bolsonarismo, Direito, Política

O que(m) diz o direito?

No mundo do direito penal, nada é a priori. Melhor dizendo, nada é simplesmente por ser. Qualquer coisa que seja, apenas passa a ser, no ordenamento jurídico, após uma atribuição. Não quero escrever um tratado de ontologia, ou melhor, quero, só que por razões evidentes não vou fazer isso, mas o que parece ser um conceito complexo, cheio de abstrações filosóficas, como linha geral é bastante simples e até óbvio, estando expresso no princípio que diz que não existe crime sem lei que previamente o defina.

Um grande amigo, Diego, me apresentou uma nova teoria do direito penal, mais especificamente sobre a questão dos delitos, que trata de coisas como que tipo de conduta é considerada crime, quando se pode exigir a aplicação da pena, quando se trata de dolo e quando é culpa, enfim. Essa teoria, desenvolvida por um sujeito chamado Vives Antón, e defendida no Brasil principalmente pelo procurador de justiça e professor no Paraná Paulo César Busato, atribui importância decisiva à linguagem nas conceituações de delito. Não vou entrar em maiores detalhes, inclusive porque não os tenho, já que recém tive o primeiro contato com a tese, que pretendo aprofundar. Entretanto, o pouco que vi fornece chaves importantes para entender algumas coisas que acontecem no braZil de Bolsonaro.

A mais superficial das análises vai mostrar que Daniel Silveira foi condenado por atos que foram, são e serão iguais em gravidade ou até menos graves do que os que os bolsonaros praticam há muito tempo. E esses atos, ou melhor, essas práticas, estão definidas como crime, tipificadas, para usar o jargão jurídico. Por que, então, o deputado marombado recebeu punição e os membros da família não? Claro que uma das explicações passa pela advocacia privada que o clã tem na PGR. Mas não é só isso. Há uma adequação da norma a cada caso, mesmo que esta seja pré-definida. Isso é típico da aplicação do direito e de fato assim deve ser, pois do contrário a administração da justiça se daria de forma autogestionada, bastando a existência da regra. A prerrogativa de interpretação da norma jurídica pelo órgão julgador, porém, enseja distorções gritantes. Eduardo Bolsonaro pode dizer que para fechar o STF não precisa de jipe nem de oficiais, mas Daniel Silveira não pode defender o fechamento do mesmo tribunal; Jair Bolsonaro pode subir em palanque, fazer ameaças e dizer que não vai cumprir as decisões da Corte, mas Daniel Silveira não pode deixar de carregar a bateria da tornozeleira eletrônica. Há uma clara flexibilização do princípio que diz que todos são iguais perante a lei. Tudo passa, então, pela interpretação das normas, que varia de acordo com quem as interpreta e, fundamentalmente, com o sujeito a quem elas serão aplicadas. Nos exemplos dados, é evidente que o neocomunista Alexandre de Moraes, consagrado constitucionalista, portanto conhecedor dos princípios do direito, sabe bem que uma coisa é condenar um inexpressivo deputado, usado como boi de piranha pelo sistema, e outra bem diferente é sentenciar o presidente da república ou um membro da família real (para evitar incômodos: a expressão família real contém ironia).

Para trazer outro exemplo, vamos lembrar o impeachment da presidenta Dilma, que teve como base a tal pedalada fiscal, que ninguém sabe direito explicar o que é, mas que todos/as, ou pelo menos quase todos/as que ocupam as chefias dos executivos, nas três esferas administrativas, usam e reusam. Por que Dilma foi impedida e outros/as não? Interpretações diferenciadas da norma. E, para evitar problemas, tão logo a presidenta foi afastada do cargo pelo golpe jurídico-parlamentar, a lei que trata das pedaladas fiscais, e consequentemente a sua interpretação, foi alterada.

Em outra situação, recentemente, a CPI(zza) elencou uma série de crimes de responsabilidade praticados por Jair Bolsonaro, alguns dos quais são reconhecidos até por organismos internacionais. Entretanto, o presidente da Câmara, a quem cabe abrir ou não um processo de impeachment, dá uma interpretação muito peculiar a cada um dos mais de cem pedidos de abertura de processo, muitos deles anteriores aos trabalhos do Senado, conferindo um destino único a todos eles: gaveta. Do mesmo modo, o Procurador-Geral da República, que tem a função institucional de autorizar procedimentos investigatórios contra o presidente, tem uma interpretação única sobre todas as notícias que chegam às suas mãos contra Bolsonaro, mesmo as que vêm diretamente do Supremo: Jair é inocente, arquive-se.

Outro caso marcante é o que envolve o ex-juiz, ex-ministro e ex-presidenciável, Sérgio Moro, cujos esquemas de interpretação da lei são tão particulares que permitiram que ele, apesar de magistrado, comandasse, segundo suas próprias palavras, uma operação judiciária que tinha o objetivo de suprir uma falha das forças políticas, aniquilando um partido e impedindo um candidato de concorrer à presidência da república. Hoje já foram lançadas luzes sobre a farsa judiciária chamada Lava Jato, mas as consequências funestas dela ainda estão surtindo os seus efeitos no governo protofascista que ela ajudou a levar ao Planalto. O mesmo Sérgio Moro, que abandonou a magistratura para se dedicar à política, disse, já como ministro do (des)governo cuja eleição foi por ele garantida, que, em alguns casos, basta o arrependimento para que se tenha o perdão. E assim o súper ministro Onyx Lorenzoni está legitimado a se lançar ao governo do Rio Grande do Sul, mesmo depois de ter confessado, em meio a um choro compungido, que fazia caixa 2. Para ilustrar essa flexibilidade interpretativa do comandante da Lava Jato, é interessante lembrar o que ele disse em 2017, na Universidade de Harvard: “Temos que falar a verdade, caixa 2 nas eleições é trapaça, é um crime contra a democracia. Corrupção em financiamento de campanha é pior que desvio de recursos para o enriquecimento ilícito”. (Fonte: https://sul21.com.br/ultimas-noticiaspolitica/2018/11/moro-sobre-caixa-2-de-onyx-lorenzoni-ele-ja-admitiu-e-pediu-desculpas/)

Os fatos aqui trazidos como exemplo, por sua notoriedade e grande repercussão, servem para comprovar as razões da Teoria da Ação Significativa, que citei no início do texto. Todavia, uma pesquisa rápida nas decisões judiciais cotidianas em matéria criminal vai mostrar que embora todos sejam iguais perante a lei, alguns são mais iguais que os outros. E assim, no país do bolsonarismo, vamos vivendo em absurda insegurança jurídica, sabendo que a aplicação do direito não obedece a critérios sólidos, em que pese a pré-definição das normas. Cada vez importa menos o que diz o direito e mais quem diz o direito.

Imagem de destaque copiada de: https://www.poder360.com.br/governo/aras-e-favoravel-a-bolsonaro-prestar-depoimento-sobre-interferencia-na-pf/. Acesso em: 5 de maio 2022.

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bolsonarismo, Necropolítica, Política

O bode na sala: ou ainda mais afinidades entre Trump e Bolsonaro

“Segundo todas as evidências, o _________ foi um dirigente execrável: egocêntrico, eivado de preconceitos, incapaz de empatia, vaidoso, inconsciente de suas responsabilidades. Não parava de mentir, inclusive sobre assuntos facilmente verificáveis, e de se comportar como demagogo, fingindo se preocupar com as classes populares. Usou a função suprema para enriquecer, locupletar os amigos e permitir às corporações refazer as leis conforme seus interesses. E negava a legitimidade de toda eleição cujo resultado não lhe conviesse.”

Se no dia de hoje a elipse da afirmação acima fosse preenchida com Jair Bolsonaro, alguém contestaria, exceto pelo fato do uso do verbo no passado? Engana-se, porém, quem pensa que a descrição original seja sobre o presidente do braZil. Trata-se de um artigo intitulado “Nos EUA, o conspiracionismo dos progressistas”, escrito pelo jornalista Thomas Frank e publicado na edição de agosto do Le Monde Diplomatique Brasil.¹ A análise feita pelo articulista se encaixa perfeitamente em muitos pontos na conjuntura que estamos vivendo no braZil de Bolsonaro.

Mais à frente, Frank diz que Trump foi incompetente e agiu como um idiota ao atacar as forças que o abandonavam. Aqui a relação Bolsonaro-Moro surge naturalmente. Diz ainda o artigo que Trump se apresentava como “um homem forte, sempre pronto a usar seu poder”, mas foi omisso diante da gravidade da pandemia. A diferença para Bolsonaro, neste quesito, é que este não está sendo omisso, antes está usando a crise sanitária para levar adiante a sua necropolítica.

Imagem copiada de: https://istoe.com.br/nome-jair-sobrenome-bolsonaro-acredite-ele-quer-te-matar/. Consultado em: 23/8/2021.

O que o jornalista chama de histeria na guerra contra Donald Trump também acontece por aqui. O domínio dos assuntos antibolsonaristas na grande mídia, Rede Globo, principalmente, impede que outros temas sejam tratados, certamente de forma proposital, pois enquanto se discute por horas, dias, semanas, o risível pedido de impeachment de Bolsonaro contra ministros do STF, a boiada vai passando, de forma metafórica e literal. E se nos EUA essa postura geral permitiu a ascensão de políticos tidos como insignificantes, que só tinham por pauta a oposição a Trump, como observa Thomas Frank, aqui acontece algo em sentido contrário, quando sujeitos absolutamente inexpressivos, como Bibo Nunes, Onyx Lorenzoni e Mário Frias, ganham momentos de fama exatamente por apoiar incondicionalmente o comandante em chefe das forças fascistas.

Frank diz que a elite intelectual estadunidense detectou o eleitorado de Trump formado por pessoas brancas e pobres, cuja motivação era o “medo racista de perderem status”. Por aqui também a manutenção ou a retomada do status quo das elites medianas esteve na base da eleição de Bolsonaro. Quando a socialaite disse que não tinha mais graça ir a Paris porque sempre havia o risco de encontrar o porteiro no aeroporto, e isso foi bem antes de Bolsonaro, estava sintetizando o pensamento da classe média – que se acha classe alta – brasileira. Hoje essa gente deve estar feliz, mesmo que não consiga mais ir a Paris com a mesma frequência, afinal, é melhor turistar menos, mas com a garantia de não ter nenhum encontro indesejado.

Há uma afirmação importantíssima no artigo em análise: “A histeria é também fonte de confusão: desorienta as pessoas e impossibilita o pensamento crítico em um país de individualistas que passam a se comportar como manada.” No nosso contexto político, a histeria é projeto. Do lado do governo fascista, um projeto de sustentação; do lado das corporações, um projeto de desviar a atenção das políticas deletérias ao patrimônio e à autonomia nacional. No fim das contas, claro, estão todos do mesmo lado, porque enquanto são enfatizados os aspectos pitorescos do “caso Sérgio Reis”, a boiada passa (de novo). Em termos de histeria, que se reflete na produção frenética de memes, o que dá mais assunto: a prótese peniana paga pelo povo ou o latifundiário da soja que financia o cauboi braZileiro? É de observar o destaque que o JN dará ao nome de Antonio Galvan nas matérias que tratam das investigações sobre Sérgio Reis. Ou se a Associação Brasileira dos Produtores de Soja – Aprosoja será referida.

Voltando ao caso dos EUA, posso dizer sem medo de errar que Trump X Biden é um caso típico do “bode na sala”. A reeleição do racista genocida seria o pior quadro possível, com poder de transformar o democrata (sim, Biden não é comunista) numa espécie de salvador da humanidade. Lembro, só de passagem, que uma das promessas de campanha da primeira eleição de Obama foi desativar a prisão de Guantánamo. Obama sucedeu George W. Bush, vencendo John McCain, já que o Bush filho não podia mais se reeleger. Biden, que foi vice de Obama, retomou o discurso de desativação da prisão. Alguém acredita nisso?

Trazendo a análise de volta às terras brazilis, a ideia do bode na sala vai impedir, salvo aconteça uma verdadeira revolução popular, qualquer possibilidade de impeachment de Bolsonaro. A Globo seguirá sustentando a narrativa histérica, que passa pela produção de escândalos em nível industrial e a não menos febril confecção de manifestos, notas de repúdio, cartas abertas, tão caras às nossas instituições e grupos de classe. Enquanto isso, os balões de ensaio vão sendo lançados, como o governador gay que não se quer gay governador, cujo ato inaugural da construção da imagem a partir da entrevista no Bial parece ter sido uma explosão de pólvora molhada, que não surtiu o efeito necessário. A mafiomídia deve atentar, porém, que o tempo está passando e talvez o bolsonarismo não tenha um testa de ferro tão burro quanto se quer fazer acreditar.

Disso tudo, o que fica é novamente o alerta que somente o povo tem o verdadeiro poder de mudar o quadro terrível e que se avizinha ainda pior. Delegar esse poder para as instituições é terceirização inútil, que vai servir apenas para dar continuidade à ilusão de que a Rede Globo e o STF estão de fato na trincheira certa.

¹FRANK, Thomas. Nos EUA, o conspiracionismo dos progressistas. Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo, ano 14, n. 169, p. 30-32, ago. 2021.

*Imagem de destaque copiada de: https://horadopovo.com.br/bolsonaro-diz-que-nao-vai-reagir-a-trump-porque-e-o-pobre-da-historia/. Consultado em: 23/08/2021.

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Agronegócio, bolsonarismo, Direitos Humanos, Política, Rio Grande do Sul

A neve nos campos de soja: ou o estado das três capitais

O que não tem faltado ultimamente é assunto para a crônica política. Hoje poderia especular, por exemplo, o que está por trás do suposto desentendimento entre Bolsonaro e o chicago boy na taxação das elites. Poderia fazer um crossover de esporte e política, pensando que a rede goebbels, ops, Globo, poderia terminar de vez com o discurso quadrienal hipócrita da superação e do heroísmo dos e das atletas olímpicas do BraSil – que se superam e são heróis e heroínas – e usar todo o seu poder para cobrar incentivos reais dos governos e da classe empresarial para que o esporte seja realmente um caminho para melhorar o país. Seria legal ir mais especificamente a um ponto alto desta olimpíada, onde tem aqui sim um crossover maravilhoso que une Bach e MC João. E o Mário Frias? Não daria pano pra manga falar sobre a desgraceira cultural no braZil com essa gente no poder?

Imagem copiada de https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/07/4940245-planalto-homenageia-dia-do-agricultor-com-imagem-de-homem-armado.html

Só que esta semana um amigo me mandou por WhatsApp algo que ele escreveu. Este meu amigo é uma das referências mais importantes no meu envolvimento com coisas da política, desde as lutas sindicais do serviço público federal nos anos 90 e da formalização do Diretório Acadêmico Osvaldo Oppitz, no velho colegião do Direito da Ritter dos Reis, em Canoas, ainda nos 90’s. A análise que ele faz da conjuntura política do enclave europeu em terras brazilis é preciosa. Pedi autorização para compartilhar o texto e ele disse que sim, mas que por algumas razões não queria que fosse revelada a autoria dele. Sugeriu que eu assinasse como meu. Jamais faria isso! Seria uma sacanagem com ele, que mesmo com a sua decisão de anonimato respeitada, claro, é o autor; mas seria uma sacanagem ainda maior comigo mesmo, porque as pessoas que me leem esperariam daqui pra diante que eu escrevesse dessa maneira e eu preciso de muita estrada pra chegar perto do que o A… – ops, quase entreguei a rapadura! – faz. E, ademais, a proposta aqui é divulgar ideias e não autorias. Então, muito obrigado pela generosidade de partilhar o teu pensamento, meu querido amigo, e me permitir a honra de ser o teu porta-voz neste momento! Segue aí o teu texto, que agora é de todes.

“Hoje no Rio de Janeiro, faz 32 graus e quem pode, se mandou para a praia. Mais tarde, os infelizes cariocas vão tomar uma cerveja antes de dormir, escutando os inúmeros tiroteios que já fazem parte da ecologia acústica local. Quem sobreviver à Guerra Civil, poderá ver reality shows idiotas com pessoas mascaradas cantando.

O gaúcho empobrecido não se importa em andar de Havaianas no meio da chuva congelada. Importante mesmo é saber que os estancieiros da Farsul estão produzindo soja pelos poros e pressionando pela dragagem do Super Porto. Enquanto o gaúcho pobre, separatista de Extrema Direita e chauvinista odeia a China e denuncia o seu vírus fabricado em laboratório, os estancieiros gaúchos supremacistas brancos, risonhos e rechonchudos vendem soja para Pequim.

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É fato: os cariocas e os fluminenses são analfabetos políticos porque conseguiram eleger Jair Bolsonaro, seus filhos sádicos e o pastor Marcelo Crivella. Os cariocas gostam de figuras sebosas e criminosas que usam a política para se valer do Foro privilegiado. São portanto diferentes dos gaúchos: os gaúchos são politizados, e elegeram Antônio Britto, Germano Rigotto, Yeda Crusius, Lasier Matins, Ana Amélia Lemos, e o garoto do governo perfeito sem questionamentos, Eduardo Leite. Também conseguiram transformar em deputados Onyx Lorenzoni e Danrlei de Deus, e catapultaram ao senado o líder da SS local, Luis Carlos Heinze.

Heinze é um racista patético, bolsonarista inflamado e que não nega a gloriosa tradição ariana: lidera pesquisas para o governo do estado. Em 2014, então deputado federal, Heinze se referiu aos quilombolas, indígenas e homossexuais como “tudo o que não presta”. Eleito pelos europeus “o racista do ano” naquele longínquo 2014, Heinze agora se tornou famoso por dizer que Cloroquina cura de berne no gado à Covid. Naquele ano, nosso vereador de Rio Grande, Wilson Batista (PMDB), vulgo Kanelão, se nivelou a Luis Carlos Heinze ao dizer que na Democracia rural gaúcha, os negros podiam até comer em restaurantes. Os gaúchos elegem esta gente graças ao seu projeto: uma pátria que seja um Reich. Avante gaúchos da Gestapo!

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Os gaúchos colocaram Heinze no senado porque são politizados e inteligentes. São inteligentes graças à sua genealogia, pois conforme a RBS são todos brancos, não fazem parte do Brasil e estão no topo da ciência vitoriana, com sangue caucasoide. No Rio Grande do sul da RBS, qualquer um que morrer de hipotermia, estará dando a sua vida pelo grande projeto da pátria pampeana: o sonhado Reich local.

Enquanto as multinacionais lavam dinheiro em consórcios nacionais, e compram nossas estatais por preços de terrenos nos subúrbios de Rio Grande, os gaúchos empobrecidos, sem bombachas e sem chimarrão, guardam para si o único souvenir da enorme pátria pampeana que lhes resta: o frio. Há frio para todos aqui. Falo de frio de verdade. Há muito frio hoje no Rio Grande do Sul. O povo gaúcho é frio: odeia o magistério, odeia os indígenas, odeia os sem terra. O gaúcho não tem onde morar, mas defende o direito dos latifundiários armados. O gaúcho também é homofóbico, mas engole Eduardo Leite, porque ele é o gay que não afronta os estancieiros heteronormativos que manobram o relho no interior.

Nossas frentes frias não vêm da Terra do fogo e nem do pampa argentino, mas sim da nossa gênese positivista: os gaúchos acreditam na meritocracia e quem nela não se encaixa, que seja banido pelo Darwinismo social, com a nossa seleção natural. Educados pela Farsul e pela RBS, conglomerado do jornalismo canalha e conservador, boa parte dos gaúchos é separatista e quer expulsar daqui índios e negros. Nesta lógica, a lógica patife da Rede Brasil Sul, o estado terá 3 capitais: Porto Alegre será a capital administrativa, para o empresariado negociar como comprará nossa infraestrutura a preços baixos. Torres será a capital no verão, para receber turistas brancos. Milícias de brigadianos cercarão Gramado, que será a capital de inverno: uma cidade fortificada onde pobres não entram.

Ao lembrar que logo será setembro, e que milícias de bombachudos gaúchos sairão a dar relhadas em gays que se atreverem a desfilar com a bandeira LGBT, lembro enfim do que fizeram deste estado e da propaganda do McDonald´s: Eu odeio muito tudo isto.”

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Ideologia, Política de Cotas, Políticas Afirmativas, Políticas Sociais, Republicados

A consciência negra, a (in)consciência branca, as cotas raciais e a lei do boi*

Um fato comentado pela minha filha hoje quando eu a levava pro colégio me deixou impressionado e assustado. Ela disse, na sua inocência como se fosse algo positivo, que a professora de geografia (6ª série) falou que a instituição de um dia para chamar a atenção para a consciência negra é uma forma de preconceito. Tenho vontade de conversar com a professora para saber em que ela baseia essa sua ideia. Deve ser nos mesmos argumentos de quem é contrário às cotas raciais na universidade.

Bueno, em primeiro lugar, acho importante lembrar um fato que é esquecido ou deliberadamente desconsiderado por muitas pessoas, que se dizem progressistas e liberais. O Brasil foi o último, isso mesmo, o último país das Américas a abolir o sistema escravista. E isso aconteceu há pouco mais de 100 anos. Teorias criacionistas à parte, a ciência estima que o surgimento de algo parecido com o Homem no nosso planeta se deu há alguns milhões de anos. Alguns milhões de anos!! Antes do patrício Cabral, havia homens andando pelo nosso Brazil. A historiografia oficial diz que o Brasil foi encontrado em 1.500. (Eu aprendi no colégio que o Pedro queria ir pras Índias, buscar pimenta e canela, e uma ventania fez com que ele desse as caras na terra de Santa Cruz. E aprendi também que os portuga eram tudo gente fina, que mandaram os padrecos pra cá pra civilizar os índios, que andavam peladões por aí. Essas cositas a gente aprendia nos idos dos 70’s…) Mas, voltando à vaca fria, diante desses dados, o que são cento e poucos anos? Nada! Pois o tempo em que os negros são “livres” no país da miscigenação e da democracia racial é mais ou menos este: cento e poucos anos. Por pouco não temos entre nós pessoas que viveram na senzala. Mas netos dessa gente têm bastante e certamente até alguns filhos.

Talvez eu não tenha conseguido ser tão claro quanto pretendia no parágrafo anterior, então vou melhorar o que eu disse:

num país de 500 anos, que se insere num contexto em que o homem apareceu há alguns milhões de anos, cento e poucos anos de abolição da escravatura é nada, nada, NADA!

Se considerarmos que “libertação” dos escravos ocorreu de maneira que eles estavam “livres” de um dia para o outro, mas sem trabalho, sem casa, sem vida social, sem nada, dá pra reduzir ainda mais esses 100 anos. Disseram assim pra negrada: “Ó, gente, a partir de amanhã vocês são livres. Vão à luta!” E se considerarmos que a Lei Afonso Arinos, que é a primeira no país que trata da discriminação racial, é de 1951, ou seja, tem pouco mais de meio século, vamos ver que esses 100 anos são, na verdade, cinquenta e poucos. E se pensarmos que ainda hoje é necessário que se crie uma política de cotas para que os pretos possam estudar na universidade, chegaremos à conclusão que a escravidão não acabou.

Quem acha um absurdo que seja instituída oficialmente uma semana da consciência negra e que seja designado um dia específico para esta celebração, casualmente o dia de hoje (isso tem algo a ver com o Zumbi…), certamente não se deu ao trabalho de examinar as condições que levaram à criação dessa efeméride. Dizer que isso é uma forma de preconceito é, no mínimo, uma demonstração inequívoca de preguiça de pensar, para não dizer coisa pior.

Os processos de conscientização dos negros (que não se restringem aos negros, mas a todos aqueles que conseguem enxergar um palmo á frente do nariz) se inserem num quadro muito maior de lutas dos movimentos negros, que buscam o reconhecimento das pessoas de cor preta como cidadãos  efetivos, que têm os mesmo direitos que todos os outros, brancos, amarelos, vermelhos. Nesta semana da consciência negra, estão sendo realizados eventos alusivos ao tema por toda a cidade, desde palestras, debates, passeios pelos quilombos urbanos de Porto Alegre (sim, existem!), shows, festivais etc. Quem tiver interesse em aprofundar um pouco a visão sobre o assunto, pode escolher algum desses eventos, que são na maioria gratuitos. Basta um pouquinho de vontade. Vão descobrir coisas muito legais, como por exemplo o antigo apelido da esquina da Rua da Praia com a Borges, que antes de virar Esquina Democrática era a Esquina do Zaire.

Pergunto aos que se posicionam contra as cotas raciais na universidade e defendem apaixonadamente as suas razões, dizendo que se trata de racismo, protecionismo, assistencialismo e outros ismos, se eles se manifestaram com a mesma veemência durante o tempo de vigência da “Lei do Boi” (bota lá no google), que destinava cotas, é, cotas, para que os filhos dos fazendeiros pudessem entrar na universidade? Olha, procurei bastante pela internet a fim de encontrar alguém que se posicione contrariamente às cotas raciais e que tenha sido coerente, criticando as cotas ruralistas. Não encontrei um, sequer um! E o seu Onyx Lorenzoni já fazia política nessa época. Por que ele(s) não disseram nada? Será por que não existem e nunca existiram fazendeiros negros ou filhos negros de ruralistas que não sejam “bastardos” (lembrando que a Constituição Cidadã baniu esse termo)?

Sei lá, vai entender a lógica dessa gente…

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 20/11/2012.

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