha-viveu-um-principe-negro/, em 29/6/2021

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Cultura, Política, Republicados

Viadutos, homens e homenagens*

VIADUTO PINHEIRO BORDA placa
Viaduto Abdias Nascimento (?)

 

 

O evento trágico que nos privou do convívio do grande Fernandão no último final de semana trouxe algumas discussões à baila. Muitas ideias têm surgido no sentido de como homenagear à altura um homem da grandeza e da importância do eterno Capitão Colorado. Uma delas, a que primeiro foi aventada, talvez, foi rebatizar o viaduto recém inaugurado com o nome dele.

José Pinheiro Borda era o nome que circulava como sendo o do viaduto, inclusive essa informação constava da placa das obras. Confesso que estranhava um pouco batizar com o nome do grande benemérito Colorado uma elevada que passa sobre a rua que já leva o seu nome e que fica ao lado do estádio cujo nome oficial também homenageia este prócer do Clube do Povo.

PINHEIRO BORDA
José Pinheiro Borda

 

ABDIAS NASCIMENTO
Abdias Nascimento

Para meu maior espanto, soube que o nome do viaduto é Abdias Nascimento. Este é o nome de um homem que merece todas as homenagens possíveis, por ter sido um dos maiores defensores da causas ligadas aos negros no país que tanto deve a eles. E é aí é que reside a minha maior estranheza: por que foi tão puco divulgado esse fato? Confirmei isso pela surpresa com que quase todos recebiam a informação do verdadeiro nome do viaduto. Batizar qualquer logradouro ou espaço público com o nome de Abdias Nascimento é evento que merece grande destaque, dada a magnitude do homenageado.

OLIVEIRA SILVEIRA
Oliveira Silveira

Entretanto, conversando ontem com um amigo, negro, surgiu outra questão: não teríamos entre os da terra um nome tão forte para receber essa homenagem? Sem qualquer prejuízo à honraria concedida ao grande líder negro, pensei que poderia, por exemplo, se dar ao viaduto o nome de Oliveira Silveira, gaúcho, poeta, militante da causa negra, enfim, um homem cuja trajetória e história em nada fica devendo ao grande negro paulista.

Não se trata aqui do velho e conhecido bairrismo de que a maioria dos gaúchos é acometido. O interesse é saber as motivações da  homenagem, merecida, a uma pessoa de outro estado, tendo entre as personalidades aqui nascidas nomes que poderiam também figurar, lembrando que este não é um procedimento corriqueiro, basta ver os nomes das ruas da cidade, cujos nomes são de conterrâneos em número bem mais expressivo do que de “estrangeiros”.

Voltando à conversa como meu amigo, surgem algumas pistas. Oliveira Silveira, o Poeta da Consciência Negra, teve uma atuação política extremamente destacada, principalmente na militância junto aos movimentos negros. Todavia, não exerceu nenhuma atividade parlamentar ou qualquer cargo eletivo. Já o nosso grande Abdias foi um dos fundadores de um partido político, elegendo-se deputado e posteriormente senador. Qual partido? Não por acaso o mesmo do atual prefeito de Porto Alegre e do vereador que propôs o projeto para nomear o viaduto…

Insisto que não há aqui nenhuma crítica à homenagem e muito menos ao homenageado, que, repito, é merecedor da eternização de seu nome. Apenas um questionamento sobre a opção por um grande homem nascido fora do Rio Grande do Sul em detrimento de tantos nomes – e eu referi somente um – que aqui têm a sua origem. E, mais do que isso, por que um fato tão significativo para a cultura nacional, teve tão pouca divulgação e repercussão, a ponto de poucas pessoas terem dele conhecimento?

Coisas da política(gem)…

P.S.: caso queiram saber um pouco mais desses grandes brasileiros:

http://www.abdias.com.br/

http://www.oliveirasilveira.blogspot.com.br/

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 11/6/2014.

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Mercado padrão Mercado*

Não vou falar da minha relação com o Mercado, deixo isso pra outra hora. Quero falar, mais uma vez, da podridão que é essa rede bosta sul. No sábado, uma querida amiga me ligou pra dizer que o Mercado estava pegando fogo. A tv cão (nada contra os queridos cãezinhos) era a única a transmitir. Botamos lá. Bueno, é o fim do Mercado, foi o que pensamos. As imagens captadas pela aeronave dos capachos dos marinhos não deixavam dúvidas sobre a destruição total do prédio. Os apresentadores, capitaneados, a saber, por um narrador de futsal, diziam que 100% do prédio estava atingido e uma das repórteres, que estava lá perto, chegou a pedir pra que todos rezassem (só não disse pra quem…) pra que não fosse necessário derrubar o que restaria do Mercado.

A minha história com o Mercado, essa de que eu não vou falar agora, fez com que a emoção falasse mais alto e eu acabei entrando no clima de tragédia (não que não sido, mas…). A Patrícia entrou no facebook e comentou sobre posts que falavam em crime, especulação imobiliária etc. Achei exagerado na hora, mas quando no domingo vi que o dragão não tinha tantas cabeças assim, comecei a pensar nessas coisas.

Que interesse alguém poderia ter na destruição de um patrimônio histórico da cidade? O seu Thompson Flores pode baixar em alguma mesa espírita pra esclarecer isso… O fato é que o incêndio, trágico, obviamente, não foi nem de perto tão devastador como os caras daquela tevezinha quiseram mostrar. O que eles ganham com isso? Não sei, talvez algum amiguinho empreiteiro possa dar uma clareada. E eu não li, mas diz que a matéria do tabloide deles se preocupou com a roupa do prefeito e com o fato dele ter saído de casa sem janta pra acompanhar o trabalho dos bombeiros.

Os desdobramentos começaram já na noite de sábado: faltou água?; os bombeiros chegaram tarde?; de quem é a culpa pelo PPCI vencido?; e se houvesse pessoas lá dentro?; mas e o exemplo da kiss não serviu pra nada?; etc. etc. e tal.

Essa história vai longe, mas o que já se pode ver com ela é o péssimo serviço que essa rede miserável presta para o povo gaúcho. E a despeito do que pretende essa gente da rede bosta sul e os seus capachos, o Mercado está firme e forte e vai sobreviver mais alguns séculos “atrapalhando a evolução da cidade”, afinal, que belo xóping se construiria ali, hein?!…

P.S.: e não me venham com Mercado padrão fifa, porque eu quero o velho Mercado do aperto na Banca 26 e da erva buena da Palmeira que o Adão sempre me consegue na 33!

http://www.mercadopublico.com.br/

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 8/7/2013.

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Arte, Republicados

As pessoas, o universo*

Este episódio, que poderia certamente virar uma peça do folclore, aconteceu de fato:

há alguns anos, teve uma Bienal do Mercosul em que os caras criaram algo que ficou conhecido como a cidade dos contêineres ou coisa parecida. Era na beira do RIO Guaíba, naquele espaço que tem perto da rótula das cuias (ou das tetas),  e se tratava da instalação de vários contêineres, desses de navio cargueiro, cada qual com uma exposição artística (ou nem tanto) diferente. Tinha umas bem interessantes e outras que nem o mais sábio dos monitores conseguiria me fazer entender. Mas ele tentou. Tinha um contêiner quase vazio, bem branquinho e um número razoável de pessoas em volta, ouvindo a explicação do monitor. Ele estava quase vazio porque dentro havia um balde, uma vassoura e um rodo. E o abnegado guia (esses caras são, em geral, alunos dos cursos de arte ou história, que fazem monitoria voluntária, o que é muito legal) estava ali a descrever a obra, tentando passar para os interessados um pouco da alma do artista, o que ele quis dizer com aquilo etc. E o artista tinha querido mais ou menos dizer alguma coisa sobre o contraste entre a pureza original da alma, ali representada pela alvura do contêiner, com a necessidade de uma limpeza a ser feita pelo ser humano, a ser executada, metaforicamente, pelo material de limpeza. Talvez, ainda, algum estudioso das coisas d’além matéria corpórea, poderia ter feito alguma associação com as ideias do pecado original, do cristianismo, frente ao ensinamento budista que diz que todos têm uma essência eminentemente pura. Enfim, muitas coisas poderiam ser ditas ou pensadas a respeito daquela instalação (acho que é esse o nome que se dá a esse tipo de obra de arte, mas se não for, perdoem-me a minha falta de conhecimento).

Bueno, o fato é que enquanto o cara falava, as pessoas de fato refletiam sobre aquilo tudo, algumas pelo menos. Eis que de repente, do nada surge um personagem que não deveria fazer parte do contexto. Um carinha uniformizado, que, pedindo licença educadamente, abriu caminho entre os apreciadores da arte, pegou o seu material de trabalho, nada menos do que o balde, a vassoura e o rodo, e foi “purificar” outro lugar que necessitava da sua intervenção. Não preciso falar da cara que ficaram aqueles todos entendidos e estudiosos da arte…

Costumo contar essa história sempre que tenho oportunidade de falar alguma coisa do que penso sobre a arte e os seus críticos. A partir de agora, porém, quando quiser ilustrar o meu pensamento, tirarei do bolso esta cronica do … (tem necessidade de qualificar?) Luís Fernando Veríssimo (Caderno Donna, de ZH, de 7 de abril de 2013), com a qual brindo os meus amigos e leitores:

     “Poemas

     ‘Prezado M: Recebi o e-mail com seu mais novo poema e entendo seu entusiasmo. Realmente, é um raro exemplo de exteriorização poética da angústia moderna, a começar pela reiteração inicial: 
     ‘Eu mato, eu mato…’
     A brutal assertiva evoca à perfeição a têmpera destes dias, o nosso ‘zeitgeist’. Perderam-se as ilusões com a justiça, com as esperanças de regeneração e com todas as instâncias jurídicas. Vivemos num deserto de valores morais. O poeta não diz ‘eu reprimendo’, ‘eu castigo’, ‘eu mando prender’, ‘eu condeno’. Diz e repete ‘eu mato’. Que retribuição se pode esperar onde a justiça não faz justiça e a cadeia não segura o ladrão? O poeta ameaça fazer a sua própria justiça porque não existe outra. Revertemos ao animal primevo com as presas à mostra, num ricto de vingança selvagem. 
Uma hiena ganindo entre as ruínas de uma civilização falida. 
     Segue o poema:
     ‘… quem roubou minha cueca…’
     Há aqui algo que equivoca Eliot, com seu constante recurso ao aparentemente banal – no caso, a cueca – em contraponto a alusões clássicas e míticas, e que acabou sendo um viés da poesia moderna (Auden, Drummond). Não seria, talvez, demais ler a cueca como metáfora. A cueca representa o que temos de mais íntimo, recôndito, profundo. O que temos de mais nosso. O que o ‘zeitgeist’ nos roubou. Ou seja: a nossa alma. Onde está ‘cueca’ leia-se ‘alma’. Sem a cueca ficamos nus. Sem a alma também estamos reduzidos a apenas nosso corpo.
     Mas quem roubou a nossa cueca/alma? Quem trouxe nosso corpo desprotegidos para este deserto?
     Quem merece a raiva do poeta?
     Que a raiva é merecida fica evidente na última linha do verso:
     ‘… pra fazer pano de prato!’
     A suprema degradação. Nossa alma secando pratos. O fim de uma geração que conseguiu chegar à Lua, mas se perdeu no caminho da privada. Quem é o culpado? Também queremos ganir de indignação como o poeta mas não sabemos em que direção. 
Para o alto? Para o lado? Para que lado? Quem, afinal, roubou nossa cueca pra fazer pano de prato?
     Mas, enfim, poesia é isso mesmo, não é não? Perguntas sem respostas. Se houvesse resposta não seria poesia. Só me resta invejar o seu poder de síntese e a síntese do seu poder, que reduz toda a condição humana a um verso singelo, e o Universo a um gemido terminal. 
Parabéns!
     E um grande abraço do L.’

~  
 
     ‘Prezado L:
     Gostei muito do que você escreveu sobre o verso que mandei, mas preciso fazer uma confissão: mandei o verso errado. Queria que você comentasse o poema caudal em 170 estrofes que me custou quase um ano de trabalho mas me atrapalhei (sou um pré-eletrônico,você sabe) e acabei mandando a letra de uma antiga marchinha de Carnaval que, sei lá por que, meu neto de doze anos armazenou no meu laptop. Mas obrigado assim mesmo. 
Grande abraço, M.” 
*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 10/6/2013.
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Mídia, Republicados

Outros carnavais…*

Na última quarta-feira,Imagem participamos de um debate, promovido pelo Museu de Comunicação Social, sobre a relação do humor com a tragédia, tendo como ponto de partida o incêndio da boate Kiss. Na mesa, comandada pelo Augusto Bier, diretor do Museu, só havia gente grande: da esquerda para a direita: Eugênio Neves, Edgar Vasques, o próprio Bier, Máucio e Leandro Bierhals. Além da plateia, reduzida, mas interessada, houve a participação em muitos momentos do ex-jornalista (ex segundo ele próprio) e escritor Rafael Guimaraens, que já escreveu belos livros sobre coisas de Porto Alegre.

O debate teve momentos comoventes, como os relatos do Máucio, que é professor da UFSM e mora em Santa Maria, além das palavras do Bier, no vídeo anexo.

VÍDEO INDISPONÍVEL

Foram analisados vários aspectos dessa relação que os profissionais do humor têm com eventos trágicos, aos quais deve ser dado naturalmente um tratamento todo especial. Foram mostradas em telão algumas charges, a maioria muito bem feita e com grande sensibilidade. A do Marco Aurélio, que ficou famosa por, entre outras coisas, ter como consequência uma geladeira dele na zh*, foi bastante discutida, e, porque não dizer, demolida.

CHARGE KISS MARCO AURÉLIO

Outra charge bem interessante apresentada é uma feita pelo Chico Caruso, que liga a Dilma à tragédia, de forma negativa, obviamente, afinal não se poderia esperar outra coisa de um destacado “colaborador” das organizações globo e cia.

CHARGE KISS CHICO CARUSO

Por vezes o debate fugiu um pouco aos limites impostos pelo tema e passou a analisar a atuação da mídia de forma mais ampla. Num dos melhores momentos, o Eugênio Neves fez relatos interessantíssimos do tempo em que trabalhou na zh, de onde saiu por não concordar com os mandalhetes representantes do ideário da alta cúpula. E é esse o gancho que eu quero pegar pra abordar o assunto de agora.

A zh nasceu apadrinhada pela repressão, acho que isso não é segredo pra ninguém. E se manteve nos 21 anos do regime extremamente afinada com as ideias da milicada, que, por sua vez, estavam afinadíssimas com as ideias de outros grupos econômicos e sociais. Dizer que a globo e seu séquito sustentou a ditadura ou vice-versa é como desenhar uma cobra mordendo o próprio rabo, porque elas foram e são, no fundo, engrenagens de uma máquina montada para atender interesses de certas elites que, por incrível que pareça, ainda se mantêm no domínio, justamente por intermédio da mídia corporativa, encabeçada pela globo, veja, folha de são Paulo e afins.

Eu quero, neste texto, dar uma pequena mostra de como funciona a manipulação feita pela grande mídia, que forma uma “ideologia” canhestra na cabeça das pessoas que têm preguiça de pensar ou que, por qualquer motivo, não têm acesso a canais de informação mais qualificados.

Na capa da zh de domingo, aparece em destaque a seguinte manchete:

Quem dá mais

Médicos ganham até R$ 32 mil no interior

Pra garantir permanência de profissionais, municípios pagam até o dobro do salário dos prefeitos.

Muito bem, um dos assuntos da última semana foi a iniciativa do governo central de chamar médicos estrangeiros para trabalhar nos locais em que os brasileiros não querem ir. Estão incluídos médicos portugueses, espanhóis e… cubanos. Bueno, aí é que a porca torce o rabo. Como assim, médicos cubanos? O que essa louca da Dilma está querendo? Encher o país de comunistas e reacender as chamas da Revolução? Pois é, e daí decorre um discurso violento contra a medida, que inclui os Conselhos de Medicina, falando do absurdo disso, que os cubanos não têm competência, que é preciso qualificar o serviço com os profissionais brasileiros etc., etc. e tal. Ok, mas só os cubanos são incompetentes? Quem sabe a gente dá uma olhadinha no outro lado da coisa, pelas palavras de quem entende do assunto:

http://www.sul21.com.br/jornal/2013/05/a-questao-da-vinda-dos-medicos-cubanos-para-o-brasil/

Talvez alguém esteja se perguntando qual o problema com a manchete da zh. Simples. Um dos argumentos para a importação desses profissionais é que os médicos brasileiros não têm interesse em trabalhar em alguns locais, seja pelo difícil acesso, pela distância dos grandes centros ou pelos baixos salários oferecidos. Ocorre que o cara que sai pra trabalhar todo o dia, sempre na correria, e não tem tempo de ler o jornal, ou, melhor, de se informar em outras fontes, passa pela banca e lê a tal manchete. Daí ele sai pensando mais ou menos assim: “Os caras pagam bem pros médicos, então por que essa mulher – a Dilma – quer trazer os comunistas?” E debate essa ideia com os colegas de escritório ou de repartição. E aí, como todos sabem, é o famoso telefone sem fio das brincadeiras de criança, a coisa virou um monstrengo. E a verdade? Bom, quem se interessa pela verdade? Mais uma vez a mídia corporativa – zh – cumpriu com extrema maestria o seu papel de distorcer os fatos, manipular a informação e formar uma opinião absolutamente limitada e míope no seu público. Ponto para os sirotsky.

Só que a coisa não para por aí. Eu tenho a mania de ler todo o jornal. E antes que alguém me pergunte por que eu leio a zh, se tenho tanto horror dela, digo simplesmente que se não lesse não poderia estar escrevendo este texto. Além do mais, não sou maniqueísta, e reconheço que até a zh tem algumas coisas boas, desde que os leitores não tenham preguiça de procurar. Então, lendo o miolo do jornal, chego lá na página de opinião (p. 16), onde de 15 em 15 dias escrevem o Marcos Rolim e o Percival Puggina. (Sobre este, chega a dar nojo…) Ali tem também as frases da semana, das quais a grande maioria é totalmente descontextualizada e trabalhada de acordo com os interesses editoriais, que, já vimos, são, no mínimo, questionáveis. Lá está a seguinte frase, da Marilena Chauí: “Eu odeio a classe média”. Frase forte. E num primeiro momento revoltante, certo? O engraçado é quem em todas as outras frases há uma pequena explicação que dá a ideia do contexto em que elas foram proferidas. Esta, porém, está lá solta no mundo.

Para quem não sabe, a Marilena Chauí é uma das grandes pensadoras do Brasil e do mundo, fundadora do Partido dos Trabalhadores, e tem a sua formação centrada no marxismo. Ah, bom, mas aí começa a ficar claro o que a editoria de zh fez. Acontece que o ódio que a Marilena devota à classe média não se refere à classe de trabalhadores, que sustentam o país, da qual ela é integrante convicta. Esse conceito de classe média é um conceito capitalista, criado para manter as coisas nos seus devidos lugares, de acordo com os interesses das elites dominantes. Sabem como é, aquela história de cada um no seu quadrado. É essa definição de classe média que ela pretende atingir por trás das suas palavras fortes e agressivas. E, sim, por consequência, também as pessoas que fazem parte deliberadamente desse grupo, que são usadas pelos sistema e que, por terem condições de andar de carro zero e mandar seus filhos pra Disney, acham que o país não tem problemas e que todo mundo tem os mesmos direitos a educação, trabalho, lazer e todo aquele blá, blá, blá irritante e repetitivo da desinformada (e/ou manipulada)… classe média. Vamos ver a coisa dita dentro do seu contexto:

Num livro muito bom, chamado “A máquina capitalista: como funciona – porque paga baixos salários – papel do intelectual na luta pelas mudanças – em exemplo: rbs”, escrito lá em 1988 (editora Vozes), o Pedrinho Guareschi, que, imagino, dispensa apresentações, e o Roberto Ramos, que é jornalista e professor, traçam um mapa do pensamento capitalista e do funcionamento da estrutura, usando, na segunda parte do livro, já que a primeira, a cargo do Pedrinho, é mais teórica, exemplos vividos pelo próprio Roberto, quando foi repórter da zh. Olha, gente…

No livro, fica clara a distinção entre as teorias de classe. Uma, a capitalista, que define as coisas pelo poder econômico, e assim cria a classe alta, a média – e suas subdivisões – e a baixa. Outra, alinhada com a ideia das relações de produção, estabelece que há somente duas classes, a dos detentores dos meios de produção e a dos trabalhadores. Ou seja, numa visão histórico-crítica, a classe média não existe, ela é uma criação da ideologia capitalista, com a intenção de acomodar as pessoas, afinal, quem atingiu o nível da classe média não tem do que reclamar…

Assim, amigos, vejam o que o trabalho minucioso da imprensa mau-caráter faz com a cabeça das pessoas. Aqueles que não se contentam em nadar na superfície, e porque buscam a raiz das coisas são muitas vezes chamados de radicais (radical vem de raiz), descobrem coisas interessantíssimas sobre essa forma de agir da mídia podre. Seria muito bom ter mais gente assim.

Para encerrar, relato três passagens do livro citado, tiradas da segunda parte, isto é, não são material teórico, mas sim experiências reais, protagonizadas por um dos autores:

“Na primeira semana de março [1987], corria uma ordem expressa emanada do editor-chefe, ex-porta-voz do governo Médici. Não podia sair nada contra o governador Pedro Simon. No Rio Grande do Sul não havia problemas. Sobrava dinheiro nos cofres públicos e os professores e os funcionários públicos estavam, integralmente, satisfeitos com os seus contracheques achatados.” (p. 102)

“A comunicação é, hoje, o grande poder. Alguns a chamam de quarto poder. Essa afirmação só não é totalmente verdade (não que a comunicação não seja um) porque, em vez de representar o quarto, significa o primeiro!” (p. 113)

“Se é a comunicação que constrói a realidade, que país é esse, onde essa comunicação, isto é, os meios de produção da comunicação, estão nas mãos de uma minoria reduzidíssima?” (p. 113)

Tiro três conclusões disso tudo:

1- a mídia corporativa (podre) manda no país;

2- a imprensa podre, que manda no país, é dominada pelos marinho e seus asseclas, a saber os sirotsky no Rio Grande; e

3- a canalhice da zh vem de outros carnavais…

*Adotarei o costume de usar letras minúsculas sempre que me referir à mídia corporativa.

Agradecimentos: Eliane Fay, que me emprestou o livro, e direção do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 20/5/2013.

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Música, Republicados

Nos tempos da brilhantina*

Não foi exatamente um retorno aos tempos da brilhantina, mas foi quase como. O primeiro elepê de roque que eu ouvi na vida, e enlouqueci (Raulzito é outra conta), chama-se Volume 4, e quem toca ali é: Toni Iommi, Terry Geezer Butler, Bill Ward e Ozzy Osbourne, ou, dito de outro modo: Black Sabbath. O Ozzy ficou por último propositadamente, porque é o mais pop deles e estampa a capa do disco. Isso aconteceu na minha vida antes mesmo dos Beatles (heresia, dirão talvez) e mais ou menos junto com o AC/DC, O Led Zeppelin e o Deep Purple. Eu ouvia esse negócio incansavelmente, com requintes de crueldade, porque botava as caixolas do meu Conjuntojunto Polyvox na janela, pra que todos que passassem  tomassem conhecimento que ali havia um roqueiro, ou melhor, um metaleiro, era assim que eu queria passar à história.

Bueno, digo tudo isso por que mesmo? É porque ontem, depois de décadas, sim décadas, voltei a curtir um rock pauleira (putz, essa veio do fundo falso da arca do noé). Trata-se da banda Bladde, cujo guitarrista, um dos dois, é o Daniel, primo da Patrícia. Então fomos lá pro segundo show. O primeiro, que não conseguimos ir, ocorreu, ironias da vida, na Casa do Gaúcho. O evento estava marcado para um lugar chamado La Bodeguita, onde a Patrícia esperava talvez encontrar um tango e eu uma rumba ou quem sabe uma cumbia uruguaia (beijo Flavinha e Julinho!). La Bodeguita poderia ser uma sinistra casa escura e cavernosa que abrigaria um show de Révi Metal? Sim, senhoras e senhores, é isso mesmo. Show da Banda Bladde, heavy metal na veia, em La Bodeguita.

Passamos de carro pelo local e a primeira impressão é que o show tinha sido transferido e o Daniel esqueceu de nos avisar, desconfiança amparada também no fato de eu ter tentado falar com ele pelo telemóvel a tarde toda, sem sucesso. Vamos conferir, foi a ideia. Chegamos na frente, um cartaz do show, com a data certa, mas a casa hermeticamente cerrada. E agora, quem poderá nos salvar? Talvez a Patrícia não queira que eu fale, mas ela pensou em desistir -faríamos o que, sertanejo universitário ou samba de raiz? – na dúvida, resolvemos esperar um pouquito. Nisso chega um casal mais ou menos como nós, seja lá o que isso quer dizer em se tratando da possível plateia de um show heavy, dá uma olhada, pensa um pouco, troca uma ou duas letrinhas e se vão lá pra dentro. Vamo nessa! Quando adentramos a casa, o aspecto funesto ficou mais evidente. E aí estava o casalzinho trovando o cara do bar pra assistir a passagem de som, tentativa negada. Fomos eles e nós lá pra frente e entabulamos um começo de conversa. Ele não curte rock pesado e a moça nem rock curte, porque ela olhou o cartaz e achou que eram umas quantas bandas, incluindo Pantera. Perguntei quem eles vieram prestigiar e o cara disse simplesmente: – o Iuri. – Em que banda ele toca? – Não faço a mínima ideia. Nessa altura já tinha uma rapazote ali na frente, que eu achei era da plateia, mas depois vim a descobrir tratar-se do crooner da Bladde. Logo em seguida saiu o Iuri, com um par de tampões pros ouvidos, o que poderia denunciar que nem ele aguenta o (volume do) som. Conversaram um pouco, ele e o colega de trabalho, soube isso no decorrer dos eventos, e descobri que ele toca na Bladde. Então, convite pra entrar, o show vai ter início, ele se foi, nós ficamos um pouquinho mais e… porta fechada. De novo! Talvez os caras do bar estivessem a fim de um show mais intimista, só pra convidados, champanhe no gelo, sei lá…

Poucos minutos, talvez sete ou oito, depois, abriu-se a porta da esperança e finalmente penetramos o local de forma definitiva. Quando chegamos perto do palco, a Patrícia quase me mata de susto: – Olha ali quem tá aqui, a Carmela! – Foi isso que eu ouvi. No breu da coisa toda, divisei uma moça lá dentro e não identifiquei. Por alguns segundos imaginei a minha cunhadinha querida numas de head banger. Deus não joga mas fiscaliza, não era a Carmela e sim a Gabriela, a queridíssima senhora Daniel Portella (porque dois eles não sei), que é a fã número zero da banda, sem dúvida (ou será que é só colheita de material de pesquisa pra Psicologia? – brincadeirinha, gente!). Naquele momento vi que havia me livrado do pesadelo de ter que ver o Roberto pedir uma versão aditivada de Luiza ou do Canto de Ossanha… A Gabi veio nos receber cheia de surpresa, que eu não sei porque, afinal eu fui metaleiro quando era jovem e a Patrícia conhece mais músicas do Metallica do que eu talvez jamais venha a conhecer a não ser pelas bocas e instrumentos da Bladde. A propósito, eu achava que conhecia duas, mas quando eles tocaram uma delas, que eu marquei na cabeça, deu zebra, porque era do Iron Maiden, ou seja, de Metallica eu não entendo patavinas!

Começa o show, pelo menos era o que eu achava, e eu faço um comentário negativo sobre o baterista, que atravessou toda a música, no mínimo uns três compassos atrasado (ou adiantado, dá na mesma). Na segunda música eu disse que ele já estava melhor. E na terceira já não era mais ele. Só fui entender que ele era o batera da outra banda e que eles estavam apenas descontraindo um pouco, já comendo um Boka Loka no Cavanha’s. Deus de novo, porque eu estava ficando decepcionado. O Daniel tinha me mostrado umas duas músicas num estúdio e eu tinha achado tri bom, como é que agora era esse samba do crioulo doido? Na hora, olhando pro palco, vi que não tinha caixas de retorno e e me ocorreu que o batera não estivesse ouvindo a banda. Mas depois tudo ficou claro e cristalino, tal qual o ambiente.

E a banda? Bueno, a banda… Duas guitarras, formação clássica, o Daniel numa delas, um pouco mais econômico e contido, o que é excelente, porque solos “infinita highway” já não me gustam mais, embora às vezes eles sejam necessários no formato e na proposta da banda (certa feita, Eric God Clapton disse que o amadurecimento fez com que os solos dele perdessem alguns quartos de hora); o outro guitarrista, equipado com uma pedaleira maior, embarcava mais nos solos, o que confere um equilíbrio bem legal pra banda, mesmo quando os dois solam juntos, num efeito típico do estilo. (Já vi o Iron Maiden com quatro guitarras e todo mundo solando junto!) O baixista, o Iuri, toca tri bem também, tem uma segurança de veterano e me lembrou, vejam só, justamente o Gezzer Butler. O baterista, Flávio, se não me traem os recuerdos, é o que tem que ser: bate forte e pesado. Muito bom! Uma observação um pouco mais apurada cabe sobre o vocalista. Achei o timbre bem parecido com o Bruce Dickinson, o que faz com que os Iron Maiden saiam quase perfeitos. Pros Metallicas também fica muito bom. Quando eles tocaram Heaven and Hell, me pareceu que ele ficou um pouquinho acima do tom, mas isso não prejudicou a interpretação. Como ele é um piá (isso não é nenhuma ofensa, pelo contrário, apenas a constatação que ele é bem mais novo que este escriba), certamente vai evoluir muito, mas já é muito bom, inclusive na performance de palco.

Bueno, gente, era o que tínhamos para o momento. Dado o avançado da hora, deixo assim as côsa tudo. Só pra fazer um desfecho, se eu fosse o Veloso, diria que foi lindo, mas como o meu negócio é com outro baiano, prefiro dizer: FOI DUCARALHO! Obrigado pela noite, gurizada!

Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 8/2/2013.

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Memórias, Republicados

Álcool: de 100 pra zero*

Segundo reveion sem álcool. Legal observar a evolução da abstinência. Não da interrupção do álcool em si, porque esta se deu literalmente do dia pra noite, mas como a minha relação com essa nova situação foi se desenrolando.

No início, uma certa desconfiança e até alguma insegurança. A resposta pra negar o copo era mais ou menos sempre a mesma: “não tô bebendo”. O gerúndio aponta pra algo momentâneo, circunstancial. Não bebo neste momento, mas quem sabe mais adiante… A justificativa (sempre tem que ter alguma?) invariavelmente passava pelos remédios, porque isso evitava a insistência. Algumas vezes uma que outra brincadeira com a balada segura. O fato é que não existia a afirmativa: “Parei de beber!” Talvez porque o fato tenha se dado justamente numa virada de ano e no verão seja ainda mais difícil resistir aos apelos da cana.

Mais pra frente, um pouco mais seguro, apareceu o “Parei de beber!” Mas ainda guardando uma relação com o tempo etílico. Parei de beber implica no reconhecimento de que bebi. E em geral com o adicional de quantidade: muito! Os remédio aos poucos deixaram de ser muletas. Às vezes uma deslizada pelo “Dei um tempo!”, mas quase sempre deixando esse tempo em aberto por um bom tempo.

Atualmente, “não bebo”. Só “não bebo”, sem mais. Pra quem me conhece de outros anos novos, isso pouco diz, mas pras novas amizades, até que se aprofunde no assunto, sugere-se que nunca bebi. E isso não carrega nenhum constrangimento. Não há mais a necessidade de mostrar o passado alcoólico. Isso é bom!

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E a tal cerveja sem álcool? Troço bem ruim! E perigoso… Quando bebia, cheguei a tomar uma vez que outra, mas só por curiosidade, e como logo em seguida derramava o álcool por cima, a coisa ficava no ar. Dia desses, porém, aceitei uma sem álcool, mais pra não fazer desfeita. Bem gelada, no calorão da noite pré-natal, desceu bem o primeiro gole. Depois enjoa e o cara não chega na segunda lata. Mas aí é que o gato esconde o tapa. No meu tempo de aventuras etílicas cerveja era, na ordem de preferência, polar, brahma, antarctica, skol, kaiser (sim, eu tinha tendências suicidas). Tinha algumas especiais, tipo brahma extra, original, serramalte, boêmia. Alguns lugares, como o Zelig, tinham outras cositas, tipo a bavária premium antiga, long neck, com um papel laminado branco cobrindo a tampa; havia alguma importada, tipo budweiser e a coisa ficava por aí. Sou do tempo que a gente olhava nos filmes os caras amassando uma lata com a mão e ficava impressionado, porque a lata por aqui era de ferro, impossível de amassar sem uma marreta, e só da skol. Mas voltando à vaca fria, hoje chega a dar nojo de tanta cerveja que tem por aí. E mais nojo ainda de tanto mestre cervejeiro dando dica de cor, textura, borbulhas e o escambau!

(Parêntese pra contar uma rapidinha que ilustra a minha grossura: certa vez fomos no aniversário de uma amiga, professora da inglês da UFRGS, num pub desses que se vieram na onda das bacanezas oropeias que aportaram por acá. Gente bonita, papo cabeça, a Patrícia e alguns maloqueiros [sim, Diego e Flávio, é docês que eu tô falando]. E eis que o garção veio com o mení e sugeriu que começássemos apreciando uma mais fraquinha, pra depois avançarmos pelas mais encorpadas. Do alto das minhas décadas de beberagem eu pedi uma heineken, ao que o sujeito, muito solícito e cordial respondeu que tomando logo uma mais forte isso poderia prejudicar a apreciação dos sabores que viriam. E eu disse: “valeu a dica, parceiro, mas a questão não é o gosto do troço, mas o preço, então, se tiver alguma mais fraquinha que seja também mais barata, é nessa que eu vou”. Bueno, não preciso dizer que a fubangagem [vocês de novo, Diego e Flávio] se divertiu e a Patrícia queria se enfiar em baixo da mesa.)

Voltando de novo à vaca, que a essa altura já deve estar gelada, eu não sei se hoje em dia o gosto da cerveja álcool 0 é muito diferente de tantos outros que tem à disposição. Então hoje pode ser que o cara beba esse negócio numa boa enão queira ir pras outras. Mas prum bebedor da média guarda, como eu, o gosto dessa coisa lembra muito pouco o da cerveja que eu tomava, mas dá uma vontade de chamar uma velha polar bem gelada.

Por isso, meus amigos que pretendam enveredar pela abstinência, sugiro que não caiam nessa de tomar essas sem álcool. Primeiro porque não vai matar a saudade, porque isso pode ser qualquer coisa, menos cerveja. E segundo, decorrência disso, vai ser difícil segurar a onda depois.

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Pra encerrar, não sei se já disse isso, mas o melhor de não beber não é ver que eu posso fazer tudo de bom que fazia com álcool na cabeça, mas saber de tudo de ruim que eu deixo de fazer justamente por não estar sob efeito.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 3/1/2013.

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