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O Manifesto Surrealista braZileiro

O primeiro debate da eleição presidencial já aconteceu. E não foi entre candidatos à presidência. Gregório Duvivier e Ciro Gomes promoveram, na última semana, uma daquelas coisas que é difícil imaginar acontecendo em outro país fora o braZil.

Tudo começou com o Gregório Duvivier dedicando um episódio do Greg News ao Ciro Gomes. Em pouco mais de meia hora, o programa faz uma radiografia da carreira de Ciro, que começou no movimento estudantil no fim dos anos 70, engajado na luta pela redemocratização do país – isso quem disse foi o próprio Ciro na resposta (ou react) -, mas que teve seu início formal no PDS, sucedâneo da Arena, para não criar problemas para o pai, dito também pelo próprio Ciro. Depois vieram o MDB, o PSDB, o PPS e por aí vai. O roteiro do programa incluiu outros momentos, em que o Cirão esteve envolvido com as suas próprias coisas, fora da política ( ou não…), como o tempo que passou em Harvard e no Beach Park. Beach Park que, para refrescar a memória recente, foi palco de ações pró-bolsonaro no ano passado.

Ciro não gostou do que viu e respondeu pelo seu canal de lives, fazendo o tal do react, que é uma espécie de réplica, em que ele pontuou todas as questões levantadas pelo Greg News. A retórica do Ciro é invejável e a sua capacidade de persuassão é gigantesca. Ele explica tudo, desde os fatos mais controversos, com uma clareza que deixa pouca dúvidas que sempre foi um grande democrata. Mostra que até mesmo a sua passagem pelo PDS foi em nome da democracia, ainda que tenha sido no partido da ditadura durante a ditadura. Eu disse que o homem é bom de conversa. Quem duvida que pode ser convencida/o, veja a live, basta jogar no google.

Disso resultou o debate, que teve vez na sexta-feira passada, e foi uma das coisas mais absurdas que eu já vi no ambiente político brasileiro, tirando, é claro, as bizarrices bolsonaristas e a possibilidade de Eduardo Leite ter renunciado ao governo do estado para concorrer ao… governo do estado. Se aceitarmos que Ciro é um democrata genuíno, e o argumento para isso pode ser a sua participação no ministério do primeiro governo Lula, e que Gregório é um militante da esquerda democrática, e isso pode ser atestado nos episódios do Greg News, teremos necessariamente de concluir que os dois deveriam estar do mesmo lado no combate ao pior mal: o bolsonarismo, que, não custa dizer uma vez mais, é maior do que Bolsonaro. Mas não foi o que se viu. Entre elogios protocolares, inclusa a declaração de voto em Ciro no primeiro turno de 2018, Gregório atacou duramente o político, sugerindo, entre outras coisas, que ele se aproveitou da atividade pública para conseguir uma cargo na diretoria do Beach Park, o que se traduz por corrupção (ativa ou passiva, sei lá), e Ciro, que se disse várias vezes fã de Gregório, atacou duramente o humorista, dizendo, entre outras coisas, que ele produz fakenews encomendadas, o que se traduz por corrupção (passiva ou ativa, sei lá). No meio desse tiroteio, sobrou, claro, para Lula, cujos adjetivos usados por Ciro nem vou declinar, porque basta dizer que ao final do seu react ele trouxe vídeos antigos de Gregório em que ele chama Lula de “brother de empreiteira” e diz que a chapa Dilma/Temer deveria ser cassada pelo TST.

Se somarmos o tempo desses três vídeos, vai dar mais de 4 horas. Acrescendo os comentários gerados e as matérias produzidas na rede sobre o assunto, vamos constatar facilmente que Gregório e Ciro, Ciro e Gregório, fizeram o trabalho sujo semanal do bolsonarismo, que desta vez nem precisou queimar os neurônios (da equipe, por óbvio, porque sabemos que o próprio Bolsonaro não os têm) procurando assunto para as bombas de fumaça. E, pior do que isso, se procurarmos nessas 4 horas e tanto, vamos pescar aqui e ali algum ataquezinho inexpressivo e sem qualquer efeito a Bolsonaro, que deveria ser o alvo de todos e todas que se dizem democratas nesse braZil. Posso imaginar a famiglia reunida em frente à tela, dando gargalhadas com direito à pipoca, guaraná e leite condensado de sobremesa.

A história recente do Brasil mostra um candidato racista, homofóbico, misógino, virulento, apoiador da violência militar, fã de torturadores, sendo eleito presidente porque uma grande parcela do seu eleitorado dizia que ele não cumpriria as promessas de campanha, e, passados quatro anos de um (des)governo trágico, uma esquerda incapaz de se articular minimamente em nome de uma resistência necessária, e cada vez mais enrolada na produção de fatos e notícias contra si própria. Enquanto isso, aquele presidente, que pode ser acusado de tudo menos de estelionato eleitoral, já que cumpriu quase todo o programa, agrega ao seu currículo um mandato genocida, dito pela CPIzza, com 650 mil mortes ligadas diretamente ao negacionismo e à condução assassina da crise, avançando nas intenções de voto de uma população órfã de uma plataforma democrática confiável que possa abraçar.

Segundo algumas pessoas, inclusive Ciro Gomes, Lula criou Bolsonaro; segundo outras, inclusive Gregório Duvivier, Ciro coloca em risco a possibilidade de já na próxima eleição jogar Bolsonaro no esgoto da história. Enquanto essa guerra de narrativas se trava nas redes, e a guerra fratricida confunde o povo, a máquina bolsonarista vai passando, abrindo caminho para a boiada destruir o que ainda resta de um país cada vez mais braZil e menos Brasil, que bem poderia ser retratado em uma tela de Dalí ou num filme de Buñuel.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.osaogoncalo.com.br/politica/86940/presidente-bolsonaro-provoca-witzel-apos-afastamento-do-governador. Acesso em: 25 de maio 2022.

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Foda-se! A culpa é do Camões

No sábado passado ocorreu o 113.074.825º caso isolado de racismo no futebol brasileiro. Talvez algum tenha passado esquecido, então o número pode não ser exato, mas são casos isolados (não esqueçamos que desde os anos de 1930 sabe-se que aqui vivemos no paraíso da democracia racial).

Caralho e macaco têm de semelhança fonética apenas o fato de serem paroxítonas, como a maioria das palavras usadas pelo português brasileiro oficializado: ca-rá-lho – ma-cá-co. Se alguém diz foda-se, caralho, eu posso facilmente entender foda-se, carvalho e até foda-se, baralho, mas se no meio do caminho o caralho virar macaco alguma coisa está errada com o meu aparelho auditivo. Ninguém vai preso por dizer caralho. Pelo menos não só por isso. E aqui começa de verdade o problema, porque também quase ninguém vai preso por chamar outra pessoa de macaco. É sempre em tom de brincadeira ou algo dito no calor do momento. Se a coisa for adiante, a criatividade linguística do povo braZileiro resolve com um divertido mi-mi-mi (mi mi mi, talvez?).

Recordemos alguns fatos, sem precisar viajar no tempo, até a Liga da Canela Preta, por exemplo. Vamos ficar no século 21 mesmo. Antes, porém, aviso que não vou citar nomes, porque o tipo de gente que naturaliza o racismo é o mesmo que adora processar quem se insurge contra ele. Vamos lá.

Certa feita, o presidente de um clube de futebol porto-alegrense se defendeu de acusações de racismo dizendo que a sua empregada era negra; houve também o caso de um dirigente de outro – ênfase na palavra outro – clube de futebol de Porto Alegre que queria substituir o mascote histórico deste clube, por achar que aquela figura, recolhida do mais legítimo folclore brasileiro, fazia alusão ao uso de drogas e passava uma imagem de perdedor – a palavra é esta mesmo, perdedor – por não ter uma perna; recentemente, em reunião do Conselho Deliberativo de um clube de futebol da capital, que não digo ser um ou o outro, um importante conselheiro, que viria a ocupar cargo na gestão, manifestou-se com expressões de forte cunho racista, como “época negra” para falar de um tempo sem vitórias, e por aí afora. Confrontado pelo chat da reunião, que se realizava na modalidade virtual, fez pouco caso, tratando isso como mimimi (aqui uma terceira forma gráfica da expressão).

No plano coletivo, e aqui não se fala em nomes, parte da torcida do Grêmio, tem o hábito de entoar cânticos racistas contra a torcida do Inter. Por seu lado, parte da torcida do Inter entoa cânticos homofóbicos contra a torcida do Grêmio. E sabem como isso historicamente foi tratado pela crônica esportiva gaúcha? Folclore, que, neste caso, a riqueza linguística brasileira aceita como um eufemismo para mimimi.

Em paralelo aos casos de racismo que têm ganhado as manchetes nos últimos tempos, e que graças ao trabalho magnífico de entidades como o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, estão se deslocando do campo do folclore para ganhar um debate mais sério, tivemos recentemente a notícia de um torcedor do Brasil de Pelotas que se viu envolvido em uma briga de torcidas, foi detido, junto com tantos outros, pela Brigada Militar, deixou o estádio em condições físicas muito boas e hoje luta pela vida numa UTI. O que houve no trajeto entre o estádio e o hospital é objeto de investigação, mas ouvi hoje pelo rádio uma entrevista com o advogado da vítima, que categoricamente atribuiu a culpa a policiais militares e disse, ainda, que este torcedor teria falado, quando ainda estava consciente, em alerta às outras pessoas detidas, palavras mais ou menos como “Se me matarem vocês sabem quem foi”.

Esses fatos mostram uma vez mais que a violência, o racismo e a homofobia são naturalizados no futebol. Entretanto, o problema é bem maior, porque a violência, o racismo e a homofobia na sociedade estão não só naturalizados como, de certa forma, institucionalizados pela plataforma nazifascista que assumiu o poder em 2019. Bolsonaro e sua família estimulam esses comportamentos a todo momento e isso faz com que a massa descerebrada de seus seguidores se entenda no direito de fazer o mesmo. E isso acontece com a conivência, quando não com a participação ativa de pessoas que deveriam atuar no lado contrário. Em tempos em que o STF proíbe a criação de dossiês antifascistas ordenados por Bolsonaro – e isso é grave, porque atesta que eles existem e certamente vão continuar a ser produzidos ao arrepio das decisões dos/das neocomunistas da Corte -, já que estamos falando de futebol, ou de coisas que envolvem o futebol, não custa lembrar que homens de escol de um clube da capital se reuniram há uns três anos, para, entre vinhos e cervejas importadas e generosos nacos de filé num restaurante tradicional da cidade, estabelecerem estratégias de perseguição a torcedores e torcedoras deste clube que se declaravam antifascistas e realizavam ações de combate a essas práticas. Esses macartistas continuam dando as cartas no tal clube.

Tudo isso leva a uma constatação: o racismo, a homofobia e tantas outras formas de discriminação estão na estrutura social do país e não é lançando notas e manifestos, ditando decisões judiciais que não terão nenhum efeito prático, enfim, não é jogando para a torcida, para ficar no jargão futebolístico, que as coisas vão mudar. É preciso uma tomada de consciência por parte da sociedade no sentido de que é necessária uma varredura – para a lata do lixo e não para debaixo do tapete – de toda essa escória desumana que comanda o país e é tolerada, senão apoiada, por quem representa a sociedade em outras esferas, como no âmbito do futebol, que, como já se disse, das coisas menos importantes é a mais importante. Se não aproveitarmos os fatos lamentáveis que estão sendo noticiados diariamente para virar o jogo e recolocar o país no lado certo da estrada, vamos homologar a falência da sociedade humana. Ou talvez possamos simplesmente percorrer os escritos de Camões para ver que palavra ele usaria para expressar o mimimi.

Imagem de destaque: acervo do autor.

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O H da História

Acervo do autor.

Quando George Orwell defendeu a ideia de que a história é escrita pelos vencedores, os tempos eram outros. Notícias demoravam dias, semanas ou até meses para chegar aos lugares mais distantes dos grandes centros. Pior do que isso, muitas vezes nem chegavam. E como os grandes conflitos sempre deixavam um povo ou comunidade aniquilado, de fato quem dizia a história eram aqueles que venciam as guerras. Assim se construíram, por exemplo, os heróis do panteão nacional. E depois de consolidada uma narrativa, desfazê-la é tarefa dificílima. No imaginário da Guerra dos Farrapos, mito fundador do gauchismo, Bento Gonçalves é o grande herói do povo. Sabe-se que isso é mera narrativa e que o caudilho não era exatamente o libertário que a historiografia registrou ao longo dos tempos. A própria história da guerra é contada de forma distorcida, já que na prática a cada 20 de setembro o Rio Grande comemora uma epopeia em que a sonhada pátria gaúcha foi derrotada. Isso mostra o poder das elites na propagação de mentiras tomadas como registros históricos fiéis.

Em tempos de informação circulando em tempo real, já não se justifica uma atitude passiva em face da escrita da história. Nós somos responsáveis pelos fatos e devemos também ser pelos seus registros. Neste ano da graça de 2022, estamos na iminência de um desses momentos decisivos para a humanidade. Aproxima-se a hora de decidir como a história do povo brasileiro será contada a partir dos próximos anos e décadas. Não podemos terceirizar a nossa responsabilidade. Vamos deixar que se saiam vencedores os neofascistas que tomaram o poder em 2018? Esses, que são responsáveis pela morte de milhares de pessoas, seja pela negação da crise sanitária e o boicote às medidas de segurança (máscaras, vacinas etc.), seja pelo massacre dos povos originários em nome da expansão do agronegócio, é que contarão a história aos nossos/as descendentes? Seremos covardes a tal ponto?

A candidatura Lula/Alckimin é uma dessas coisas estranhas que o jogo político nos impõe. Outrora inimigos ferrenhos, agora andam de braços dados. Tão apaixonados estão que o tucano arrependido não se furta nem mesmo de fazer piada com o apelido, dado pelo próprio Lula, se não me falha a memória. A solução para o Brasil é lula com chuchu, anda dizendo por aí o Geraldo. Parece uma piada de péssimo gosto, mas qual a alternativa? O Ciro Gomes, que começou a carreira política na esteira da Arena, tem sólidas vinculações com as oligarquias nordestinas e abandonou a luta depois do primeiro turno de 2018? Ou será que a redenção do povo virá pela “terceira via”, esta coalizão de forças conservadoras e até reacionárias, descontentes por terem sido excluídas do butim bolsonarista?

Sim, Alckmin é um representante das elites e deve muitas explicações sobre as políticas do seu antigo partido, a começar pelo escândalo das merendas escolares em São Paulo. Sim, é absolutamente questionável o pragmatismo petista ao se aliar com esse tipo de gente em nome da sustentação de uma campanha e posteriormente de um governo. Lula usa Alckimin para vencer a resistência do empresariado, mas sabemos que alianças dessa natureza podem trazer consequências terríveis. Se de certa maneira funcionou com José Alencar e Lula fez governos razoáveis ao lado do grande capitalista, somos testemunhas do que aconteceu no caso Temer. Tudo isso é fato, mas neste momento, em que temos de decidir como a história vai ser contada, nada parece ser pior do que manter essa tarefa nas mãos do bolsonarismo.

Bolsonaro e seus filhos sintetizam tudo o que pode ter de pior em termos de política e da perversidade do ser humano, que, no caso deles, sequer merecem ser assim chamados. O patriarca e os filhos nº 1, nº 2, nº 3… são seres abjetos, que despertam os piores sentimentos em quem guarda dentro de si algum resquício mínimo de humanidade. Eles não têm respeito por nada nem por ninguém, talvez nem mesmo por eles próprios. São racistas, homofóbicos, xenófobos, divertem-se com o sofrimento alheio, têm torturadores como ídolos. Mas, querem algo ainda pior? O bolsonarismo é muito maior do que os bolsonaros.

Em breve a família bolsonaro vai ser vomitada para o esgoto da história. Quando não forem mais necessários, Jair Messias e seus filhos depravados vão ser descartados como lixo inservível, do tipo que não se aproveita nem para adubo, mas, se não cumprirmos o nosso dever, as pessoas que comandam o sistema continuarão ditando as regras e escrevendo a história. Elas estão por aí o tempo todo e em todos os lugares, às vezes como eminências pardas, entidades etéreas que não se comprometem diretamente com o trabalho sujo, e outras como participantes ativos das plataformas políticas do bolsonarismo, mas que permanecem inatacáveis. Paulo Guedes nunca é incomodado pelo Jornal Nacional, que é o mesmo veículo que não noticia o número absurdo de generais e coronéis que ocupam cargos nos escalões superiores. Esses atuam livremente no (des)governo, mas há ainda os que trabalham nos bastidores. Quem são os financiadores das motociatas de campanha de Bolsonaro? Onde estão os que incendeiam as terras indígenas e dizimam as comunidades tradicionais em nome da expansão de lavouras de soja e de campos de pastagem? Qual o esconderijo dos donos das mineradoras que provocam desastres ambientais que matam centenas de pessoas e acabam com a vida de milhares de outras? Todos esses são os verdadeiros bolsonaristas, mais do que a própria família miliciana.

A história vai sendo escrita dia a dia e a máquina produtora de escândalos diversionistas segue funcionando a pleno vapor. Daniel Silveira já é folha de jornal que embrulha o peixe, como também já foram para o esquecimento o ex-ministro que dispara arma sem querer em aeroporto e aquele outro que queria usar a pandemia para passar a boiada. Algum bolsonarista dirá: “Mas o que o MITO tem a ver com isso? Ele até demitiu os ministros corruptos!” Não vou perder tempo com esse debate proposto pela esquizofrenia bolsonarista. A hora agora é de limpar as lentes propositalmente embaçadas por essas bombas de fumaça e juntar forças para dar um fim à marcha nazifascista do bolsonarismo.

Imagem copiada de: https://belemonline.com.br/tag/bolsonaro-doente-bolsobnaro-internado/. Acesso em: 10 de maio 2022. (editada pelo autor)

Vamos pensar, pois, em nós como aqueles/as que vão escrever os livros de história das próximas gerações. E vamos entender a grandeza da responsabilidade que temos diante de nós daqui até outubro. Lula não é a solução imediata para todos os problemas do braZil, muito menos na desagradável companhia de Alckmin. Mas se queremos pelo menos poder reclamar algo a partir do próximo 1º de janeiro, sem meias palavras, é nele que devemos votar. Mas não é só isso. Devemos eleger parlamentares que tenham comprometimento com os interesses do povo, porque, é bom lembrar, de nada adianta eleger um Executivo bom – ou menos ruim – e deixá-lo à própria sorte nas mãos de um congresso apodrecido como o que temos hoje.

Diante da encruzilhada que se apresenta na estrada, temos de decidir entre ganhar as ruas agora para começar a mudar as coisas ou homologar a plataforma genocida do bolsonarismo. E depois de vencida esta etapa, não vamos acreditar que tudo estará resolvido. Há um caminho longo e este é somente o primeiro passo. Não vamos delegar a Lula e Alckimin a responsabilidade pela construção de uma sociedade mais justa. Isso nunca deu certo. Nos libertemos uma vez do sebastianismo impregnado pela nossa ascendência lusitana e passemos a nos ver como os donos e donas do nosso tempo, da nossa história. Só assim vamos começar a transformar o braZil em Brasil.

Se a História deve ser escrita por quem vence, vamos nós ser as vencedoras e vencedores. A primeira batalha é derrotar os bolsonaros, para, no segundo momento, destruir o bolsonarismo. E isso só será possível com a tomada das ruas, com a atuação forte nas comunidades, com as ações feitas pelo povo e no meio do povo. O voto certo será consequência desse trabalho. Ou é isso ou cumpriremos o ideal alertado por Chico Buarque e Ruy Guerra e nos tornaremos um grande império colonial. Temos agora um livro com uma página em branco aberta. Cabe a nós o que será escrito nela, se será uma história ou a História.

Imagem de destaque copiada de: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/09/elas-sim-ele-nao.html. Acesso em 10 de maio 2022.

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Sem Supremo, sem nada

O xadrez é um jogo de tabuleiro antiquissimo, cuja prática, dizem, torna as pessoas mais inteligentes. Mas xadrez também é o nome que a caserna usa para cadeia, inclusive em documentos oficiais. Jair Bolsonaro não tem inteligência suficiente para jogar xadrez, mas tem currículo de sobra para estar no xadrez. Bolsonaro, porém, é muito menor do que o bolsonarismo e quem está por trás do sistema, esses sim dominam a arte da estratégia do jogo político e, sobretudo, de poder.

A bola da vez é Daniel Silveira. Ao mesmo tempo em que é usado como mais uma das tantas cortinas de fumaça para passar a boiada (Ministério da Educação; Queiroz; cloroquina etc.), o deputado marombado é seríssimo candidato a ser arquivado antes das eleições. Notícias divulgadas nas redes nos últimos dias mostram que o homem era (ou é) um gravador ambulante. Respondeu a diversos processos éticos por gravar e divulgar ilegalmente reuniões do antigo partido, PSL, e há quem diga que ele tem gravações de conversas nada republicanas com o próprio Bolsonaro.

Não é de hoje que os bolsonaros mostram total desprezo pelo regime democrático. Antes da eleição do patriarca, o Filho nº 2 já avisou que não precisaria nem de jipe nem de oficial para fechar o STF, já que com apenas um soldado e um cabo faria o serviço. Ao longo dos últimos três anos e pouco, o presidente e sua família, protegidos por sua escolta institucional privada, protagonizaram dezenas de atos e fatos tão ou mais graves do que os que levaram Alexandre Moraes a aplicar a tornozeleira à perna de Daniel Silveira. Por que nunca foram incomodados para além de alguns editoriais do Jornal Nacional e de uma volumosa coleção de manifestos, cartas abertas e notas de repúdio das instituições, além de ameaças, não mais do que ameaças, dos comandantes do circo midiático apelidado de Comissão Parlamentar de Inquérito e do neocomunista ministro do STF?

Bolsonaro dispõe de advocacia de luxo na PGR. Por mais evidências que existam do cometimento de crimes pelo presidente, inclusive de responsabiliadade, que podem resultar em processo de impeachment, Augusto Aras sempre encontra uma maneira de arquivar qualquer investigação. Entretanto, o caso Daniel Silveira extrapola esse escancarado sistema de blindagem. O processo não precisaria ter ido tão longe, já que Silveira é um dos aliados dos bolsonaros e a sua eleição é fruto da defesa instransigente das práticas da família. Seria, portanto, merecedor de uma mediação do Bolsonaro pai para evitar a condenação. Mas é chegado o momento de começar a dar provas claras de poder. A liberação de Daniel Silveira depois da decisão do colegiado foi um claro recado de Bolsonaro ao Supremo. Recado que já foi passado de diversas formas. O perdão, ou graça, como queiram, concedido ao deputado, ao tempo em que acirra os ânimos da militância, que se alimenta do discurso de ódio e entra em êxtase quando o mito parte para o enfrentamento, também enseja a construção de um fantasioso discurso democrático, pois o argumento usado para embasar o decreto é o da defesa da liberdade de expressão. Nada mal para quem, escondido no direito da liberdade de expressão, defende tortura e torturadores abertamente.

O engavetamento das dezenas (mais de cem) pedidos de impeachment, é a prova de que a Câmara Federal está sob controle, assim como o Senado, cuja CPI(zza), que ameaçou prender e arrebentar, não passou de uma grande comédia de sessão da tarde. Os bolsonaros não temem nada e (ou porque) mantêm as instituições e os poderes da república sob a mira das forças armadas. Notícia de ontem, domingo, dá conta da indisposição entre Luís Roberto Barroso, ministro do STF, e o general Paulo Sérgio Nogueira, ministro da Defesa, em face de declarações de Barroso sobre a campanha difamatória promovida pelas Forças Armadas acerca do processo eleitoral. A história mostra que diante do poderio militar, os poderes constitucionais não fazem nem ameaça de resistência. E, vamos falar a verdade, alguém acredita mesmo que os militares não estão totalmente fechados com Bolsonaro?

Imagem copiada de: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2020/02/ministros-militares-bolsonaro/. Acesso em 25 de abr. 2022.

O bolsonarismo conta, ainda, com a eterna disputa de vaidades da esquerda. O interminável Ciro Gomes, que é de esquerda, mas começou na Arena, mais uma vez dispara sua metralhadora giratória contra tudo e contra todos; Marcelo Freixo deixa o PSol sob o argumento que setores do partido inviabilizam uma articulação das forças do campo democrático, mas se filia ao PSB, que, a julgar pelas alianças e as plataformas que tem defendido nas últimas eleições, de Socialista leva apenas o nome; a esquerda ortodoxa vai lançar candidaturas inexpressivas, que vão ter alguns segundos de propaganda eleitoral para defender a Revolução; o PCdoB deve ir na carona do PT novamente; e, falando em PT, Lula, que concentra as esperanças de uma grande parcela do povo, em vez de ser o articulador dessa grande frente de resistência, parece mais interessado em recuperar tucanos arrependidos.

Há chances assustadoramente grandes de que em 2023 se consolide de forma definitiva a plataforma nazifascista do bolsonarismo, com o prosseguimento do processo chefiado por Paulo Guedes de entrega do país às elites econômicas, cuja única nacionalidade é o dinheiro, que pode ser dólar, euro ou até criptomoeda, se render bem. Já não é tão absurda a hipótese de que isso se dê pela via democrática do voto, que, em verdade, não é tão democrática quanto parece, visto que passa pela pesada máquina de manipulação e fakenews operada com maestria pelo bolsonarismo e que ainda tem a ajuda das próprias forças do campo democrático, incapazes de superar o narcisismo das suas lideranças. Todavia, há o grande risco de tudo acontecer pela sanha golpista das forças armadas, que nasceu, em termos de república, com a sua fundação. E desta feita o golpe viria mesmo sem Supremo, sem nada…

Imagem de destaque copiada de: https://blogdaboitempo.com.br/2021/08/13/o-governo-militar-de-bolsonaro-e-neoliberal/#prettyPhoto/0/. Acesso em: 25 de abr. 2022.

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E agora, José? A festa acabou (O mundo não é tão bão, Sebastião…)

O ponto alto da extensa agenda oficial de comemorações dos 250 anos (também oficiais) de Porto Alegre foi a apresentação da Maria Rita na Redenção. Grande show, com direito a “Ele Não”, “Fora, Bolsonaro” e outras perigosas subversões. Só tenho dúvida se o prefeito Melo ficou à vontade com isso, já que a sua eleição se deu justamente na onda Bolsonaro. Mas a festa acabou e restou uma cidade para governar. Uma cidade conflagrada.

A mídia grande não tem conseguido dar curvas nos registros de violência na periferia apagada. Ainda hoje pela manhã (segunda-feira), ouvi na rádio que já são 24 mortes no que eles estão chamando de guerra de facções. Qualquer pessoa que more, trabalhe ou de alguma maneira se interesse pelo que acontece nos bairros mais pobres da cidade sabe que essa manchete é risível. O número de pessoas que morre em condições violentas nas comunidades periféricas, de bala “perdida”, de doença que já deveria estar erradicada, de fome, por queima de arquivo, é muito maior do que o que chega ao GZH, ou melhor, do que o que entra na pauta das editorias do grupo. Essas pessoas, porém, integram um grupo social ainda menos considerado pela oficialidade, os órgãos de segurança e a grande mídia: o grupo de quem não vira nem estatística. A diferença agora é que as ações estão sendo articuladas de outra forma, com estratégias de divulgação que ainda não tinham sido exploradas em escala mais ampla. Circulam mensagens em grupos de WhatsApp, cuja autenticidade é muitas vezes questionada e até negada, mas que acabam se mostrando de alguma maneira conectadas com os fatos. Qual o interesse de quem está promovendo a violência em publicizar e anunciar as ações antecipadamente, inclusive com detalhes de local e hora? Não estamos diante de um thriller hollywoodiano, em que o serial killer deixa pistas para a investigação por vaidade e para mostrar que é melhor que o policial. Não, aqui é a vida real e os interesses são outros.

Há quatro anos, um inexpressivo parlamentar do Rio de Janeiro saiu da obscuridade de uma série de mandatos em que pouquíssimos projetos foram apresentados e menos ainda foram aprovados, para ocupar a primeira cadeira do Planalto. A agenda econômica do ultraliberalismo estava na ordem do dia da plataforma bolsonarista. Entretanto, fosse só isso, a elite dispensaria o testa de ferro e lançaria o próprio Paulo Guedes, a cabeça por trás do esquema econômico. Bolsonaro não teve nenhuma vergonha de dizer, em campanha, que não entende nada de economia. Mas uma sucessão presidencial envolve muito mais do que conhecimento teórico e técnico acerca do mercado e dos seus reflexos no bolso da população.

Bolsonaro sabia muito bem que a pauta econômica, tratada em nível mais elevado e complexo, interessa diretamente apenas às elites. Entre o povo, as duas demandas mais caras ao eleitorado, especialmente as classes médias, eram/são: fim da corrupção e segurança. O primeiro item já vinha sendo trabalhado há bastante tempo, desde as investigações que se notabilizaram como mensalão (o petista, não o tucano, por óbvio), depois o petrolão, Lava Jato, Dallagnol, Moro e por aí vai. Quanto à questão da pseudo-segurança, nisso, e provavelmente só nisso, Bolsonaro é bom. Distorcer fatos, mascarar a insegurança em segurança, criar um discurso para convencer uma população descrente das instituições e com sede de justiçamento, tudo isso foi tarefa fácil para ele e uma família com trânsito livre no crime, especialmente entre as milícias do Rio de Janeiro.

E o que isso tudo tem a ver com a nossa “guerra porto-alegrense”? Estamos em ano eleitoral. Mais do que isso, estamos diante das eleições (plural, porque há eleições parlamentares) mais importantes da história do Brasil, porque podemos chancelar de forma irreversível o projeto nazifascista, ultraliberal, entreguista e lesa-pátria do bolsonarismo, ou tentar recolocar o país nos trilhos de um sistema de maior democracia e justiça social. Bolsonaro já não tem o escudo da Lava Jato, o que enfraquece muito um dos flancos mais eficientes do programa. É preciso, então, reforçar outras áreas. Recrudescer o discurso da segurança, que passa pelo armamento em massa da população civil, é uma medida fundamental. Com uma população convencida da falência das instituições e da ineficácia dos órgãos de segurança, que não conseguem evitar o fechamento de escolas, os toques de recolher e muito menos garantir que alguém não seja assassinado, por encomenda ou por engano, ao sair ou voltar do trabalho, torna-se muito mais fácil vender o discurso da “justiça com as próprias mãos”. Não se faz justiça com as próprias mãos sem armar a população. Qual o único programa eleitoral que defende abertamente o armamento civil como forma de garantir a segurança privada?

Embora não haja eleições municipais agora, as relações entre as esferas administrativas exercem muita influência nos pleitos. Ter uma base sólida de apoio nos estados e munícipios é essencial para qualquer candidato/a ao Executivo nacional. Dessa forma, o prefeito Sebsatião Melo vai ter de se posicionar, escolher um lado, e, a julgar pelo histórico da sua eleição em 2020, o apoio à reeleição de Jair Bolsonaro é a perspectiva. Com isso, apresentar a uma cidade assolada pela violência e criminalidade a narrativa de uma solução para a segurança é um prato cheio para o bolsonarismo e, por outro lado, pavimenta o caminho para uma repetição do mandato de Melo, que poderá usar a afinidade com o governo central em sua campanha em dois anos, caso o projeto fascista do bolsonarismo seja novamente bem sucedido.

Por isso, com a clareza de que a violência e a criminalidade não começaram em Porto Alegre há 15 dias, é hora de investigar a razão de somente agora, às portas das eleições nacionais, a atenção da grande mídia ter sido atraída para isso. Observar o posicionamento do prefeito Melo a partir da necessidade de dar uma resposta às demandas de segurança da população é uma boa providência e pode indicar o rumo das ações governamentais da prefeitura a partir de 2023. Se alguém pretende perder tempo dizendo que estou misturando as competências, que segurança pública é atribuição do governo estadual, peço que atente para o fato de ser essa uma discussão de políticas públicas em que todos os entes federativos estão implicados, outra não seria a razão da ampliação da atuação das guardas civis, por exemplo.

Sebastião Melo precisará tirar a máscara que usou no baile da cidade e mostrar a sua verdadeira cara, se é a do bolsonarista autoritário que se elegeu na carona do “mito” ou do democrata e conhecedor dos anseios do povo, cuja imagem ele tenta vender em suas andanças pela cidade. Melo será Lula, Bolsonaro ou observará a tudo do alto do muro da terceira via?

*Imagem de destaque copiada de: https://www.brasildefato.com.br/2020/12/10/bolsonaro-inaugura-ponte-em-porto-alegre-e-diz-que-pandemia-esta-no-finalzinho. Acesso em: 12 de abr. 2022.

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O bolsonarismo com Bolsonaro. Ou: a terceira via era a primeira

Sérgio Moro cumpriu um papel fundamental na história recente da política nacional. A sua escolha para comandar a farsa judiciária criada para acabar com o PT (segundo ele próprio) e com a economia nacional (segundo os fatos) não foi aleatória. Alguns nomes para jogar no Google e entender melhor esse processo: Foreign Corrupt Practices Act (FCPA); Clifford Sobel; Karine Moreno-Taxman; DOJ (Departamento de Justiça estadunidense); e, obviamente, os velhos conhecidos FBI, CIA e NSA (National Security Agency). Moro foi treinado nesse sistema e recebeu preciosas lições sobre como destruir a autonomia de um país desarticulando setores estratégicos da economia nacional. Essa atuação o credenciou como figura política importante. Do Judiciário para o Executivo, subvertendo a clássica tripartição dos poderes republicanos, sua nomeação para o Ministério da Justiça seria tratada como escândalo em qualquer país minimamente sério, mas por aqui foi saudada como uma vitória da cruzada anticorrupção. Frustrado o sonho do STF, Moro rompeu com Bolsonaro (não com o bolsonarismo) e tratou de pavimentar o caminho para suceder o presidente que ele próprio ajudou a eleger, com o aval da grande rede. O que a Globo e os think tanks parceiros não contavam é que a inépcia política e a absoluta falta de carisma do comandante da Lava Jato colocariam em risco a arquitetada terceira via.

Imagem copiada de: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-10-23/vaza-jato-a-investigacao-que-obrigou-a-imprensa-brasileira-se-olhar-no-espelho.html. Acesso em: 4 de abr. 2022.

Ao longo dos últimos anos, Bonner e sua turma trabalharam com Luciano Huck, que preferiu não arriscar uma rentável carreira de sucesso na TV em nome de um projeto não muito seguro de poder, e depois jogaram algumas fichas em João Dória e Eduardo Leite, mas tucano é animal de bico grande e por isso não beija outro da mesma família. O autocentrismo do engomadinho paulista e o narcisismo do agora ex-governador gay que não se quer gay ex-governador acabaram com qualquer chance de algum arranjo envolvendo seus nomes. Talvez por isso, para ter uma carta na manga em caso de situação de desespero, o anúncio da pré-candidatura de um obscuro Felipe D’Ávila pelo ultraliberal Partido Novo tenha sido agraciado com generosos minutos no horário nobre do JN do último sábado. Só uma hipótese. Corre por fora a medebista Simone Tebet, mas, como a história mostra, o partido é pouco afeito a disputar o poder na linha de frente, preferindo sempre a via golpista. Não se descarta, então, uma composição com algum nome de peso na cabeça e a filha de Ramez à espreita da possibilidade de ser a próxima vice a ganhar a cadeira no Planalto sem fazer grande esforço.

Por seu turno, a via da oposição a Bolsonaro recebeu uma chamada de alerta de Randolfe Rodrigues, que, não sem uma boa dose de razão, defendeu uma união das forças (por vezes nem tão) democráticas em torno do nome de Lula. Nessa proposição, não são descartados nem mesmo os nomes de Leite, Dória e até de Simone Tebet. Ciro Gomes, obviamente, integra a lista dos apoios requisitados pelo senador, que, com a sua declaração, escancara a real possibilidade – e sobretudo o medo – da reeleição de Bolsonaro. E é justamente aqui que aparece uma peça que por enquanto não se encaixa, mas que pode ser a chave para compreensão do complexo jogo de articulações e manipulações da Globo.

Desde que elegeu e deselegeu Fernando Collor, sabe-se que a Globo não entra na guerra de disputa de poder com exército fraco. Nenhum presidente ou presidenta do período pós-redemocratização chegou ao Planalto sem a subscrição da rede. O ponto de inflexão pode ter sido a reeleição de Dilma, contra a qual se contrapunha o então considerado eleito Aécio Neves. É preciso considerar que Lula e a própria Dilma já tinham mostrado que os governos do PT estavam longe de representar uma ameaça vermelha (José Alencar, Henrique Meirelles, Joaquim Levy são nomes que atuaram no primeiro escalão dos governos petistas), mas mesmo assim a derrota de Aécio no apagar das luzes foi um golpe forte. Tão forte que no mesmo momento já se anunciou um golpe de verdade, com Supremo, com tudo, levado a cabo pela campanha pesada da grande mídia.

Tudo isso leva necessariamente a uma pergunta: como a Globo reage à real possibilidade da reeleição de Bolsonaro? Esse é, talvez, o questionamento a que devemos nos atentar nas próximas semanas. No país das bombas de fumaça, talvez a Globo esteja se mostando muita mais mestra nessa arte do que somos capazes de imaginar. Considerando que a artilharia pesada desferida contra Bolsonaro nos últimos tempos não teve resultado nenhum para além das cartas abertas e notas de repúdio absolutamente inúteis das instituições, alguém tem convicção para afirmar que não pode ser ele mesmo o candidato global? Sei que neste momento pode parecer uma grande teoria conspiratória, mas é seguro descartar a possibilidade da Globo ter desviado a atenção durante todo esse tempo e, com os seus ataques a Bolsonaro, propositalmente ter fortalecido o seu nome, pelo recrudescimento da militância reativa às críticas da rede? Nesse sentido, a demora da entrada de Lula na pré (?) campanha pode ter sido um erro de avaliação. Se for, ainda há tempo de corrigir o rumo, mas é preciso, antes de mais nada, tentar entender o complexo jogo da casa dos marinhos, que passa por não deixar qualquer possibilidade, por mais absurda que pareça, sem atenção. Sem isso, parece que o bolsonarismo vai triunfar. E de novo com o prório Bolsonaro à frente.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.mtdefato.com.br/politica/governo-bolsonaro-aumenta-verba-da-globo-e-diminui-a-de-tvs-religiosas/107062. Acesso em: 4 de abr. 2022.

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Acorda, amor!*

Jair Bolsonaro e Sérgio Moro têm mais coisas em comum do que a compulsão para a mentira e a notada pouca inteligência. Ambos são produtos dos interesses das elites e, justamente pela baixa capacidade de realizar sinapses, foram escolhidos como testas de ferro de projetos escusos. São, em última análise, marionetes de grupos poderosos. Mas os dois têm muita sorte. Quando parece que vão afundar as suas pretensões na autossabotagem involuntária, provocada pela própria estupidez, algum fator externo surge como bote de salvação. Assim foi, por exemplo, com a crise sanitária, que dominou o noticiário por longo tempo. Aqui é preciso dizer que se trata, a bem da verdade, de mais um paradoxo do bolsonarismo, pois ao mesmo tempo em que o morticínio decorrente da necropolítica do (des)governo fez com que a CPI(zza) o declarasse genocida, a pandemia tirou o povo das ruas, o que garantiu a sobrevivência do sistema e da família.

Por seu turno, caso estivéssemos em país minimamente sério e em que as instituições republicanas cumprissem o seu papel e não fossem verdadeiros bunkers que blindam os crimes praticados no poder, Sérgio Moro estaria preso ou, no mínimo, a caminho da cadeia. Que sistema verdadeiramente democrático jogaria panos quentes em um ex-juiz que assume ter comandado, quando no exercício do cargo, uma operação judiciária destinada a acabar com um partido político? Em que país com um sistema judiciário comprometido com os interesses da nação um homem estaria livre depois de ter sido comprovado que se valeu da atuação no cargo para posteriormente atuar, a peso de ouro, na recuperação das empresas que ajudou a quebrar, levando junto a economia do país para o fundo do poço? Este país por certo não é o braZil do bolsonarismo.

Mas, bafejado pela sorte, Moro foi ajudado por um seu correligionário, que tratou de criar um fato capaz de reconstituir a máscara ética do paladino da justiça e da luta anticorrupção. Arthur do Val, deputado estadual e (agora ex) pré-candidato ao governo de São Paulo pelo Podemos, partido pelo qual Sérgio Moro vai pleitear a presidência da república, um playboy que ganhou notoriedade com o sugestivo apelido de Mamãe Falei, e que foi a representação da juventude reacionária (?) que ajudou a eleger Bolsonaro, se encarregou de levantar a bola para que o ex-juiz, ex-ministro e ex-bolsonarista requentasse um discurso enfático de moralidade, dizendo que não aceita as atitudes do colega de partido e que jamais dividiria o palanque com alguém capaz de tamanha atrocidade.


Sérgio é um homem de fé, daqueles que ainda acreditam na humanidade e na premissa de bom caráter das pessoas. Não fosse assim, não fosse por essa quase ingenuidade, ele teria desconfiado muito antes que os bolsonaros não são a boa gente que ele ajudou a botar no poder. Precisou frequentar os gabinetes do planalto por mais de um ano – e ver frustrado o seu plano de ser nomeado ministro vitalício do STF – para ver que Bolsonaro não era o sujeito impoluto e acima de qualquer suspeita que ele imaginou que fosse. Quando descobriu os flertes do presidente e seus filhos com a corrupção, as milícias e o crime organizado, Moro se afastou da família e foi tratar de ganhar a vida honestamente (??) prestando consultoria na área em que atuou por tanto tempo do lado de lá do balcão. Depois, atendendo a um chamado divino (ou talvez da casa dos marinho), não hesitou em rasgar o discurso de que não seria jamais candidato a cargos políticos. Só que, inepto, não honrou a confiança da rede, deu declarações e praticou atos que colocaram em risco o sucesso do plano e fizeram com que a Globo recuasse na investida do seu nome como a “terceira via”. Até que ele, Moro, e os articuladores da sua campanha fossem agraciados pela imbecilidade de Arthur do Val e, como se viu, o autoproclamado comandante da Lava Jato pudesse reassumir a imagem de homem probo e comprometido com os preceitos éticos e morais que devem nortear a conduta de um potencial governante.

E foi assim que a catástrofe verborrágica de um político inexpressivo e de passagem efêmera pelos círculos de poder resolveu o problema da Globo, do Instituto Millenium, da FGV e das instituições organizadas pela elite. Tudo indica que se o próprio Moro não fizer mais nenhuma bobagem, o que é bastante improvável, está restituído ao posto de representante da terceira via e artífice do projeto ultraliberal entreguista que a Globo um dia imaginou que estaria em boas mãos com Jair Bolsonaro, por conta do aval do Chicago Boy, Paulo Guedes, e do próprio Sérgio Moro. Mamãe Falei a um só tempo implodiu a própria trajetória política, reconstituiu o discurso ético e moralista de Sérgio Moro e, de quebra, livrou a Globo e seus asseclas da penosa tarefa de procurar soluções em alternativas inusitadas, como uma parelha de Temer e Leite, que poderia ser a bola da vez.

Enquanto isso tudo acontece e o noticiário da grande rede se dedica em 80% de tempo para cobrir a guerra de Putin, como tem sido chamada, e divide os 20% restantes entre exaltar a recuperação da economia brasileira (em que pesem o desemprego que cresce em proporções geométricas e a inflação galopante) e a miscelânea, talvez seja prudente que Lula deixe de lado momentaneamente o lobby com as elites e os agentes internacionais e se volte para a conversa com o povo, afinal, alheio a tudo isso, o PDT do interminável Ciro Gomes já botou o bloco na rua. Tempos interessantes de articulações políticas pela frente.

*Julinho da Adelaide

Imagem de destaque copiada de: https://pleno.news/brasil/politica-nacional/moro-rompe-com-mamae-falei-apos-audio-sobre-ucranianas.html. Acesso em: 7 de mar. de 2022.

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Guerras: escolha a sua

Os olhos do planeta se voltam para o leste da Europa. A guerra está deflagrada! Mas será que esta com que os noticiários ocupam 80 por cento ou mais do seu tempo é a única? Ainda, será que ela é a mais importante e a que tem efeitos mais imediatos e impactantes na nossa vida? Não quero nem entrar na questão das guerras que acontecem ininterruptamente há décadas em países africanos e que o ocidente libertador solenemente ignora. Nessas também se disputa fornecimento de energia ou exploração de minérios, mas seus protagonistas são de outra cor e não têm os olhos claros, então não despertam interesses humanitários das ONUs, OTANs e outras organizações do mundo livre, civilizado (e civilizador) e democrático. Eu quero mesmo é falar das guerras que travamos todos os dias, nas periferias das nossas cidades, e que eventualmente ocupam a pauta da grande mídia por terem chegado nas zonas nobres. Vamos ver o que há nisso.

Enquanto a guerra de Putin contra o mundo de bem (coletivo de cidadão de bem) se travava no discurso, um homem negro era espancado até a morte na beira de uma praia chique do Rio; em algum outro lugar, outro homem negro era assassinado por um militar que o confundiu com um assaltante; em outra praia, uma mulher é algemada com a sua amiga e levada à delegacia por ter ousado ficar com os peitos desnudos; em um estado do sul, um adolescente negro é suspeito de assaltar um supermercado, mesmo depois de ter confirmado com os seguranças se podia entrar com a sua mochila; em alguma periferia de alguma cidade, uma bala perdida encontra seu alvo no corpo de uma criança negra e um homem negro é fuzilado pela polícia dentro do seu carro, por que suspeitaram que ele tivesse roubado o veículo; uma mulher é brutalmente violentada e espancada pelo marido, uma menina de 5 anos é abusada pelo próprio pai, uma professora de uma escola tradicional é violentamente atacada nas redes sociais por falar em educação sexual com os seus alunos e alunas, um casal gay é atacado por neonazistas evangélicos…Acho que deu, né? Já tem guerra suficiente pra todo mundo por aqui também.

Imagem copiada de: https://www.oantagonista.com/brasil/moro-se-reune-com-temer/. Acesso em: 1º de mar 2022.

Mas vamos à guerra com o maior potencial destrutivo que está em curso. O Jornal Nacional ocupa o espaço que lhe sobra na narrativa antirrussa batendo em Bolsonaro por cima e por baixo. E, no intervalo, o agro é pop! O desaparecido Chicago Boy andou aparecendo na tela, com ótimas projeções para a economia nacional no pós-pandemia (quando será esse pós?). E a editoria do jornal, de forma (nem tão) sutil, começou a delimitar o que era ruim nos governos petistas, passou a ser bom em 2016 e voltou a ser ruim depois que Bolsonaro deixou de cumprir o que fora programado. Os dois anos do governo golpista foram, de acordo com o que se noticia, uma maravilha. E Bolsonaro estragou tudo ao conferir a si próprio uma autonomia inaceitável. Enquanto essa imagem se constrói veladamente no noticioso diário, a plataforma on demand lança uma série que requenta o Caso Celso Daniel.

Sobre isso, é legal uma atenção especial. Um querido amigo, meu compadre, muito antenado nas questões políticas e ávido consumidor de séries, disse que esta é muito bem feita e que afasta qualquer responsabilidade do PT pela morte do ex-prefeito de Santo André, ocorrida há 20 anos. Coisa que a Justiça já havia feito há bastante tempo, diga-se. Pois é sabido que vivemos tempos de imediatismo, em que as pessoas leem manchetes e saem deitando teses redes afora. Textos cuja leitura demande mais de 3 minutos, o tempo determinado para o sucesso comercial de uma canção pop nos anos 60, são descartados de forma arbitrária e implacável, mesmo que indiquem alguma possibilidade de terem sido bem escritos. Nesse mundo frenético, quem tem tempo de assistir com atenção e capacidade crítica a séries documentais? Um número restrito de pessoas, das que assistem séries, e que é ainda mais restrito em relação ao colégio eleitoral das próximas eleições, formado em sua maioria por pessoas que não têm a menor possibilidade de pagar pacotes de streaming, isso quando têm aparelhos de TV. Talvez se o meu compadre fizer um teste com essas pessoas e perguntar o que elas sabem sobre o caso Celso Daniel, muitas delas vão dizer que ele foi vítima de queima de arquivo do PT. E como elas não vão ver a série, muito menos ler bons textos sobre o tema, não saberão a verdade e ficarão com a mensagem subliminar (a Semiologia e a Linguística explicam) do nome Celso Daniel na cabeça. Então os processos mentais vão recorrer a informações prévias, arquivadas em algum lugar da cabeça, que dirão: Lula é o culpado! Está feita a narrativa e, assim, chegamos finalmente à pior das guerras, a das narrativas.

Imagem copiada de: https://marciokenobi.wordpress.com/tag/partido-da-imprensa-golpista/. Acesso em 28 de fev. 2022.

A partir dessa guerra suja de narrativas criadas ao sabor dos interesses das elites, e que incluem doses cavalares de notícias falsas (denominação antiga e em franco desuso para fake news), se delinearão as pesquisas de intenção de votos do Datafolha e outros. Com isso, a chance de permanecermos nessa marcha acelerada rumo à aniquilação das classes desfavorecidas do país cresce assustadoramente. E essa aniquilação tende a ocorrer muito antes do que o potencial bélico russo destrua o mundo civilizado. Por isso, é mais do que hora de pensarmos sobre que guerra devemos centrar nossa atenção. Não que a eventual terceira guerra mundial não tenha importância, longe disso, tem e muita. E é uma tragédia, como (quase) todas as guerras. Mas temos nossas guerras domésticas, que são diárias e nos impactam de forma muito mais imediata. E não são noticiadas. Quando o são, isso ocorre de forma distorcida e manipulada para embotar a visão da realidade e formar uma ideia míope que vai se refletir nas urnas. É hora, então, de segurarmos um pouquinho o desejo quase irrefreável de nos tornarmos autoridades em geopolítica e nos preocuparmos com a nossa realidade doméstica, que se não tem o glamour e o status de uma guerra nuclear, pode colocar em risco a subsistência de milhões de pessoas que vivem neste braZil nazifascista do bolsonarismo.

Imagem copiada de: https://ptnacamara.org.br/portal/2020/09/02/a-corrupcao-da-familia-bolsonaro/. Acesso em 28 de fev. 2022.

Você decide: qual a sua guerra?

*Imagem de destaque copiada de: https://domtotal.com/fato-em-foco/605/2020/07/violencia-policial-blindada-pela-impunidade/. Acesso em: 28 de fev. 2022.

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Top less na areia… dando cadeia

Num dia como hoje em 1980, um juiz, Manuel Moralles, determinou que na cidade de Sorocaba estavam proibidos os beijos. A população respondeu transformando a cidade num grande beijódromo. Quem nos conta isso é o Eduardo Galeano, n’Os Filhos dos Dias.

O fato ocorreu há mais de 40 anos, quando os generais já davam mostras de estarem querendo largar o osso (ou não). Passadas 4 décadas e um processo de reabertura democrática, seguido de alguns golpes e um retrocesso de cores nazifascistas, uma mulher resolve fazer como os homens e praticar top less na praia. Em vez de virar sereia, como uma vez cantou a Marina, ela e a amiga que se solidarizou foram presas. Ah, não, elas não chegaram a ir em cana, então talvez dê pra dizer que elas foram apenas… detidas para averiguação. Mas foram algemadas uma ao pé da outra, afinal, perigosíssimas atentadoras da moral e dos bons costumes, poderiam se evadir dos agentes da lei (lei?) e continuar a praticar as atrocidades obscenas praia afora. Apenas mais uma informação interessante: a despudorada nudista foi namorada da atriz Camila Pitanga.

Que país é esse em que mulheres são algemadas e humilhadas publicamente por simplesmente fazer algo que, como se sabe, os homens fazem sem nenhum tipo de importunação desde sempre? Eu respondo: o país em que a ministra dos direitos humanos e da mulher diz que meninos vestem azul e meninas vestem rosa e, ainda, que a culpa por abusos, violências e estupros de meninas acontece porque elas não usam calcinha. É o mesmo país em que o Ministério Público do Trabalho resolve intensificar as investigações sobre os processos escravizatórios no trabalho informal depois de um homem africano negro ser espancado até a morte por ter ido cobrar diárias pelo trabalho que fazia na beira da praia. É o mesmo país em que outro homem, negro, é claro, é confundido com um ladrão e morto a tiros por um militar, este que deveria ser treinado para o uso de armas e situações de risco. É o mesmo país em que o presidente de uma fundação criada para implementar políticas voltadas para as pessoas negras, ele mesmo um negro, nega o racismo e os efeitos devastadores da escravidão no país. É o mesmo país em que um homem que tem um dos maiores torturadores da história como ídolo maior, diz que a linha dura, aquela mesma que proíbe o beijo, matou pouco, diz que uma presidenta da república tem que deixar o cargo nem que seja vitimada por um câncer, e que uma sua colega de parlamento não merece ser estuprada por ser muito feia, neste país este sujeito, que disse e fez isso e muito mais, chega à presidência da república. Ele que é o patriarca de uma família da qual se diz sejam os filhos criminosos e milicianos e cuja única filha nasceu, segundo o próprio de uma fraquejada sua. Precisa dizer mais?

O povo brasileiro tem algo em torno de 9 meses, mais ou menos o tempo de uma gestação humana, para decidir entre dar aval à marcha protofascista que se instalou no poder a partir do golpe de 2016, ou fazer uma tentativa de virar o jogo, mudando a direção na busca de uma verdadeira redemocratização e um tempo de maior justiça social. E, é bom lembrar, o bolsonarismo não depende de bolsonaro e a Rede Globo já noticiou com indisfarçada satisfação que o ex-presidente golpista Michel Temer está livre da acusação de corrupção que sofria por conta de uma ação infiltrada no meio da Lava Jato, a fim de comprovar que a operação comandada por Sérgio Moro, o juiz, não tinha partido. E por aqui, a sucursal global insere programetes diários o tempo todo exaltando as novas façanhas do governador gay que não se quer gay governador. Ou seja, enquanto pessoas negras são mortas brutalmente por qualquer razão e mulheres são presas, ops, detidas e algemadas por exercerem a mesma liberdade dos homens, uma nova dupla pode estar sendo construída para ser a tão sonhada terceira via da Rede Globo.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/bolsonaro-o-gesto-da-arma-na-marcha-para-jesus-e-a-risada-cafajeste-dos-pastores-por-daniel-trevisan/. Acesso em: 8.2.2022.

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A hora da elite trocar de posto

O bolsonarismo é um paradoxo em si próprio, a começar pela surreal situação de um sujeito inexpressivo, que não teria as mínimas condições de figurar sequer nos escalões inferiores da política nacional, chegar à presidência da república e emprestar o nome para apelidar um sistema (ou algo próximo disso). Em verdade, essa é uma das chaves de compreensão da conjuntura política brasileira hoje. Era preciso exatamente uma figura como Bolsonaro, com ares de novidade, devido à sua própria incompetência, já que em décadas de parlamento nunca fez absolutamente nada digno de nota, mas com toda a carga de conservadorismo capaz de atingir em cheio uma parte da população envolvida no discurso fácil da corrupção petista. Vale o clichê: Bolsonaro era o cara certo na hora certa.

O bolsonarismo – novo paradoxo – é um sistema simples com aparência complexa e por isso mesmo muito perigoso. A base discursiva está naquilo que o professor João Cezar de Castro Rocha chama de sistema de crenças Olavo de Carvalho, que nos anos 1990 surgiu como o porta-voz de uma nova direita, ou melhor, de uma velha direita repaginada, já que a essência da direita é a mesma desde que se pensou nela. Esta direita, que no fim daquela década ocupava o estranho posto de oposição, precisava se rearticular, mas para isso carecia de uma retórica que lhe desse sustentação, porque desde alguns anos já se via que o campo da esquerda transitava com desenvoltura na academia e nos espaços da cultura e, com Lula, um retirante nordestino, trabalhador braçal, começava a ocupar um espaço na população que não frequentava esses ambientes e que se via retratada naquela figura. Era, então, na guerra cultural que estava o caminho, e aí a participação de Olavo de Carvalho passou a ser decisiva.

A produção literária do guru dos bolsonaros está longe de ser desprezível, assim como é um grave equívoco (arrogância?) da elite intelectual carimbá-lo como um ignorante, charlatão etc. O homem era muito inteligente. Não no sentido tradicional da inteligência acadêmica, que estuda a vida toda, analisa tudo em pormenores à luz da ciência, discute os temas mais elevados entre pares; não, nada disso, a inteligência de Olavo de Carvalho era de outra natureza, muito mais pragmática e por isso mesmo próxima do que interessava aos inteligentes do poder, que detinham desde sempre o capital. Olavo muito cedo percebeu que a melhor maneira de vencer uma discussão era não dar ao adversário, transformado em inimigo, a chance de falar. Quantas vezes hoje, mesmo depois da extinção física do guru, se diz que com “bolsominion não tem como debater”? O próprio Bolsonaro venceu uma eleição sem participar de debates. Isso é um tipo de inteligência, e aqui não falo de Bolsonaro, que este é burro como uma porta, tanto que está botando a perder o projeto a que emprestou o nome, mas de Olavo de Carvalho. Tenho convicção que a arrogância e a megalomania de Bolsonaro teriam feito com que ele participasse dos debates em 2018, campo em que inevitavelmente seria trucidado, a começar pelo ilusionista Ciro Gomes, que tem na palavra um dos seus pontos mais fortes. Mas a estratégia armada passava por blindar Bolsonaro do debate sério, uma evidente inspiração olaviana. No palanque tudo bem, porque lá o que menos interessa é a solidez do discurso, e se precisa muito mais de algo próximo de um animador de auditório, um incitador de massas, e esse papel qualquer idiota, até Bolsonaro, era capaz de cumprir. E como a tensão era a tônica da política brasileira desde os protestos de 2013 e do golpe de 2016, com o discurso da corrupção petista consolidado pela Globo, nesse circo de horrores Bolsonaro não precisou sequer de grandes talentos dramáticos teatrais para simular o golpe decisivo na escalada ao poder. A sua atuação no atentado mais fake da história política mundial, quando o Messias foi atacado pelo Bispo, foi digna de um figurante das pornochanchadas do cinema brasileiro setentista. O resto já se sabe como foi.

Traçado esse breve desenho do esqueleto do sistema, é interessante pensar em mais um paradoxo, este que vai interromper a trajetória da famiglia no poder, o que não significa, como tenho repetido de forma enfática, o fim do bolsonarismo. A estrutura rasa do projeto, como se viu, foi dada por Olavo de Carvalho, com base na retórica do ódio (outro termo emprestado ao professor Castro Rocha), que passa pelo requentamento da paranoia do ataque comunista, o qual leva a uma revisitação da doutrina de segurança nacional, que depende das forças armadas etc. e tal. Entretanto, além de aniquilar o inimigo, seja pela impossibilidade do debate ou pela lavagem cerebral em torno da retomada dos valores tradicionais da família, feita em grande parte nos templos neopentecostais, era preciso também atender aos donos do poder no que têm de mais valioso, literalmente, que é o dinheiro. Assim, o bolsonarismo precisava de um anteparo econômico que estivesse habilitado a dar ao mercado, essa entidade etérea que domina o mundo, a segurança para apostar na plataforma protofascista do bolsonarismo. Entra em cena o posto ipiranga, com sólida formação na escola de Chicago e que já fizera o serviço no Chile: Paulo Guedes.

Ao mesmo tempo em que este representa um paradoxo, já que pode decretar o fim da continuidade do governo pelo que de mais sólido ele tinha, Guedes é, para mim, uma incógnita. Ele foi escolhido por quem escolheu Bolsonaro para dar a sustentação teórica e prática à agenda ultraliberal do projeto de governo. E foi blindado pelo governo e pelas suas forças de sustentação, a fim de poder fazer o trabalho sujo com tranquilidade. A Globo, que pelo menos desde o início da pandemia tem sido cruel com os bolsonaros, não disse até hoje uma só palavra contra o superministro, e o próprio Bolsonaro tratou de dizer, na reunião que derrubou o paladino da justiça e ex-potencial “terceira via”, que o único ministro com quem não precisava se preocupar era ele. Só que Guedes não conseguiu avançar quase nada em quase quatro anos além do que Michel Temer tinha conseguido em dois. As grandes reformas que destruíram a economia e a classe trabalhadora brasileira são obra feita no governo golpista de 2016-2018. O Chicago Boy, com todo o arcabouço técnico e doutrinário, não conseguiu levar ao cabo os projetos reformistas iniciados com Temer. E é aqui que as coisas ficam estranhas. Será que com toda a experiência e com a confiança que as elites econômicas lhe deram, Guedes foi incompetente para implementar com eficácia e na integralidade a parte econômica da plataforma (des)governista? Ou será que ele é mais diabo que o próprio diabo e usou os quatro anos de poder, a serem completados em breve, para fazer a sua própria política e engordar de maneira inimaginável as contas nos paraísos fiscais?

Eu tendo, neste momento, a pensar que o posto ipiranga é o grande golpista dessa fantástica equipe de golpistas. Tal como um roteiro pobre da tradição hollywoodiana de filmes destinados ao corujão, o inimigo estava no quarto ao lado e vai ser o único a sair ileso da implosão do desgoverno bolsonaro. Isso explicaria, talvez, o desespero da Globo e seus think tanks na busca por uma alternativa viável ao prosseguimento do projeto de poder que Guedes parece ter tomado para si. É preciso um novo posto, já que o ipiranga falhou. E talvez por aí, e só por aí, se tenham chaves pra entender o flerte de Lula com Alckmin e outras representatividades da direita. Esta última ainda não me parece a melhor estratégia, mas alguma coisa começa a se desanuviar no intricado tabuleiro de xadrez que as próximas eleições apresentam. Vamos manter os olhos vigilantes e a mente aberta às possibilidades mais impensáveis. Nunca se sabe de onde pode sair o próximo golpe.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.apostagem.com.br/2021/03/20/guedes-assume-que-a-politica-economica-do-governo-bolsonaro-fracassou/. Acesso em: 6/2/2022.

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