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Siga o chefe! Ou: de quando a hierarquia explica a violência

Farda e violência são palavras que ocupam o mesmo campo semântico. Desde que a humanidade passou a se organizar em sociedade, a criação de instituições destinadas à mediação das relações e dos conflitos decorrentes dessa estrutura comunitária se fez necessária. E na proporção em que as populações aumentavam e os grupos sociais ficavam maiores e mais heterogêneos, também essas instituições aumentavam em número e complexidade. Os órgãos responsáveis pela segurança do povo foram se tornando instrumentos importantes do processo civilizatório. Quando foi, então, que esses órgãos de segurança se transmutaram em órgãos de INsegurança?

Retomando a ideia inicial, as polícias e as forças armadas existem em função da violência, em todos os aspectos, seja na função institucional de conter a violência, seja na forma encontrada para fazer esse enfrentamento, baseada cada vez menos na inteligência e cada vez mais na própria violência. Claro que é uma afirmação a ser contestada rapidamente pelos defensores das organizações policiais e militares. Mas, como se costuma dizer, contra fatos não há argumentos e os acontecimentos das últimas semanas comprovam a hipótese.

Presidente Jair Bolsonaro assiste a demonstração de manobras táticas da Operação Formosa 2021, que contou com a participação das três Forças Armadas. Os exercícios contam com 2.500 homens da Marinha, Exército e Aeronáutica. O presidente acionou o disparo Obusteiro de artilharia, ao lado do ministro Ciro Nogueira (Casa Civíl). Sérgio Lima/Poder360 16.08.2021 Imagem copiada de: https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-teve-recorde-de-eventos-militares-antes-de-7-de-setembro/. Acesso em: 31 de maio 2022.

No que diz respeito aos órgãos de segurança fardados (polícias, forças armadas etc.), a organização se dá expressamente com base na hierarquia e na disciplina. O comando mais alto das forças armadas e a chefia do ministério da justiça, a que estão vinculadas as polícias, cabe à presidência da república. A minha conversa de hoje poderia terminar aqui, já que o mote são os assassinatos promovidos por agentes de órgãos de segurança nos últimos tempos. A observação de que a chefia desses órgãos é exercida por Jair Bolsonaro dispensaria maiores explicações sobre os fatos, mas vou avançar um pouco.

Nunca antes na história inteira do país de norte a sul (aqui lanço mão propositalmente da técnica discursiva de Olavo de Carvalho, que formou a base narrativa da extrema-direita desde os anos 90 e, por consequência, deu origem ao bolsonarismo) um chefe do executivo foi tão responsável pela violência praticada pelas instituições. Pode parecer absurda essa afirmação, afinal tivemos a ditadura do estado novo, a ditadura instituída pelo golpe de primeiro de abril e tantos outros momentos de regimes de exceção. Entretanto, que expressão usamos para referir os momentos mais sombrios do regime militar? Porões da ditadura. Os generais da época sabiam que as coisas mais cruéis não podiam ser feitas à luz do dia. E estamos tratando de um tempo em que não existia internet e muito menos câmeras de celular aptas a registrar tudo e mandar ao vivo para o mundo. Por que, então, hoje, uns caras se sentem à vontade para assassinar um homem de um jeito absolutamente brutal dentro de um porta-malas de uma viatura policial, mesmo sabendo que estão sendo vistos, ouvidos, filmados? Por que outros caras não têm nenhum receio de entrar numa comunidade periférica e metralhar aleatoriamente, matando gente trabalhadora? Por que um militar se acha no direito de tirar a vida de um homem que chegava em casa pela simples desconfiança que ele fosse um assaltante? A resposta é simples: porque sabem que o chefe vai dar apoio. Não foi o que fez Bolsonaro ao elogiar a ação polical na Vila Cruzeiro? Já quando foi perguntado sobre o assassinato de Genivaldo, a resposta foi lacônica: “Preciso me informar melhor.” Como se as imagens não bastassem.

Imagem copiada de: https://tribunasaocarlense.com.br/a-psicopatia-de-jair-bolsonaro/. Acesso em: 31 de maio 2022.

Os bolsonaros não só convivem bem com a violência como a incentivam. Se deleitam com o sofrimento alheio. São pessoas elas mesmas violentas e cruéis. Bolsonaro e seus filhos sequer podem ser comparados ao seu ídolo maior, o torturador reverenciado no voto golpista do impeachment. Brilhante Ustra, um dos homens mais abjetos dos tantos que esse país já pariu, praticava seus atos nas salas escuras e escondidas dos aparelhos do regime. Albert Hening Boilesen, o presidente da Ultragaz que financiou a ditadura e pedia para participar das sessões de tortura, não teria a ousadia de apoiar abertamente a violência extrema, como fazem Bolsonaro e seus filhos. Isso tem reflexo evidente na atuação das pessoas que de alguma maneira estão sob seu comando ou que, mesmo agindo por conta própria, se sentem autorizadas à violência.

A escalada da violência institucional e civil no país nos últimos anos está ligada diretamente à postura do presidente da república, que se diverte com assasinatos brutais e que faz piada com o sofrimento de quem perdeu familiares e pessoas queridas para uma doença cujos efeitos teriam sido muito menos devastadores se o (des)governo adotasse uma política eficaz de combate e não a estratégia de sabotagem praticada por Bolsonaro e os seus generais. Mas o que se poderia esperar de um homem que disse que não estupraria uma colega porque ela não merecia?; que disse que preferia ter um filho morto a um filho gay?; que disse que a filha nasceu de uma fraquejada?; que disse que o erro dos militares foi terem matado pouca gente?; que, perguntado sobre as pessoas mortas pela Covid, limitou-se a dizer que não era coveiro? Desta pessoa, que o melhor dicionário não me apresenta adjetivo para qualificar, não se pode esperar nada, a não ser sadismo, crueldade e violência. Mas eu posso esperar que o eleitorado de 2018, paradoxalmente iludido pelo não cumprimento das promessas de campanha, não cometa o mesmo crime quatro anos depois. Sim, porque o voto em Bolsonaro não tem outro nome que não seja crime. Se ao eleitorado de Bolsonaro no último pleito pode se conceder o benefício de ter sido responsável apenas indireto pelos crimes que ele cometeria nos próximos quatro anos, neste 2022, quem votar neste facínora passará a condição de coautor. E não terá o perdão da história.

Imagem de destaque editada pelo autor a partir de original copiada de: https://www.apostagem.com.br/2021/10/01/bolsonaro-usou-crianca-para-fazer-apologia-a-violencia-e-violou-o-eca/. Acesso em: 31 de maio 2022.

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A resposta? Está no guru

A coluna é escrita com um ou dois dias de antecedência da sua publicação. Escrevo na segunda, dia 6 – a véspera. Não tenho elementos para dizer coisa concreta sobre a terça – o dia – que ultrapasse a fronteira das conjecturas. Acabei de ler um ótimo texto, cuja autoria não consta na postagem que um amigo fez num grupo de WhatsApp, que aborda as movimentações políticas coletivas da semana e antecipa o possível cenário da eleição. Conclui que Lula deve participar ativamente dos atos e que a Jornada Antibolsonarista do Sete de Setembro deve ser forte. São considerações óbvias, é verdade, mas é preciso que alguém as diga. Só que pouco vai adiantar que se chegue a uma espécie de acordo ou pacto sobre Lula ser o nome certo, ou pelo menos o nome possível, e de que precisamos tomar as ruas para exigir a queda de Bolsonaro, se não se entender minimamente o que é o bolsonarismo. Sem isso, o risco de que caia o homem mas não caia a ideia é muito grande. Já disse por aqui que o bolsonarismo é maior que Bolsonaro. Por paradoxal que pareça, se aproxima o momento em que Bolsonaro deverá ser descartado para que o bolsonarismo possa subsistir. Para entender isso, nada mais esclarecedor do que conhecer o pensamento do sujeito que conformou a prática do bolsonarismo e que tem uma dimensão tão grande no processo de construção e consolidação da plataforma protofascista de Bolsonaro que se aventa até a possibilidade que ele tenha morrido e a sua morte seja anunciada amanhã, a fim de criar uma narrativa heroica. Teorias conspiratórias à parte, falo do guru do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, claro.

O discurso da militância bolsonarista foi articulado por Olavo de Carvalho. A técnica de desqualificar não só os argumentos como as pessoas que têm pensamento diferente, da qual Bolsonaro faz uso permanente, é uma proposição olavista. O Professor João Cezar Castro Rocha se dedica há algum tempo a compreender o bolsonarismo. Os seus estudos sobre o tema originaram o livro “Guerra Cultural e Retórica do Ódio: crônicas de um Brasil pós-político”, lançado no início de 2021 pela editora Caminhos. Trata-se de leitura fundamental. Uma das fontes em relação à matriz narrativa discursiva, sobretudo linguística, é a própria obra de Olavo de Carvalho. Em algum momento o Professor adverte que a leitura de Olavo é tarefa para gente de estômago forte e fígado perfeito, mas para quem quer realmente ter uma compreensão ampla e verdadeiramente sólida do que está acontecendo no braZil de Bolsonaro, é tarefa inescapável.

A síntese do olavismo, extensa muito mais em palavras do que em ideias, está nos livros publicados nos anos 90, que o próprio filósofo autodeclarado considera o mais abrangente conjunto literário sobre o Brasil em todos os tempos. A trilogia é composta por ” A nova era e revolução cultural”, “O jardim das aflições” e “O imbecil coletivo”, de 94, 95 e 96, respectivamente. No último livro, o sujeito inclui uma parte chamada “Manual do usuário de O imbecil coletivo etc.)”, que, segundo ele, é um texto lido por ocasião do seu lançamento, no Teatro da Cidade (Rio de Janeiro), em 22/8/1996. Nesta bula consta a seguinte pérola: “O sentido da série é, portanto, nitidamente, o de situar a cultura brasileira de hoje no quadro maior da história das ideias do Ocidente (…). Que eu saiba, ninguém fez antes um esforço de pensar o Brasil nessa escala. Meus únicos antecessores parecem ter sido Darcy Ribeiro, Mário Vieira de Mello e Gilberto Freyre (…)”. Na sequência explica o porquê de ser a obra dele maior.

Não seria sacana o suficiente para sugerir que alguém lesse os três livros, mas, reforçando a necessidade de que se conheça o pensamento olaviano, “O imbecil coletivo” é bastante elucidativo. Uma das estratégias que estrutura o modus operandi aparece já na abertura do livro. A crítica da crítica (rasteira e virulenta, como é da característica do autor) neste momento é direcionada ao que ele chama de intelligentzia imbecilizada e imbecilizante brasileira, exemplificada com Paulo Roberto Pires, Emir Sader, Leandro Konder, Muniz Sodré, Gerd A. Borhein e André Luiz Barros. Olavo inclui no volume um “Formulário-padrão para a redação de críticas a ‘O imbecil coletivo'”, composto de seis questões, com três opções cada, do qual se pode extrair uma definição, que, segundo ele, já foi feita pelos pensadores citados. A minha, a partir das orientações disponíveis é: “O. de C., autor desta escandalosa polêmica, pretende implodir a cultura brasileira. É um sujeito cheio de incompreensão dos caracteres específicos da cultura brasileira. Torna-se evidente que a mentalidade deste autor é autoritária e prepotente. Ele está manifestamente fora de si. No fundo, ele nos parece movido por ambições políticas sórdidas.” Há outras possibilidades de construção, mas esta me parece ser aquela que o próprio Olavo gostaria de apresentar, pois reúne o que as mentes rasas, que constituem o padrão do sujeito bolsonarista, adoram: agressão violenta a quem pensa diferente, mascarada de humor ácido e ironia sobre si mesmo, mas com o efeito de rebaixar o interlocutor.

Bolsonaro é versado nos recursos retóricos olavistas e tratar adversários/as pelos termos mais baixos é hábito notório. Mesmo quando o adversário é o próprio povo: “país de maricas”, por exemplo. A auto-ridicularização é artifício comum, também. Outro não pode ser o sentido de divulgar imagens em que espanta uma ema com uma caixa de cloroquina. E assim, enquanto a grande mídia gasta o precioso (e caríssimo) tempo de seus espaços jornalísticos dando voz a pilhas de manifestos e notas de repúdios de pessoas e instituições moralmente atingidas pela gosma presidencial, invariavelmente sem nenhum efeito prático, e o público descolado se diverte criando memes, a boiada passa.

É evidente que a contribuição olavista para a ideologia bolsonarista vai muito além de ideias para escancarar a própria imbecilidade, com o perdão do trocadilho. É preciso aprofundar o entendimento das particularidades da guerra cultural promovida pelo olavo-bolsonarismo. No âmbito dos seus interesses mais privados, porém, Bolsonaro já pressente há algum tempo a proximidade da exposição das cabeças da família em bandeja de prata e por isso recorre aos séquitos ainda fiéis na tentativa desesperada de dar contornos clássicos à guerra que imagina possa lhe garantir a permanência no poder e até mesmo a liberdade. A última tentativa de Bolsonaro pode acontecer neste 7 de setembro e tudo vai depender de como as forças militares vão se posicionar. Nesse sentido, encontrando grande resistência nas Forças Armadas, talvez receosas de embarcar em mais uma aventura golpista, mas ainda assim relativamente satisfeitas pela posição de destaque no governo, que possibilita até a promoção ao marechalato, ele tenta arregimentar as polícias estaduais, principalmente as militares, e a grande contingência de civis por ele armados. É possível que não havendo carros de combate nas ruas por conta do cancelamento das paradas militares, vejamos tratores e outros maquinários agrícolas conduzidos por ruralistas autorizados a reprimir ameaças às suas propriedades, ainda que conquistadas de forma ilegítimas, à bala.

Imagem copiada de: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/07/4940245-planalto-homenageia-dia-do-agricultor-com-imagem-de-homem-armado.html. Acesso em 7/9/2021.

O que vai acontecer depois deste dia de celebração da nação (povos originários excluídos) não se sabe, mas é cada vez mais clara a necessidade de compreender o bolsonarismo para poder matar o monstro inteiro e não apenas cortar uma das suas cabeças. Derrubar Bolsonaro é só uma etapa da luta antibolsonarismo. E, como o antídoto parte do veneno, ler o guru, por mais indigesta que seja, é missão imprescindível.

*Imagem de destaque copiada de: https://lavrapalavra.com/2019/06/18/olavo-de-carvalho-o-inimigo-doconhecimento-ou-o-verdadeiro-imbecil/. Acesso em: 6/9/2021.

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