Direitos Humanos, Ideologia, Mídia, Sociedade

Tá lá o corpo estendido no chão: ou a arte de morrer na contramão atrapalhando o tráfego

Quando Danuza Leão lamentou o risco de encontrar o porteiro do prédio no aeroporto de Paris (https://www.geledes.org.br/o-perigo-de-dar-de-cara-com-o-porteiro-do-proprio-predio-danuza-leao-pede-desculpas-a-porteiros-e-leitores/), não estava expressando uma frustração meramente pessoal por ver que os espaços privativos do high society estavam ameaçados. A lógica que pobre só frequenta a universidade quando está trabalhando na construção do prédio estava sendo subvertida e era preciso fazer uma espécie de manifesto dando conta da insatisfação coletiva de uma classe que não estava acostumada a dividir o seu espaço com gente estranha. Naquele momento, Danuza assumia o papel de porta-voz de uma elite que se importa antes em manter a distância da “turma de baixo” do que com os próprios prazeres que as melhores condições econômicas podem oferecer. Poderia impregnar a conversa de uma ortodoxia marxista e examinar se Danuza integra a classe que detém o capital e os meios de produção, ou se é a contragosto integrante de uma classe “especial”, que é explorada, mas se recusa a aceitar e se enxerga no topo da pirâmide econômica. Isso não interessa agora, porém.

Algum tempo antes, um raivoso jornalista vociferou num telejornal de Santa Catarina contra os malditos miseráveis que naqueles tempos podiam comprar carros. As palavras do inexpressivo apresentador são tão chocantes que vale a pena reproduzir uma parte:

Se um desgraçado destes é atrop… – e esta é a palavra – se um desgraçado destes é atropelado e feito sanduíche na pista, o que é que vão dizer? Este trânsito insano!! Insano é o cara que para o camarada [sic], para o carro, atravessa a BR pra ver o que aconteceu com outra pessoa. Então é isso: estultícia, falta de respeito, frustração, casais que não se toleram [!], popularização do automóvel, resultado deste governo espúrio [o ano era 2010], que popularizou pelo crédito fácil o carro para quem nunca tinha lido um livro. Com a arrogância típica de quem é dono da verdade, o encerramento foi com um: É isso! (O comentário completo pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=4tbOIuPU5Vs&ab_channel=CRSS3.) Não vou entrar em detalhes sobre os estudos que mostram que os acidentes automobilísticos mais violentos são provocados por máquinas com preços de 6 dígitos e até mais, que, obviamente, não são pilotadas pelos desgraçados miseráveis referidos pelo colunista. Também não vem ao caso.

Na última terça-feira, estava ouvindo o programa Sala de Redação, e na transição para o Gaúcha Mais, quando costumeiramente ocorre um bate-papo entre os integrantes dos dois programas, o apresentador Paulo Germano fez uma referência à nova orla do Guaíba. Querendo destacar a democratização das áreas públicas da cidade, ele disse que as classes mais altas vão frequentar a beira do rio por conta da excelência do local, do alto nível dos equipamentos de lazer que lá serão disponibilizados (quadras de esportes, pista de skate etc.), enfim, atraídas pelo que de melhor aquele espaço vai oferecer. As classes mais populares também vão estar lá, segundo o comunicador, mas por uma razão diferente: é de graça.

É interessante observar rapidamente os perfis das pessoas que fizeram os comentários aí de cima. Danuza Leão é uma típica figura da geração Bossa Nova, a alta sociedade da zona sul carioca que fez sucesso entre a segunda metade do século passado e o começo dos anos 2000; já Luís Carlos Prates é um jornalista anacrônico, do tipo que não atende mais os requisitos das editorias modernas, mas que ainda encontra espaço aqui e ali em programas sensacionalistas ou em veículos com fortes vinculações com os interesses e as ideologias das elites. São, portanto, duas pessoas com uma trajetória de vida mais longa, que atravessaram um período de transição da sociedade, com grandes mudanças nos comportamentos e nas tecnologias. Assim, de certa forma é possível contextualizar as posições que elas expressam, absolutamente injustificáveis, mas compreensíveis. Assustador mesmo é o caso do Paulo Germano.

PG, como é conhecido, tem a imagem requisitada para trabalhar no jornalismo “sério” contemporâneo: jovem, descolado, com uma bagagem cultural interessante, transita com desenvoltura por assuntos diversos, como políticas públicas, música e livros (o fato de dia desses ter associado Bukowski aos Beats é – ou não – irrelevante), e é interessado nos acontecimentos diários da cidade. Assim o portal da Famecos o descreve: “Espontâneo e carismático. Um jornalista humano que consegue exercer a empatia em tudo o que faz. Paulo Germano Moreira Boa Nova, nascido em 17 de dezembro de 1982, sonhava em ser um pop star de sucesso mundial, mas acabou encontrando no jornalismo o sentido que tanto desejava para a sua vida.” (http://portal.eusoufamecos.net/muito-mais-que-profissional-a-famecos-me-formou-como-gente/).

Deixando Danuza e Prates de lado, pelos motivos mais ou menos já referidos, me intriga saber o que leva um cara com o perfil de Paulo Germano a expressar uma ideia tão datada e tão preconceituosa como a de que rico procura qualidade e pobre procura preço baixo. Como Marilena Chauí e Brecht já nos ensinaram que tudo é política, não vou me furtar do “mimimi” de colocar essa desimportante fala do jornalista da RBS num contexto mais amplo, de sustentação dos padrões segregatórios da sociedade moderna, das discriminações de todas as ordens, do racismo estrutural, do sexismo, da violência de gênero, enfim, de tudo o que de mais podre tem na mente humana e que reverbera nas relações sociais. Pego carona em Tolstói pra pensar que ao descrever um fato da aldeia, Paulo Germano está se manifestando quanto à cultura universal. Porque o que está por trás de uma fala aparentemente inofensiva dessas é tudo que está aí a sustentar essa sociedade de exclusão em que vivemos. Pensar num espaço público que é frequentado por umas pessoas pela qualidade e por outras só por ser gratuito é naturalizar a existência de pessoas de categorias humanas diferentes. É o tipo de pensamento que faz estranhar a presença de uma pessoa preta e pobre em um museu de arte, mas permite passar batido pela ausência de pessoas pretas e pobres em meio às que frequentam o Cais Embarcadero a passeio; é o tipo de pensamento que acha bobagem a preocupação em eliminar termos e expressões racistas e sexistas da linguagem diária, sob o argumento que apenas refletem costumes arraigados; é o tipo de pensamento que permite ver que Paulo Germano, David Coimbra, Cristina Ranzolin, Daniela Ungaretti etc. etc. etc., dividem os espaços da linha frente dos veículos da maior rede de comunicação do Rio Grande do Sul com a Fernanda Carvalho, e só com ela de mulher negra, além de nenhuma PCD, e achar isso normal; é o tipo de pensamento que talvez imagine que não há mulheres trans nem homens assumidamente gays nas faculdades de jornalismo ou que essas pessoas não têm competência e qualificação profissional para estar na RBS; é o tipo de pensamento que acha normal que o Jornal do Almoço dê início à programação comemorativa dos 250 anos da capital da europa brasileira sem fazer referência às pessoas negras que construíram a grandeza da cidade e que, quando aparecem nas matérias, é apenas pelos aspectos pitorescos que são construídos, como histórias de superação e exceção, dignas de admiração por pena e não por respeito e reconhecimento aos seus valores; é o mesmo pensamento que não vai mostrar a luta das comunidades indígenas da zona sul da cidade para manter a posse das suas terras e a sua dignidade, e que vai naturalizar que mães e crianças guaranis sejam tratadas como pedintes no Brique da Redenção. Redenção, a propósito, que é um nome lindo e cheio de significados, mas não oficial, porque o que está nos registros da municipalidade homenageia os grandes heróis (e abigeatários) farrapos.

Enfim, queiram ou não, a frase aparentemente sem importância do Paulo Germano transporta essa pesadíssima carga de discriminações e violências, mesmo que talvez ele não seja, como provavelmente não é, conscientemente racista e elitista. E este é justamente o problema maior que enfrentamos: o racismo quase nunca é consciente, assim como quase nunca o são a homofobia, a misoginia e tudo mais. Raramente vamos ver alguém dizendo abertamente: “Eu sou racista!” ou “Eu sou homofóbico!” Mesmo Jair Bolsonaro, que disse preferir um filho morto a um filho gay e comparou quilombolas com bois, não se assume como racista e homofóbico e tem um exército de seguidores fanáticos sempre de prontidão para defendê-lo dessas – e de outras – acusações. Assim, fica cada vez mais evidente que enquanto não pararmos de “passar pano” para essas veladas manifestações de discriminação (refiro-me às do PG), naturalizando e dando pouca importância a elas, não avançaremos nos processos verdadeiramente civilizatórios (eu prefiro mesmo chamar de humanizatórios) que precisamos implementar.

Em um conversa recente sobre essas coisas, o meu amigo Douglas Ricalde me fez atentar para o artigo 7º da Lei 12.711, de 2012, que trata da política de cotas nas universidades. Este artigo determina que no prazo de 10 anos a partir da publicação da lei, o programa deve passar por revisão. Isso vai acontecer no ano que vem e há duas possibilidades: por ser ano eleitoral, talvez o Congresso se dobre às pressões que deverão ser feitas pelas pessoas e grupos interessados não só na manutenção do sistema quanto no seu aperfeiçoamento; por outro lado, dada a terrível configuração do parlamento, formado em grande parte por gente ligada a todo tipo de interesse espúrio, há forte chance da lei ser até revogada. No embate que certamente vai se travar, cabe à sociedade civil e ao campo progressista pensar a articulação desde agora para que esta não seja mais uma política de avanço social a ser aniquilada pelas forças nazifascistas que comandam o país.

*Imagem de destaque copiada de: <https://edisilva64.blogspot.com/2018/09/quando-o-pobre-adere-ao-discurso-do.html&gt;. Acesso em: 5 de set. 2021. (A imagem foi editada para que não apareçam os rostos das pessoas.)

Padrão
Educação, Legislação, Política, Racismo, Republicados

Universidade: universalismo de fato*

Tema de extrema relevância, com grande repercussão social, apaixonante, capaz de provocar debates e discussões acaloradas, que nem sempre primam pela racionalidade dos argumentos, isso tudo e muito mais é a política de reserva de vagas para negros nas universidades públicas brasileiras, popularmente chamada de sistema das cotas raciais, uma das chamadas Políticas de Ação Afirmativa, que, ao contrário do que se pensa comumente, deita suas raízes na Índia, em sua luta pela libertação do jugo britânico, e não nos Estados Unidos da América.

Há negros que são contrários, há brancos que as defendem; há quem diga que isso é coisa de “gente de esquerda”, na forma mais pejorativa aplicável à expressão, e os que apontam para uma omissão do Estado em problemas maiores, dizendo que ele usa as cotas apenas para dar uma satisfação à sociedade. Enfim, opiniões e posições há para todos os lados e é natural que cada um tenha a sua, ou as suas. O que me preocupa é quando as manifestações surgem de pessoas que exercem certo poder no contexto social e aqui me refiro especificamente aos jornalistas e comunicadores, que têm largos espaços nos órgãos de imprensa e não raro confundem liberdade de imprensa, tão cara ao regime democrático, com um certo tipo de libertinagem, que lhes permite emitir opiniões e sentenças peremptórias sobre os mais diversos assuntos, muitas vezes sem ter nenhum embasamento para isso. Para não me alongar muito, apenas cito como exemplos o Rogério Mendelski, cujas manifestações preconceituosas e sectárias não devem provocar surpresa em mais ninguém, e o pretenso intelectual David Coimbra, para quem tudo se resolveria com um sistema de cotas para as escolas públicas (está lá no blog dele, em 18 de maio).

Esse tipo de manifestação me levou a escrever sobre o assunto, que me interessa há muito tempo e sobre o qual procuro ler tudo o que me chega às mãos. Pretendo falar brevemente sobre um dos tantos argumentos usados pelos que são contrários ao sistema de cotas e que me causa um pouco de perturbação, que é a ideia que as cotas raciais deveriam ser simplesmente substituídas pelas cotas sociais, privilegiando o aspecto econômico, que, segundo alguns, nivela brancos e negros na pobreza. Na minha ótica, como se verá adiante, não é assim que a coisa funciona.

Começo por examinar o termo “universidade”, cujo primeiro significado no dicionário Hoauiss é “qualidade ou condição do que é universal”, página 2.807, da 1ª edição, de 2001. A segunda definição faz referência à ideia de instituição de ensino. Ou seja, a universidade, como instituição de ensino, deve, na medida do possível, como denota a origem da sua denominação, fazer uma reprodução do universo social, e esse inclui brancos, negros, amarelos, vermelhos, etc. Todavia, não é preciso muita pesquisa de campo para se verificar que não é essa a realidade da UFRGS, que é a que nos interessa no momento por ser a mais próxima de nós. Cursei alguns semestres de Letras e me lembro de pouquíssimos colegas negros. A bem da verdade, apenas de uma. Pobres, ou pessoas com condições econômicas desfavoráveis, havia em número considerável, se bem que longe do que talvez seja o ideal. Por outro lado, quando a minha esposa estava na faculdade de Odontologia, nunca vi um negro que fosse seu colega. E ela própria pode servir como representação de alguém que veio de uma classe social pouco ou quase nada privilegiada e chegou à universidade. De novo se observa que pobres há, ainda que poucos, mas negros inexistem. Conheci, em diversas áreas, inclusive na Faculdade de Letras, professores e profissionais que vieram de famílias pobres. Não me lembro de nenhum negro. Isto é, ainda que longe do que se espera, as classes economicamente desfavorecidas têm alguma representação na universalidade da universidade, com o perdão da redundância. Os negros não têm nenhuma. Pelo menos não que se possa considerar como tal.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal pôs fim a uma discussão sobre a constitucionalidade do sistema de cotas. Era o julgamento de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo DEM – Democratas – partido sucedâneo da ARENA –Aliança Renovadora Nacional -, de saudosa memória para alguns, que tem um programa extremamente conservador e que congrega em seus quadros políticos e militantes que defendem a pena de morte, a esterilização em massa, etc. Ideologias à parte, para quem tiver interesse, sugiro a leitura dos votos dos ministros, que está disponível no site http://www.stf.jus.br, e, no caso de desejarem um aprofundamento, há textos bastante esclarecedores,  com ótimas remissões, disponíveis em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa.

O professor Hélio Santos, doutor em Economia e Administração, e negro, tem uma frase muito significativa e sugestiva: “O problema foi o dia 14.” De fato, se pensarmos no dia 13 de maio como um marco da disseminação da luta contra o preconceito racial, tudo fica muito bonito. Mas e o dia 14? O que aconteceu a partir daí? Negros libertos? Sim! Trabalho, terras, bens, dignidade, condições mínimas para uma vida decente? NÃO!! E observem que não foi por questão estilística que optei por usar o termo libertos quando poderia dizer livres. Há uma sutil distinção entre libertos e livres. Os negros, ex-escravos, estavam, pós-abolição, fisicamente livres, mas na prática apenas deixaram de morrer pelo açoite para morrer de fome, pois não lhe foram dadas as mínimas condições para que pudessem levar uma vida que se pudesse dizer humana. Os que sobreviveram deram origem aos guetos e favelas que existem e se proliferam ainda nos nossos dias, em nossa sociedade “livre do preconceito racial”. E hoje estamos distantes apenas 124 da Lei Áurea, o que significa dizer que há entre nós descendentes diretos de escravos. Bisnetos, netos, até mesmo filhos. Eu, que não tenho ascendentes negros, senão que talvez remotamente, posso saber com exatidão das dificuldades que sente um desses, cuja origem escrava está logo ali, há pouco mais de um século? Obviamente não. Por outro lado, posso me considerar exatamente igual, no sentido de ter as mesmas condições de vida, como preconiza a Constituição Federal (“Todos são iguais perante a lei.”) a um negro com esse histórico? Também não. Diante dessa simples constatação, cai por terra o mito da igualdade racial no Brasil.

Vejamos o que diz o psicanalista Contardo Calligaris:

 

“Em meus primeiros contatos com a cultura brasileira, acreditei inevitavelmente ter encontrado o paraíso de uma democracia racial. (…) Mas essa sensação inicial não demorou muito tempo, pois logo tive a oportunidade, ao me estabelecer no Brasil, de analisar alguns pacientes negros. Bastou para descobrir imediatamente que minha impressão de uma paradisíaca democracia racial devia ser perfeitamente unilateral. (…) O mito da democracia racial é fundado em uma sensação unilateral e branca de conforto nas relações inter-raciais. Esse conforto não é uma invenção. Ele existe de fato: é o efeito de uma posição dominante incontestada. (…) Sonhar com a continuação da pretensa ‘democracia racial brasileira’ é aqui a expressão da nostalgia do que foi descrito antes, ou seja, de uma estrutura social que assegura a tal ponto o conforto de uma posição branca dominante, que o branco – e só ele – pode se dar ao luxo de afirmar que a raça não importa.” (CALLIGARIS, Contardo. “Notas sobre o desafio para o Brasil.” In: Anais do Seminário Internacional “Multiculturalismo e racismo: o papel da Ação Afirmativa nos estados democráticos contemporâneos.” Brasília: Ministério da Justiça/Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 1997. p. 243-245.)

Em 2004, a UFRGS convidou o então presidente da República Popular de Moçambique, Joaquim Alberto Chissano, um homem com um grande currículo de lutas pela emancipação dos países africanos, para ministrar uma Aula Magna, com o tema Cooperação África e Brasil no âmbito da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD). E vejam  o que ele disse:

“(…) E quero destacar um ponto que até pode ser polêmico mas eu sempre gostei de dizer coisas chocantes, inclusive para os meus colegas brasileiros presidentes da República e ministros das Relações Exteriores. Dessa forma, tenho ouvido que o Brasil é um país multirracial, um país onde não há racismo, um país de igualdade, onde cada habitante se sente com sangue brasileiro. Porém, muitas vezes me senti incomodado com essas expressões pois me pareciam não corresponder à realidade. A primeira vez que aqui estive, fui a Bahia e lá vi muito negro na rua, vi muito negro no mercado e Salvador me pareceu uma parte da África. Depois, tive encontros, reuniões de ‘business’ e senti-me, de novo, na Europa. Lá não vi nenhum negro, não senti a igualdade, o sangue brasileiro estava camuflado.” (“Cooperação África e Brasil no âmbito da nova parceria para o desenvolvimento da África (NEPAD): aula magna UFRGS 2004/ Joaquim Alberto Chissano”. – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.)

            As palavras do mandatário moçambicano, pessoa insuspeita para tratar do assunto, escancaram a realidade brasileira, que muitos tentam mascarar. Nas ruas, nos locais públicos, onde seria impossível evitar a convivência, os negros estão por todas as partes. Nos locais restritos, porém, palcos das discussões políticas e econômicas, que decidem como vai ser a vida da população, eles estão alijados da participação. Que “democracia racial” é essa que só se exerce onde é impossível evitar a sua prática? Mesmo lá, nos locais em que os negros estão, é pouco provável que os “democratas raciais” estejam à vontade dividindo seus espaços com essa “subclasse de cidadãos”.

Sobre o que diz o David Coimbra, referido antes, que a solução está na oferta de vagas reservadas para estudantes oriundos de escolas públicas, basta que se faça um pequeno resgate histórico de alguns anos, nos tempos em que o nível da escola pública era considerado bom, para que observemos que naquela época os negros não tinham acesso ao ensino proporcionado pelo Estado, pois não podiam dividir o espaço com os brancos. E isso não faz muito tempo. Expandindo a questão, há que se dizer que uma coisa são as cotas sociais e outras são as de recorte racial. Elas têm base em problemas diferentes e, consequentemente, visam à correção de distorções distintas. Se o problema fosse meramente econômico, me parece que seria razoável que o “Dr.” Coimbra defendesse também a reserva de vagas em concursos públicos não para portadores de deficiência e mulheres, mas apenas para portadores de deficiência pobres e mulheres pobres. Observe-se que temos aqui quatro tipos diferentes de discriminação: contra portadores de deficiência, contra mulheres, contra pobres e contra negros. Cada tipo com as suas particularidades, o que enseja a adoção de iniciativas próprias para combater cada um deles.

No início do ano, quando se discutia a adoção de reserva de vagas para negros nos concursos públicos estaduais no Rio Grande do Sul, a Procuradoria-Geral do Estado emitiu extenso parecer, do qual resgatei o trecho a seguir:

 “Diga-se, ainda, que as cotas raciais, se por um lado não são incompatíveis com as denominadas cotas sociais, por outro lado não as substituem nem por elas podem ser substituídas, sendo possível, isto sim, associação de critérios entre estas e aquelas. Mas há que se advertir que as cotas étnico-raciais, especificamente as dirigidas às pessoas negras, se justificam mesmo diante da possibilidade de adoção do critério de cotas sociais. Pois como demonstram os dados estatísticos e demais estudos sociológicos aqui trazidos ou referidos, há na realidade da exclusão e de desigualdades sociais uma perversa tônica em desfavor das pessoas negras. Mesmo dentro das margens de maiores desigualdades em que também pessoas brancas são abarcadas, as pessoas negras são as mais inferiorizadas, as mais discriminadas e as que estão submetidas às maiores desigualdades.

Por outro lado, as cotas raciais não têm objetivo único de atacar as desigualdades sofridas por negros e negras em seu viés econômico, senão que para além disso, buscam também sanar os aspectos culturais mórbidos de discriminação fundados no preconceito de cor, que é onde residem muitas das determinantes da própria desigualdade social e econômica.”  (Carlos César D’Elia, Procurador do Estado, Coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Parecer nº 15.703/PGE, 16/03/2012. www.pge.rs.gov.br/upload/estudosdireito1[1]cotasraciais.pdf.)

                Ou seja, um estudo abalizado, feito por uma entidade da estatura da PGE/RS, aponta que a discriminação racial vai além da questão econômica. Brancos pobres são segregados, mas negros pobres são mais ainda. Brancos ricos têm situação favorável na sociedade, negros ricos, porém, por maior destaque que obtenham, não escaparão dos olhares desconfiados. Alguém se lembra daquele caso, ocorrido há alguns anos, em que dois jovens negros que corriam para evitar o atraso para o vestibular da UFRGS foram abordados por brigadianos e acabaram de fato perdendo a prova? Eles eram filhos de um engenheiro, portanto a sua situação social certamente não era das piores. O que fez com que os policiais desconfiassem deles? Fossem brancos, o fato teria ocorrido? Foi a triste consumação daquela piada que diz: “branco correndo está atrasado, negro correndo está fugindo da polícia.” Diante dessa realidade, cotas sociais resolveriam o problema?

                Quando se diz que um aluno cotista está tirando a vaga de outro que apresentou melhor desempenho e por isso o sistema é injusto, apenas se está buscando uma simplificação do problema. Como bem observou o Ministro Marco Aurélio Mello, no seu voto por ocasião da ADPF citada:

“A meritocracia sem ‘igualdade de pontos de partida’ é apenas uma forma velada de aristocracia”. 

Ou seja, não basta apenas criar uma situação fictícia de igualdade, pela qual negros e brancos concorreriam nas mesmas condições. É preciso que essa igualdade seja alcançada lá nos pontos de partida e as cotas podem representar um instrumento muito eficaz para que se logre êxito nesse objetivo. A conta de mais negros nas universidades emana seus reflexos na sociedade, com mais negros com maior nível de esclarecimento em suas comunidades, que serão capazes de transmitir valores mais elevados aos seus pares. Em algum tempo teremos mais professores negros, mais médicos negros, mais dentistas negros (a propósito, alguém conhece algum?), enfim, mais negros ocupando posições de destaque e prestígio social e, como consequência disso, as práticas de preconceito e segregação tenderão a ser enfraquecidas.

                No mesmo sentido da argumentação do Ministro Marco Aurélio, está o posicionamento do renomado jurista Dalmo de Abreu Dallari:

 

“O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os primeiros em situação de privilégio, mesmo que sejam socialmente inúteis ou negativos.” (DALLARI, Dalmo de Abreu. “Elementos da Teoria Geral do Estado.” 25ª ed. São Paulo: Saraiva. P. 309. In voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186, em 25/04/2012.)

                Defendendo a adoção de medidas que, embora aparentemente contrárias ao princípio constitucional da igualdade formal, que é fictício e precário diante da realidade social, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos diz:

 

“(…) temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.” (SANTOS, Boaventura de Sousa. “Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural.” Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P.56. in voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186, em 25/04/2012.)

                      Não basta que sejamos iguais perante a lei. É preciso que sejamos iguais perante a sociedade, visto que não há um fator genético de diferenciação entre negros e brancos, segundo o qual estes supostamente teriam maiores aptidões ao desenvolvimento intelectual. É o que diz o representante da Fundação Ford, Jean Dassin:

 

“Em nove anos de funcionamento, o IPF comprovou definitivamente que talento intelectual e compromisso social abundam nas comunidades marginalizadas de todo o mundo em desenvolvimento e que o acesso à educação superior pode ser ampliado sem prejuízo dos padrões acadêmicos.” (DASSIN, Jean. “Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação da Fundação Ford.” In: “Acesso aos direitos sociais: infância, saúde, educação, trabalho.” São Paulo: Fundação Ford/Fundação Carlos Chagas. 2010.)

                Assim, a ideia que defendo, cuja validade pretendi certificar com a argumentação feita, é que as cotas sociais e raciais não são excludentes. Pelo contrário, elas se complementam e devem ser adotadas até o momento em que as discriminações sociais de toda a ordem tenham sido erradicadas, no caso particular do preconceito pela cor, que a democracia racial deixe de ser uma ficção jurídica e passe a ser uma realidade.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça Pra Baixo, em 26/6/2012.

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