Direitos Humanos, Ideologia, Mídia, Sociedade

Tá lá o corpo estendido no chão: ou a arte de morrer na contramão atrapalhando o tráfego

Quando Danuza Leão lamentou o risco de encontrar o porteiro do prédio no aeroporto de Paris (https://www.geledes.org.br/o-perigo-de-dar-de-cara-com-o-porteiro-do-proprio-predio-danuza-leao-pede-desculpas-a-porteiros-e-leitores/), não estava expressando uma frustração meramente pessoal por ver que os espaços privativos do high society estavam ameaçados. A lógica que pobre só frequenta a universidade quando está trabalhando na construção do prédio estava sendo subvertida e era preciso fazer uma espécie de manifesto dando conta da insatisfação coletiva de uma classe que não estava acostumada a dividir o seu espaço com gente estranha. Naquele momento, Danuza assumia o papel de porta-voz de uma elite que se importa antes em manter a distância da “turma de baixo” do que com os próprios prazeres que as melhores condições econômicas podem oferecer. Poderia impregnar a conversa de uma ortodoxia marxista e examinar se Danuza integra a classe que detém o capital e os meios de produção, ou se é a contragosto integrante de uma classe “especial”, que é explorada, mas se recusa a aceitar e se enxerga no topo da pirâmide econômica. Isso não interessa agora, porém.

Algum tempo antes, um raivoso jornalista vociferou num telejornal de Santa Catarina contra os malditos miseráveis que naqueles tempos podiam comprar carros. As palavras do inexpressivo apresentador são tão chocantes que vale a pena reproduzir uma parte:

Se um desgraçado destes é atrop… – e esta é a palavra – se um desgraçado destes é atropelado e feito sanduíche na pista, o que é que vão dizer? Este trânsito insano!! Insano é o cara que para o camarada [sic], para o carro, atravessa a BR pra ver o que aconteceu com outra pessoa. Então é isso: estultícia, falta de respeito, frustração, casais que não se toleram [!], popularização do automóvel, resultado deste governo espúrio [o ano era 2010], que popularizou pelo crédito fácil o carro para quem nunca tinha lido um livro. Com a arrogância típica de quem é dono da verdade, o encerramento foi com um: É isso! (O comentário completo pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=4tbOIuPU5Vs&ab_channel=CRSS3.) Não vou entrar em detalhes sobre os estudos que mostram que os acidentes automobilísticos mais violentos são provocados por máquinas com preços de 6 dígitos e até mais, que, obviamente, não são pilotadas pelos desgraçados miseráveis referidos pelo colunista. Também não vem ao caso.

Na última terça-feira, estava ouvindo o programa Sala de Redação, e na transição para o Gaúcha Mais, quando costumeiramente ocorre um bate-papo entre os integrantes dos dois programas, o apresentador Paulo Germano fez uma referência à nova orla do Guaíba. Querendo destacar a democratização das áreas públicas da cidade, ele disse que as classes mais altas vão frequentar a beira do rio por conta da excelência do local, do alto nível dos equipamentos de lazer que lá serão disponibilizados (quadras de esportes, pista de skate etc.), enfim, atraídas pelo que de melhor aquele espaço vai oferecer. As classes mais populares também vão estar lá, segundo o comunicador, mas por uma razão diferente: é de graça.

É interessante observar rapidamente os perfis das pessoas que fizeram os comentários aí de cima. Danuza Leão é uma típica figura da geração Bossa Nova, a alta sociedade da zona sul carioca que fez sucesso entre a segunda metade do século passado e o começo dos anos 2000; já Luís Carlos Prates é um jornalista anacrônico, do tipo que não atende mais os requisitos das editorias modernas, mas que ainda encontra espaço aqui e ali em programas sensacionalistas ou em veículos com fortes vinculações com os interesses e as ideologias das elites. São, portanto, duas pessoas com uma trajetória de vida mais longa, que atravessaram um período de transição da sociedade, com grandes mudanças nos comportamentos e nas tecnologias. Assim, de certa forma é possível contextualizar as posições que elas expressam, absolutamente injustificáveis, mas compreensíveis. Assustador mesmo é o caso do Paulo Germano.

PG, como é conhecido, tem a imagem requisitada para trabalhar no jornalismo “sério” contemporâneo: jovem, descolado, com uma bagagem cultural interessante, transita com desenvoltura por assuntos diversos, como políticas públicas, música e livros (o fato de dia desses ter associado Bukowski aos Beats é – ou não – irrelevante), e é interessado nos acontecimentos diários da cidade. Assim o portal da Famecos o descreve: “Espontâneo e carismático. Um jornalista humano que consegue exercer a empatia em tudo o que faz. Paulo Germano Moreira Boa Nova, nascido em 17 de dezembro de 1982, sonhava em ser um pop star de sucesso mundial, mas acabou encontrando no jornalismo o sentido que tanto desejava para a sua vida.” (http://portal.eusoufamecos.net/muito-mais-que-profissional-a-famecos-me-formou-como-gente/).

Deixando Danuza e Prates de lado, pelos motivos mais ou menos já referidos, me intriga saber o que leva um cara com o perfil de Paulo Germano a expressar uma ideia tão datada e tão preconceituosa como a de que rico procura qualidade e pobre procura preço baixo. Como Marilena Chauí e Brecht já nos ensinaram que tudo é política, não vou me furtar do “mimimi” de colocar essa desimportante fala do jornalista da RBS num contexto mais amplo, de sustentação dos padrões segregatórios da sociedade moderna, das discriminações de todas as ordens, do racismo estrutural, do sexismo, da violência de gênero, enfim, de tudo o que de mais podre tem na mente humana e que reverbera nas relações sociais. Pego carona em Tolstói pra pensar que ao descrever um fato da aldeia, Paulo Germano está se manifestando quanto à cultura universal. Porque o que está por trás de uma fala aparentemente inofensiva dessas é tudo que está aí a sustentar essa sociedade de exclusão em que vivemos. Pensar num espaço público que é frequentado por umas pessoas pela qualidade e por outras só por ser gratuito é naturalizar a existência de pessoas de categorias humanas diferentes. É o tipo de pensamento que faz estranhar a presença de uma pessoa preta e pobre em um museu de arte, mas permite passar batido pela ausência de pessoas pretas e pobres em meio às que frequentam o Cais Embarcadero a passeio; é o tipo de pensamento que acha bobagem a preocupação em eliminar termos e expressões racistas e sexistas da linguagem diária, sob o argumento que apenas refletem costumes arraigados; é o tipo de pensamento que permite ver que Paulo Germano, David Coimbra, Cristina Ranzolin, Daniela Ungaretti etc. etc. etc., dividem os espaços da linha frente dos veículos da maior rede de comunicação do Rio Grande do Sul com a Fernanda Carvalho, e só com ela de mulher negra, além de nenhuma PCD, e achar isso normal; é o tipo de pensamento que talvez imagine que não há mulheres trans nem homens assumidamente gays nas faculdades de jornalismo ou que essas pessoas não têm competência e qualificação profissional para estar na RBS; é o tipo de pensamento que acha normal que o Jornal do Almoço dê início à programação comemorativa dos 250 anos da capital da europa brasileira sem fazer referência às pessoas negras que construíram a grandeza da cidade e que, quando aparecem nas matérias, é apenas pelos aspectos pitorescos que são construídos, como histórias de superação e exceção, dignas de admiração por pena e não por respeito e reconhecimento aos seus valores; é o mesmo pensamento que não vai mostrar a luta das comunidades indígenas da zona sul da cidade para manter a posse das suas terras e a sua dignidade, e que vai naturalizar que mães e crianças guaranis sejam tratadas como pedintes no Brique da Redenção. Redenção, a propósito, que é um nome lindo e cheio de significados, mas não oficial, porque o que está nos registros da municipalidade homenageia os grandes heróis (e abigeatários) farrapos.

Enfim, queiram ou não, a frase aparentemente sem importância do Paulo Germano transporta essa pesadíssima carga de discriminações e violências, mesmo que talvez ele não seja, como provavelmente não é, conscientemente racista e elitista. E este é justamente o problema maior que enfrentamos: o racismo quase nunca é consciente, assim como quase nunca o são a homofobia, a misoginia e tudo mais. Raramente vamos ver alguém dizendo abertamente: “Eu sou racista!” ou “Eu sou homofóbico!” Mesmo Jair Bolsonaro, que disse preferir um filho morto a um filho gay e comparou quilombolas com bois, não se assume como racista e homofóbico e tem um exército de seguidores fanáticos sempre de prontidão para defendê-lo dessas – e de outras – acusações. Assim, fica cada vez mais evidente que enquanto não pararmos de “passar pano” para essas veladas manifestações de discriminação (refiro-me às do PG), naturalizando e dando pouca importância a elas, não avançaremos nos processos verdadeiramente civilizatórios (eu prefiro mesmo chamar de humanizatórios) que precisamos implementar.

Em um conversa recente sobre essas coisas, o meu amigo Douglas Ricalde me fez atentar para o artigo 7º da Lei 12.711, de 2012, que trata da política de cotas nas universidades. Este artigo determina que no prazo de 10 anos a partir da publicação da lei, o programa deve passar por revisão. Isso vai acontecer no ano que vem e há duas possibilidades: por ser ano eleitoral, talvez o Congresso se dobre às pressões que deverão ser feitas pelas pessoas e grupos interessados não só na manutenção do sistema quanto no seu aperfeiçoamento; por outro lado, dada a terrível configuração do parlamento, formado em grande parte por gente ligada a todo tipo de interesse espúrio, há forte chance da lei ser até revogada. No embate que certamente vai se travar, cabe à sociedade civil e ao campo progressista pensar a articulação desde agora para que esta não seja mais uma política de avanço social a ser aniquilada pelas forças nazifascistas que comandam o país.

*Imagem de destaque copiada de: <https://edisilva64.blogspot.com/2018/09/quando-o-pobre-adere-ao-discurso-do.html&gt;. Acesso em: 5 de set. 2021. (A imagem foi editada para que não apareçam os rostos das pessoas.)

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Ideologia, Imprensa, Mídia, Republicados

O chefe mandou*

Estivesse almejando obter grau de doutor, minha tese não poderia ser sobre a imbecilidade do criador da Mulher do Centroavante, posto que já falharia no quesito da originalidade. Também não é a primeira vez que eu falo deste sujeito por aqui. Parei de falar quando parei de ler. Hoje, porém, ao ler de passagem uma manchete do tabloide para o qual o jornalista e “escritor” David Coimbra trabalha, despertou-se a minha atenção, fazendo com que lesse a crônica do distinto “intelectual”.

O título é interessante e já deixa antever o teor do escrito: “A tal da elite branca”. E já começa entrando por cima da bola, pra usar uma expressão no clima da Copa. Diz assim: “Agora inventaram essa história de elite branca. Por favor. Uma das poucas vantagens que o Brasil realmente tem em relação a TODOS os outros países do mundo é a miscigenação. No Brasil, as etnias de fato se misturam, e o fazem com naturalidade.”

Ao dizer que “essa história de elite branca” é criação moderna, o cara que se propôs a escrever a história do mundo desconsiderou completamente a história do próprio país. Ou será que ele pensa que desde os 1500 a elite que dominou o Brasil era negra ou indígena? Ou, ainda pior, imagina o nosso insigne escriba que não há uma elite que domina o país? Pela amostra do pano, já se percebe que o cara escreve exatamente o que o patrão gosta que se escreva.

De acordo com o que diz o David, podemos depreender que aquela velha conversa do paraíso da democracia racial é verdadeira: “No Brasil, todos, japoneses, negros, alemães, anões, cafuzos, mamelucos, índios, brancos, azuis, todos são brasileiros.” O estranho é que um certo candidato ao Senado, talvez não por acaso colega de empresa, disse há poucos dias que há muitos índios que conseguiram evoluir e hoje são trabalhadores respeitados. O seu David contradisse o seu candidato, porque para este o índio precisa deixar de ser índio para ascender socialmente, então não é bem assim essa coisa de que todos são brasileiros.

Logo em seguida, toda a genialidade do cronista aflora, quando ele diz que o verdadeiro problema do Brasil é a discriminação social. Entende-se essa declaração se vinda de alguém que não deveria ter, por obrigação profissional, o dever de saber que a esmagadora maioria de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza no nosso país definitivamente não é da etnia que se pode chamar de branca. E diz ele que o que falta, na verdade, é oportunidade igual para todos. Ora, seu David, o senhor mesmo já se manifestou contrariamente à adoção da política de reserva de cotas com recorte étnico-racial. Decida-se, por favor! Se não há oportunidades iguais para todos, como o senhor mesmo reconhece, algo há que ser feito, certo? E nesse caso as cotas não servem? Parece, seu David, que o senhor quer que as coisas continuem a ser como eram, antes do processo de equalização social que se verifica no Brasil nos últimos anos, que é lento mas eficaz.

Tal qual uma metralhadora giratória, o cronista leva a questão para o futebol, quando também aí vai ser escancarado todo o seu ranço elitista (e não custa lembrar que ele é branco). “O ingresso do futebol é muito caro para o pobre. Oh! O ingresso para ver o Chico Buarque não é barato, nem o do show da Madonna, nem a entrada do cinema. Pelé não ganhava um milhão por mês. Fred ganha. Assim, ver Fred é mais caro do que era ver Pelé.”

Este é o argumento preferido dos que defendem o processo de elitização do futebol, pelo qual os torcedores oriundos das classes sociais menos favorecidas são alijados do direito de ver seu time no estádio: times bons são caros e, portanto, o ingresso deve ser caro. Não quero entrar nessa discussão específica, há muito material que desconstrói impiedosamente essa ideia nas publicações do Povo do Clube. Apenas quero dizer ao seu David Coimbra que o Chico Buarque não costuma fazer shows em estádios para milhares de pessoas, mas em teatros, numa lógica completamente diferente. Ainda assim, já soube de muitas apresentações do Chico a preços módicos e outras tantas com entrada franca. Já a Madonna, que lota grandes estádios mundo afora, proporciona um espetáculo bem diferente e menos frequente do que um jogo de futebol, inclusive com custos de produção muitíssimo mais elevados. Comparação infeliz esta, hein, seu David?

“A elite branca xingou a presidente. Quem garante que pobres e pretos não o fariam? Essa elite branca é ‘branca’ de fato? Existem ‘brancos’ de fato no Brasil? Será que existe mesmo essa divisão, pobres e pretos a favor do governo, elite branca contra? Esse é um governo só para pretos e pobres? Como é que se faz para conseguir um governo para todos?” Bah, seu David, não queria ter de precisar lhe explicar que a expressão “elite branca” é uma figura de linguagem. O senhor sabe disso, por certo, mas o chefe não lhe permite expressar ideia diferente, né? Talvez a dona do Magazine Luiza, que não é preta e nem pobre possa lhe dizer como é que se consegue um governo para todos.

E o seu David considera uma babaquice chamar a presidentA de presidentA e ainda diz que quem não acha isso estranho é um taipa. Caso encontrasse com ele, perguntaria se ele, que escreveu a História do Mundo em tomos, sabe quando a mulher brasileira adquiriu o direito ao voto; e qual a proporção de homens e mulheres em cargos de chefias nas empresas brasileiras; e se para exercer cargos iguais na iniciativa privada as mulheres recebem o mesmo salário que os homens; y otras cositas mas. Fica absolutamente claro que o seu David não entende nada – ou não quer entender – dos processos históricos que formaram a sociedade brasileira, eminentemente patriarcal e branca.

O penúltimo parágrafo escrito na coluna do seu David é um primor de manipulação, que faz um raio-x da maneira como a mídia podre, da qual ele é um expoente, costuma agir. A campanha do TSE, muito legítima, a propósito, visa a estimular a maior participação feminina na política institucional. E ponto! Ver além disso é querer passar uma imagem distorcida para a sociedade.

Sei que o David Coimbra tem sérios problemas de saúde, inclusive está nos EE.UU. Tratando da sua saúde. Não desejo (muito) mal a ninguém, por pior que seja, mas gostaria muito que a doença fizesse este cara refletir se vale mesmo a pena passar a vida, que pode ser bem curta, fazendo as vontades do chefe.

 

 

http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4531321.xml&template=3916.dwt&edition=24583&section=70

 

http://www.opovodoclube.com/

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 20/6/2014.

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América Latina, Drogas, Republicados, Uruguai

Mujica e os Corsos*

Não sou um conhecedor do trabalho da família Corso, Diana e Mário, mas em tudo que eu li deles – artigos e entrevistas, basicamente – pouca coisa me pareceu passível de contestação a partir dos meus conceitos. Sempre têm opiniões embasadas e uma característica que eu acho fundamental em qualquer escrito crítico: a isenção. Não isenção de ideologia, que esta não é algo que se possa encostar num canto para falar sobre qualquer assunto, mas isenção de paixões. Eles escrevem, principalmente a Diana, que eu já li mais, de forma desapaixonada, mas a despaixão de que falo, palavra que nem sei se existe, mas que se encaixa bem na ideia que quero expressar, não se refere ao trabalho da escrita em si, mas à capacidade de compreensão do tema abordado em todas as suas nuances, o que impede a crítica vazia e míope, a que estamos tão acostumados.

No Caderno Cultura da ZH do último sábado, na página 2, eles escrevem um artigo muito interessante sobre a polêmica questão da nova abordagem da droga adotada pelo governo uruguaio. Esse é um tema muito interessante, particularmente para nós, habitantes desta região sul do país, que muitas vezes nos identificamos muito mais com a Banda Oriental e, na contramão do imaginário popular brasileiro, até mesmo com os hermanos da outra margem do Rio da Prata, a ponto de termos certo orgulho de sermos muito mais castelhanos do que brasileiros. Outro dia mesmo, o Alemão Guazelli (http://alemaoguazelli.blogspot.com.br/) disse para o Demétrio Xavier, no Cantos do Sul da Terra (FM Cultura – 107,7) que pelo Brasil ele protesta nas ruas, mas pelo Uruguai pega em armas. Assim, tudo o que acontece por lá nos chama muito a atenção e o problema da maneira como as relações das pessoas com as drogas devem ser vistas pelos governos é algo muito atual e que rende muito debate (portador deve ter o mesmo tratamento que traficante?, viciado deve ser internado à força? etc.)

Não vou entrar com a minha opinião sobre o assunto, deixo isso para os comentários, se houver. Proponho, neste momento, que se leia com atenção o que têm a dizer pessoas com inquestionável habilitação para esse espinhoso tema.

“Fumaça e fogo – A maconha e o apocalipse – Projeto de legalização em debate no Uruguai é oportunidade para refletir sobre os mitos da droga

Por Diana Corso e Mário Corso

Para o gaúcho, o Uruguai é uma espécie de extensão territorial. Ele frequenta suas praias geladas e sua hospitalidade quente, além de achar que fala espanhol. Essa familiaridade não impede que lá usufrua da sensação de estrangeiridade, já que de fato é outra cultura. Entre as várias diferenças a se observar, está a idade média do uruguaio. Parece um país de velhos. Os anos de chumbo, aliados a uma longa crise, varreram gerações de jovens do país, quadro que só recentemente mudou. Portanto, não há motivos para crer que a liberação regulamentada da maconha, se for aprovada pelo senado uruguaio, vá transformar essa terra numa Woodstock permanente. Diria que o país é mais conservador do que o nosso quanto aos costumes. 

É bom esclarecer, pois o mero anúncio dessa possibilidade despertou uma onda de medo desproporcional. Muitas pessoas, em geral leigas nessa questão, vaticinam o pior. A questão das drogas facilmente abandona o patamar da razoabilidade: quando se trata de diferentes formas de gozo, a paranoia assombra o pensamento. Dividimos o mundo entre quem goza assim ou assado, o que pode e o que não pode, tememos desejos não catalogados e ainda não domados, o velho problema da tentação.

Sucumbimos ao pânico imaginário de que, se experimentadas, essas formas diferentes de prazer nos dominarão, ignorando que somos mais fracos na fantasia do que na prática. Torcemos os dados e as experiências para explicar nossas crenças de que gozos não admitidos põem em risco a civilização. O álcool e o cigarro não trouxeram o apocalipse, mas a maconha o faria; sexo livre após a pílula não nos jogou na devassidão, mas os homossexuais o fariam. O padre interior que (todos) temos é convocado a vociferar contra a decadência que estaria à nossa porta.

O que pode fazer possível essa nova postura do Uruguai frente à maconha é puro pragmatismo, buscando uma solução para o consumo endêmico da droga. Duas questões de fundo os auxiliam nessa decisão: a tradição laica do país é muito marcante, o que os religiosos pensa não pesa; segundo ponto: eles são mais críticos do que nós na importação do modelo americano de saúde mental, contaminado de um moralismo puritano, sob uma fachada científica. No Brasil, aderimos com entusiasmo a essas ideias que economizam variáveis e superestimam a influência química. Isso nos impede de buscar, como o país vizinho, alternativas ao modelo fracassado da tolerância zero e da criminalização de tudo que tem relação com as drogas.

O tráfico é uma hidra, podem cortar as cabeças que elas rebrotam automaticamente. Enquanto existir demanda e proibição, haverá tráfico. Tanto aqui como em lugares com polícias melhores. Temos a ilusão de que a repressão deixaria nossos jovens longe da droga. Isso não resiste a qualquer prova de realidade, qualquer um que queira fumar maconha consegue sem delongas. Apenas deixamos os usuários mais próximos de péssimas companhias e transformamos a droga em ótimo negócio.

O que o Uruguai quer fazer é parar de se enganar e encarar isso como uma realidade que precisa de outra abordagem. A maioria dos que fumam não quer parar e não se acha um drogado. Consideram que, se álcool e cigarro, drogas comprovadamente perniciosas, são livres, por que não a deles? E dizem mais: se nem todo consumo de álcool é alcoolismo, por que qualquer consumo de maconha seria drogadição?

A maconha está envolta em dois mitos. Primeiro: o de que seria uma droga leve, pelo fato de praticamente não fazer internações. Sim, mas como os efeitos não são agudos, ela pode fazer um estrago crônico. Não é sem consequências acostumar-se a anestesiar a vida, cortando a angústia produtiva que nos impulsiona e coloca questões. É bom lembrar que se pode fazer o mesmo também com antidepressivos e ansiolíticos tomados sem indicação correta. O outro mito é que ela seria uma porta de entrada para drogas mais nocivas. O contato com essa população, especialmente os que fazem uso recreativo e eventual, não nos dá margem para pensar isso. Aliás, várias vezes encontramos o contrário: quem usa maconha, o faz para ficar longe de outras, especialmente da cocaína, de maior potencial destrutivo. Se for para pensar em porta, o álcool de longe parece ser a mais escancarada.

Talvez o Uruguai tente sair desse conto da carochinha que o drogado é fruto de um simples encontro com a droga e que essa substância  é um canto de sereia que o captura para uma forma de gozo aprisionante e irrecusável. As pessoas não se tornam toxicômanas apenas porque as drogas existem, isso ocorre porque algo vai muito mal com elas, estão sem rumo e acima de tudo estão desencantadas com a própria trajetória e com a vida. As drogas são automedicações contra dor de existir. Tanto que as desintoxicações não funcionam se não houver uma retomada mínima de alguma significação para suas vidas. Sem a droga, apensa retornam às suas existências vazias, por isso tantos recaem.

A grande vantagem de demonizar algumas substâncias e culpá-las pela nossa miséria é a de nos colocar fora da equação. Enquanto pais, não precisamos nos confrontar com a educação falha, omissa ou vazia de sentido e valores que proporcionamos. Tampouco precisamos olhar para as drogas lícitas, largamente usadas e abusadas, mas que sendo “receitadas” seriam menos aditivas ou daninhas. Nem refletiremos sobre o preço que pagamos por viver numa sociedade baseada no consumo supérfluo, que acredita que a felicidade se compra com gadgets. A droga é apensa uma modalidade de consumo específica, mas o fundamento é o mesmo: exisitiria um objeto que possibilitaria um atalho para a felicidade. Ou seja, buscamos um sentido fora dos laços humanos para nos satisfazer. O drogado é um consumidor levado às extremas consequências. Dar todo esse poder a um objeto é uma mentira atraente, tão logo desmascarada pela urgência de continuar consumindo. Qualquer comprador conhece a sensação de saciedade triste, passada a novidade. Toxicômanos, o que não é o caso de todos os usuários de determinada substância, são apenas aqueles cuja vida se reduziu a muito pouco, a uma luta inglória contra o próprio vazio, uma sucessão interminável de encontros com seu objeto de obsessão, de saciedades, que deixam lugar a um buraco ainda maior. Por isso os drogados são descontrolados, porque sem esse encontro, e mais a cada novo encontro, descobrem-se nada, ninguém. O detalhe é que não se cai nessa tentação de reduzir-se a tão pouco sem sentir-se já previamente miserável de valores e de esperança. 

O pânico de que a maconha leve massas de jovens à drogadição se baseia na ignorância de que o que leva alguém a ser assim não é uma droga mais leve, consumida anteriormente, mas sim uma subjetividade de horizontes mínimos. A saída para quem se sente e espera tão pouco acaba sendo a de levar uma existência dedicada a esse prazer agniado, ao encontro dessa paixão simplória. Se partirmos do pressuposto de que essa tentação é tão irresistível para tantos, o leitor há de convir: o problema não são as drogas, somos nós.”

https://www.youtube.com/watch?v=lEXFhdy6zVI

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 20/8/2013.

Padrão
Educação, Legislação, Política, Racismo, Republicados

Universidade: universalismo de fato*

Tema de extrema relevância, com grande repercussão social, apaixonante, capaz de provocar debates e discussões acaloradas, que nem sempre primam pela racionalidade dos argumentos, isso tudo e muito mais é a política de reserva de vagas para negros nas universidades públicas brasileiras, popularmente chamada de sistema das cotas raciais, uma das chamadas Políticas de Ação Afirmativa, que, ao contrário do que se pensa comumente, deita suas raízes na Índia, em sua luta pela libertação do jugo britânico, e não nos Estados Unidos da América.

Há negros que são contrários, há brancos que as defendem; há quem diga que isso é coisa de “gente de esquerda”, na forma mais pejorativa aplicável à expressão, e os que apontam para uma omissão do Estado em problemas maiores, dizendo que ele usa as cotas apenas para dar uma satisfação à sociedade. Enfim, opiniões e posições há para todos os lados e é natural que cada um tenha a sua, ou as suas. O que me preocupa é quando as manifestações surgem de pessoas que exercem certo poder no contexto social e aqui me refiro especificamente aos jornalistas e comunicadores, que têm largos espaços nos órgãos de imprensa e não raro confundem liberdade de imprensa, tão cara ao regime democrático, com um certo tipo de libertinagem, que lhes permite emitir opiniões e sentenças peremptórias sobre os mais diversos assuntos, muitas vezes sem ter nenhum embasamento para isso. Para não me alongar muito, apenas cito como exemplos o Rogério Mendelski, cujas manifestações preconceituosas e sectárias não devem provocar surpresa em mais ninguém, e o pretenso intelectual David Coimbra, para quem tudo se resolveria com um sistema de cotas para as escolas públicas (está lá no blog dele, em 18 de maio).

Esse tipo de manifestação me levou a escrever sobre o assunto, que me interessa há muito tempo e sobre o qual procuro ler tudo o que me chega às mãos. Pretendo falar brevemente sobre um dos tantos argumentos usados pelos que são contrários ao sistema de cotas e que me causa um pouco de perturbação, que é a ideia que as cotas raciais deveriam ser simplesmente substituídas pelas cotas sociais, privilegiando o aspecto econômico, que, segundo alguns, nivela brancos e negros na pobreza. Na minha ótica, como se verá adiante, não é assim que a coisa funciona.

Começo por examinar o termo “universidade”, cujo primeiro significado no dicionário Hoauiss é “qualidade ou condição do que é universal”, página 2.807, da 1ª edição, de 2001. A segunda definição faz referência à ideia de instituição de ensino. Ou seja, a universidade, como instituição de ensino, deve, na medida do possível, como denota a origem da sua denominação, fazer uma reprodução do universo social, e esse inclui brancos, negros, amarelos, vermelhos, etc. Todavia, não é preciso muita pesquisa de campo para se verificar que não é essa a realidade da UFRGS, que é a que nos interessa no momento por ser a mais próxima de nós. Cursei alguns semestres de Letras e me lembro de pouquíssimos colegas negros. A bem da verdade, apenas de uma. Pobres, ou pessoas com condições econômicas desfavoráveis, havia em número considerável, se bem que longe do que talvez seja o ideal. Por outro lado, quando a minha esposa estava na faculdade de Odontologia, nunca vi um negro que fosse seu colega. E ela própria pode servir como representação de alguém que veio de uma classe social pouco ou quase nada privilegiada e chegou à universidade. De novo se observa que pobres há, ainda que poucos, mas negros inexistem. Conheci, em diversas áreas, inclusive na Faculdade de Letras, professores e profissionais que vieram de famílias pobres. Não me lembro de nenhum negro. Isto é, ainda que longe do que se espera, as classes economicamente desfavorecidas têm alguma representação na universalidade da universidade, com o perdão da redundância. Os negros não têm nenhuma. Pelo menos não que se possa considerar como tal.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal pôs fim a uma discussão sobre a constitucionalidade do sistema de cotas. Era o julgamento de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo DEM – Democratas – partido sucedâneo da ARENA –Aliança Renovadora Nacional -, de saudosa memória para alguns, que tem um programa extremamente conservador e que congrega em seus quadros políticos e militantes que defendem a pena de morte, a esterilização em massa, etc. Ideologias à parte, para quem tiver interesse, sugiro a leitura dos votos dos ministros, que está disponível no site http://www.stf.jus.br, e, no caso de desejarem um aprofundamento, há textos bastante esclarecedores,  com ótimas remissões, disponíveis em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa.

O professor Hélio Santos, doutor em Economia e Administração, e negro, tem uma frase muito significativa e sugestiva: “O problema foi o dia 14.” De fato, se pensarmos no dia 13 de maio como um marco da disseminação da luta contra o preconceito racial, tudo fica muito bonito. Mas e o dia 14? O que aconteceu a partir daí? Negros libertos? Sim! Trabalho, terras, bens, dignidade, condições mínimas para uma vida decente? NÃO!! E observem que não foi por questão estilística que optei por usar o termo libertos quando poderia dizer livres. Há uma sutil distinção entre libertos e livres. Os negros, ex-escravos, estavam, pós-abolição, fisicamente livres, mas na prática apenas deixaram de morrer pelo açoite para morrer de fome, pois não lhe foram dadas as mínimas condições para que pudessem levar uma vida que se pudesse dizer humana. Os que sobreviveram deram origem aos guetos e favelas que existem e se proliferam ainda nos nossos dias, em nossa sociedade “livre do preconceito racial”. E hoje estamos distantes apenas 124 da Lei Áurea, o que significa dizer que há entre nós descendentes diretos de escravos. Bisnetos, netos, até mesmo filhos. Eu, que não tenho ascendentes negros, senão que talvez remotamente, posso saber com exatidão das dificuldades que sente um desses, cuja origem escrava está logo ali, há pouco mais de um século? Obviamente não. Por outro lado, posso me considerar exatamente igual, no sentido de ter as mesmas condições de vida, como preconiza a Constituição Federal (“Todos são iguais perante a lei.”) a um negro com esse histórico? Também não. Diante dessa simples constatação, cai por terra o mito da igualdade racial no Brasil.

Vejamos o que diz o psicanalista Contardo Calligaris:

 

“Em meus primeiros contatos com a cultura brasileira, acreditei inevitavelmente ter encontrado o paraíso de uma democracia racial. (…) Mas essa sensação inicial não demorou muito tempo, pois logo tive a oportunidade, ao me estabelecer no Brasil, de analisar alguns pacientes negros. Bastou para descobrir imediatamente que minha impressão de uma paradisíaca democracia racial devia ser perfeitamente unilateral. (…) O mito da democracia racial é fundado em uma sensação unilateral e branca de conforto nas relações inter-raciais. Esse conforto não é uma invenção. Ele existe de fato: é o efeito de uma posição dominante incontestada. (…) Sonhar com a continuação da pretensa ‘democracia racial brasileira’ é aqui a expressão da nostalgia do que foi descrito antes, ou seja, de uma estrutura social que assegura a tal ponto o conforto de uma posição branca dominante, que o branco – e só ele – pode se dar ao luxo de afirmar que a raça não importa.” (CALLIGARIS, Contardo. “Notas sobre o desafio para o Brasil.” In: Anais do Seminário Internacional “Multiculturalismo e racismo: o papel da Ação Afirmativa nos estados democráticos contemporâneos.” Brasília: Ministério da Justiça/Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 1997. p. 243-245.)

Em 2004, a UFRGS convidou o então presidente da República Popular de Moçambique, Joaquim Alberto Chissano, um homem com um grande currículo de lutas pela emancipação dos países africanos, para ministrar uma Aula Magna, com o tema Cooperação África e Brasil no âmbito da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD). E vejam  o que ele disse:

“(…) E quero destacar um ponto que até pode ser polêmico mas eu sempre gostei de dizer coisas chocantes, inclusive para os meus colegas brasileiros presidentes da República e ministros das Relações Exteriores. Dessa forma, tenho ouvido que o Brasil é um país multirracial, um país onde não há racismo, um país de igualdade, onde cada habitante se sente com sangue brasileiro. Porém, muitas vezes me senti incomodado com essas expressões pois me pareciam não corresponder à realidade. A primeira vez que aqui estive, fui a Bahia e lá vi muito negro na rua, vi muito negro no mercado e Salvador me pareceu uma parte da África. Depois, tive encontros, reuniões de ‘business’ e senti-me, de novo, na Europa. Lá não vi nenhum negro, não senti a igualdade, o sangue brasileiro estava camuflado.” (“Cooperação África e Brasil no âmbito da nova parceria para o desenvolvimento da África (NEPAD): aula magna UFRGS 2004/ Joaquim Alberto Chissano”. – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.)

            As palavras do mandatário moçambicano, pessoa insuspeita para tratar do assunto, escancaram a realidade brasileira, que muitos tentam mascarar. Nas ruas, nos locais públicos, onde seria impossível evitar a convivência, os negros estão por todas as partes. Nos locais restritos, porém, palcos das discussões políticas e econômicas, que decidem como vai ser a vida da população, eles estão alijados da participação. Que “democracia racial” é essa que só se exerce onde é impossível evitar a sua prática? Mesmo lá, nos locais em que os negros estão, é pouco provável que os “democratas raciais” estejam à vontade dividindo seus espaços com essa “subclasse de cidadãos”.

Sobre o que diz o David Coimbra, referido antes, que a solução está na oferta de vagas reservadas para estudantes oriundos de escolas públicas, basta que se faça um pequeno resgate histórico de alguns anos, nos tempos em que o nível da escola pública era considerado bom, para que observemos que naquela época os negros não tinham acesso ao ensino proporcionado pelo Estado, pois não podiam dividir o espaço com os brancos. E isso não faz muito tempo. Expandindo a questão, há que se dizer que uma coisa são as cotas sociais e outras são as de recorte racial. Elas têm base em problemas diferentes e, consequentemente, visam à correção de distorções distintas. Se o problema fosse meramente econômico, me parece que seria razoável que o “Dr.” Coimbra defendesse também a reserva de vagas em concursos públicos não para portadores de deficiência e mulheres, mas apenas para portadores de deficiência pobres e mulheres pobres. Observe-se que temos aqui quatro tipos diferentes de discriminação: contra portadores de deficiência, contra mulheres, contra pobres e contra negros. Cada tipo com as suas particularidades, o que enseja a adoção de iniciativas próprias para combater cada um deles.

No início do ano, quando se discutia a adoção de reserva de vagas para negros nos concursos públicos estaduais no Rio Grande do Sul, a Procuradoria-Geral do Estado emitiu extenso parecer, do qual resgatei o trecho a seguir:

 “Diga-se, ainda, que as cotas raciais, se por um lado não são incompatíveis com as denominadas cotas sociais, por outro lado não as substituem nem por elas podem ser substituídas, sendo possível, isto sim, associação de critérios entre estas e aquelas. Mas há que se advertir que as cotas étnico-raciais, especificamente as dirigidas às pessoas negras, se justificam mesmo diante da possibilidade de adoção do critério de cotas sociais. Pois como demonstram os dados estatísticos e demais estudos sociológicos aqui trazidos ou referidos, há na realidade da exclusão e de desigualdades sociais uma perversa tônica em desfavor das pessoas negras. Mesmo dentro das margens de maiores desigualdades em que também pessoas brancas são abarcadas, as pessoas negras são as mais inferiorizadas, as mais discriminadas e as que estão submetidas às maiores desigualdades.

Por outro lado, as cotas raciais não têm objetivo único de atacar as desigualdades sofridas por negros e negras em seu viés econômico, senão que para além disso, buscam também sanar os aspectos culturais mórbidos de discriminação fundados no preconceito de cor, que é onde residem muitas das determinantes da própria desigualdade social e econômica.”  (Carlos César D’Elia, Procurador do Estado, Coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Parecer nº 15.703/PGE, 16/03/2012. www.pge.rs.gov.br/upload/estudosdireito1[1]cotasraciais.pdf.)

                Ou seja, um estudo abalizado, feito por uma entidade da estatura da PGE/RS, aponta que a discriminação racial vai além da questão econômica. Brancos pobres são segregados, mas negros pobres são mais ainda. Brancos ricos têm situação favorável na sociedade, negros ricos, porém, por maior destaque que obtenham, não escaparão dos olhares desconfiados. Alguém se lembra daquele caso, ocorrido há alguns anos, em que dois jovens negros que corriam para evitar o atraso para o vestibular da UFRGS foram abordados por brigadianos e acabaram de fato perdendo a prova? Eles eram filhos de um engenheiro, portanto a sua situação social certamente não era das piores. O que fez com que os policiais desconfiassem deles? Fossem brancos, o fato teria ocorrido? Foi a triste consumação daquela piada que diz: “branco correndo está atrasado, negro correndo está fugindo da polícia.” Diante dessa realidade, cotas sociais resolveriam o problema?

                Quando se diz que um aluno cotista está tirando a vaga de outro que apresentou melhor desempenho e por isso o sistema é injusto, apenas se está buscando uma simplificação do problema. Como bem observou o Ministro Marco Aurélio Mello, no seu voto por ocasião da ADPF citada:

“A meritocracia sem ‘igualdade de pontos de partida’ é apenas uma forma velada de aristocracia”. 

Ou seja, não basta apenas criar uma situação fictícia de igualdade, pela qual negros e brancos concorreriam nas mesmas condições. É preciso que essa igualdade seja alcançada lá nos pontos de partida e as cotas podem representar um instrumento muito eficaz para que se logre êxito nesse objetivo. A conta de mais negros nas universidades emana seus reflexos na sociedade, com mais negros com maior nível de esclarecimento em suas comunidades, que serão capazes de transmitir valores mais elevados aos seus pares. Em algum tempo teremos mais professores negros, mais médicos negros, mais dentistas negros (a propósito, alguém conhece algum?), enfim, mais negros ocupando posições de destaque e prestígio social e, como consequência disso, as práticas de preconceito e segregação tenderão a ser enfraquecidas.

                No mesmo sentido da argumentação do Ministro Marco Aurélio, está o posicionamento do renomado jurista Dalmo de Abreu Dallari:

 

“O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os primeiros em situação de privilégio, mesmo que sejam socialmente inúteis ou negativos.” (DALLARI, Dalmo de Abreu. “Elementos da Teoria Geral do Estado.” 25ª ed. São Paulo: Saraiva. P. 309. In voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186, em 25/04/2012.)

                Defendendo a adoção de medidas que, embora aparentemente contrárias ao princípio constitucional da igualdade formal, que é fictício e precário diante da realidade social, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos diz:

 

“(…) temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.” (SANTOS, Boaventura de Sousa. “Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural.” Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P.56. in voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186, em 25/04/2012.)

                      Não basta que sejamos iguais perante a lei. É preciso que sejamos iguais perante a sociedade, visto que não há um fator genético de diferenciação entre negros e brancos, segundo o qual estes supostamente teriam maiores aptidões ao desenvolvimento intelectual. É o que diz o representante da Fundação Ford, Jean Dassin:

 

“Em nove anos de funcionamento, o IPF comprovou definitivamente que talento intelectual e compromisso social abundam nas comunidades marginalizadas de todo o mundo em desenvolvimento e que o acesso à educação superior pode ser ampliado sem prejuízo dos padrões acadêmicos.” (DASSIN, Jean. “Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação da Fundação Ford.” In: “Acesso aos direitos sociais: infância, saúde, educação, trabalho.” São Paulo: Fundação Ford/Fundação Carlos Chagas. 2010.)

                Assim, a ideia que defendo, cuja validade pretendi certificar com a argumentação feita, é que as cotas sociais e raciais não são excludentes. Pelo contrário, elas se complementam e devem ser adotadas até o momento em que as discriminações sociais de toda a ordem tenham sido erradicadas, no caso particular do preconceito pela cor, que a democracia racial deixe de ser uma ficção jurídica e passe a ser uma realidade.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça Pra Baixo, em 26/6/2012.

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