bolsonarismo, Eleições, Política

Acorda, amor!*

Jair Bolsonaro e Sérgio Moro têm mais coisas em comum do que a compulsão para a mentira e a notada pouca inteligência. Ambos são produtos dos interesses das elites e, justamente pela baixa capacidade de realizar sinapses, foram escolhidos como testas de ferro de projetos escusos. São, em última análise, marionetes de grupos poderosos. Mas os dois têm muita sorte. Quando parece que vão afundar as suas pretensões na autossabotagem involuntária, provocada pela própria estupidez, algum fator externo surge como bote de salvação. Assim foi, por exemplo, com a crise sanitária, que dominou o noticiário por longo tempo. Aqui é preciso dizer que se trata, a bem da verdade, de mais um paradoxo do bolsonarismo, pois ao mesmo tempo em que o morticínio decorrente da necropolítica do (des)governo fez com que a CPI(zza) o declarasse genocida, a pandemia tirou o povo das ruas, o que garantiu a sobrevivência do sistema e da família.

Por seu turno, caso estivéssemos em país minimamente sério e em que as instituições republicanas cumprissem o seu papel e não fossem verdadeiros bunkers que blindam os crimes praticados no poder, Sérgio Moro estaria preso ou, no mínimo, a caminho da cadeia. Que sistema verdadeiramente democrático jogaria panos quentes em um ex-juiz que assume ter comandado, quando no exercício do cargo, uma operação judiciária destinada a acabar com um partido político? Em que país com um sistema judiciário comprometido com os interesses da nação um homem estaria livre depois de ter sido comprovado que se valeu da atuação no cargo para posteriormente atuar, a peso de ouro, na recuperação das empresas que ajudou a quebrar, levando junto a economia do país para o fundo do poço? Este país por certo não é o braZil do bolsonarismo.

Mas, bafejado pela sorte, Moro foi ajudado por um seu correligionário, que tratou de criar um fato capaz de reconstituir a máscara ética do paladino da justiça e da luta anticorrupção. Arthur do Val, deputado estadual e (agora ex) pré-candidato ao governo de São Paulo pelo Podemos, partido pelo qual Sérgio Moro vai pleitear a presidência da república, um playboy que ganhou notoriedade com o sugestivo apelido de Mamãe Falei, e que foi a representação da juventude reacionária (?) que ajudou a eleger Bolsonaro, se encarregou de levantar a bola para que o ex-juiz, ex-ministro e ex-bolsonarista requentasse um discurso enfático de moralidade, dizendo que não aceita as atitudes do colega de partido e que jamais dividiria o palanque com alguém capaz de tamanha atrocidade.


Sérgio é um homem de fé, daqueles que ainda acreditam na humanidade e na premissa de bom caráter das pessoas. Não fosse assim, não fosse por essa quase ingenuidade, ele teria desconfiado muito antes que os bolsonaros não são a boa gente que ele ajudou a botar no poder. Precisou frequentar os gabinetes do planalto por mais de um ano – e ver frustrado o seu plano de ser nomeado ministro vitalício do STF – para ver que Bolsonaro não era o sujeito impoluto e acima de qualquer suspeita que ele imaginou que fosse. Quando descobriu os flertes do presidente e seus filhos com a corrupção, as milícias e o crime organizado, Moro se afastou da família e foi tratar de ganhar a vida honestamente (??) prestando consultoria na área em que atuou por tanto tempo do lado de lá do balcão. Depois, atendendo a um chamado divino (ou talvez da casa dos marinho), não hesitou em rasgar o discurso de que não seria jamais candidato a cargos políticos. Só que, inepto, não honrou a confiança da rede, deu declarações e praticou atos que colocaram em risco o sucesso do plano e fizeram com que a Globo recuasse na investida do seu nome como a “terceira via”. Até que ele, Moro, e os articuladores da sua campanha fossem agraciados pela imbecilidade de Arthur do Val e, como se viu, o autoproclamado comandante da Lava Jato pudesse reassumir a imagem de homem probo e comprometido com os preceitos éticos e morais que devem nortear a conduta de um potencial governante.

E foi assim que a catástrofe verborrágica de um político inexpressivo e de passagem efêmera pelos círculos de poder resolveu o problema da Globo, do Instituto Millenium, da FGV e das instituições organizadas pela elite. Tudo indica que se o próprio Moro não fizer mais nenhuma bobagem, o que é bastante improvável, está restituído ao posto de representante da terceira via e artífice do projeto ultraliberal entreguista que a Globo um dia imaginou que estaria em boas mãos com Jair Bolsonaro, por conta do aval do Chicago Boy, Paulo Guedes, e do próprio Sérgio Moro. Mamãe Falei a um só tempo implodiu a própria trajetória política, reconstituiu o discurso ético e moralista de Sérgio Moro e, de quebra, livrou a Globo e seus asseclas da penosa tarefa de procurar soluções em alternativas inusitadas, como uma parelha de Temer e Leite, que poderia ser a bola da vez.

Enquanto isso tudo acontece e o noticiário da grande rede se dedica em 80% de tempo para cobrir a guerra de Putin, como tem sido chamada, e divide os 20% restantes entre exaltar a recuperação da economia brasileira (em que pesem o desemprego que cresce em proporções geométricas e a inflação galopante) e a miscelânea, talvez seja prudente que Lula deixe de lado momentaneamente o lobby com as elites e os agentes internacionais e se volte para a conversa com o povo, afinal, alheio a tudo isso, o PDT do interminável Ciro Gomes já botou o bloco na rua. Tempos interessantes de articulações políticas pela frente.

*Julinho da Adelaide

Imagem de destaque copiada de: https://pleno.news/brasil/politica-nacional/moro-rompe-com-mamae-falei-apos-audio-sobre-ucranianas.html. Acesso em: 7 de mar. de 2022.

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bolsonarismo, Política

Guerras: escolha a sua

Os olhos do planeta se voltam para o leste da Europa. A guerra está deflagrada! Mas será que esta com que os noticiários ocupam 80 por cento ou mais do seu tempo é a única? Ainda, será que ela é a mais importante e a que tem efeitos mais imediatos e impactantes na nossa vida? Não quero nem entrar na questão das guerras que acontecem ininterruptamente há décadas em países africanos e que o ocidente libertador solenemente ignora. Nessas também se disputa fornecimento de energia ou exploração de minérios, mas seus protagonistas são de outra cor e não têm os olhos claros, então não despertam interesses humanitários das ONUs, OTANs e outras organizações do mundo livre, civilizado (e civilizador) e democrático. Eu quero mesmo é falar das guerras que travamos todos os dias, nas periferias das nossas cidades, e que eventualmente ocupam a pauta da grande mídia por terem chegado nas zonas nobres. Vamos ver o que há nisso.

Enquanto a guerra de Putin contra o mundo de bem (coletivo de cidadão de bem) se travava no discurso, um homem negro era espancado até a morte na beira de uma praia chique do Rio; em algum outro lugar, outro homem negro era assassinado por um militar que o confundiu com um assaltante; em outra praia, uma mulher é algemada com a sua amiga e levada à delegacia por ter ousado ficar com os peitos desnudos; em um estado do sul, um adolescente negro é suspeito de assaltar um supermercado, mesmo depois de ter confirmado com os seguranças se podia entrar com a sua mochila; em alguma periferia de alguma cidade, uma bala perdida encontra seu alvo no corpo de uma criança negra e um homem negro é fuzilado pela polícia dentro do seu carro, por que suspeitaram que ele tivesse roubado o veículo; uma mulher é brutalmente violentada e espancada pelo marido, uma menina de 5 anos é abusada pelo próprio pai, uma professora de uma escola tradicional é violentamente atacada nas redes sociais por falar em educação sexual com os seus alunos e alunas, um casal gay é atacado por neonazistas evangélicos…Acho que deu, né? Já tem guerra suficiente pra todo mundo por aqui também.

Imagem copiada de: https://www.oantagonista.com/brasil/moro-se-reune-com-temer/. Acesso em: 1º de mar 2022.

Mas vamos à guerra com o maior potencial destrutivo que está em curso. O Jornal Nacional ocupa o espaço que lhe sobra na narrativa antirrussa batendo em Bolsonaro por cima e por baixo. E, no intervalo, o agro é pop! O desaparecido Chicago Boy andou aparecendo na tela, com ótimas projeções para a economia nacional no pós-pandemia (quando será esse pós?). E a editoria do jornal, de forma (nem tão) sutil, começou a delimitar o que era ruim nos governos petistas, passou a ser bom em 2016 e voltou a ser ruim depois que Bolsonaro deixou de cumprir o que fora programado. Os dois anos do governo golpista foram, de acordo com o que se noticia, uma maravilha. E Bolsonaro estragou tudo ao conferir a si próprio uma autonomia inaceitável. Enquanto essa imagem se constrói veladamente no noticioso diário, a plataforma on demand lança uma série que requenta o Caso Celso Daniel.

Sobre isso, é legal uma atenção especial. Um querido amigo, meu compadre, muito antenado nas questões políticas e ávido consumidor de séries, disse que esta é muito bem feita e que afasta qualquer responsabilidade do PT pela morte do ex-prefeito de Santo André, ocorrida há 20 anos. Coisa que a Justiça já havia feito há bastante tempo, diga-se. Pois é sabido que vivemos tempos de imediatismo, em que as pessoas leem manchetes e saem deitando teses redes afora. Textos cuja leitura demande mais de 3 minutos, o tempo determinado para o sucesso comercial de uma canção pop nos anos 60, são descartados de forma arbitrária e implacável, mesmo que indiquem alguma possibilidade de terem sido bem escritos. Nesse mundo frenético, quem tem tempo de assistir com atenção e capacidade crítica a séries documentais? Um número restrito de pessoas, das que assistem séries, e que é ainda mais restrito em relação ao colégio eleitoral das próximas eleições, formado em sua maioria por pessoas que não têm a menor possibilidade de pagar pacotes de streaming, isso quando têm aparelhos de TV. Talvez se o meu compadre fizer um teste com essas pessoas e perguntar o que elas sabem sobre o caso Celso Daniel, muitas delas vão dizer que ele foi vítima de queima de arquivo do PT. E como elas não vão ver a série, muito menos ler bons textos sobre o tema, não saberão a verdade e ficarão com a mensagem subliminar (a Semiologia e a Linguística explicam) do nome Celso Daniel na cabeça. Então os processos mentais vão recorrer a informações prévias, arquivadas em algum lugar da cabeça, que dirão: Lula é o culpado! Está feita a narrativa e, assim, chegamos finalmente à pior das guerras, a das narrativas.

Imagem copiada de: https://marciokenobi.wordpress.com/tag/partido-da-imprensa-golpista/. Acesso em 28 de fev. 2022.

A partir dessa guerra suja de narrativas criadas ao sabor dos interesses das elites, e que incluem doses cavalares de notícias falsas (denominação antiga e em franco desuso para fake news), se delinearão as pesquisas de intenção de votos do Datafolha e outros. Com isso, a chance de permanecermos nessa marcha acelerada rumo à aniquilação das classes desfavorecidas do país cresce assustadoramente. E essa aniquilação tende a ocorrer muito antes do que o potencial bélico russo destrua o mundo civilizado. Por isso, é mais do que hora de pensarmos sobre que guerra devemos centrar nossa atenção. Não que a eventual terceira guerra mundial não tenha importância, longe disso, tem e muita. E é uma tragédia, como (quase) todas as guerras. Mas temos nossas guerras domésticas, que são diárias e nos impactam de forma muito mais imediata. E não são noticiadas. Quando o são, isso ocorre de forma distorcida e manipulada para embotar a visão da realidade e formar uma ideia míope que vai se refletir nas urnas. É hora, então, de segurarmos um pouquinho o desejo quase irrefreável de nos tornarmos autoridades em geopolítica e nos preocuparmos com a nossa realidade doméstica, que se não tem o glamour e o status de uma guerra nuclear, pode colocar em risco a subsistência de milhões de pessoas que vivem neste braZil nazifascista do bolsonarismo.

Imagem copiada de: https://ptnacamara.org.br/portal/2020/09/02/a-corrupcao-da-familia-bolsonaro/. Acesso em 28 de fev. 2022.

Você decide: qual a sua guerra?

*Imagem de destaque copiada de: https://domtotal.com/fato-em-foco/605/2020/07/violencia-policial-blindada-pela-impunidade/. Acesso em: 28 de fev. 2022.

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bolsonarismo, Cultura, Direitos Humanos, Política

Top less na areia… dando cadeia

Num dia como hoje em 1980, um juiz, Manuel Moralles, determinou que na cidade de Sorocaba estavam proibidos os beijos. A população respondeu transformando a cidade num grande beijódromo. Quem nos conta isso é o Eduardo Galeano, n’Os Filhos dos Dias.

O fato ocorreu há mais de 40 anos, quando os generais já davam mostras de estarem querendo largar o osso (ou não). Passadas 4 décadas e um processo de reabertura democrática, seguido de alguns golpes e um retrocesso de cores nazifascistas, uma mulher resolve fazer como os homens e praticar top less na praia. Em vez de virar sereia, como uma vez cantou a Marina, ela e a amiga que se solidarizou foram presas. Ah, não, elas não chegaram a ir em cana, então talvez dê pra dizer que elas foram apenas… detidas para averiguação. Mas foram algemadas uma ao pé da outra, afinal, perigosíssimas atentadoras da moral e dos bons costumes, poderiam se evadir dos agentes da lei (lei?) e continuar a praticar as atrocidades obscenas praia afora. Apenas mais uma informação interessante: a despudorada nudista foi namorada da atriz Camila Pitanga.

Que país é esse em que mulheres são algemadas e humilhadas publicamente por simplesmente fazer algo que, como se sabe, os homens fazem sem nenhum tipo de importunação desde sempre? Eu respondo: o país em que a ministra dos direitos humanos e da mulher diz que meninos vestem azul e meninas vestem rosa e, ainda, que a culpa por abusos, violências e estupros de meninas acontece porque elas não usam calcinha. É o mesmo país em que o Ministério Público do Trabalho resolve intensificar as investigações sobre os processos escravizatórios no trabalho informal depois de um homem africano negro ser espancado até a morte por ter ido cobrar diárias pelo trabalho que fazia na beira da praia. É o mesmo país em que outro homem, negro, é claro, é confundido com um ladrão e morto a tiros por um militar, este que deveria ser treinado para o uso de armas e situações de risco. É o mesmo país em que o presidente de uma fundação criada para implementar políticas voltadas para as pessoas negras, ele mesmo um negro, nega o racismo e os efeitos devastadores da escravidão no país. É o mesmo país em que um homem que tem um dos maiores torturadores da história como ídolo maior, diz que a linha dura, aquela mesma que proíbe o beijo, matou pouco, diz que uma presidenta da república tem que deixar o cargo nem que seja vitimada por um câncer, e que uma sua colega de parlamento não merece ser estuprada por ser muito feia, neste país este sujeito, que disse e fez isso e muito mais, chega à presidência da república. Ele que é o patriarca de uma família da qual se diz sejam os filhos criminosos e milicianos e cuja única filha nasceu, segundo o próprio de uma fraquejada sua. Precisa dizer mais?

O povo brasileiro tem algo em torno de 9 meses, mais ou menos o tempo de uma gestação humana, para decidir entre dar aval à marcha protofascista que se instalou no poder a partir do golpe de 2016, ou fazer uma tentativa de virar o jogo, mudando a direção na busca de uma verdadeira redemocratização e um tempo de maior justiça social. E, é bom lembrar, o bolsonarismo não depende de bolsonaro e a Rede Globo já noticiou com indisfarçada satisfação que o ex-presidente golpista Michel Temer está livre da acusação de corrupção que sofria por conta de uma ação infiltrada no meio da Lava Jato, a fim de comprovar que a operação comandada por Sérgio Moro, o juiz, não tinha partido. E por aqui, a sucursal global insere programetes diários o tempo todo exaltando as novas façanhas do governador gay que não se quer gay governador. Ou seja, enquanto pessoas negras são mortas brutalmente por qualquer razão e mulheres são presas, ops, detidas e algemadas por exercerem a mesma liberdade dos homens, uma nova dupla pode estar sendo construída para ser a tão sonhada terceira via da Rede Globo.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/bolsonaro-o-gesto-da-arma-na-marcha-para-jesus-e-a-risada-cafajeste-dos-pastores-por-daniel-trevisan/. Acesso em: 8.2.2022.

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bolsonarismo, Política

A hora da elite trocar de posto

O bolsonarismo é um paradoxo em si próprio, a começar pela surreal situação de um sujeito inexpressivo, que não teria as mínimas condições de figurar sequer nos escalões inferiores da política nacional, chegar à presidência da república e emprestar o nome para apelidar um sistema (ou algo próximo disso). Em verdade, essa é uma das chaves de compreensão da conjuntura política brasileira hoje. Era preciso exatamente uma figura como Bolsonaro, com ares de novidade, devido à sua própria incompetência, já que em décadas de parlamento nunca fez absolutamente nada digno de nota, mas com toda a carga de conservadorismo capaz de atingir em cheio uma parte da população envolvida no discurso fácil da corrupção petista. Vale o clichê: Bolsonaro era o cara certo na hora certa.

O bolsonarismo – novo paradoxo – é um sistema simples com aparência complexa e por isso mesmo muito perigoso. A base discursiva está naquilo que o professor João Cezar de Castro Rocha chama de sistema de crenças Olavo de Carvalho, que nos anos 1990 surgiu como o porta-voz de uma nova direita, ou melhor, de uma velha direita repaginada, já que a essência da direita é a mesma desde que se pensou nela. Esta direita, que no fim daquela década ocupava o estranho posto de oposição, precisava se rearticular, mas para isso carecia de uma retórica que lhe desse sustentação, porque desde alguns anos já se via que o campo da esquerda transitava com desenvoltura na academia e nos espaços da cultura e, com Lula, um retirante nordestino, trabalhador braçal, começava a ocupar um espaço na população que não frequentava esses ambientes e que se via retratada naquela figura. Era, então, na guerra cultural que estava o caminho, e aí a participação de Olavo de Carvalho passou a ser decisiva.

A produção literária do guru dos bolsonaros está longe de ser desprezível, assim como é um grave equívoco (arrogância?) da elite intelectual carimbá-lo como um ignorante, charlatão etc. O homem era muito inteligente. Não no sentido tradicional da inteligência acadêmica, que estuda a vida toda, analisa tudo em pormenores à luz da ciência, discute os temas mais elevados entre pares; não, nada disso, a inteligência de Olavo de Carvalho era de outra natureza, muito mais pragmática e por isso mesmo próxima do que interessava aos inteligentes do poder, que detinham desde sempre o capital. Olavo muito cedo percebeu que a melhor maneira de vencer uma discussão era não dar ao adversário, transformado em inimigo, a chance de falar. Quantas vezes hoje, mesmo depois da extinção física do guru, se diz que com “bolsominion não tem como debater”? O próprio Bolsonaro venceu uma eleição sem participar de debates. Isso é um tipo de inteligência, e aqui não falo de Bolsonaro, que este é burro como uma porta, tanto que está botando a perder o projeto a que emprestou o nome, mas de Olavo de Carvalho. Tenho convicção que a arrogância e a megalomania de Bolsonaro teriam feito com que ele participasse dos debates em 2018, campo em que inevitavelmente seria trucidado, a começar pelo ilusionista Ciro Gomes, que tem na palavra um dos seus pontos mais fortes. Mas a estratégia armada passava por blindar Bolsonaro do debate sério, uma evidente inspiração olaviana. No palanque tudo bem, porque lá o que menos interessa é a solidez do discurso, e se precisa muito mais de algo próximo de um animador de auditório, um incitador de massas, e esse papel qualquer idiota, até Bolsonaro, era capaz de cumprir. E como a tensão era a tônica da política brasileira desde os protestos de 2013 e do golpe de 2016, com o discurso da corrupção petista consolidado pela Globo, nesse circo de horrores Bolsonaro não precisou sequer de grandes talentos dramáticos teatrais para simular o golpe decisivo na escalada ao poder. A sua atuação no atentado mais fake da história política mundial, quando o Messias foi atacado pelo Bispo, foi digna de um figurante das pornochanchadas do cinema brasileiro setentista. O resto já se sabe como foi.

Traçado esse breve desenho do esqueleto do sistema, é interessante pensar em mais um paradoxo, este que vai interromper a trajetória da famiglia no poder, o que não significa, como tenho repetido de forma enfática, o fim do bolsonarismo. A estrutura rasa do projeto, como se viu, foi dada por Olavo de Carvalho, com base na retórica do ódio (outro termo emprestado ao professor Castro Rocha), que passa pelo requentamento da paranoia do ataque comunista, o qual leva a uma revisitação da doutrina de segurança nacional, que depende das forças armadas etc. e tal. Entretanto, além de aniquilar o inimigo, seja pela impossibilidade do debate ou pela lavagem cerebral em torno da retomada dos valores tradicionais da família, feita em grande parte nos templos neopentecostais, era preciso também atender aos donos do poder no que têm de mais valioso, literalmente, que é o dinheiro. Assim, o bolsonarismo precisava de um anteparo econômico que estivesse habilitado a dar ao mercado, essa entidade etérea que domina o mundo, a segurança para apostar na plataforma protofascista do bolsonarismo. Entra em cena o posto ipiranga, com sólida formação na escola de Chicago e que já fizera o serviço no Chile: Paulo Guedes.

Ao mesmo tempo em que este representa um paradoxo, já que pode decretar o fim da continuidade do governo pelo que de mais sólido ele tinha, Guedes é, para mim, uma incógnita. Ele foi escolhido por quem escolheu Bolsonaro para dar a sustentação teórica e prática à agenda ultraliberal do projeto de governo. E foi blindado pelo governo e pelas suas forças de sustentação, a fim de poder fazer o trabalho sujo com tranquilidade. A Globo, que pelo menos desde o início da pandemia tem sido cruel com os bolsonaros, não disse até hoje uma só palavra contra o superministro, e o próprio Bolsonaro tratou de dizer, na reunião que derrubou o paladino da justiça e ex-potencial “terceira via”, que o único ministro com quem não precisava se preocupar era ele. Só que Guedes não conseguiu avançar quase nada em quase quatro anos além do que Michel Temer tinha conseguido em dois. As grandes reformas que destruíram a economia e a classe trabalhadora brasileira são obra feita no governo golpista de 2016-2018. O Chicago Boy, com todo o arcabouço técnico e doutrinário, não conseguiu levar ao cabo os projetos reformistas iniciados com Temer. E é aqui que as coisas ficam estranhas. Será que com toda a experiência e com a confiança que as elites econômicas lhe deram, Guedes foi incompetente para implementar com eficácia e na integralidade a parte econômica da plataforma (des)governista? Ou será que ele é mais diabo que o próprio diabo e usou os quatro anos de poder, a serem completados em breve, para fazer a sua própria política e engordar de maneira inimaginável as contas nos paraísos fiscais?

Eu tendo, neste momento, a pensar que o posto ipiranga é o grande golpista dessa fantástica equipe de golpistas. Tal como um roteiro pobre da tradição hollywoodiana de filmes destinados ao corujão, o inimigo estava no quarto ao lado e vai ser o único a sair ileso da implosão do desgoverno bolsonaro. Isso explicaria, talvez, o desespero da Globo e seus think tanks na busca por uma alternativa viável ao prosseguimento do projeto de poder que Guedes parece ter tomado para si. É preciso um novo posto, já que o ipiranga falhou. E talvez por aí, e só por aí, se tenham chaves pra entender o flerte de Lula com Alckmin e outras representatividades da direita. Esta última ainda não me parece a melhor estratégia, mas alguma coisa começa a se desanuviar no intricado tabuleiro de xadrez que as próximas eleições apresentam. Vamos manter os olhos vigilantes e a mente aberta às possibilidades mais impensáveis. Nunca se sabe de onde pode sair o próximo golpe.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.apostagem.com.br/2021/03/20/guedes-assume-que-a-politica-economica-do-governo-bolsonaro-fracassou/. Acesso em: 6/2/2022.

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bolsonarismo, Mídia, Política

Jovens conservadores e o amor que diz pouca coisa: os paradoxos da política braZileira

“Dormia a nossa pátria, mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações”. Quando Chico Buarque escreveu esse verso, não foi para Bolsonaro. Bolsonaro não existia.

“Se um só traidor tem mais poder que um povo, que esse povo não esqueça facilmente”. Quando Raul Ellwanger verteu essa estrofe para o português, não pensava em Bolsonaro. Também não pensava em Bolsonaro León Gieco, quando escreveu o verso original: “Si un traidor puede más que unos cuantos, que esos cuantos no lo olviden fácilmente”. Existiam Jorge Videla, Augusto Pinochet, Ernesto Geisel e João Figueiredo, mas Bolsonaro não existia.

A gente sabe de trás pra frente o que acontecia nos países da América Latina na época em que essas canções foram escritas. Por que, então, temos que passar por coisas desse tipo de novo? Estaria certa a definição de Marx sobre a história e sua repetição? Os novos generais seriam apenas versões renovadas ou farsantes, como os napoleões de Marx revivendo o Brumário? (Em verdade, muitos deles nem são tão novos e já andavam por aí na época daqueles outros, mas chamemos de novos em termos de protagonismo.)

Dia desses revi o documentário “Intervenção – Amor não quer dizer grande coisa”, de Tales Ab’Sáber, Rubens Rewald e Gustavo Aranda (disponível aqui: https://vimeo.com/264475519). O filme abre com um jovem Kim Kataguiri anunciando uma fala de Reinaldo Azevedo, que trata sobre o chamado controle social da mídia. (Guardem esta palavra: jovem.) Vou reproduzir aqui algumas palavras do jornalista, ditas a mais ou menos 1min45seg do filme: “Que país curioso! Eu debatia a liberdade de expressão num clube militar e num órgão civil de defesa de uma categoria, uma outra súcia defendia censura.” Súcia era uma referência a um grupo que participava de uma reunião concomitante, que ocorria no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, onde, segundo ele, se projetavam mecanismos de implementação de censura. Grifei a construção “outra súcia”, na fala de Reinaldo. Por que ele fala em “outra” súcia? A “súcia” que defendia mecanismos de controle da mídia pela sociedade que protestava no clube militar era a mesma, obviamente, que participava da reunião no sindicato. Eu vejo aqui uma espécie de ato falho. No fundo, Reinaldo sabe que a plateia da sua palestra no clube militar era, esta sim, a verdadeira súcia, e por isso ele usou “outra súcia”. Acerca de atos falhos, Reinaldo Azevedo, o primeiro que chamou petistas de PeTralhas em grande escala, é o mesmo que observou a trapalhada de Sérgio Moro sobre a Lava Jato e seus verdadeiros objetivos, quando disse, em entrevista recente, que a operação combateu o PT. Os princípios constitucionais da administração pública, que se aplicam ao Judiciário (legalidade, moralidade, impessoalidade etc.), assim como as regras mais básicas do direito criminal, como se vê, foram solenemente ignoradas pela força tarefa lavajatiana, que incluiu inclusive, e principalmente, o próprio julgador.

Já que falamos em Sérgio Moro, ele é a tentativa frustrada da Globo de encontrar a terceira via. E essa tentativa só é frustrada porque ele mesmo, o paladino da justiça, bravo guerreiro da cruzada anticorrupção, não se ajuda, seja pela total falta de carisma ou por ser idiota ao ponto de escancarar em uma frase a farsa da Lava Jato, cavalo de batalha da Globo cujo objetivo era derrubar o PT e quebrar setores fundamentais para a autonomia do país, liberando ao aluguel, como Raulzito já dissera em 1980.

Neste ponto, preciso dizer que considero que comete um grave equívoco boa parte das pessoas de Esquerda que afirmam não ver o Jornal Nacional e a programação jornalística da Rede Globo. Tudo o que o editorialismo da casa dos marinhos – e os que mandam nele – querem é que pessoas com capacidade crítica não vejam os seus jornais. Pelo contrário, é preciso, sim, assisti-los, principalmente o JN, de alcance fenomenal, para que se possa entender um pouco melhor como funcionam as coisas na política do braZil. Simplesmente bater no peito e se dizer contra a Globo é deixar o campo livre para as articulações da imprensa golpista que a rede capitaneia. Talvez graças aos espíritos críticos que assistem o JN é que Moro, em que pese ser ele próprio um tiro no pé, não tenha conseguido se consolidar como alternativa viável ao golpismo global – ou globista.

Voltemos uma vez mais aos conceitos históricos marxistas. A Globo apoiou o regime militar desde o primeiro momento. Melhor dizendo, foi nele que a Globo nasceu e se consolidou. Mas, assim como o pré-candidato ao governo do estado do RS, Onyx Lorenzoni, se arrependeu do caixa 2 e foi perdoado pelo próprio Sérgio Moro, também a Globo se mostrou arrependida e reconheceu o erro. Mas, vejam que interessante, esse mea culpa foi anunciado em 2013, algumas semanas depois do auge da onda de protestos que viria a desencadear o golpe de 2016. É bom lembrar que naquelas manifestações a Globo foi um dos alvos da massa descontente. Aqui em Porto Alegre, a esquina da Avenida Ipiranga com a Érico Veríssimo, onde funciona a Globo RS, foi isolada em várias quadras no entorno, protegida por um esquema de segurança digno dos maiores eventos ocorridos na cidade. A alegação do governo do estado para ter designado um aparato tão pesado para fazer a defesa de uma entidade privada (sim, as organizações Globo são privadas), passou, entre outras desculpas bem questionáveis, pela proximidade do prédio da RBS com o da Polícia Federal, que poderia ser alvo de ataques. Antes que algum crítico de plantão aponte, não estou esquecendo que o governador do RS era Tarso Genro, do PT. E isso diz muita coisa, claro que diz. Senão vejamos.

As Jornadas de 2013 tinham como bandeira o apartidarismo e mesmo o antipartidarismo. E para o maior partido do país não era interessante que ganhasse corpo um movimento que se dizia autônomo e prescindia da organização feita pelas instituições partidárias. Só que a estratégia utilizada para neutralizar a ação, que passou pela tentativa de desqualificar e tirar a legitimidade dos pleitos, se mostrou absolutamente equivocada e resultou no golpe que três anos depois derrubaria o próprio PT do governo central.

Ao contrário da Esquerda, que não soube na época avaliar com clareza o poder daqueles atos, a Direita, que desde a ascensão dos governos do PT estava na inusitada condição de oposição, faturou. No ano seguinte, Kim Kataguiri, Fernando Holiday e outros e outras JOVENS, fundaram o MBL. Daí para o aparecimento de tantos grupos de jovens… conservadores foi um pulinho. O filme que citei antes, que, tecnicamente falando, é apenas uma colagem de imagens e vídeos esparsos, retrata bem o papel dessa juventude conservadora na virada à direita que o país deu a partir de 2013. E quem deu a maior força a essa retomada da “conscientização” da juventude brasileira? Plim Plim! A resposta é… Rede Globo!

E, pra não fugir da tese marxista da repetição dos fatos históricos, vamos um pouquinho mais pra trás. Quem era Fernando Collor antes de ser presidente da república? Na res publica não era ninguém. Na vida privada, era diretor de um jornal ligado às organizações Globo. Caçou marajás – menos os seus – e ganhou da Globo um presentinho: a cadeira do Planalto. Com o tempo se mostrou perigosamente autônomo, disposto a voos solo, e teve as asinhas cortadas. (Mas foi só um tempinho de reciclagem. A Globo não desperdiça seus quadros.) Quem exerceu protagonismo na queda de Collor foi uma multidão de jovens, que a Globo, apelidou de “caras-pintadas”. A Globo e a juventude na linha de frente não é, portanto, nenhuma novidade.

Neste momento é interessante retomar uma ideia que já andou sendo pensada aqui na coluna: Bolsonaro está no fim, o bolsonarismo não. E o bolsonarismo é um sistema velho com uma cara jovem. A própria imagem do demente que governa o país passa uma ideia de jovialidade. Mas quando precisa, ele tira (ou põe) a máscara e mostra a própria decrepitude, que chega ao coração das pessoas na figura de um homem saudável que se tornou doente pelo atentado que sofreu por defender o país da ameaça vermelha. Um mártir, um mito que um dia está na praia de jetsky e no outro, hospital, sonda e cara de doente terminal.

Essa dicotomia, milimetricamente desenhada, é reproduzida nas entrelinhas do documentário que embasa a reflexão de hoje. Observem, no filme, as sutis diferenças entre os discursos das pessoas de mais idade e daquelas que estão da casa dos 40 anos para baixo, que, em política, podem ser chamadas de jovens. Enquanto a gente mais antiga propõe uma retórica baseada na experiência de quem viveu tempos melhores, interrompidos pela “trágica experiência comunista dos anos petistas”, e que sofreu as duras penas dessa inflexão histórica, a ala jovem vem com um discurso pesado, que não economiza incitação a ações violentas. Ora, é próprio da juventude um espírito mais aguerrido, que muitas vezes confunde agressividade com violência física. Essa é uma das misturas da receita básica do bolsonarismo: mesclar a suposta sabedoria advinda da experiência de quem já sobreviveu ao “comunismo”, com o temperamento incendiário da massa jovem, que quer tirar os “corruptos vermelhos” do poder nem que seja a pau. Os treinamentos paramilitares promovidos nos templos evangélicos, que aparecem ao longo de todo o filme, mostram que a lavagem cerebral que cria a inconciliável imagem do/a jovem reacionário/a, está em pleno curso.

O paradoxo político brasileiro está posto neste ano eleitoral. De um lado, a incompetência absoluta de Bolsonaro e sua família põe em risco a manutenção do projeto ultraliberal protofascista; de outro, essa mesma incompetência está sendo tratada nos círculos que determinam o poder como a reação contrarrevolucionária para frear a reestruturação das forças de Esquerda. Não é de graça que ao mesmo tempo em que Bonner e Renata, que, a propósito, ostentam imagens e linguagem bastante joviais, desciam a lenha em Bolsonaro na mídia televisiva, preferida do público bolsonarista, o jornalismo escrito, que chega em público diferente, em tese mais politizado, atacava Lula com a mesma virulência. No meio dessa briga, fomentada por ela mesmo, a Globo ganha tempo pra achar a terceira via.

Spoiler: Michel Temer anda sumido e Eduardo Leite foi retirado da linha de frente. Recuos estratégicos de um plano já arquitetado? Temer é culto, se veste impecavelmente, tem uma esposa bela, recatada e do lar, é bom de voto, principalmente em São Paulo, e Leite é o jovem conservador (como é difícil aceitar essa imagem!) adequado ao padrão. É certo que a Globo tem estimulado a polarização em dois lados com muitos e evidentes problemas, Lulismo e Bolsonarismo, que são explorados na mesma medida. Enquanto isso, vendo o barco do ex-juiz e ex-ministro, atualmente consultor para a recuperação de empresas que ajudou a quebrar, naufragar antes mesmo de deixar o porto, nada melhor do que resguardar possíveis candidatos, retirando-os da exposição massiva e mantendo a carta na manga para a hora certa, quando o eleitorado já estiver cansado e desesperançado e assim pronto para aceitar qualquer coisa que se lhe apresente como alternativa. Mesmo que sejam as mesmas velhas raposas velhas, acompanhadas por novas raposas velhas.

Que a Esquerda não seja como a pátria mãe, tão distraída…

*Imagem de destaque copiada de: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2015/03/em-culto-da-universal-jovens-gladiadores-se-dizem-prontos-para-a-batalha-4710883.html.&gt; Acesso em: 10 de jan. 2022.

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Eleições, Política

Um tucano na sala

No livro “Dez anos que abalaram o Brasil”, o professor e economista João Sicsú faz uma análise dos governos Lula e Dilma até 2013. O subtítulo aponta a crença do autor num quarto mandato, no mínimo, o que acabou se realizando, mas apenas pela metade: “E o futuro?”.

O futuro ali projetado não antevia o golpe de 2016. O título ecoa o “Dez dias que abalaram o mundo”, mas as semelhanças começam e terminam no trocadilho com o nome. O livro de John Reed, que trata da Revolução Russa, é uma das mais impactantes experiências da literatura jornalística, e que na minha prateleira está o lado dos melhores momentos de Gabriel García Marquez e de Joe Sacco. O livro de Sicsú pode facilmente ter uma crítica distorcida e ser chamado de panfletário. Essa não é a minha opinião. Vejo como um trabalho importante para começar a desmistificar algumas coisas da política brasileira pós-linha dura. Traz dados consistentes que mostram os grandes avanços sociais que o Brasil viveu nos governos petistas. Paradoxalmente, quem ler com atenção vai encontrar pistas para derrubar a ideia de que o Partido dos Trabalhadores fez governos comunistas. Sequer propriamente socialistas foram os anos de PT à frente do Executivo nacional. Não se pode entender isso sem pensar na equivocada ideia que o socialismo é uma forma branda de comunismo. Nas bases ortodoxas do marxismo/engelismo, o socialismo é a fase de transição, revolucionária e inevitavelmente violenta, portanto, de enfrentamento e ruptura com uma estrutura vigente. O comunismo é a chegada a um regime ideal, em que o sistema de opressões já tenha sido superado.

Desfeita essa confusão conceitual, pensemos na hipótese do primeiro mandato de Lula como governo de Esquerda puro. Não é preciso ir além da figura do vice-presidente, José Alencar, para mostrar o erro dessa concepção. Se estivermos anda pensando em termos marxistas, o vice de Lula é o grande representante do Capital no governo. Mas há muita gente que não sabe, por exemplo, quem foi Aureliano Chaves (talvez seja melhor dizer que há pouca gente que sabe) e, portanto, não dá a mínima importância para o vice, cargo que foi chamado de vaquinha de presépio por um dos personagens de Jô Soares nos anos 80. Para essas pessoas, podemos dar um argumento mais forte para relativizar o esquerdismo do governo Lula: Henrique Meirelles. Nessa linha, poderíamos ainda analisar ano a ano os governos do PT e encontraríamos a escalada dos lucros dos bancos, a imagem de Jorge Gerdau Johannpetter sempre presente como conselheiro, veríamos Joaquim Levy como ministro da fazenda, e chegaríamos, por fim, novamente ao vice, e desta vez de forma que não se pode esquecer, porque foi o artíficie do golpe. Quando da construção da chapa que viria a se eleger, por mais que se possa reduzir ao mínimo a importância do vice, que tipo de caráter socialista ou comunista Michel Temer poderia dar ao programa?

Ainda como sugestão de literatura política, “A privataria tucana”, de Amaury Ribeiro Júnior, e, sobretudo, “O príncipe da privataria”, este de Palmério Dória, mostram a consolidação do modelo neoliberal no braZil tucano. Avançando na investigação da ideologia da social-democracia à moda brazilis, temos que necessariamente passar pelo discurso de Aécio Neves, em sua primeira manifestação no plenário do senado pós derrota eleitoral, quando disse que seria o líder de uma oposição incansável ao governo Dilma. Para além do jogo político travado dentros das regras, que é o que talvez Aécio tenha referido (ou não), “Máfia da Merenda”, “Máfia dos Trens”, “Mensalão Tucano”, “Helicoca” e outras expressões, se jogadas no Google, vão abrir informações interessantíssimas sobre as práticas e políticas do PSDB e sua turma, turma essa que inclui o MDB. Pois um dos nomes que vai aparecer aqui e ali nessas pesquisas, mesmo que sejam feitas bem superficialmente, será o de Geraldo Alckmin, preferência de Lula para a construção de uma chapa para “vencer a eleição presidencial de 2022”.

“Eu tive uma extraordinária relação com o Serra, eu tive uma extraordinária relação com a Yeda Crusius [ver Operação Rodin], eu tive uma extraordinária relação com o Rigotto, porque eu não faço diferença na minha relação com os entes federados, eu não queria saber de que partido que era a pessoa, então com o Alckimin, eu tive uma extraordinária relação. O Alckimin foi um governador responsável aqui em São Paulo. […] Vamos ver se a hora que eu decidir ser candidato ou não, se é possível a gente construir uma aliança política, é preciso primeiro eu saber qual é o partido que o Alckmin vai entrar”. Isso, talvez com uma palavra a mais outra a menos, foi dito pelo Lula em entrevista à Rádio Gaúcha na semana passada. Lula é, na minha opinião, o político de linha de frente mais habilidoso da história do Brasil, só comparável a Brizola e Getúlio. Essa capacidade de articulação retórica faria ele se sair com facilidade de uma possível saia justa caso fosse perguntado se não seria uma contradição dizer que não olhava para partidos quando era presidente, mas que agora depende do partido a que Alckmin vai se filiar para ver se é uma boa decisão compor chapa com o (ex?) tucano. Também tiraria de letra, por certo, se alguém perguntasse se uma associação com um político liberal até a medula não implicaria repetir um programa de favorecimento ao mercado e facilitação aos banqueiros e grandes empresários, que marcou uma parte dos governos petistas. (A marca da outra parte foi a implementação de políticas sociais que tiraram milhões de pessoas da linha da pobreza absoluta.) Provavelmente, se isso for em frente, Lula vai desenvolver de forma extraordinariamente convincente o argumento das alianças pragmáticas e das questões de governabilidade para justificar a composição com um sujeito envolvido pessoal e partidariamente em suspeitas muito fundadas de corrupção, e participante ativo do processo de transformação do Brasil em braZil, a partir da sanha privatista de FHC e seus correligionários. Afinal, não são dessa ordem os argumentos utilizados para a defesa da presença de Temer como vice de Dilma? Na origem ele teria aderido à plataforma do PT, o que é uma resposta de tão óbvia quase pueril.

Quanto ao Partido dos Trabalhadores, na reta final da campanha de Haddad e Manuela em 2018, Mano Brown disse para um público petista que “Se somos o Partido dos Trabalhadores, tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar entender.” (Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/cultura/em-comicio-de-haddad-mano-brown-critica-pt-e-e-defendido-por-chico-e-caetano-3kmes3df2xhu24fk1i2aw7ho4/). Olívio Dutra, fundador do PT e uma das figuras mais sérias do cenário político nacional, há tempos faz críticas a algumas posturas do partido. Paulo Paim, que também dispensa apresentações, já andou dizendo que não pretende mais se candidatar a cargos eletivos. Seriam sinais de esgotamento do maior partido de Esquerda do Brasil, expressos no cansaço de lideranças históricas? Ao declarar que tem conversas entabuladas com um político com trajetória e plataforma política diametralmente oposta à essência de um partido que se quer situar no campo político da Esquerda, Lula não estaria de certa forma traindo a sua própria origem e a do partido? Ou estaria apenas assumindo um risco calculado, em nome de uma estratégia de retomada do poder e de reimplementação das políticas sociais que inegavelmente avançaram nos governos petistas como em nenhum momento anterior da história do país? Os fins justificariam os meios?

A experiência de alianças espúrias já mostrou que pode ter consequências desastrosas. Não seria o caso, então, de desta feita apostar numa associação com forças políticas de mesma linha? Não seria melhor tentar superar as diferenças pontuais dos programas dos vários partidos que compõem de fato o campo democrático, a fim de construir uma verdadeira frente de Esquerda para disputar o governo? Ou os fatores que impedem esses acertos estão mais ligados a uma vaidade e uma necessidade de protagonismo que suplanta os anseios do povo? A política é uma arte. E é uma arte complexa. Mas estamos diante de um momento em que a repetição de erros e a sustentação de um discurso arrogante e incapaz da humildade e da grandeza de ceder espaço a quem está mais próximo no campo das ideias pode ser a causa da consolidação do modelo fascista que se instalou no Planalto. Não podemos esquecer que do outro lado teremos o próprio Bolsonaro novamente e o seu ex-comandante em chefe, Sérgio Moro, em outra frente. Com essas (e talvez outras) opções fortes, a simples presença de Alckmin na chapa teria o poder de atrair votos do eleitorado de centro-direita? Como se não bastasse, há que se considerar o retumbante fracasso do tucano em 2018.

Lula será o fiel dessa balança e o PT terá de decidir entre o respaldo a uma articulação com fortes tendências suicidas – Lula/Alckmin – e uma volta às bases, como pediu Mano Brown. Ainda penso que isso tudo seja apenas mais uma jogada estratégica do grande ex-presidente. Aquela história de botar o bode na sala, neste caso, o tucano. E espero que as pessoas envolvidas percebam que este é o momento do PT resgatar a sua essência, mostrar que confia na sua própria história e, mais do que isso, que confia no seu povo. A alternativa é arriscar vender a alma ao diabo de novo. E o sete-pele já provou que não deixa uma fatura sem cobrança

*Imagem de destaque copiada de: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/12/alckmin-e-pressionado-por-aliados-a-desistir-da-vice-de-lula-e-disputar-governo-de-sp.shtml.&gt; Acesso em: 27 de dez. 2021.

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bolsonarismo, Futebol, Política

Bet: que bicho é esse?

Na semana passada, o prefeito de Porto Alegre participou do programa Dus2 Podcast, apresentado pelos jornalistas Cristiano Silva e Geison Lisboa. Entre outras coisas, defendeu a liberação do Jogo do Bicho no Brasil. O argumento não é novo: o jogo é sério e os prêmios nunca deixam de ser pagos. Não conheço o suficiente dos meandros do Bicho pra saber se isso é assim mesmo, mas do pouco que sei, a corrupção não está no sistema de apostas propriamente, que, em última análise, trata apenas de sorte e azar, em que pese o que dizem os estatísticos, mas no submundo do jogo, que envolve violência extrema, tráfico (drogas, armas, influência), propinas, lobby etc. Não estou entrando no mérito da opinião do prefeito, se o jogo deve ou não deixar as sombras, isso é assunto pra outro momento. Quero pensar um pouco sobre outra situação que envolve jogos de azar.

Atualmente, vemos o universo do futebol dominado pelas casas de apostas. E elas investem alto. Despejam contêineres de recursos em publicidade nos programas esportivos e patrocinam 19 dos 20 clubes que disputam a série A do campeonato brasileiro neste ano. Alguns inclusive estampam o patrocínio na camisa. Mas que interesses movimentam esse mercado?

De João Havelange a Rogério Caboclo, a história de corrupção no futebol brasileiro é longa. Em 2005, numa das tantas vezes em que deixou de ser campeão brasileiro por fatores extracampo, o Inter foi vítima de uma rede de manipulação de resultados que dentro de campo beneficiou o Corinthians. O Timão, porém, era uma espécie de testa de ferro de um esquema sujo que de novidade não tem nada e muito menos acontece somente no terceiro mundo. Cruzando o oceano, nos anos 1980, o carrasco do escrete canarinho de 82, Paolo Rossi, foi condenado com outros atletas e dirigentes por participação em sistemas fraudulentos semelhantes. Já no século 21, ainda na Itália, a Vecchia Signora, Juventus, foi rebaixada de divisão no campeonato nacional pelos mesmos motivos. E falamos aqui de um dos berços da civilização ocidental. Fazendo o caminho de volta ao país do futebol, no campeonato brasileiro de 2020, que terminou em 2021, novamente o Inter foi prejudicado pela arbitragem e impedido de levantar a taça. Se naquele 2005 a fraude foi comprovada e assumida por alguns dos participantes, desta vez eu penso que a coisa tem alguma relação com os interesses em torno do mundo das bets. Mas é só uma hipótese. Por enquanto.

Engana-se quem pensa que isso só interessa ao espaço do futebol e, portanto, se restringe à esfera privada. Jogos de azar são proibidos no Brasil desde que a primeira-dama da época, 1946, esposa do presidente Eurico Gaspar Dutra, muito católica que era, entendeu que as apostas iam contra os preceitos divinos. O mandatário decretou e os cassinos foram para a clandestinidade. Toda uma época de glamour começou a decair. Na esteira daquelas coisas que só acontecem no Brasil, onde, por exemplo, a agiotagem é proibida, com exceção daquela praticada pelos banqueiros, alguns anos depois a única forma de jogo legalizada passou a ser administrada pelo governo, por intermédio da Caixa Federal. O que temos hoje, porém, é a abertura da concorrência com a jogatina oficial pela atuação das casas de apostas, que praticam jogos de azar amparadas por uma lei do final do governo golpista de 2016 e já na iminência do governo fascista de 2019: Lei 13.756/2018. Acontece que enquanto o serviço não é regulamentado, as operações financeiras do negócio são feitas fora do país, inclusive nos paraísos fiscais, para onde, a propósito, o ministro da economia costuma mandar os seus dólares. É dinheiro do povo brasileiro viajando para o exterior, lavadinho e (mal)cheiroso, livre, leve e solto.

Todo esse contexto aponta para algo daquela mistura que caracteriza as relações entre o público e o privado desde que o escrivão de Cabral por aqui passou, e que foi estudada por Sérgio Buarque de Holanda na primeira metade do século passado. Além da atuação representativa da letra B de bola das bancadas BBB do Congresso Nacional, a lei, que beneficia entidades privadas – e somente elas, porque nesse tipo de aposta o povo sempre perde -, passou pelo ministério atualmente chefiado pelo Paulo Guedes. Em dezembro de 2018, o presidente genocida (dito pela CPI e a ser avaliado pelo tribunal penal internacional), que é palmeirense mas torce pelo Flamengo, já tinha escolhido o seu superministro. Se não me falha a memória, e dificilmente ela me falha nesses casos, o mundo sabia quem seria o chefe da economia bolsonarista já bem antes da divulgação do resultado das urnas. Dizem até que isso até andou ajudando na vitória do capitão. Dessa forma, o acompanhamento e a “fiscalização” dos trabalhos desse novo sistema seria feito pelo Chicago Boy, e, consequentemente, os frutos da lei que libera a carpeta com grife começariam a ser colhidos na nova gestão.

O mundo do futebol de elite no Brasil envolve um mercado bilionário, que é gerenciado por uma das instituições mais corruptas da história do país e que sempre acaba conseguindo se esquivar de uma investigação aprofundada e séria pelos órgãos competentes. É nesse terreno fértil para negócios obscuros que atuam as casas de apostas. Com o aval do governo, elas despejam dinheiro em todos os segmentos do futebol, inclusive nos clubes, e exportam dinheiro brasileiro para o outro lado do Atlântico, numa história que se repete desde que os portugueses (os navegadores, não os técnicos de futebol) avistaram a nossa costa.

Sabemos da paixão do povo brasileiro pelo futebol. Tirando os clubes de aluguel, que existem para os empresários engordarem suas contas e os banqueiros garantirem o seu caviar, torcedores e torcedoras fazem muitos sacrifícios para acompanhar o time do coração. Que ninguém tenha a arrogância de dizer que isso é bobagem, porque a relação de uma pessoa com um time de futebol envolve coisas muito mais profundas do que se pode expressar na máxima pão e circo. O mundo do futebol mexe com o que de mais humano têm as pessoas, futebol envolve amor e vida. Muitas vezes de forma irracional, é verdade, mas não é só a razão que move o ser humano. Só que hoje tudo se resolve em e por interesses que nada têm a ver com esses sentimentos puros e genuínos que atravessam as gerações. É a mercantilização da paixão, a monetização (ah, o linguajar moderno…) do amor. Tudo está no pacote do futebol moderno.

De Aristóteles a Kant, passando pelos teóricos do conceito moderno de estado, não sei se algum estudioso conseguiria dar luz às implicações éticas imbricadas no tipo de relação que se estabeleceu entre clubes, federações, empresários, mídia, governo e casas de apostas. O que sei é que no dia em que se desvelarem as estruturas de funcionamento desse sistema, os criminologistas terão bastante trabalho.

*Imagem de destaque copiada de: <https://noticias.r7.com/economia/protesto-na-faria-lima-poe-guedes-em-nota-de-us-95-milhoes-08102021&gt;. Acesso em: 2 de dez. 2021.

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Entre tapas e beijos, a roda da economia gira

Em tempos de séries sobre tudo, ainda há espaço para os filmes? Acho que sim, sempre haverá. Um filme dirigido por Martin Scorsese e estrelado por Leonardo DiCaprio, por exemplo, é um filme que deve ser visto. Na pior das hipóteses será um filme bem feito. Sugiro, então, O Lobo de Wall Street, de 2013, que permite que a gente comece a entender um pouco mais o funcionamento do mundo dos altos negócios.

Mudando de saco pra mala – pero no mucho -, vou transcrever um trecho de um livro que estou terminando de ler:

“Cerca de de dois meses depois disso, pedi ao senhor Hugh o privilégio de alugar meu tempo. (…) após alguma reflexão, ele me concedeu o privilégio e propôs os seguintes termos: eu teria todo o meu tempo para mim, faria todos os contratos com aqueles para quem eu trabalhasse e procuraria meu próprio trabalho; e, em retribuição por essa liberdade, eu deveria lhe pagar 3 dólares ao final de cada semana; arranjar-me com as ferramentas de calafetar e com pensão e roupas. (…) Chova ou faça sol, com ou sem trabalho, ao final de cada semana, o dinheiro deveria ser entregue, ou eu perderia meu privilégio. Esse acordo, será percebido, era decisivamente em favor de meu senhor. Aliviava-o de toda a necessidade de cuidar de mim. Seu dinheiro era certo. Ele receberia todos os benefícios de possuir um escravo sem seus ônus; enquanto eu suportaria todos os ônus de um escravo e sofreria todos os cuidados e ansiedades de um homem livre. Achei que era um negócio ruim. Mas, ruim como era, achei-o melhor do que o antigo método de me arranjar.”

O que está descrito acima aconteceu mais de um século e meio antes do advento da uberização da economia e é o relato feito por Frederick Douglass, no livro “Autobiografia de um escravo”, publicado este ano pela Editora Vestígio, cuja leitura é impactante, dada a riqueza com que o autobiografado detalha os seus tempos de escravidão, nos Estados Unidos do começo do século 19. Esta e outras passagens do livro acabam tratando por linhas diversas de questões da economia, do funcionamento do mercado, de como os interesses das elites econômicas determinam os acontecimentos políticos. Algo que também é retratado no filme de Scorsese.

Os dois séculos e tanto que separam as duas obras, uma de ficção e outra uma biografia verdadeira, mostram que o que muda é apenas a tecnologia e os atores sociais, nunca a lógica do sistema: tudo gira em torno do capital. No Brasil, o processo de colonização teve motivações econômicos, a independência teve motivações econômicos, a abolição do regime escravagista teve motivações econômicas, até mesmo a (nada) heroica Guerra Farroupilha, que está em plena celebração, teve motivações econômicas. Por que hoje as coisas seriam diferentes?

Quando assumiu o governo, o caçador de marajás confiscou a poupança do povo. Não sem antes avisar alguns privilegiados. Por sua vez, o príncipe da privataria, que outrora foi um acadêmico (quase) comunista, promoveu o desmonte de setores importantíssimos da economia do país, fazendo doações ao capital (às vezes nem tão) estrangeiro. Aliás, Raulzito já vinha dizendo desde o final dos 70’s que a solução é alugar o braZil. Já no nosso século, o ativismo judicial e o seu lavajatismo derrubaram uma presidenta e depois elegeram um presidente da república. As motivações? O desmanche dos setores energético, da construção civil, da indústria frigorífica e outros podem dar pistas. Levar ao Planalto um plano de governo cuja agenda econômica privilegia os interesses dos articuladores do ultraliberalismo era mais do que necessário depois de alguns anos de programas políticos com algum comprometimento com causas sociais. Era preciso romper essa estrutura, e para isso, nada melhor que um golpe, honrando a tradição democrática braZileira.

Em se tratando de golpes, a família Marinho tem know-how. As organizações Globo têm atuação decisiva nessa seara desde 64 pelo menos. De uns tempos pra cá, o Jornal Nacional, principal noticioso televisivo do país, pelo menos o mais assistido, bate forte em Bolsonaro. O seu ministério não é poupado, com uma única exceção, justamente a pasta da Economia. Acontece que nos últimos tempos o Chicago Boy vem mostrando falta de força para levar em frente com a rapidez necessária as políticas entreguistas que beneficiam as elites econômicas, que esperavam que tudo fosse mais fácil e ágil, diante do cenário que antecedeu a chegada do governo protofascista ao poder central. Paulo Guedes já não é unanimidade entre o alto empresariado, é questionado pelos banqueiros, enfim, a economia não anda muito bem. Nesse estado de coisas, Bolsonaro passa os últimos dois meses promovendo procissões de morte braZil afora, levando motociclistas enlouquecidos às ruas e estradas, conclamando caminhoneiros a pressionar as instituições, elevando a temperatura no meio rural, literalmente, com as queimadas na Amazônia, e metaforicamente, a partir de discursos virulentos de reis da soja e outros tocadores de berrante golpistas. (Mais um parêntese: aprofunde-se o que há de obscuro no Caso Lázaro.) Um dos objetivos desses movimentos era preparar os grandes atos do dia da independência.

No tão esperado Sete de Setembro, Bolsonaro foi aos palanques com um discurso enfurecido. O alvo principal era Alexandre de Moraes e, por consequência, o STF, que não é outro senão aquele tribunal referido por Romero Jucá na célebre frase: “Com supremo com tudo.” Jucá, como sabe, foi homem forte do governo golpista. A loucura bolsonariana por óbvio teve reflexos na economia, com fuga de investimentos, índice baixo na Bovespa, ações de grandes empresas brasileiras despencando, dólar subindo e tudo aquilo que se sabe que acontece quando a instabilidade política é forte. Apenas dois dias depois, entra em cena o pacificador. Este sujeito, que em 2016 foi declarado inelegível pela Justiça Eleitoral de São Paulo, mas que mesmo assim assumiu a presidência da república pouco depois, e que depois de ganhar o noticiário sendo preso pela PF chefiou uma missão humanitária do braZil em Beirute, preparou o fornilho do cachimbo da paz que selou o armistício entre Bolsonaro e Moraes no Nove de Setembro.

O tempo que vai durar o discurso moderado de Bolsonaro não se sabe, muito menos o namoro com o ministro, mas no aspecto político as repercussões já se fazem notar, com pedido de impeachment engavetado sem prazo, investigação do PGR suspensa, revogação de mandados de prisão e HCs impetrados e por aí vai. Mas isso são detalhes, desdobramentos naturais dos fatos, o mais importante para a felicidade geral da nação é que os investidores que compraram as ações de empresas brasileiras em baixa pela crise provocada por Bolsonaro, abnegados patriotas que amam esta terra acima de tudo (ou seria Deu$?) e que não se importam em perder dinheiro para ajudar o país a sair da crise, devem ter ficado surpresos com o “golpe de sorte” da elevação do Ibovespa e a queda do dólar na quinta-feira. Se vão ganhar algum nessa ciranda econômica, ora é merecido. Ou não é?

Imagem copiada de: <https://www.poder360.com.br/opiniao/governo/o-coronavirus-e-a-crise-que-vai-testar-bolsonaro-e-guedes-escreve-thomas-traumann/&gt;. Acesso em: 14 de set. 2021.

*Imagem de destaque copiada de: <https://steemit.com/pt/@aldenio/com-o-supremo-com-tudo&gt;. Acesso em: 14 de set. 2021.

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bolsonarismo, Política

Sei até que parece sério…

Vou me permitir começar a conversa de hoje contando rapidamente uma história pessoal. Em 1999 encaminhei um Compact Disc, vulgo CD, com a música para a minha formatura: “Pastor João e a Igreja Invisível”. Esqueci (será?) que mesmo que o velho Romeu tivesse levado muitos dos seus princípios educacionais junto com ele pro caixão, a Ritter dos Reis ainda era propriedade de uma família adventista. (Sim, no braZil, a Educação tem proprietários.) A música foi vetada. Escolhi outra parceria do Raul e do Marcelo Nova: “Muita estrela e pouca constelação”. A exemplo dos seus homólogos da linha dura, os censores universitários não primavam pela inteligência e não entenderam qual o sentido de “Sei até que parece sério, mas é tudo armação, o problema é muita estrela pra pouca constelação” numa formatura de Direito.

Hoje a gente vê o inqualificável Roberto Jefferson sendo preso com direito a espetáculo midiático, bem ao gosto das nossas instituições. Este sujeito já foi apresentador de programa policial sensacionalista, defensor de primeira hora do caçador de marajás, se abraçou com o PT e depois deu início ao processo do mensalão (o petista, porque o tucano anda esquecido faz tempo), defendeu pautas polêmicas, como o desarmamento e até o casamento homoafetivo, antes de conhecer o Messias, claro. Enfim, é uma figura contraditória, patética e ridícula, como tantas desta república braZileira.

Não vou questionar a prisão do Bobjeff a não ser pela temporalidade. Ele deveria estar guardado há muito tempo. Ou melhor, deveria PERMANECER guardado desde muito tempo. Importa agora é examinar as razões por que ele foi encarcerado de novo.

Quem mandou o bolsonarista Jefferson para a cadeia foi o Ministro Alexandre de Moraes, que quando eu estava na faculdade, nos anos 90, já vinha se consolidando como um grande constitucionalista. Depois disseram que ele andou plagiando outros autores, mas isso também não vem ao caso agora. Moraes tem fortes ligações com o PSDB, o que motivou duras críticas à sua indicação para o STF, feita por Michel Temer. Ninguém imaginaria naquela época que ele seria um dos grandes algozes do bolsonarismo na Corte. Aliás, naquele tempo pouca gente imaginava o próprio bolsonarismo.

Imagem copiada de: https://pt.org.br/alexandre-de-moraes-passado-controverso-e-repleto-polemicas/. Acesso em: 17 de ago. 2021.

Voltando ao caso, nos fundamentos da prisão do petebista, Moraes diz que ele está no núcleo político de uma organização criminosa que provoca a desestabilização das instituições republicanas, que está sendo chamada de “milícia digital”. Esta rede atua nas mídias, principalmente as alternativas, pregando a ruptura institucional, que, como se sabe, é o nome bonito usado para dizer golpe. Desde a decisão forte e pesada do Ministro Alexandre, uma pergunta se tornou recorrente na minha cabeça: o que tem os bolsonaros que o Jefferson e o Daniel não têm? Como é difícil dar conta de tanta coisa, dada a produção frenética de fatos escabrosos no braZil, lembro que o deputado Daniel Silveira foi preso por determinação do mesmo Alexandre de Moraes, por ter feito ataques ao Supremo e aos seus integrantes, ou seja, a mesma motivação que levou o presidente do Partido Trabalhista Brasileiro à cadeia agora.

Já li que a prisão de Roberto Jefferson é um recado aos bolsonaros. Será que não há uma inversão aí? Rauzito também disse, sem o Marceleza, que “tem gente que passa a vida inteira travando a inútil luta com os galhos, sem saber que é lá no tronco que tá o curinga do baralho”. Mandar prender figurante parece o mesmo que cortar galho pra matar a árvore (diversionismo?…). Sei que prender um presidente da república não é o mesmo que prender um coadjuvante, mas a essência dos fatos não muda. Bolsonaro, o presidente, também ataca as instituições e os ministros do Supremo diariamente, e ameaça com golpe com uma frequência nunca vista, assim como faz a familícia. Só que Jefferson e o Daniel não têm o aparelho institucional sempre a postos para sua defesa, o que comprova que são coadjuvantes. De luxo, mas coadjuvantes. Não fosse, certamente o PGR teria saído em sua defesa, ou o presidente do Congresso, como fazem essas duas figuras sempre que o nome Bolsonaro aparece na linha de tiro.

Então, aceitando por mero efeito de argumentação, que ainda não haja elementos suficientes para a prisão do Bolsonaro Messias, talvez seja o momento de perguntar porque os bolsonaros filhos ainda estão livres? E os generais do staff bolsonarista, por que ainda andam livres, leves (alguns nem tanto) e soltos? Talvez uma pequena lista ajude neste momento:


–  “Uma afronta à autoridade máxima do Poder Executivo e uma interferência de outro poder na privacidade do presidente da República e na segurança institucional do país […] poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” (General Heleno, maio de 2020);¹

– “Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta, ela pode ser via um novo AI-5” (Eduardo Bolsonaro, outubro de 2019);

– “Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos” (Carlos Bolsonaro, setembro de 2019).

O que essa gente toda tem, então, que falta a Jefferson e Daniel? Um Aras ou um Lira? Sim, mas talvez haja pedra nesse feijão. Enquanto se manda prender no segundo escalão, a boiada vai passando e os direitos trabalhistas, por exemplo, vão acabando. Não esqueçamos das ligações do ministro com o liberalismo tucano, enfim. E aí começa a fazer sentido de novo o refrão: “sei até que parece sério, mas é tudo armação…”

¹ O que os celulares da famiglia teriam de tão poderoso para abalar as estruturas da república?

*Imagem de destaque copiada de https://passandonahoradf.com.br/2021/04/18/tudo-pronto-pra-ffaa-agir-bolsonaro-da-sinal-david-salomao-e-roberto-jefferson-convocam-exercito/. Acesso em: 17 de ago. 2021.

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bolsonarismo, Necropolítica, Política

A promissória do diabo

Das versões do Fausto que li, a que mais gostei é a do Thomas Mann, que conta a história do fictício compositor Adrian Leverkhün. O músico é inoculado com o veneno demoníaco na única relação sexual que mantém na vida, com a prostituta que ele chama em seus delírios sifilíticos de Esmeralda. Tempos depois é visitado pelo próprio Diabo, que propõe um acordo, oferecendo-lhe 24 anos de genialidade absoluta, em troca, claro, da danação eterna. O biógrafo e narrador é o seu amigo e profundo admirador Serenus Zeitblom, que escreve durante o Terceiro Reich, anos depois dos fatos que descreve. As reflexões do erudito professor, aliadas a outros tantos elementos simbólicos do livro, acabam se constituindo numa crítica pesada à Alemanha nazista.

Mesmo que por vezes não nomeado, o mito do Fausto inspirou inúmeras obras literárias mundo afora. De Dostoievski a Guimarães Rosa, passando por Machado de Assis, Ariano Suassuna e a literatura de cordel, muitos são os escritores e escritoras e até roteiristas de telenovelas que se valeram da lenda, que, por tratar de questões ligadas a crenças, fés, superstições, criou um imaginário muito rico, havendo até quem defenda a existência de um Fausto real, que teria vivido em algum tempo entre o meio e o fim da Idade Média. Para o bem e para o mal, mitos existem, enfim.

Quando os bolsonaristas elevaram o seu Messias à condição mitológica, eram os ecos de outro mito que estavam latentes. Bolsonaro seria a reencarnação brasileira d’El Rei Dom Sebastião, que ressurgia de batalhas antigas e heroicas para redimir o povo e restaurar a grandeza da pátria, aviltada pelos governos que foram se avermelhando cada vez mais desde que os homens de farda largaram o osso (ou não).

Talvez Bolsonaro se imagine um rei, porque isso tem tudo a ver com uma mente doentia, megalomaníaca em grau elevadíssimo, e também vai ao encontro do fanatismo do seu exército de sequazes, dignos de figurar na lista da Loucura de Erasmo. Mas eu vejo a trajetória do sujeito o afastando cada vez mais de qualquer semelhança com o messianismo sebastianista e chegando muito mais perto de configurar um tipo faustiano. Não podemos deixar de pensar no curto espaço de tempo que separa a epifania macabra de Bolsonaro como salvador da pátria das ameaças cada vez mais concretas de que venha a sentar no bando de réus do tribunal penal internacional por crime de genocídio. Antes da sua ascensão meteórica, pouca gente sabia ou sequer tinha ouvido falar de Bolsonaro, salvo por uma ou outra aparição na mídia, motivada pelas atrocidades que já dizia quando era um um obscuro e inexpressivo parlamentar. Hoje se sabe que desde essa época já se pode questionar a sua propagandeada honestidade, só não tinha ainda a fama de ladrão que muita gente lhe atribui hoje, porém mais do que buscar provas do seu passado de crimes, importa investigar como se deu a sua escalada ao poder.

Imagem copiada de https://catracalivre.com.br/dimenstein/dimenstein-odio-de-carluxo-contra-globo-faz-bolsonaro-passar-vexame/

Na tentativa de explicar Bolsonaro pelo mito demoníaco, precisamos definir os outros personagens centrais. Na nossa versão braZileira do Fausto, o Diabo se chama Instituto Millenium e a sua emissária atende pelo nome de Rede Globo. Nas eleições de 2018, a rede mafiomidiática amargava quatro insucessos em sequência, protagonizados por políticos do tipo sopa de hospital e por um que é o único caso conhecido de tucano com nariz maior que o bico. Cansada das derrotas recentes, a Globo viu nas justas reivindicações das Jornadas de 2013 a oportunidade de distorcer os fatos e subverter a história, e habilidosamente construiu uma narrativa que elevava o povo à condição de senhor do seu próprio destino. Com esse discurso sofismático, convenceu a classe mé(r)dia que o certo é lutar sem partidos e, a partir do enfraquecimento do instrumento de representação democrática por excelência, articulou um golpe parlamentar, levando ao poder outra figura infernal, o vampiresco Michel Temer, em 2016. Com isso, ganhou 2 anos para pensar em alguém capaz de retomar a implementação da agenda ultraliberal, que havia sido parcialmente interrompida pelos governos anteriores. Para isso, não hesitou em apoiar a política nazifascista de Bolsonaro, escorada na retórica fácil do combate à corrupção e do restabelecimento da ordem e da segurança social, afinal, bandido bom é bandido morto.

Protegido pelo pacto espúrio celebrado com as elites, que já haviam bancado os/as patriotas da Paulista e outros patos braZil afora, Bolsonaro não se preocupou nem mesmo em construir um discurso moderado. Pelo contrário, recrudesceu ainda mais a sua retórica fascista, vomitando arrogância, prepotência e autoritarismo, e transformando a sua massa eleitoral num caso singular na história dos regimes democráticos – ou pseudodemocráticos -, já que ela estava votando num candidato pela plataforma que ele não cumpriria se eleito. Por uma razão lógica, os eleitores e as eleitoras escolhem seus e suas representantes acreditando que se manterão fiéis às suas promessas. Em campanha, Bolsonaro continuou a defender a tortura, disse que pessoas deveriam ser assassinadas apenas por militarem em campos políticos opostos, reafirmou a própria homofobia, se mostrou mais misógino do que nunca, fez discursos racistas, enfim, continuou sendo o mesmo facínora de sempre. Confrontado com esse discurso, o seu eleitorado se limitava a dizer que ele não faria tudo o que se comprometia a fazer, que isso era apenas conversa eleitoral. Ou seja, acreditaram que estava mentindo e por isso votaram nele. Hoje se vê que ele pode ser acusado de muitas coisas, menos de estelionatário eleitoral, porque tratou de cumprir cada promessa virulenta feita na corrida ao Planalto.

Imagem copiada de https://www.cut.org.br/noticias/redes-sociais-bombam-com-depoimentos-de-eleitores-de-bolsonaro-ja-arrependidos-4850

Acontece que o Diabo nunca esquece de liquidar uma fatura e o governo de Bolsonaro se aproxima do fim na mesma velocidade em que se degrada a sua saúde e o seu corpo segue o caminho da sua mente putrefata. No caso da nossa adaptação braZileira do mito, o miserável fausto se acreditou mais poderoso que o Chefe e agora vê o chão começar a se abrir à sua frente e a escuridão do inferno cada vez mais próxima. Reafirmo que não desejo que Bolsonaro morra no hospital. Não, ele precisa viver para pagar a conta. Não a promissória assinada para o capeta, que essa pode ficar pra depois, mas a dívida que contraiu com os milhões de pessoas que sofrem a sua necropolítica e que só faz aumentar. Ele precisa estar bem vivo para sorver lentamente o seu próprio veneno e ver a si próprio e a sua família que adora bandidos (que só são bom mortos, lembremos disso) sofrendo lentamente as consequências dos seus crimes, que a CPI e os noticiários divulgam diariamente. É preciso, sobretudo, mantê-lo com as faculdades mentais intactas (trabalho difícil, mas necessário) para saber que não foi mais do que um imbecil útil, usado e descartado quando já não servia mais.

Chamo atenção para o fato de que o que se aproxima do fim é governo DE Bolsonaro e não O governo bolsonaro. Há uma sutil diferença aqui, porque muito se tem dito, e com certa razão, que a queda de Bolsonaro agora pode piorar a situação do país e do povo, já que os militares assumirão o poder de forma aberta e legitimados pelas circunstâncias. É bem verdade, então, que o bolsonarismo é maior que Bolsonaro, mas é difícil imaginar algo pior do que a familícia neste momento. E, ademais, é preciso aprender a lidar com um problema de cada vez. O alvo a ser abatido é o potencial genocida e os seus filhos notadamente psicopatas. Depois a gente vê o que faz com o pessoal da caserna.

“Um homem sem juízo e sem noção não pode governar esta nação.”¹

¹Refrão da música “Desgoverno”, de Zeca Baleiro e Joãozinho Gomes. Veja o vídeo completo em em https://www.youtube.com/watch?v=tcPVDQUlGr0&ab_channel=RedeTVT

Imagem de destaque copiada de https://m.leiaja.com/cultura/2018/04/28/com-critica-ao-fascismo-e-bolsonaro-bandas-lancam-disco/

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