Cultura, Política, Republicados

Viadutos, homens e homenagens*

VIADUTO PINHEIRO BORDA placa
Viaduto Abdias Nascimento (?)

 

 

O evento trágico que nos privou do convívio do grande Fernandão no último final de semana trouxe algumas discussões à baila. Muitas ideias têm surgido no sentido de como homenagear à altura um homem da grandeza e da importância do eterno Capitão Colorado. Uma delas, a que primeiro foi aventada, talvez, foi rebatizar o viaduto recém inaugurado com o nome dele.

José Pinheiro Borda era o nome que circulava como sendo o do viaduto, inclusive essa informação constava da placa das obras. Confesso que estranhava um pouco batizar com o nome do grande benemérito Colorado uma elevada que passa sobre a rua que já leva o seu nome e que fica ao lado do estádio cujo nome oficial também homenageia este prócer do Clube do Povo.

PINHEIRO BORDA
José Pinheiro Borda

 

ABDIAS NASCIMENTO
Abdias Nascimento

Para meu maior espanto, soube que o nome do viaduto é Abdias Nascimento. Este é o nome de um homem que merece todas as homenagens possíveis, por ter sido um dos maiores defensores da causas ligadas aos negros no país que tanto deve a eles. E é aí é que reside a minha maior estranheza: por que foi tão puco divulgado esse fato? Confirmei isso pela surpresa com que quase todos recebiam a informação do verdadeiro nome do viaduto. Batizar qualquer logradouro ou espaço público com o nome de Abdias Nascimento é evento que merece grande destaque, dada a magnitude do homenageado.

OLIVEIRA SILVEIRA
Oliveira Silveira

Entretanto, conversando ontem com um amigo, negro, surgiu outra questão: não teríamos entre os da terra um nome tão forte para receber essa homenagem? Sem qualquer prejuízo à honraria concedida ao grande líder negro, pensei que poderia, por exemplo, se dar ao viaduto o nome de Oliveira Silveira, gaúcho, poeta, militante da causa negra, enfim, um homem cuja trajetória e história em nada fica devendo ao grande negro paulista.

Não se trata aqui do velho e conhecido bairrismo de que a maioria dos gaúchos é acometido. O interesse é saber as motivações da  homenagem, merecida, a uma pessoa de outro estado, tendo entre as personalidades aqui nascidas nomes que poderiam também figurar, lembrando que este não é um procedimento corriqueiro, basta ver os nomes das ruas da cidade, cujos nomes são de conterrâneos em número bem mais expressivo do que de “estrangeiros”.

Voltando à conversa como meu amigo, surgem algumas pistas. Oliveira Silveira, o Poeta da Consciência Negra, teve uma atuação política extremamente destacada, principalmente na militância junto aos movimentos negros. Todavia, não exerceu nenhuma atividade parlamentar ou qualquer cargo eletivo. Já o nosso grande Abdias foi um dos fundadores de um partido político, elegendo-se deputado e posteriormente senador. Qual partido? Não por acaso o mesmo do atual prefeito de Porto Alegre e do vereador que propôs o projeto para nomear o viaduto…

Insisto que não há aqui nenhuma crítica à homenagem e muito menos ao homenageado, que, repito, é merecedor da eternização de seu nome. Apenas um questionamento sobre a opção por um grande homem nascido fora do Rio Grande do Sul em detrimento de tantos nomes – e eu referi somente um – que aqui têm a sua origem. E, mais do que isso, por que um fato tão significativo para a cultura nacional, teve tão pouca divulgação e repercussão, a ponto de poucas pessoas terem dele conhecimento?

Coisas da política(gem)…

P.S.: caso queiram saber um pouco mais desses grandes brasileiros:

http://www.abdias.com.br/

http://www.oliveirasilveira.blogspot.com.br/

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 11/6/2014.

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Ideologia, Política de Cotas, Políticas Afirmativas, Políticas Sociais, Republicados

A consciência negra, a (in)consciência branca, as cotas raciais e a lei do boi*

Um fato comentado pela minha filha hoje quando eu a levava pro colégio me deixou impressionado e assustado. Ela disse, na sua inocência como se fosse algo positivo, que a professora de geografia (6ª série) falou que a instituição de um dia para chamar a atenção para a consciência negra é uma forma de preconceito. Tenho vontade de conversar com a professora para saber em que ela baseia essa sua ideia. Deve ser nos mesmos argumentos de quem é contrário às cotas raciais na universidade.

Bueno, em primeiro lugar, acho importante lembrar um fato que é esquecido ou deliberadamente desconsiderado por muitas pessoas, que se dizem progressistas e liberais. O Brasil foi o último, isso mesmo, o último país das Américas a abolir o sistema escravista. E isso aconteceu há pouco mais de 100 anos. Teorias criacionistas à parte, a ciência estima que o surgimento de algo parecido com o Homem no nosso planeta se deu há alguns milhões de anos. Alguns milhões de anos!! Antes do patrício Cabral, havia homens andando pelo nosso Brazil. A historiografia oficial diz que o Brasil foi encontrado em 1.500. (Eu aprendi no colégio que o Pedro queria ir pras Índias, buscar pimenta e canela, e uma ventania fez com que ele desse as caras na terra de Santa Cruz. E aprendi também que os portuga eram tudo gente fina, que mandaram os padrecos pra cá pra civilizar os índios, que andavam peladões por aí. Essas cositas a gente aprendia nos idos dos 70’s…) Mas, voltando à vaca fria, diante desses dados, o que são cento e poucos anos? Nada! Pois o tempo em que os negros são “livres” no país da miscigenação e da democracia racial é mais ou menos este: cento e poucos anos. Por pouco não temos entre nós pessoas que viveram na senzala. Mas netos dessa gente têm bastante e certamente até alguns filhos.

Talvez eu não tenha conseguido ser tão claro quanto pretendia no parágrafo anterior, então vou melhorar o que eu disse:

num país de 500 anos, que se insere num contexto em que o homem apareceu há alguns milhões de anos, cento e poucos anos de abolição da escravatura é nada, nada, NADA!

Se considerarmos que “libertação” dos escravos ocorreu de maneira que eles estavam “livres” de um dia para o outro, mas sem trabalho, sem casa, sem vida social, sem nada, dá pra reduzir ainda mais esses 100 anos. Disseram assim pra negrada: “Ó, gente, a partir de amanhã vocês são livres. Vão à luta!” E se considerarmos que a Lei Afonso Arinos, que é a primeira no país que trata da discriminação racial, é de 1951, ou seja, tem pouco mais de meio século, vamos ver que esses 100 anos são, na verdade, cinquenta e poucos. E se pensarmos que ainda hoje é necessário que se crie uma política de cotas para que os pretos possam estudar na universidade, chegaremos à conclusão que a escravidão não acabou.

Quem acha um absurdo que seja instituída oficialmente uma semana da consciência negra e que seja designado um dia específico para esta celebração, casualmente o dia de hoje (isso tem algo a ver com o Zumbi…), certamente não se deu ao trabalho de examinar as condições que levaram à criação dessa efeméride. Dizer que isso é uma forma de preconceito é, no mínimo, uma demonstração inequívoca de preguiça de pensar, para não dizer coisa pior.

Os processos de conscientização dos negros (que não se restringem aos negros, mas a todos aqueles que conseguem enxergar um palmo á frente do nariz) se inserem num quadro muito maior de lutas dos movimentos negros, que buscam o reconhecimento das pessoas de cor preta como cidadãos  efetivos, que têm os mesmo direitos que todos os outros, brancos, amarelos, vermelhos. Nesta semana da consciência negra, estão sendo realizados eventos alusivos ao tema por toda a cidade, desde palestras, debates, passeios pelos quilombos urbanos de Porto Alegre (sim, existem!), shows, festivais etc. Quem tiver interesse em aprofundar um pouco a visão sobre o assunto, pode escolher algum desses eventos, que são na maioria gratuitos. Basta um pouquinho de vontade. Vão descobrir coisas muito legais, como por exemplo o antigo apelido da esquina da Rua da Praia com a Borges, que antes de virar Esquina Democrática era a Esquina do Zaire.

Pergunto aos que se posicionam contra as cotas raciais na universidade e defendem apaixonadamente as suas razões, dizendo que se trata de racismo, protecionismo, assistencialismo e outros ismos, se eles se manifestaram com a mesma veemência durante o tempo de vigência da “Lei do Boi” (bota lá no google), que destinava cotas, é, cotas, para que os filhos dos fazendeiros pudessem entrar na universidade? Olha, procurei bastante pela internet a fim de encontrar alguém que se posicione contrariamente às cotas raciais e que tenha sido coerente, criticando as cotas ruralistas. Não encontrei um, sequer um! E o seu Onyx Lorenzoni já fazia política nessa época. Por que ele(s) não disseram nada? Será por que não existem e nunca existiram fazendeiros negros ou filhos negros de ruralistas que não sejam “bastardos” (lembrando que a Constituição Cidadã baniu esse termo)?

Sei lá, vai entender a lógica dessa gente…

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 20/11/2012.

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