bolsonarismo, Mídia, Política

Jovens conservadores e o amor que diz pouca coisa: os paradoxos da política braZileira

“Dormia a nossa pátria, mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações”. Quando Chico Buarque escreveu esse verso, não foi para Bolsonaro. Bolsonaro não existia.

“Se um só traidor tem mais poder que um povo, que esse povo não esqueça facilmente”. Quando Raul Ellwanger verteu essa estrofe para o português, não pensava em Bolsonaro. Também não pensava em Bolsonaro León Gieco, quando escreveu o verso original: “Si un traidor puede más que unos cuantos, que esos cuantos no lo olviden fácilmente”. Existiam Jorge Videla, Augusto Pinochet, Ernesto Geisel e João Figueiredo, mas Bolsonaro não existia.

A gente sabe de trás pra frente o que acontecia nos países da América Latina na época em que essas canções foram escritas. Por que, então, temos que passar por coisas desse tipo de novo? Estaria certa a definição de Marx sobre a história e sua repetição? Os novos generais seriam apenas versões renovadas ou farsantes, como os napoleões de Marx revivendo o Brumário? (Em verdade, muitos deles nem são tão novos e já andavam por aí na época daqueles outros, mas chamemos de novos em termos de protagonismo.)

Dia desses revi o documentário “Intervenção – Amor não quer dizer grande coisa”, de Tales Ab’Sáber, Rubens Rewald e Gustavo Aranda (disponível aqui: https://vimeo.com/264475519). O filme abre com um jovem Kim Kataguiri anunciando uma fala de Reinaldo Azevedo, que trata sobre o chamado controle social da mídia. (Guardem esta palavra: jovem.) Vou reproduzir aqui algumas palavras do jornalista, ditas a mais ou menos 1min45seg do filme: “Que país curioso! Eu debatia a liberdade de expressão num clube militar e num órgão civil de defesa de uma categoria, uma outra súcia defendia censura.” Súcia era uma referência a um grupo que participava de uma reunião concomitante, que ocorria no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, onde, segundo ele, se projetavam mecanismos de implementação de censura. Grifei a construção “outra súcia”, na fala de Reinaldo. Por que ele fala em “outra” súcia? A “súcia” que defendia mecanismos de controle da mídia pela sociedade que protestava no clube militar era a mesma, obviamente, que participava da reunião no sindicato. Eu vejo aqui uma espécie de ato falho. No fundo, Reinaldo sabe que a plateia da sua palestra no clube militar era, esta sim, a verdadeira súcia, e por isso ele usou “outra súcia”. Acerca de atos falhos, Reinaldo Azevedo, o primeiro que chamou petistas de PeTralhas em grande escala, é o mesmo que observou a trapalhada de Sérgio Moro sobre a Lava Jato e seus verdadeiros objetivos, quando disse, em entrevista recente, que a operação combateu o PT. Os princípios constitucionais da administração pública, que se aplicam ao Judiciário (legalidade, moralidade, impessoalidade etc.), assim como as regras mais básicas do direito criminal, como se vê, foram solenemente ignoradas pela força tarefa lavajatiana, que incluiu inclusive, e principalmente, o próprio julgador.

Já que falamos em Sérgio Moro, ele é a tentativa frustrada da Globo de encontrar a terceira via. E essa tentativa só é frustrada porque ele mesmo, o paladino da justiça, bravo guerreiro da cruzada anticorrupção, não se ajuda, seja pela total falta de carisma ou por ser idiota ao ponto de escancarar em uma frase a farsa da Lava Jato, cavalo de batalha da Globo cujo objetivo era derrubar o PT e quebrar setores fundamentais para a autonomia do país, liberando ao aluguel, como Raulzito já dissera em 1980.

Neste ponto, preciso dizer que considero que comete um grave equívoco boa parte das pessoas de Esquerda que afirmam não ver o Jornal Nacional e a programação jornalística da Rede Globo. Tudo o que o editorialismo da casa dos marinhos – e os que mandam nele – querem é que pessoas com capacidade crítica não vejam os seus jornais. Pelo contrário, é preciso, sim, assisti-los, principalmente o JN, de alcance fenomenal, para que se possa entender um pouco melhor como funcionam as coisas na política do braZil. Simplesmente bater no peito e se dizer contra a Globo é deixar o campo livre para as articulações da imprensa golpista que a rede capitaneia. Talvez graças aos espíritos críticos que assistem o JN é que Moro, em que pese ser ele próprio um tiro no pé, não tenha conseguido se consolidar como alternativa viável ao golpismo global – ou globista.

Voltemos uma vez mais aos conceitos históricos marxistas. A Globo apoiou o regime militar desde o primeiro momento. Melhor dizendo, foi nele que a Globo nasceu e se consolidou. Mas, assim como o pré-candidato ao governo do estado do RS, Onyx Lorenzoni, se arrependeu do caixa 2 e foi perdoado pelo próprio Sérgio Moro, também a Globo se mostrou arrependida e reconheceu o erro. Mas, vejam que interessante, esse mea culpa foi anunciado em 2013, algumas semanas depois do auge da onda de protestos que viria a desencadear o golpe de 2016. É bom lembrar que naquelas manifestações a Globo foi um dos alvos da massa descontente. Aqui em Porto Alegre, a esquina da Avenida Ipiranga com a Érico Veríssimo, onde funciona a Globo RS, foi isolada em várias quadras no entorno, protegida por um esquema de segurança digno dos maiores eventos ocorridos na cidade. A alegação do governo do estado para ter designado um aparato tão pesado para fazer a defesa de uma entidade privada (sim, as organizações Globo são privadas), passou, entre outras desculpas bem questionáveis, pela proximidade do prédio da RBS com o da Polícia Federal, que poderia ser alvo de ataques. Antes que algum crítico de plantão aponte, não estou esquecendo que o governador do RS era Tarso Genro, do PT. E isso diz muita coisa, claro que diz. Senão vejamos.

As Jornadas de 2013 tinham como bandeira o apartidarismo e mesmo o antipartidarismo. E para o maior partido do país não era interessante que ganhasse corpo um movimento que se dizia autônomo e prescindia da organização feita pelas instituições partidárias. Só que a estratégia utilizada para neutralizar a ação, que passou pela tentativa de desqualificar e tirar a legitimidade dos pleitos, se mostrou absolutamente equivocada e resultou no golpe que três anos depois derrubaria o próprio PT do governo central.

Ao contrário da Esquerda, que não soube na época avaliar com clareza o poder daqueles atos, a Direita, que desde a ascensão dos governos do PT estava na inusitada condição de oposição, faturou. No ano seguinte, Kim Kataguiri, Fernando Holiday e outros e outras JOVENS, fundaram o MBL. Daí para o aparecimento de tantos grupos de jovens… conservadores foi um pulinho. O filme que citei antes, que, tecnicamente falando, é apenas uma colagem de imagens e vídeos esparsos, retrata bem o papel dessa juventude conservadora na virada à direita que o país deu a partir de 2013. E quem deu a maior força a essa retomada da “conscientização” da juventude brasileira? Plim Plim! A resposta é… Rede Globo!

E, pra não fugir da tese marxista da repetição dos fatos históricos, vamos um pouquinho mais pra trás. Quem era Fernando Collor antes de ser presidente da república? Na res publica não era ninguém. Na vida privada, era diretor de um jornal ligado às organizações Globo. Caçou marajás – menos os seus – e ganhou da Globo um presentinho: a cadeira do Planalto. Com o tempo se mostrou perigosamente autônomo, disposto a voos solo, e teve as asinhas cortadas. (Mas foi só um tempinho de reciclagem. A Globo não desperdiça seus quadros.) Quem exerceu protagonismo na queda de Collor foi uma multidão de jovens, que a Globo, apelidou de “caras-pintadas”. A Globo e a juventude na linha de frente não é, portanto, nenhuma novidade.

Neste momento é interessante retomar uma ideia que já andou sendo pensada aqui na coluna: Bolsonaro está no fim, o bolsonarismo não. E o bolsonarismo é um sistema velho com uma cara jovem. A própria imagem do demente que governa o país passa uma ideia de jovialidade. Mas quando precisa, ele tira (ou põe) a máscara e mostra a própria decrepitude, que chega ao coração das pessoas na figura de um homem saudável que se tornou doente pelo atentado que sofreu por defender o país da ameaça vermelha. Um mártir, um mito que um dia está na praia de jetsky e no outro, hospital, sonda e cara de doente terminal.

Essa dicotomia, milimetricamente desenhada, é reproduzida nas entrelinhas do documentário que embasa a reflexão de hoje. Observem, no filme, as sutis diferenças entre os discursos das pessoas de mais idade e daquelas que estão da casa dos 40 anos para baixo, que, em política, podem ser chamadas de jovens. Enquanto a gente mais antiga propõe uma retórica baseada na experiência de quem viveu tempos melhores, interrompidos pela “trágica experiência comunista dos anos petistas”, e que sofreu as duras penas dessa inflexão histórica, a ala jovem vem com um discurso pesado, que não economiza incitação a ações violentas. Ora, é próprio da juventude um espírito mais aguerrido, que muitas vezes confunde agressividade com violência física. Essa é uma das misturas da receita básica do bolsonarismo: mesclar a suposta sabedoria advinda da experiência de quem já sobreviveu ao “comunismo”, com o temperamento incendiário da massa jovem, que quer tirar os “corruptos vermelhos” do poder nem que seja a pau. Os treinamentos paramilitares promovidos nos templos evangélicos, que aparecem ao longo de todo o filme, mostram que a lavagem cerebral que cria a inconciliável imagem do/a jovem reacionário/a, está em pleno curso.

O paradoxo político brasileiro está posto neste ano eleitoral. De um lado, a incompetência absoluta de Bolsonaro e sua família põe em risco a manutenção do projeto ultraliberal protofascista; de outro, essa mesma incompetência está sendo tratada nos círculos que determinam o poder como a reação contrarrevolucionária para frear a reestruturação das forças de Esquerda. Não é de graça que ao mesmo tempo em que Bonner e Renata, que, a propósito, ostentam imagens e linguagem bastante joviais, desciam a lenha em Bolsonaro na mídia televisiva, preferida do público bolsonarista, o jornalismo escrito, que chega em público diferente, em tese mais politizado, atacava Lula com a mesma virulência. No meio dessa briga, fomentada por ela mesmo, a Globo ganha tempo pra achar a terceira via.

Spoiler: Michel Temer anda sumido e Eduardo Leite foi retirado da linha de frente. Recuos estratégicos de um plano já arquitetado? Temer é culto, se veste impecavelmente, tem uma esposa bela, recatada e do lar, é bom de voto, principalmente em São Paulo, e Leite é o jovem conservador (como é difícil aceitar essa imagem!) adequado ao padrão. É certo que a Globo tem estimulado a polarização em dois lados com muitos e evidentes problemas, Lulismo e Bolsonarismo, que são explorados na mesma medida. Enquanto isso, vendo o barco do ex-juiz e ex-ministro, atualmente consultor para a recuperação de empresas que ajudou a quebrar, naufragar antes mesmo de deixar o porto, nada melhor do que resguardar possíveis candidatos, retirando-os da exposição massiva e mantendo a carta na manga para a hora certa, quando o eleitorado já estiver cansado e desesperançado e assim pronto para aceitar qualquer coisa que se lhe apresente como alternativa. Mesmo que sejam as mesmas velhas raposas velhas, acompanhadas por novas raposas velhas.

Que a Esquerda não seja como a pátria mãe, tão distraída…

*Imagem de destaque copiada de: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2015/03/em-culto-da-universal-jovens-gladiadores-se-dizem-prontos-para-a-batalha-4710883.html.&gt; Acesso em: 10 de jan. 2022.

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Eleições, Política

Um tucano na sala

No livro “Dez anos que abalaram o Brasil”, o professor e economista João Sicsú faz uma análise dos governos Lula e Dilma até 2013. O subtítulo aponta a crença do autor num quarto mandato, no mínimo, o que acabou se realizando, mas apenas pela metade: “E o futuro?”.

O futuro ali projetado não antevia o golpe de 2016. O título ecoa o “Dez dias que abalaram o mundo”, mas as semelhanças começam e terminam no trocadilho com o nome. O livro de John Reed, que trata da Revolução Russa, é uma das mais impactantes experiências da literatura jornalística, e que na minha prateleira está o lado dos melhores momentos de Gabriel García Marquez e de Joe Sacco. O livro de Sicsú pode facilmente ter uma crítica distorcida e ser chamado de panfletário. Essa não é a minha opinião. Vejo como um trabalho importante para começar a desmistificar algumas coisas da política brasileira pós-linha dura. Traz dados consistentes que mostram os grandes avanços sociais que o Brasil viveu nos governos petistas. Paradoxalmente, quem ler com atenção vai encontrar pistas para derrubar a ideia de que o Partido dos Trabalhadores fez governos comunistas. Sequer propriamente socialistas foram os anos de PT à frente do Executivo nacional. Não se pode entender isso sem pensar na equivocada ideia que o socialismo é uma forma branda de comunismo. Nas bases ortodoxas do marxismo/engelismo, o socialismo é a fase de transição, revolucionária e inevitavelmente violenta, portanto, de enfrentamento e ruptura com uma estrutura vigente. O comunismo é a chegada a um regime ideal, em que o sistema de opressões já tenha sido superado.

Desfeita essa confusão conceitual, pensemos na hipótese do primeiro mandato de Lula como governo de Esquerda puro. Não é preciso ir além da figura do vice-presidente, José Alencar, para mostrar o erro dessa concepção. Se estivermos anda pensando em termos marxistas, o vice de Lula é o grande representante do Capital no governo. Mas há muita gente que não sabe, por exemplo, quem foi Aureliano Chaves (talvez seja melhor dizer que há pouca gente que sabe) e, portanto, não dá a mínima importância para o vice, cargo que foi chamado de vaquinha de presépio por um dos personagens de Jô Soares nos anos 80. Para essas pessoas, podemos dar um argumento mais forte para relativizar o esquerdismo do governo Lula: Henrique Meirelles. Nessa linha, poderíamos ainda analisar ano a ano os governos do PT e encontraríamos a escalada dos lucros dos bancos, a imagem de Jorge Gerdau Johannpetter sempre presente como conselheiro, veríamos Joaquim Levy como ministro da fazenda, e chegaríamos, por fim, novamente ao vice, e desta vez de forma que não se pode esquecer, porque foi o artíficie do golpe. Quando da construção da chapa que viria a se eleger, por mais que se possa reduzir ao mínimo a importância do vice, que tipo de caráter socialista ou comunista Michel Temer poderia dar ao programa?

Ainda como sugestão de literatura política, “A privataria tucana”, de Amaury Ribeiro Júnior, e, sobretudo, “O príncipe da privataria”, este de Palmério Dória, mostram a consolidação do modelo neoliberal no braZil tucano. Avançando na investigação da ideologia da social-democracia à moda brazilis, temos que necessariamente passar pelo discurso de Aécio Neves, em sua primeira manifestação no plenário do senado pós derrota eleitoral, quando disse que seria o líder de uma oposição incansável ao governo Dilma. Para além do jogo político travado dentros das regras, que é o que talvez Aécio tenha referido (ou não), “Máfia da Merenda”, “Máfia dos Trens”, “Mensalão Tucano”, “Helicoca” e outras expressões, se jogadas no Google, vão abrir informações interessantíssimas sobre as práticas e políticas do PSDB e sua turma, turma essa que inclui o MDB. Pois um dos nomes que vai aparecer aqui e ali nessas pesquisas, mesmo que sejam feitas bem superficialmente, será o de Geraldo Alckmin, preferência de Lula para a construção de uma chapa para “vencer a eleição presidencial de 2022”.

“Eu tive uma extraordinária relação com o Serra, eu tive uma extraordinária relação com a Yeda Crusius [ver Operação Rodin], eu tive uma extraordinária relação com o Rigotto, porque eu não faço diferença na minha relação com os entes federados, eu não queria saber de que partido que era a pessoa, então com o Alckimin, eu tive uma extraordinária relação. O Alckimin foi um governador responsável aqui em São Paulo. […] Vamos ver se a hora que eu decidir ser candidato ou não, se é possível a gente construir uma aliança política, é preciso primeiro eu saber qual é o partido que o Alckmin vai entrar”. Isso, talvez com uma palavra a mais outra a menos, foi dito pelo Lula em entrevista à Rádio Gaúcha na semana passada. Lula é, na minha opinião, o político de linha de frente mais habilidoso da história do Brasil, só comparável a Brizola e Getúlio. Essa capacidade de articulação retórica faria ele se sair com facilidade de uma possível saia justa caso fosse perguntado se não seria uma contradição dizer que não olhava para partidos quando era presidente, mas que agora depende do partido a que Alckmin vai se filiar para ver se é uma boa decisão compor chapa com o (ex?) tucano. Também tiraria de letra, por certo, se alguém perguntasse se uma associação com um político liberal até a medula não implicaria repetir um programa de favorecimento ao mercado e facilitação aos banqueiros e grandes empresários, que marcou uma parte dos governos petistas. (A marca da outra parte foi a implementação de políticas sociais que tiraram milhões de pessoas da linha da pobreza absoluta.) Provavelmente, se isso for em frente, Lula vai desenvolver de forma extraordinariamente convincente o argumento das alianças pragmáticas e das questões de governabilidade para justificar a composição com um sujeito envolvido pessoal e partidariamente em suspeitas muito fundadas de corrupção, e participante ativo do processo de transformação do Brasil em braZil, a partir da sanha privatista de FHC e seus correligionários. Afinal, não são dessa ordem os argumentos utilizados para a defesa da presença de Temer como vice de Dilma? Na origem ele teria aderido à plataforma do PT, o que é uma resposta de tão óbvia quase pueril.

Quanto ao Partido dos Trabalhadores, na reta final da campanha de Haddad e Manuela em 2018, Mano Brown disse para um público petista que “Se somos o Partido dos Trabalhadores, tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar entender.” (Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/cultura/em-comicio-de-haddad-mano-brown-critica-pt-e-e-defendido-por-chico-e-caetano-3kmes3df2xhu24fk1i2aw7ho4/). Olívio Dutra, fundador do PT e uma das figuras mais sérias do cenário político nacional, há tempos faz críticas a algumas posturas do partido. Paulo Paim, que também dispensa apresentações, já andou dizendo que não pretende mais se candidatar a cargos eletivos. Seriam sinais de esgotamento do maior partido de Esquerda do Brasil, expressos no cansaço de lideranças históricas? Ao declarar que tem conversas entabuladas com um político com trajetória e plataforma política diametralmente oposta à essência de um partido que se quer situar no campo político da Esquerda, Lula não estaria de certa forma traindo a sua própria origem e a do partido? Ou estaria apenas assumindo um risco calculado, em nome de uma estratégia de retomada do poder e de reimplementação das políticas sociais que inegavelmente avançaram nos governos petistas como em nenhum momento anterior da história do país? Os fins justificariam os meios?

A experiência de alianças espúrias já mostrou que pode ter consequências desastrosas. Não seria o caso, então, de desta feita apostar numa associação com forças políticas de mesma linha? Não seria melhor tentar superar as diferenças pontuais dos programas dos vários partidos que compõem de fato o campo democrático, a fim de construir uma verdadeira frente de Esquerda para disputar o governo? Ou os fatores que impedem esses acertos estão mais ligados a uma vaidade e uma necessidade de protagonismo que suplanta os anseios do povo? A política é uma arte. E é uma arte complexa. Mas estamos diante de um momento em que a repetição de erros e a sustentação de um discurso arrogante e incapaz da humildade e da grandeza de ceder espaço a quem está mais próximo no campo das ideias pode ser a causa da consolidação do modelo fascista que se instalou no Planalto. Não podemos esquecer que do outro lado teremos o próprio Bolsonaro novamente e o seu ex-comandante em chefe, Sérgio Moro, em outra frente. Com essas (e talvez outras) opções fortes, a simples presença de Alckmin na chapa teria o poder de atrair votos do eleitorado de centro-direita? Como se não bastasse, há que se considerar o retumbante fracasso do tucano em 2018.

Lula será o fiel dessa balança e o PT terá de decidir entre o respaldo a uma articulação com fortes tendências suicidas – Lula/Alckmin – e uma volta às bases, como pediu Mano Brown. Ainda penso que isso tudo seja apenas mais uma jogada estratégica do grande ex-presidente. Aquela história de botar o bode na sala, neste caso, o tucano. E espero que as pessoas envolvidas percebam que este é o momento do PT resgatar a sua essência, mostrar que confia na sua própria história e, mais do que isso, que confia no seu povo. A alternativa é arriscar vender a alma ao diabo de novo. E o sete-pele já provou que não deixa uma fatura sem cobrança

*Imagem de destaque copiada de: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/12/alckmin-e-pressionado-por-aliados-a-desistir-da-vice-de-lula-e-disputar-governo-de-sp.shtml.&gt; Acesso em: 27 de dez. 2021.

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Direitos Humanos, Ideologia, Mídia, Sociedade

Tá lá o corpo estendido no chão: ou a arte de morrer na contramão atrapalhando o tráfego

Quando Danuza Leão lamentou o risco de encontrar o porteiro do prédio no aeroporto de Paris (https://www.geledes.org.br/o-perigo-de-dar-de-cara-com-o-porteiro-do-proprio-predio-danuza-leao-pede-desculpas-a-porteiros-e-leitores/), não estava expressando uma frustração meramente pessoal por ver que os espaços privativos do high society estavam ameaçados. A lógica que pobre só frequenta a universidade quando está trabalhando na construção do prédio estava sendo subvertida e era preciso fazer uma espécie de manifesto dando conta da insatisfação coletiva de uma classe que não estava acostumada a dividir o seu espaço com gente estranha. Naquele momento, Danuza assumia o papel de porta-voz de uma elite que se importa antes em manter a distância da “turma de baixo” do que com os próprios prazeres que as melhores condições econômicas podem oferecer. Poderia impregnar a conversa de uma ortodoxia marxista e examinar se Danuza integra a classe que detém o capital e os meios de produção, ou se é a contragosto integrante de uma classe “especial”, que é explorada, mas se recusa a aceitar e se enxerga no topo da pirâmide econômica. Isso não interessa agora, porém.

Algum tempo antes, um raivoso jornalista vociferou num telejornal de Santa Catarina contra os malditos miseráveis que naqueles tempos podiam comprar carros. As palavras do inexpressivo apresentador são tão chocantes que vale a pena reproduzir uma parte:

Se um desgraçado destes é atrop… – e esta é a palavra – se um desgraçado destes é atropelado e feito sanduíche na pista, o que é que vão dizer? Este trânsito insano!! Insano é o cara que para o camarada [sic], para o carro, atravessa a BR pra ver o que aconteceu com outra pessoa. Então é isso: estultícia, falta de respeito, frustração, casais que não se toleram [!], popularização do automóvel, resultado deste governo espúrio [o ano era 2010], que popularizou pelo crédito fácil o carro para quem nunca tinha lido um livro. Com a arrogância típica de quem é dono da verdade, o encerramento foi com um: É isso! (O comentário completo pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=4tbOIuPU5Vs&ab_channel=CRSS3.) Não vou entrar em detalhes sobre os estudos que mostram que os acidentes automobilísticos mais violentos são provocados por máquinas com preços de 6 dígitos e até mais, que, obviamente, não são pilotadas pelos desgraçados miseráveis referidos pelo colunista. Também não vem ao caso.

Na última terça-feira, estava ouvindo o programa Sala de Redação, e na transição para o Gaúcha Mais, quando costumeiramente ocorre um bate-papo entre os integrantes dos dois programas, o apresentador Paulo Germano fez uma referência à nova orla do Guaíba. Querendo destacar a democratização das áreas públicas da cidade, ele disse que as classes mais altas vão frequentar a beira do rio por conta da excelência do local, do alto nível dos equipamentos de lazer que lá serão disponibilizados (quadras de esportes, pista de skate etc.), enfim, atraídas pelo que de melhor aquele espaço vai oferecer. As classes mais populares também vão estar lá, segundo o comunicador, mas por uma razão diferente: é de graça.

É interessante observar rapidamente os perfis das pessoas que fizeram os comentários aí de cima. Danuza Leão é uma típica figura da geração Bossa Nova, a alta sociedade da zona sul carioca que fez sucesso entre a segunda metade do século passado e o começo dos anos 2000; já Luís Carlos Prates é um jornalista anacrônico, do tipo que não atende mais os requisitos das editorias modernas, mas que ainda encontra espaço aqui e ali em programas sensacionalistas ou em veículos com fortes vinculações com os interesses e as ideologias das elites. São, portanto, duas pessoas com uma trajetória de vida mais longa, que atravessaram um período de transição da sociedade, com grandes mudanças nos comportamentos e nas tecnologias. Assim, de certa forma é possível contextualizar as posições que elas expressam, absolutamente injustificáveis, mas compreensíveis. Assustador mesmo é o caso do Paulo Germano.

PG, como é conhecido, tem a imagem requisitada para trabalhar no jornalismo “sério” contemporâneo: jovem, descolado, com uma bagagem cultural interessante, transita com desenvoltura por assuntos diversos, como políticas públicas, música e livros (o fato de dia desses ter associado Bukowski aos Beats é – ou não – irrelevante), e é interessado nos acontecimentos diários da cidade. Assim o portal da Famecos o descreve: “Espontâneo e carismático. Um jornalista humano que consegue exercer a empatia em tudo o que faz. Paulo Germano Moreira Boa Nova, nascido em 17 de dezembro de 1982, sonhava em ser um pop star de sucesso mundial, mas acabou encontrando no jornalismo o sentido que tanto desejava para a sua vida.” (http://portal.eusoufamecos.net/muito-mais-que-profissional-a-famecos-me-formou-como-gente/).

Deixando Danuza e Prates de lado, pelos motivos mais ou menos já referidos, me intriga saber o que leva um cara com o perfil de Paulo Germano a expressar uma ideia tão datada e tão preconceituosa como a de que rico procura qualidade e pobre procura preço baixo. Como Marilena Chauí e Brecht já nos ensinaram que tudo é política, não vou me furtar do “mimimi” de colocar essa desimportante fala do jornalista da RBS num contexto mais amplo, de sustentação dos padrões segregatórios da sociedade moderna, das discriminações de todas as ordens, do racismo estrutural, do sexismo, da violência de gênero, enfim, de tudo o que de mais podre tem na mente humana e que reverbera nas relações sociais. Pego carona em Tolstói pra pensar que ao descrever um fato da aldeia, Paulo Germano está se manifestando quanto à cultura universal. Porque o que está por trás de uma fala aparentemente inofensiva dessas é tudo que está aí a sustentar essa sociedade de exclusão em que vivemos. Pensar num espaço público que é frequentado por umas pessoas pela qualidade e por outras só por ser gratuito é naturalizar a existência de pessoas de categorias humanas diferentes. É o tipo de pensamento que faz estranhar a presença de uma pessoa preta e pobre em um museu de arte, mas permite passar batido pela ausência de pessoas pretas e pobres em meio às que frequentam o Cais Embarcadero a passeio; é o tipo de pensamento que acha bobagem a preocupação em eliminar termos e expressões racistas e sexistas da linguagem diária, sob o argumento que apenas refletem costumes arraigados; é o tipo de pensamento que permite ver que Paulo Germano, David Coimbra, Cristina Ranzolin, Daniela Ungaretti etc. etc. etc., dividem os espaços da linha frente dos veículos da maior rede de comunicação do Rio Grande do Sul com a Fernanda Carvalho, e só com ela de mulher negra, além de nenhuma PCD, e achar isso normal; é o tipo de pensamento que talvez imagine que não há mulheres trans nem homens assumidamente gays nas faculdades de jornalismo ou que essas pessoas não têm competência e qualificação profissional para estar na RBS; é o tipo de pensamento que acha normal que o Jornal do Almoço dê início à programação comemorativa dos 250 anos da capital da europa brasileira sem fazer referência às pessoas negras que construíram a grandeza da cidade e que, quando aparecem nas matérias, é apenas pelos aspectos pitorescos que são construídos, como histórias de superação e exceção, dignas de admiração por pena e não por respeito e reconhecimento aos seus valores; é o mesmo pensamento que não vai mostrar a luta das comunidades indígenas da zona sul da cidade para manter a posse das suas terras e a sua dignidade, e que vai naturalizar que mães e crianças guaranis sejam tratadas como pedintes no Brique da Redenção. Redenção, a propósito, que é um nome lindo e cheio de significados, mas não oficial, porque o que está nos registros da municipalidade homenageia os grandes heróis (e abigeatários) farrapos.

Enfim, queiram ou não, a frase aparentemente sem importância do Paulo Germano transporta essa pesadíssima carga de discriminações e violências, mesmo que talvez ele não seja, como provavelmente não é, conscientemente racista e elitista. E este é justamente o problema maior que enfrentamos: o racismo quase nunca é consciente, assim como quase nunca o são a homofobia, a misoginia e tudo mais. Raramente vamos ver alguém dizendo abertamente: “Eu sou racista!” ou “Eu sou homofóbico!” Mesmo Jair Bolsonaro, que disse preferir um filho morto a um filho gay e comparou quilombolas com bois, não se assume como racista e homofóbico e tem um exército de seguidores fanáticos sempre de prontidão para defendê-lo dessas – e de outras – acusações. Assim, fica cada vez mais evidente que enquanto não pararmos de “passar pano” para essas veladas manifestações de discriminação (refiro-me às do PG), naturalizando e dando pouca importância a elas, não avançaremos nos processos verdadeiramente civilizatórios (eu prefiro mesmo chamar de humanizatórios) que precisamos implementar.

Em um conversa recente sobre essas coisas, o meu amigo Douglas Ricalde me fez atentar para o artigo 7º da Lei 12.711, de 2012, que trata da política de cotas nas universidades. Este artigo determina que no prazo de 10 anos a partir da publicação da lei, o programa deve passar por revisão. Isso vai acontecer no ano que vem e há duas possibilidades: por ser ano eleitoral, talvez o Congresso se dobre às pressões que deverão ser feitas pelas pessoas e grupos interessados não só na manutenção do sistema quanto no seu aperfeiçoamento; por outro lado, dada a terrível configuração do parlamento, formado em grande parte por gente ligada a todo tipo de interesse espúrio, há forte chance da lei ser até revogada. No embate que certamente vai se travar, cabe à sociedade civil e ao campo progressista pensar a articulação desde agora para que esta não seja mais uma política de avanço social a ser aniquilada pelas forças nazifascistas que comandam o país.

*Imagem de destaque copiada de: <https://edisilva64.blogspot.com/2018/09/quando-o-pobre-adere-ao-discurso-do.html&gt;. Acesso em: 5 de set. 2021. (A imagem foi editada para que não apareçam os rostos das pessoas.)

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bolsonarismo, Política, Rede Globo

Quando é preciso se aliar com o capeta pra derrubar o diabo

Entre as transformações sociais gigantescas que as últimas décadas apresentaram ao mundo, a televisão é das mais impressionantes. Há algumas décadas, as redes eram conhecidas pelo número (canal 12, canal 5 etc.) e os aparelhos transmitiam imagens em preto e branco, muitas vezes sujeitas a interferências que se resolviam com absoluta criatividade, como botar um pedaço de bombril na ponta da antena para estabilizar a imagem. O advento das parabólicas promoveu uma pequena revolução no mundo das transmissões televisivas. Além de garantir uma boa qualidade de imagem (talvez menos do que razoável nos padrões atuais), uma antena dessas possibilitava assistir programas de outros lugares, à vezes até bem remotos, de outros países, por exemplo. Logo em seguida vieram os serviços de assinatura, pelos quais se pagava para ter acesso a uma programação de maior qualidade. Lembro de uma entrevista que li com o Ratinho anos atrás em que dizia que o negócio dele era apresentar programa “povão” mesmo e quem quisesse programação de qualidade deveria assinar “tv a cabo”. Em um sistema que poderia se dizer, por analogia, de dupla ou tripla tributação, apareceram logo os conteúdos disponibilizados em pay-per-view, literalmente “pague pra ver”. Além de pagar a conta da luz, a pessoa precisava assinar um serviço de transmissão especial, a tal tv a cabo do Ratinho, e, caso quisesse um conteúdo mais específico, tinha que desembolsar mais uma grana para aderir ao pay-per-view. Hoje já estamos em outra fase, com as plataformas de streaming (Netflix, Amazon, Globoplay). Sabe-se lá o que vem pela frente.

Nesse tempo todo, uma coisa não mudou: a Rede Globo continua nadando de braçada no mar da grande mídia. E essa hegemonia faz com que nada lhe escape. Digo isso porque vejo muita gente maravilhada com a cruzada anti-bolsonarista promovida pela rede. Eu me paro muitas vezes em frente à tv me deliciando com os ataques do apresentador e editor do Jornal Nacional ao governo bolsonaro. E acho mesmo que isso deve ser saudado, porque quando o inimigo é o diabo, lutar do lado do capeta não é de todo ruim. Mas, como diria Raulzito, conserve seu medo. Basta reparar com alguma atenção e um olhar mais crítico na linha editorial proposta pelo jornal televisivo de maior audiência no país para perceber que, no meio do tiroteio desferido incessantemente contra Bolsonaro, Weintraub (100 mil mensais no Banco Mundial…), Araújo, Salles, enfim, na artilharia contra (nem) todo o séquito do governo bolsonaro, falta um alvo. Nunca, digo de novo e destaco, NUNCA há qualquer crítica ao chicago boy Paulo Guedes e à plataforma econômica do governo fascista. Então eu lembro que naquela reunião ministerial que deveria derrubar a república, o próprio Bolsonaro disse que não passaria pano pra nenhum ministro. Nenhum, com exceção daquela figura quase caricatural, que bem poderia estrelar um filme do Woody Allen (como tantas neste desgoverno), porque, segundo o próprio genocida presidente, com este não precisa se preocupar.

Imagem copiada de https://www.jornalgrandebahia.com.br/2018/11/governo-bolsonaro-paulo-guedes-deve-assumir-funcoes-do-trabalho-e-aniquilar-direitos-trabalhistas-e-sociais/

Num tempo em que as instituições ainda tentavam funcionar nos parâmetros republicanos, no já longínquo 1994, um constrangido Cid Moreira, que já foi a própria Voz de Deus, leu, no mesmo Jornal Nacional, um texto escrito por Leonel Brizola, que por determinação judicial conquistou o direito de se defender das acusações que a rede lhe fazia em tempo integral e que certamente o impediram de ter exercido o cargo máximo da república (a história se repetindo). Aqui uma boa matéria sobre o fato, inclusive com o vídeo: http://memorialdademocracia.com.br/card/quando-a-justica-vergou-a-tv-globo

Passado um quarto de século, a luta anticorrupção (?) e a plataforma ultraliberal foram duas colunas de sustentação da eleição de Bolsonaro. Enquanto o discurso de mãos limpas do presidente da república de curitiba falava direto aos corações e mentes da classe mé(r)dia, sedenta pelo sangue da bandidagem, (do colarinho branco e da favela, com preferência para o da última), a plataforma entreguista de Guedes garantia o apoio da elite empresarial, que congrega a tchurma do agronegócio (agro é pop…), da educação, da exploração dos recursos energéticos e outras, com as quais a Rede Globo mantém sólidas relações. A bem da verdade, nessas e em outras áreas, a Globo tem muito mais do que boas relações, tem participação direta, como mostra a série de reportagens veiculadas no Le Monde Diplomatique Brasil em 2018 (https://diplomatique.org.br/investigando-os-donos-da-midia-no-brasil-pos-golpe/).

Tenho pra mim, e converso com pessoas que pensam mais ou mesmo da mesma forma, que os governos Lula e Dilma passaram muito longe do comunismo, e isso é uma obviedade, mas que sequer podem ser considerados modelos de governos de esquerda. Para comprovar isso, basta ver que nomes como Joaquim Levy, Henrique Meirelles, Katia Abreu, Jorge Gerdau Johanpetter, o próprio vice de Lula, José Alencar, entre outros representantes da elite, tiveram trânsito livre e posições de destaque nos anos em que o PT ocupou o Planalto. Sei que alguém dirá, e com certa razão, que é preciso fazer alianças, ceder aqui e ali, abrir mão de algumas coisas em troca de outras mais importantes, enfim, é preciso fazer política em sentido amplo para governar um país. E não tenho dúvidas que os governos de Lula e Dilma foram disparadamente os melhores da história do Brasil. Só que governaram para os dois extremos, o dos muito ricos (os bancos lucraram horrores) e o dos muito pobres (milhões de pessoas deixaram a linha da pobreza absoluta), deixando em segundo plano os interesses mais imediatos de quem não estava em nenhuma dessas pontas. Esse erro acabou sendo fatal, pois na onda das Jornadas de Junho, cujas pautas eram as da classe média (agora sem r no meio), a direita e, pior, a extrema direita, ou pior ainda, o fascismo, soube surfar e o resultado tem nome, Golpe, e sobrenome, Messias Bolsonaro. Da mesma forma que numa concepção clássica do marxismo o socialismo deveria preparar o terreno e fazer a transição para o comunismo, o governo golpista de Michel Temer apenas limpou o mato (e a mata) para o nazifascismo bolsonarista.

Agora, a mesma Globo que vetou Brizola e elegeu Bolsonaro é vista como a salvação da lavoura. De que vai salvar a lavoura há pouca ou nenhuma esperança, mas que ajudará, como ajuda sempre e muito, os donos da lavoura, disso não há nenhuma dúvida. Assim, que aceitemos a ajuda da rede pra derrubar Bolsonaro, mas que fiquemos com as orelhas em pé, sabendo que a turma do Bonner não dá ponto sem nó e que as estratégias que usou no passado vão continuar na ordem do dia neste novo… Millenium.

*Imagem de destaque copiada de https://www.otvfoco.com.br/globo-coloca-bolsonaro-no-bbb-e-coloca-presidente-no-paredao-durante-noite-inteira-na-tv/

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Política, Republicados

“Olha o velhinho” por LFV*

Um fenômeno novo na realidade brasileira é o ódio político, o espírito golpista dos ricos contra os pobres. O pacto nacional MARX LUTA DE CLASSESpopular articulado pelo PT desmoronou no governo Dilma e a burguesia voltou a se unificar. Economistas liberais recomeçaram a pregar abertura comercial absoluta e a dizer que os empresários brasileiros são incompetentes e superprotegidos, quando a verdade é que têm uma desvantagem competitiva enorme. O país precisa de um novo pacto, reunindo empresários, trabalhadores e setores da baixa classe média contra os rentistas, o setor financeiro e interesses estrangeiros. Surgiu um fenômeno nunca antes visto no Brasil, um ódio coletivo da classe alta, dos ricos a um partido e a um presidente. Não é preocupação ou medo.

É ódio. Decorre do fato de se ter, pela primeira vez, um governo de centro-esquerda que se conservou de esquerda, que fez compromissos, mas não se entregou. Continuou defendendo os pobres contra os ricos. O governo revelou uma preferência forte e clara pelos trabalhadores e pelos pobres. Não deu à classe rica, aos rentistas. Nos dois últimos anos da Dilma, a luta de classes voltou com força. Não por parte dos trabalhadores, mas por parte da burguesia insatisfeita. Dilma chamou o Joaquim Levy por uma questão de sobrevivência. Ela tinha perdido o apoio na sociedade, formada por quem tem o poder. A divisão que ocorreu nos últimos dois anos foi violenta. Quando os liberais e os ricos perderam a eleição, não aceitaram isso e, antidemocraticamente, continuaram de armas em punho. E, de repente, voltamos ao udenismo e ao golpismo.

Nada do que está escrito no parágrafo aí em cima foi dito por um petista renitente ou por um radical de esquerda. São trechos de uma entrevista dada à Folha de S. Paulo pelo economista Luiz Carlos Bresser Pereira, que, a não ser que tenha levado uma vida secreta todos esses anos, não é exatamente um carbonário. Para quem não se lembra, Bresser Pereira foi ministro do Sarney e do Fernando Henrique. A entrevista à Folha foi dada por ocasião do lançamento do seu novo livro A Construção Política do Brasil, e suas opiniões, mesmo partindo de um tucano, não chegam a surpreender: ele foi sempre um desenvolvimentista neokeynesiano. Mas confesso que até eu, que, como o Antônio Prata, sou meio intelectual, meio de esquerda, me senti, lendo o que ele disse sobre a luta de classes mal-abafada que se trava no Brasil e o ódio ao PT que impele o golpismo, um pouco como se visse meu avô dançando seminu no meio do salão (“Olha o velhinho!”) e de terna admiração. Às vezes, as melhores definições de onde nós estamos e do que está acontecendo vêm de onde menos se espera.

Outro trecho da entrevista: “Os brasileiros se revelam incapazes de formular uma visão de desenvolvimento crítica do imperialismo, crítica do processo de entrega de boa parte do nosso excedente a estrangeiros. tudo vai para o consumo. é o paraíso da não nação”.

Texto escrito por Luís Fernando Veríssimo, publicado na página 3 da edição de abril de 2015 do Jornal Extra Classe.

LFV EXTRA CLASSE 04.2015

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 7/5/2015.

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Mídia, Republicados

Outros carnavais…*

Na última quarta-feira,Imagem participamos de um debate, promovido pelo Museu de Comunicação Social, sobre a relação do humor com a tragédia, tendo como ponto de partida o incêndio da boate Kiss. Na mesa, comandada pelo Augusto Bier, diretor do Museu, só havia gente grande: da esquerda para a direita: Eugênio Neves, Edgar Vasques, o próprio Bier, Máucio e Leandro Bierhals. Além da plateia, reduzida, mas interessada, houve a participação em muitos momentos do ex-jornalista (ex segundo ele próprio) e escritor Rafael Guimaraens, que já escreveu belos livros sobre coisas de Porto Alegre.

O debate teve momentos comoventes, como os relatos do Máucio, que é professor da UFSM e mora em Santa Maria, além das palavras do Bier, no vídeo anexo.

VÍDEO INDISPONÍVEL

Foram analisados vários aspectos dessa relação que os profissionais do humor têm com eventos trágicos, aos quais deve ser dado naturalmente um tratamento todo especial. Foram mostradas em telão algumas charges, a maioria muito bem feita e com grande sensibilidade. A do Marco Aurélio, que ficou famosa por, entre outras coisas, ter como consequência uma geladeira dele na zh*, foi bastante discutida, e, porque não dizer, demolida.

CHARGE KISS MARCO AURÉLIO

Outra charge bem interessante apresentada é uma feita pelo Chico Caruso, que liga a Dilma à tragédia, de forma negativa, obviamente, afinal não se poderia esperar outra coisa de um destacado “colaborador” das organizações globo e cia.

CHARGE KISS CHICO CARUSO

Por vezes o debate fugiu um pouco aos limites impostos pelo tema e passou a analisar a atuação da mídia de forma mais ampla. Num dos melhores momentos, o Eugênio Neves fez relatos interessantíssimos do tempo em que trabalhou na zh, de onde saiu por não concordar com os mandalhetes representantes do ideário da alta cúpula. E é esse o gancho que eu quero pegar pra abordar o assunto de agora.

A zh nasceu apadrinhada pela repressão, acho que isso não é segredo pra ninguém. E se manteve nos 21 anos do regime extremamente afinada com as ideias da milicada, que, por sua vez, estavam afinadíssimas com as ideias de outros grupos econômicos e sociais. Dizer que a globo e seu séquito sustentou a ditadura ou vice-versa é como desenhar uma cobra mordendo o próprio rabo, porque elas foram e são, no fundo, engrenagens de uma máquina montada para atender interesses de certas elites que, por incrível que pareça, ainda se mantêm no domínio, justamente por intermédio da mídia corporativa, encabeçada pela globo, veja, folha de são Paulo e afins.

Eu quero, neste texto, dar uma pequena mostra de como funciona a manipulação feita pela grande mídia, que forma uma “ideologia” canhestra na cabeça das pessoas que têm preguiça de pensar ou que, por qualquer motivo, não têm acesso a canais de informação mais qualificados.

Na capa da zh de domingo, aparece em destaque a seguinte manchete:

Quem dá mais

Médicos ganham até R$ 32 mil no interior

Pra garantir permanência de profissionais, municípios pagam até o dobro do salário dos prefeitos.

Muito bem, um dos assuntos da última semana foi a iniciativa do governo central de chamar médicos estrangeiros para trabalhar nos locais em que os brasileiros não querem ir. Estão incluídos médicos portugueses, espanhóis e… cubanos. Bueno, aí é que a porca torce o rabo. Como assim, médicos cubanos? O que essa louca da Dilma está querendo? Encher o país de comunistas e reacender as chamas da Revolução? Pois é, e daí decorre um discurso violento contra a medida, que inclui os Conselhos de Medicina, falando do absurdo disso, que os cubanos não têm competência, que é preciso qualificar o serviço com os profissionais brasileiros etc., etc. e tal. Ok, mas só os cubanos são incompetentes? Quem sabe a gente dá uma olhadinha no outro lado da coisa, pelas palavras de quem entende do assunto:

http://www.sul21.com.br/jornal/2013/05/a-questao-da-vinda-dos-medicos-cubanos-para-o-brasil/

Talvez alguém esteja se perguntando qual o problema com a manchete da zh. Simples. Um dos argumentos para a importação desses profissionais é que os médicos brasileiros não têm interesse em trabalhar em alguns locais, seja pelo difícil acesso, pela distância dos grandes centros ou pelos baixos salários oferecidos. Ocorre que o cara que sai pra trabalhar todo o dia, sempre na correria, e não tem tempo de ler o jornal, ou, melhor, de se informar em outras fontes, passa pela banca e lê a tal manchete. Daí ele sai pensando mais ou menos assim: “Os caras pagam bem pros médicos, então por que essa mulher – a Dilma – quer trazer os comunistas?” E debate essa ideia com os colegas de escritório ou de repartição. E aí, como todos sabem, é o famoso telefone sem fio das brincadeiras de criança, a coisa virou um monstrengo. E a verdade? Bom, quem se interessa pela verdade? Mais uma vez a mídia corporativa – zh – cumpriu com extrema maestria o seu papel de distorcer os fatos, manipular a informação e formar uma opinião absolutamente limitada e míope no seu público. Ponto para os sirotsky.

Só que a coisa não para por aí. Eu tenho a mania de ler todo o jornal. E antes que alguém me pergunte por que eu leio a zh, se tenho tanto horror dela, digo simplesmente que se não lesse não poderia estar escrevendo este texto. Além do mais, não sou maniqueísta, e reconheço que até a zh tem algumas coisas boas, desde que os leitores não tenham preguiça de procurar. Então, lendo o miolo do jornal, chego lá na página de opinião (p. 16), onde de 15 em 15 dias escrevem o Marcos Rolim e o Percival Puggina. (Sobre este, chega a dar nojo…) Ali tem também as frases da semana, das quais a grande maioria é totalmente descontextualizada e trabalhada de acordo com os interesses editoriais, que, já vimos, são, no mínimo, questionáveis. Lá está a seguinte frase, da Marilena Chauí: “Eu odeio a classe média”. Frase forte. E num primeiro momento revoltante, certo? O engraçado é quem em todas as outras frases há uma pequena explicação que dá a ideia do contexto em que elas foram proferidas. Esta, porém, está lá solta no mundo.

Para quem não sabe, a Marilena Chauí é uma das grandes pensadoras do Brasil e do mundo, fundadora do Partido dos Trabalhadores, e tem a sua formação centrada no marxismo. Ah, bom, mas aí começa a ficar claro o que a editoria de zh fez. Acontece que o ódio que a Marilena devota à classe média não se refere à classe de trabalhadores, que sustentam o país, da qual ela é integrante convicta. Esse conceito de classe média é um conceito capitalista, criado para manter as coisas nos seus devidos lugares, de acordo com os interesses das elites dominantes. Sabem como é, aquela história de cada um no seu quadrado. É essa definição de classe média que ela pretende atingir por trás das suas palavras fortes e agressivas. E, sim, por consequência, também as pessoas que fazem parte deliberadamente desse grupo, que são usadas pelos sistema e que, por terem condições de andar de carro zero e mandar seus filhos pra Disney, acham que o país não tem problemas e que todo mundo tem os mesmos direitos a educação, trabalho, lazer e todo aquele blá, blá, blá irritante e repetitivo da desinformada (e/ou manipulada)… classe média. Vamos ver a coisa dita dentro do seu contexto:

Num livro muito bom, chamado “A máquina capitalista: como funciona – porque paga baixos salários – papel do intelectual na luta pelas mudanças – em exemplo: rbs”, escrito lá em 1988 (editora Vozes), o Pedrinho Guareschi, que, imagino, dispensa apresentações, e o Roberto Ramos, que é jornalista e professor, traçam um mapa do pensamento capitalista e do funcionamento da estrutura, usando, na segunda parte do livro, já que a primeira, a cargo do Pedrinho, é mais teórica, exemplos vividos pelo próprio Roberto, quando foi repórter da zh. Olha, gente…

No livro, fica clara a distinção entre as teorias de classe. Uma, a capitalista, que define as coisas pelo poder econômico, e assim cria a classe alta, a média – e suas subdivisões – e a baixa. Outra, alinhada com a ideia das relações de produção, estabelece que há somente duas classes, a dos detentores dos meios de produção e a dos trabalhadores. Ou seja, numa visão histórico-crítica, a classe média não existe, ela é uma criação da ideologia capitalista, com a intenção de acomodar as pessoas, afinal, quem atingiu o nível da classe média não tem do que reclamar…

Assim, amigos, vejam o que o trabalho minucioso da imprensa mau-caráter faz com a cabeça das pessoas. Aqueles que não se contentam em nadar na superfície, e porque buscam a raiz das coisas são muitas vezes chamados de radicais (radical vem de raiz), descobrem coisas interessantíssimas sobre essa forma de agir da mídia podre. Seria muito bom ter mais gente assim.

Para encerrar, relato três passagens do livro citado, tiradas da segunda parte, isto é, não são material teórico, mas sim experiências reais, protagonizadas por um dos autores:

“Na primeira semana de março [1987], corria uma ordem expressa emanada do editor-chefe, ex-porta-voz do governo Médici. Não podia sair nada contra o governador Pedro Simon. No Rio Grande do Sul não havia problemas. Sobrava dinheiro nos cofres públicos e os professores e os funcionários públicos estavam, integralmente, satisfeitos com os seus contracheques achatados.” (p. 102)

“A comunicação é, hoje, o grande poder. Alguns a chamam de quarto poder. Essa afirmação só não é totalmente verdade (não que a comunicação não seja um) porque, em vez de representar o quarto, significa o primeiro!” (p. 113)

“Se é a comunicação que constrói a realidade, que país é esse, onde essa comunicação, isto é, os meios de produção da comunicação, estão nas mãos de uma minoria reduzidíssima?” (p. 113)

Tiro três conclusões disso tudo:

1- a mídia corporativa (podre) manda no país;

2- a imprensa podre, que manda no país, é dominada pelos marinho e seus asseclas, a saber os sirotsky no Rio Grande; e

3- a canalhice da zh vem de outros carnavais…

*Adotarei o costume de usar letras minúsculas sempre que me referir à mídia corporativa.

Agradecimentos: Eliane Fay, que me emprestou o livro, e direção do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 20/5/2013.

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Política, Republicados

A Arena que não é pro futebol*

Nos últimos tempos, sempre que se fala em Arena neste Continente de São Pedro, a primeira ideia que vem à cabeça é a praça de esportes que está sendo erguida no Humaitá, que, paixões clubísticas à parte, parece ser uma obra muito bem construída. Entretanto, a minha preocupação atual é com outra ARENA, que se costuma grafar com letras maiúsculas.

Acho que todos devem saber, ou pelo menos deveriam, que a Aliança Renovadora Nacional – ARENA, congregou as forças “revolucionárias”, que a partir de 1964 implantaram no Brasil um sistema de trevas, conhecido como ditadura militar, anos de chumbo, regime de exceção etc. Pois esta ARENA era o partido o oficial do regime, que sufocou todas as outras manifestações ideológicas em qualquer nível. A saída para os contrários ao sistema linha dura era trabalhar na clandestinidade ou militar no partido de oposição autorizado pelo comando central da caserna, o MDB – Movimento Democrático Brasileiro. A partir do fim do regime autoritário, a ARENA dissolveu-se e gerou vários partidos, PDS, PFL, PP, DEM etc. O pluripartidarismo vigente no país permite (e até incentiva, em nome de certos interesses) o surgimento de partidos de programa e ideologia confusos, que geram alianças e apoios no mínimo esquisitos (Ana Amélia – PP, apoiando Manuela – PC do B). Essa confusão ideológica faz com que a divisão entre esquerda e direita soe um tanto quanto anacrônica aos meus ouvidos, embora ainda seja necessária, principalmente quando se pretende contextualizar as coisas.

De qualquer forma, no aspecto histórico, temos um partido, ARENA, que sustentou o regime repressivo, e que deu origem a diversas agremiações, dentro daquilo que o Brizola costumava chamar de “filhotes da ditadura”. Pois é esse partido que a jovem Cibele Bumbel Baginski, estudante de Direito da Universidade de Caxias quer reconstruir.

Quando ouvi as primeiras notícias sobre isso, não dei bola. Achei que era coisa de grupos neo-nazistas, neo-fascistas ou outros neos que andam por aí, que são perigosos, evidentemente, e precisam ser combatidos, mas que acabam não tendo o potencial necessário para um ato dessa monta. Todavia, a edição de 13 de novembro de 2102 do Diário Oficial da União, traz nas páginas 202 e 203 da Seção 3, a publicação do Estatuto da ARENA, que é um ato prévio ao recolhimento de assinaturas para a fundação de um partido. É isso mesmo, a guria publicou o estatuto do partido. Está lá, disponível para quem quiser conferir:

http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?data=13/11/2012&jornal=3&pagina=202&totalArquivos=240

Trabalhei durante um tempo na Biblioteca da Procuradoria Regional do Trabalho (cabe uma referência à excelente Bibliotecária, Sachi, para quem pedi auxílio para encontrar a publicação oficial) e sei que a publicação de uma matéria na imprensa oficial não é algo que se possa considerar muito barato. Há notícias que a Cibele levantou o dinheiro através de campanhas nas redes sociais. Isso mostra a força do projeto e aponta de forma inequívoca para o sucesso da empreitada.

Examinei o estatuto e destaquei alguns pontos sobre os quais acho interessante fazer algumas observações.

O artigo 1º define o partido e é, de certa forma, uma síntese de toda a proposta. O parágrafo 2º diz: “A ARENA possui como ideologia o conservadorismo, nacionalismo e tecno-progressivismo, tendo para todos os efeitos a posição de direita no espectro político, devendo as correntes e tendências ideológicas ser aprovadas pelo Conselho Ideológico (CI), visando a coerência com as diretrizes partidárias.”

A minha amiga Karen Pereira, jovem estudante, que eu conheço apenas pelo mundo virtual, me mandou um mail com um link para um texto de um professor de Relações Internacionais, Leonardo Dutra, publicado no clicrbs (http://wp.clicrbs.com.br/doleitor/2012/11/22/artigo-arena/?topo=13,1,1,,,13), que, entre outras coisas, diz o seguinte: “Apesar de despertar a repulsa de diversas camadas da atual sociedade brasileira acostumada à preponderância de ideias de centro-esquerda, a necessidade de representação do pensamento conservador é tão importante quanto a defesa da mudança na sociedade. É tão danoso para um país um governo de direita onde a esquerda é reprimida quanto um governo de esquerda, onde a direita não existe.”  E ainda: Como explicitado nos últimos pleitos, especialmente nas últimas eleições presidenciais, a inexistência de uma direita com representação política no país deixa sem voz uma parcela significativa da população, partidária da defesa da liberdade entre os cidadãos brasileiros, e pouco simpática ao atual esforço político no poder, que elegeu a igualdade como bandeira principal de seus programas políticos.”

Olha, embora não saiba em que instituição o professor leciona, creio que ele seja uma pessoa esclarecida e com condições de exercer o magistério. Entretanto, parece faltar-lhe uma visão mais acurada do panorama político brasileiro. Como ele pode dizer que o conservadorismo não está representado no país? Ali em cima eu falei apenas de alguns partidos de tendência reacionária. Examinando a composição das casas legislativas pelo Brasil afora, veremos que esses partidos representam uma parte muito significativa delas. O Rio Grande do Sul é representado no Senado por um parlamentar identificado com a esquerda (Paulo Paim), um com histórico de lutas sociais, mas que pertence a um partido que, não sendo o único, é hoje um verdadeiro balaio de gatos (Pedro Simon) e uma senadora direitista até a medula (Ana Amélia Lemos), defensora dos interesses da classe ruralista, que se elegeu graças ao poder do grupo jornalístico em que trabalhou a vida inteira, que não é outro senão a sucursal gaúcha daquele grande conglomerado que ajudou a sustentar o regime “revolucionário” de 1º de abril. Ou seja, um terço da bancada gaúcha do senado é de direita, o outro terço é indefinível e apenas um terço é claramente identificado com políticas marxistas. Fora isso, um dos parlamentares que mais tem espaço na mídia gaúcha é o senhor Onyz Lorenzoni, um dos caciques do DEM. E falo apenas do Rio Grande porque é a realidade que mais domino, mas no Brasil não é diferente, haja vista as pressões da turma do campo acerca do Código Florestal. Falta representatividade à direita? Por favor, professor… As palavras finais do trecho citado metem uma dúvida na cabeça: afinal, o professor acha mesmo bom a existência de um partido que represente os grupos pouco simpáticos “ao atual esforço político no poder, que elegeu a igualdade como bandeira principal de seus programas políticos.” Ora, a igualdade não é a aspiração máxima da sociedade? A quem, interessa, então, barrar um projeto que tem como finalidade aquilo que todos os brasileiros desejam e que é, inclusive, um dos primados da Constituição Federal?

Seguindo adiante no estatuto, vemos que o parágrafo 3º do artigo 1º prevê que “A ARENA, em respeito a convicções ideológicas de Direita,não coligará com partidos que declaram em seu programa e estatuto a defesa do comunismo, bem como as vertentes marxistas (…).” Até aí nenhum problema, a definição é plenamente coerente com os ideais do partido. O problema é o artigo 2º, que no item IV diz que a ARENA tem por objetivos “incentivar o desenvolvimento da cidadania, opinião crítica e social, a formação da personalidade dos jovens (…)” Tudo bem que não coligue com comunista, mas para estimular a opinião crítica e social é necessário que se apresentem de forma clara e isenta as correntes contrárias ao pensamento do partido, e qualquer um que ler com atenção o citado § 3º vai entender que ali está, nas entrelinhas, que o comunismo, o marxismo, a esquerda, enfim, não presta. Coerência: 0!

O item VI do mesmo artigo diz: “Resguardar a soberania nacional, o regime democrático e o pluralismo político de toda a forma de unanimidade de pensamento ou hegemonia política.” Desconfio que a moça e seus seguidores desconhecem o que aconteceu no Brasil entre 64 e 85. Como pode alguém pregar o pluralismo de ideias justamente tentando recriar um partido que elegeu o pensamento único como um de seus mais eficientes mecanismos de manutenção no poder? Tem algo errado aí…

Já na parte do Programa Nacional de Atuação, no item referente aos Direitos Humanos (?), o estatuto diz que o partido vai buscar a “Abolição de quaisquer cotas raciais, de gênero, ou condições ‘especiais’” Bueno, primeiro, falta esclarecer o que são condições “especiais” (está entre aspas no original). Há quem defenda (eu!) e há quem seja contra as cotas. Sem problema. Fica engraçado é quando uma pessoa é contra os programas sociais, propõe a (re)criação de um partido que tem entre seus objetos extingui-los, mas está na universidade por intermédio do PROUNI. Sim, meus amigos, a guria é beneficiária do PROUNI e acha que não tem nenhuma contradição nisso. Eu é que não entendo nada de nada mesmo…

Logo em seguida, o partido defende a maioridade penal aos 16 anos, outro tema polêmico, que não vou abordar agora, e abre um campo para falar de Educação e Cultura. Aí eles querem o “Retorno ao currículo escolar das disciplinas de Educação Moral e Cívica e Latim.” Eu e muitos dos que vão ler este meu escrito, frequentamos o colégio na época da ditadura. Na faculdade, ainda como resquício do governo dos milicos, estudei Realidade Brasileira, que era o nome novo de Estudos de Problemas Brasileiros. Sobre o que eu vi na faculdade, desnecessário falar, porque na época eu já tinha melhores condições de discernimento. Mas na Moral e Cívica eu “aprendi” que o amor à pátria é um “sentimento” imposto e obrigatório, não uma manifestação espontânea; “aprendi”, também, que a família é a célula nuclear da sociedade. Será que a nova Moral e Cívica vai aceitar as uniões homoafetivas como famíliase, portanto, células nucleares da sociedade?

Sobre o Latim, vejam o que disse um dos comentadores do texto do professor, citado ali em cima: “Exceto pela aula de latim (base para entender não só o português corretamente mas também o italiano, francês, espanhol e quiçá o inglês), de resto é puro nonsense.” Gostaria que essa pessoa explicasse um pouquinho melhor o que é entender corretamente o português e no que o latim pode ajudar nessa tarefa. Salvo se o cara pretende ler o Camões ou as coisas escritas antes dele, o latim vai ajudar muito pouco a entender a(s) língua(s) portuguesa(s) falada hoje no Brasil. Ressalvados, é claro, os interesses científicos, como os dos linguistas, mas isso é outra conversa. Talvez para entender este “quicá”, que só ele ainda deve usar, talvez para isso o latim também deva servir. De resto, para estudar inglês, olha, o latim está para o inglês moderno (acho que é esse que interessa, né?!) assim como o bacalhau está para o vatapá. Aliás, essa me lembrou uma que o Doutor Cláudio Moreno me disse em resposta a uma crítica que fiz a uma das suas colunas, há alguns anos: “Essa foi de fazer chorar bacalhau em porta de venda!”)

Por fim, na parte destinada à Soberania Nacional, a “nova” ARENA entende que é necessário “reaparelhar as Forças Armadas, tirando-a do seu sucateamento e pouco efetivo.” A moçoila acha que a caserna está mal equipada e com pouca gente? Fico com medo do que ela dirá se um dia entrar num posto de saúde do SUS…

Bueno, já falei demais. Vou deixar que vocês reflitam sobre essa coisa toda. Antes de encerrar, porém, quero dizer que tive a oportunidade de ler, há alguns dias, o relatório da CPI que apurou a morte do sargento do Exército Manoel Raymundo Soares, que, em 1966, apareceu boiando perto da ponte do Guaíba, com as mãos amarradas pra trás, o que fez com que o episódio ficasse conhecido como “O caso das mãos amarradas”. É considerado o primeiro crime cometido pela ditadura oficialmente reconhecido (não pelos homens da farda, claro, porque eles nunca cometeram nenhum crime). O documento é impressionante, e eu posso falar mais em outra ocasião, mas quero destacar apenas um pequeno trecho, que diz muito sobre o partido que dona Cibele quer trazer de volta. Na época da CPI, que aconteceu antes da instituição do AI-5, logicamente, uma comissão do Instituto dos Advogados do Brasil foi examinar algumas instalações do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e a Ilha do Presídio, onde o sargento Manoel passou mais ou menos cinco meses, e de onde o seu corpo foi arremessado nas águas do Jacuí. O relatório do IAB, enviado à Procuradoria Geral do Estado, atesta, entre outras coisas, que “Nos campos de concentração da Alemanha nazista matava-se com mais humanidade os judeus que eram remetidos às Câmaras de Gás de que o infeliz sargento que foi jogado às águas encapeladas e frias do Rio Guaíba, do sombrio agôsto [grafia original]. A êste [idem] foi primeiro ministrado o ‘tratamento prévio’ que durou de março, data da prisão, a agôsto, data de sua morte.” (Série “Memórias do Parlamento”, agosto de 2011.)

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 27/11/2012.

Padrão
História, Imprensa, Jornalismo, Política

O verdadeiro papel da imprensa*

Não tenho o hábito de publicar na íntegra textos alheios, mas este vale a pena. Discordo de pequenos detalhes, que podem até ser considerados irrelevantes, e faço uma pequena observação quanto ao fato de que a emissora requisitada por Leonel Brizola para estabelecer a “Cadeia da Legalidade” foi a Rádio Guaíba e não as rádios Gaúcha e Farroupilha, como aponta o autor.

Agradeço ao meu amigo Flávio, que me mandou o texto por mail.

“Todos temos que lembrar”

Luiz Cláudio Cunha*

*Jornalista, em discurso na cerimônia de

diplomação de Notório Saber em Jornalismo,

Universidade Nacional de Brasilia (UnB)

9-5-2011.

Coletado em 25/05/2011

http://www.ericovalduga.com.br/content/LeiturasRecomendadasShow.asp?postBackMessage=Email%20enviado%20com%20sucesso!

O jornalismo é a atividade humana que depende essencialmente da pergunta, não da resposta. O bom jornalismo se faz e se constrói com boas perguntas. O jornalismo de excelência se faz com excelentes perguntas.

A pergunta desafia, provoca, instiga, ilumina a inteligência, alimenta o pensamento. Ao longo de milênios, o homem evoluiu seguindo a linha tortuosa de suas dúvidas, das perguntas que produziam respostas, das respostas insatisfatórias que geravam novas questões, que provocavam mais incertezas, mais perguntas.

Perguntando, o homem saiu da caverna, cresceu, evoluiu e se definiu como ser pensante. O homem se agrupou em tribos, criou hábitos, estabeleceu regras de convívio, preservou a espécie, expandiu habilidades, depurou a fala, criou a escrita, disseminou experiências, inventou ferramentas, desenvolveu recursos, ganhou qualidade de vida, garantiu o alimento para o corpo e para o espírito. Um processo civilizatório irrefreável sempre escoltado por perguntas, outras perguntas, mais perguntas.

Este nobre recinto, a universidade, é o santuário desta saudável circunstância humana: a busca incessante pelo conhecimento, pela informação, pelo saber. O ambiente universitário resume nos últimos dez séculos, desde a pioneira escola italiana de Bolonha, o ofício incessante do cérebro humano iluminado por sua ancestral e redentora curiosidade. Aqui, como no jornalismo, cultiva-se o princípio desafiador do ceticismo e se estimula a dúvida sistemática que realimenta o conhecimento. Posso dizer, portanto, que me sinto em casa.

Este é o lugar, este é o momento para lembrar que aqui — na universidade — se faz o bom combate da dúvida, da luz e da ciência contra as certezas, as trevas e as crendices das religiões que tentam submeter o pensamento criador pelo conformismo da fé ou pelo fanatismo destruidor dos sectários. A ameaça se faz maior quando o Estado laico assiste, inerte, a invasão da mídia eletrônica por instituições religiosas que compram espaços e vendem milagres em rádio e TV, maldizendo regras da concessão pública de meios de comunicação que deveriam estar imunes a credos e a pregadores de telemarketing.

Sem maiores perguntas, o Brasil e suas instâncias do poder temporal assistem de joelhos ao choque de credos numa área de interesse direto do jornalismo e do distinto público: a mídia eletrônica. A igreja católica agrupa mais de 200 rádios e quase 50 emissoras de TV, contra 80 rádios e quase 280 emissoras de oito braços do ramo evangélico.

A postura mais agressiva dos pastores acua padres e fiéis da maior nação católica do mundo. Entre 1940 e 2000, os católicos caíram de 95,2% para 73,8% entre os brasileiros, enquanto os evangélicos saltaram de 2,6% para 15,4%. A explosão de 50% apenas na última década coincide com a compra da Rede Record em 1989 pela Igreja Universal.

A overdose de pregadores que já ocupam as manhãs e o horário nobre das TVs abertas deve piorar ainda mais: os quatro maiores grupos evangélicos disputam agora o horário da madrugada em rede nacional do Grupo SBT. O combalido Sílvio Santos topa tudo pelo dinheiro farto dos pastores, que negociam o aluguel mensal da telinha por R$ 20 milhões. Os usos e abusos dessa invasão nada silente e sempre sonante despertam uma pergunta no repórter mais crédulo: até onde isso vai?

Cinco séculos antes de Cristo, a dúvida sobrevoou a cabeça de um general ateniense: por que os sobreviventes de uma epidemia não sucumbiam aos surtos posteriores da doença? Ele não sabia, mas percebeu ali os fundamentos do que a ciência mais tarde reconheceria como o sistema imunológico do organismo. O conflito de 27 anos entre Atenas e Esparta acabou e o general, que também se curou da praga do tifo, teve força e talento para escrever oito volumes sobre a Guerra do Peloponeso, o clássico de Tucídides que é tido como o primeiro trabalho acadêmico em História. Ao contrário de Heródoto, seu ilustre predecessor, Tucídides registrava a história como produto das escolhas e das ações dos seres humanos, não como resultado da ira dos deuses. Desprezando lendas, superstições e relatos de segunda mão, Tucídides preferia ouvir testemunhas oculares e entrevistar participantes dos eventos, desprezando a suposta intervenção divina nos assuntos humanos.

Com o faro de jornalista e o rigor de historiador, Tucídides eternizou a ‘Oração Fúnebre’ de Péricles, o maior dos gigantes da Era de Ouro de Atenas, na fala onde o estadista exalta os mortos e defende a democracia: “Toda a Terra é o sepulcro dos homens famosos. Eles são honrados não só por colunas e inscrições em sua própria terra, mas também em terras estrangeiras por monumentos esculpidos não em pedra, mas nos corações e mentes dos homens”, exaltou Péricles.

Assim, Tucídides pode ser considerado de fato o primeiro repórter da história, mesclando nele as virtudes e os atributos que a academia identifica no profissional da imprensa: o historiador do presente, o repórter da atualidade que, pelo conhecimento acumulado, acaba de fato registrando a história do passado que vai prevalecer no futuro. Como fez o repórter Tucídides, que transpôs a crônica contingente de seu tempo para a lembrança imanente de todas as gerações.

Senhoras e Senhores,

A memória da humanidade é um patrimônio de todos e de cada um de nós. Nem sempre sabemos, mas todos lembramos. Todos precisamos lembrar. O jornalista, como o historiador, além de lembrar, tem o dever de contar.

Minha geração dos anos 1950 é marcada por uma tragédia: a ditadura mais longa da história brasileira.

Eu era uma criança de 12 anos quando irrompeu o golpe de março de 1964. Mas, como as crianças da escola de Realengo, já tinha a idade suficiente para reconhecer a violência, para sofrer o trauma, para sentir o medo. Os efeitos do longo pesadelo de 21 anos se projetaram no calendário. Meu primeiro voto para presidente da República só aconteceu quando tinha 38 anos. Cassaram nossa cidadania, limitaram nossa liberdade, calaram nossos amigos, exilaram nossos líderes, machucaram nosso povo.

Atacaram com violência maior o que mais assusta os tiranos: a universidade, o santuário do conhecimento, a trincheira do livre-pensamento, a sede da consciência crítica. Profanaram o espaço desta universidade, a Universidade de Brasília, a academia que estava no coração da nova ordem sem coração, o regime que combatia a força das ideias pela ideia da força armada, desalmada, desatinada.

Um regime que expurgou da UnB seus dois primeiros reitores, nomes primeiros da educação e do compromisso ético com a escola e com a liberdade do pensamento: Darcy Ribeiro, criador e fundador da UnB, e Anísio Teixeira, lançador do movimento da ‘Escola Nova’ – uma escola que enfatizava o desenvolvimento do intelecto e a capacidade de julgamento. Juntos, Darcy e Anísio assentaram os pilares desta universidade. Anísio inventou na Liberdade, o bairro mais populoso e pobre de Salvador nos anos 1940, a ‘Escola Parque’, que tinha padaria, um jornal diário e uma rádio comunitária por alto-falante, com médico e dentista e turno integral para as crianças.

O modelo revolucionário inspirou Darcy a criar os CIEPs anos depois, no Rio de Janeiro. Anísio também ajudou a fundar a SBPC e a CAPES e dirigiu o INEP, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, onde defendia o fim do ensino religioso obrigatório nas escolas.

A nova ordem que trazia a desordem institucional afastou ambos, Darcy e Anísio, da UnB, de Brasília, das escolas, dos jovens, do país. Em 12 de março de 1971, auge da violência do mandato do notório general Médici, Anísio desapareceu no Rio, depois de visitar o amigo Aurélio Buarque de Holanda. Os militares disseram que ele estava detido, mas não informaram o seu paradeiro. Dois dias depois, seu corpo foi encontrado, sem sinais de queda nem hematomas, no fundo do poço do elevador do prédio de Aurélio, na praia de Botafogo. Causa da morte: ‘acidente’.

Aqueles eram tempos estranhos, muito estranhos, quando nem os acidentes deixavam rastro.

Pensadores e mestres como Darcy e Anísio resumem bem a história do país e da UnB. E nenhum estudante simboliza melhor esta universidade do que o primeiro lugar em Geologia do ano de 1965, um jovem goiano de 18 anos chamado Honestino Guimarães.

É um dos 144 desaparecidos políticos do país. Presidente da Federação dos Estudantes Universitários de Brasília, foi preso pelo Exército e expulso da universidade por reagir à invasão do campus da UnB em 1968.

Caiu na clandestinidade com o AI-5, chegou à presidência nacional da UNE e foi preso em outubro de 1973.

A jornalista brasiliense Taís Morais fez as perguntas certas e, no seu livro Sem Vestígios (Prêmio Jabuti de 2006), descobriu o macabro trajeto final de Honestino, percorrendo todo o alfabeto de siglas letais da repressão brasileira: detido no Rio de Janeiro pelo CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), trazido a Brasília pelo CIE (Centro de Informações do Exército), torturado durante cinco meses no PIC (Pelotão de Investigações Criminais, no subsolo do prédio do Comando do Exército, na Esplanada dos Ministérios) e levado em fevereiro de 1974 a Marabá num jatinho fretado da Líder Táxi Aéreo por quatro agentes do CIE liderados por um certo major-aviador Jonas, do CISA (Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica).

Lá, no sul do Pará, Honestino foi executado e enterrado na selva pelas tropas que combatiam a guerrilha do Araguaia. Honestino desapareceu aos 26 anos, mas o hoje coronel-aviador da reserva (R-1), com nome, sobrenome e endereço conhecido, circula sem chamar a atenção por Brasília, sem que nenhum jornalista se aproxime dele para fazer uma simples e básica pergunta:

− Coronel Jonas, o que aconteceu com Honestino?

Juntos, Darcy e Anísio, as duas referências maiores da UnB, não permaneceram mais do que 25 meses à frente da universidade. O mais longevo reitor em Brasília resistiu no cargo 106 meses, quase nove anos. Resistiu porque era um militar, um interventor, um duro preposto da nova ordem que desprezava a velha ordem democrática: José Carlos Azevedo, o novo reitor, era um capitão-de-mar-e-guerra da Marinha, o que não deixa de ser simbólico da visão estreita que a ditadura tinha da universidade.

Ele desembarcou na UnB em maio de 1976, uma semana após o Dia Nacional de Lutas contra Prisões Arbitrárias. O capitão começou punindo os estudantes, eles reagiram com uma greve de quatro meses e Azevedo chamou a PM. Era a quarta invasão armada do campus, desde o golpe de 64. Mais de mil estudantes foram expulsos, assim como professores de esquerda. Homem de confiança do CENIMAR que sequestrou Honestino, o capitão-reitor ainda convocaria mais duas vezes a polícia-militar para sustentar sua gestão de mão-de-ferro, que só acabaria em março de 1985, três dias antes que o último general da ditadura, seu amigo João Figueiredo, deixasse o Planalto pela porta dos fundos para não passar a faixa ao sucessor civil.

Os grandes homens, como dizia a oração de Péricles, estão guardados em nossos corações e mentes, mas também esculpidos na pedra dos monumentos, dos museus, das escolas. Aqui mesmo temos a Fundação Darcy Ribeiro, o Pavilhão Anísio Teixeira, a revista Darcy e o recém-inaugurado Memorial Darcy Ribeiro, que ele mesmo — fiel ao seu estilo sedutor — batizou como ‘Beijódromo’. O Diretório Central dos Estudantes da UnB tem o nome de Honestino Guimarães, que ainda batiza o Museu Nacional, projeto de Niemeyer em forma de cúpula na Esplanada dos Ministérios.

O capitão Azevedo morreu em fevereiro de 2010, adornado por um indulgente perfil no obituário do Correio Braziliense: “Um servidor da educação como ninguém, um cientista exato e um humanista completo”, definiu o jornal, confirmando a piedosa tradição brasileira de maquiar biografias pela mera fatalidade da morte. Apesar da generosidade do retrato, o reitor-interventor não tem um só espaço com seu nome na UnB que ele ultrajou.

Todos precisamos lembrar.

Eu, como jornalista, tenho o dever de contar.

Senhoras e senhores,

A construção desse mundo, vasto mundo, é feita no dia a dia pelos pequenos gestos e pelas grandes ações dos homens, grandes ou pequenos. O filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson (1803-1822) dizia: “Na verdade, não existe história; apenas biografia”. As revoluções, as guerras, os levantes, as tragédias, as epopeias, os movimentos de massa, ontem como hoje, são produto de homens e mulheres que deram um passo à frente e desataram ações e reações que nem eles mesmos previam ou mediam.

Seus nomes às vezes se diluem na multidão e se dissolvem na voragem dos fatos, mas eles estão lá, cedo ou tarde resgatados do anonimato pelo historiador meticuloso ou pelo repórter curioso.

A insurreição bolchevique que subiu as escadarias do Palácio de Inverno de São Petersburgo, em 1917, ganhou cara, nome, calor humano e dimensão histórica pelo relato apaixonado de uma testemunha ocular, o repórter John Reed, que inaugurou o jornalismo moderno com a descrição eletrizante daqueles dez dias que abalaram o mundo. É uma das dez melhores reportagens do frenético século 20, segundo a avaliação de jornalistas e universidades dos Estados Unidos.

A melhor reportagem de todas, por aclamação, é o acurado resgate que o repórter John Hersey fez sobre um minuto decisivo na história do mundo: 8h15m da manhã de 6 de agosto de 1945, quando a primeira bomba atômica pulverizou instantaneamente 100 mil pessoas em Hiroshima. Meses depois daquele súbito clarão que deu à humanidade a percepção de seu próprio fim na treva da era nuclear, Hersey reconstruiu aquele inferno pela biografia de seis sobreviventes que recontavam a história.

Trabalhou cerca de duas semanas no Japão para fazer as perguntas necessárias e outros 50 dias nos Estados Unidos para escrever sua enxuta reportagem de 31.347 palavras. Hersey extraiu do evento mais desumano de todas as guerras o relato mais pungente da dignidade humana.

Hiroshima era uma reportagem tão fascinante que o editor da revista semanal The New Yorker, conhecida pela excelência e rigor de seus trabalhos de qualidade literária, não conseguiu quebrar o texto – e tomou a histórica decisão de publicar todo o material de Hersey numa única edição da revista, a de 31 de agosto de 1946, toda ela dedicada àquele monumento jornalístico construído sobre os escombros de uma barbárie.

Duas perguntas cruciais definem aquele momento único da história.

Nenhuma delas foi feita por jornalistas.

Meses antes da bomba cair em Hiroshima, os Estados Unidos planejavam a maior operação militar da história: a invasão terrestre do Japão. A Operação Coronet, na região de Tóquio, previa o desembarque em março de 1946 de 25 divisões de Exército, o dobro do contingente que invadiu a Normandia. A Operação Olympic, no sul da ilha, reuniria em novembro de 1945 a mais fantástica armada da história: 42 porta-aviões, 24 encouraçados, 400 destroieres.

Todo esse levantamento ruiu em 16 de julho com o sucesso de Trinity, a primeira bomba nuclear da história, detonada na área secreta de testes no deserto de Alamogordo, no estado americano do Novo México. Nas Filipinas, um coronel entrou apressado na sala do comandante supremo aliado do Pacífico, general Douglas MacArthur, para lhe dar a notícia da bomba. Desolado com o virtual abandono de meses de exaustivo planejamento, o coronel, num último esforço para salvar seu trabalho, fez a primeira pergunta:

— General, e se a bomba não funcionar?

MacArthur pensou, tirou da boca o cachimbo de espiga de milho que copiou do poderoso Popeye e mirou no horizonte, como quem via além da guerra que morria, como quem antevia a paz que nascia. O general respondeu com outra pergunta:

— E se funcionar, coronel? E se a bomba funcionar?

A bomba, como se lê no relato de John Hersey, funcionou em 6 de agosto em Hiroshima. E funcionou outra vez, três dias depois, em Nagasaki. Ao meio-dia de 15 de agosto de 1945, pela primeira vez na história, os súditos do Japão ouviram pelo rádio a voz precária do seu Imperador anunciando a capitulação num japonês formal que a população mais simples não entendeu claramente. “Resolvemos abrir caminho para uma paz geral para todas as gerações vindouras, suportando o insuportável e sofrendo o insofrível”, disse o imperador Hiroíto.

Em tempos insuportáveis e insofríveis, as dúvidas são ainda maiores.

O Brasil da ditadura era um país assustado, acuado, abafado, apequenado.

A prepotência não permitia perguntas para números sem resposta: 500 mil cidadãos investigados pelos órgãos de segurança; 200 mil detidos por suspeita de subversão; 50 mil presos só entre março e agosto de 1964; 11 mil acusados nos inquéritos das Auditorias Militares, 5 mil deles condenados, 1.792 dos quais por ‘crimes políticos’ catalogados na Lei de Segurança Nacional; 10 mil torturados apenas na sede paulista do DOI-CODI; 6 mil apelações ao Superior Tribunal Militar (STM), que manteve as condenações em 2 mil casos; 10 mil brasileiros exilados; 4.862 mandatos cassados, com suspensão dos direitos políticos, de presidentes a governadores, de senadores a deputados federais e estaduais, de prefeitos a vereadores; 1.148 funcionários públicos aposentados ou demitidos; 1.312 militares reformados; 1.202 sindicatos sob intervenção; 245 estudantes expulsos das universidades pelo Decreto 477 que proíbe associação e manifestação; 128 brasileiros e 2 estrangeiros banidos; 4 condenados à morte (sentenças depois comutadas para prisão perpétua); 707 processos políticos instaurados na Justiça Militar; 49 juízes expurgados; 3 ministros do Supremo afastados, o Congresso Nacional fechado por três vezes; 7 Assembleias estaduais postas em recesso; censura prévia à imprensa e às artes; 400 mortos pela repressão; 144 deles desaparecidos até hoje.

Conto e lembro porque isso precisa sempre ser recontado e relembrado, para que ninguém duvide que a ditadura não foi branda, nem breve. Todos e cada um desta longa contabilidade de violência encerravam um universo de dor, de frustração, de lamento, de medo e de opressão que se espalhava, que contaminava, que amesquinhava um país e um povo.

Quando se estreita o limite da dignidade amplia-se o espaço para o cinismo, um desvio da verdade que deve ser combatido pelo jornalismo e pelos jornalistas que respeitam este ofício.

Os atuais comandantes militares brasileiros foram cínicos nas críticas que fizeram ao projeto do próprio Governo sobre a Comissão Nacional da Verdade, destinada a investigar violações da ditadura aos direitos humanos. Falando em nome do Exército, Marinha e Aeronáutica, no documento revelado pelo jornal O Globo em março passado, os oficiais-generais escrevem: “Passaram-se quase 30 anos do fim do governo chamado militar…”.

Só um raciocínio de má-fé explícita impede que se identifique o finado regime de 64 pela palavra que o define com precisão: uma ditadura, nascida do golpe que derrubou o presidente constitucional, trocado pelo rodízio no poder de cinco generais, com atos de força que esmagavam a Constituição, apoiados num dispositivo repressivo que prendia, torturava e matava, julgando civis em tribunais militares, sufocando a política, impondo censura, decretando cassação e forçando o exílio.

Pergunto: Os militares fizeram tudo aquilo e ainda duvidam do que fizeram?

Afinal, querem que chamem tudo aquilo do quê?

Lamento que quase ninguém, na imprensa ou no Parlamento, tenha repudiado este desrespeito oficial para com a história recente do país.

É justo lembrar que, nesse pedaço feio da história, os militares não estavam sós.

Tinham ao seu lado toda a grande imprensa brasileira, não apenas nos editoriais raivosos, mas na conspiração científica que mobilizou o empresariado nacional nos três anos que antecederam o golpe – como revelou em 1981 o historiador e cientista político uruguaio René Armand Dreifuss (1945-2003), professor da Universidade Federal Fluminense, em seu clássico 1964: A conquista do Estado.

Como na loucura de Hamlet, havia método na conspiração civil-militar para derrubar João Goulart, que começa já em novembro de 1961, três meses após a renúncia de Jânio Quadros, com a criação do IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. Militares da reserva entram então no barco do conluio, um deles um general chamado Golbery do Couto e Silva.

No início de 1962 oficiais das Forças Armadas foram a São Paulo para um encontro com o jornalista Júlio de Mesquita Filho, a quem entregaram um documento sobre as normas que iriam comandar o governo militar após a queda de Jango. O grupo, integrado pelos generais Cordeiro de Farias e Orlando Geisel, foi mais explícito com o dono de O Estado de S.Paulo: o novo regime queria ficar no poder por pelo menos cinco anos, o que viria a ser a primeira mentira do golpe. O regime militar perdurou quatro vezes mais.

Animado com a conversa, Mesquita chegou ao ponto de sugerir oito nomes para o futuro ministério golpista. O jornalista, acreditem, chegou a fazer o rascunho de um Ato Institucional para fechar Senado, Câmara e Assembleias e para cassar mandatos. Ironia da história: o instrumento de força esboçado por Júlio Mesquita era o mesmo a que a ditadura submeteria seu jornal em 1968 com o AI-5. Os ex-amigos do golpe confabulado pelo dono do Estadão forçariam o jornal a cobrir os espaços censurados nas páginas com versos de Camões e receitas de bolo.

Precisamos lembrar, devemos contar.

Os militares não podem ser cínicos. Os jornalistas, jamais.

Lamento o revisionismo histórico daqueles que, de forma apressada, carimbam como terroristas todos os que chegaram ao limite da própria vida para confrontar o arbítrio. É uma leviandade que fere os fatos, a memória e principalmente a universidade. Foi na parcela mais consciente, mais insubmissa, mais generosa da juventude que se buscou a força do bem para o bom combate, o justo combate ao mal da força e da prepotência.

Esse bando de irmãos estava aqui, com vocês, na universidade.

Para eles Skakespeare escreveu, em Henrique V:

Esta história o bom homem ensinará ao seu filho;

E nenhuma festa de São Crispim acontecerá

Desde este dia até o fim do mundo

Sem que nela sejamos lembrados;

Nós poucos, nós poucos e felizes, nós, bando de irmãos;

Pois quem hoje derramar seu sangue comigo,

Será meu irmão; seja ele o mais vil que for,

Este dia enobrecerá sua condição

We few, we happy few, we band of brothers…

Foi da universidade, desse bando de irmãos, que se elevou o protesto mais veemente, a rebeldia mais indignada, o gesto mais altivo contra o mal, a prepotência, a força. Repudiando o que fizeram aqui, ao atropelar a sagrada autonomia da universidade, denunciando o que fizeram ali, ao afrontar o sagrado império da lei, ao violar a Constituição, o Parlamento, os tribunais, as liberdades, ferindo os direitos humanos, machucando o corpo humano.

Muitos jovens deste país poderiam ter calado, ter sufocado, ter consentido com o que se fazia e desfazia. Mas buscaram as ruas, as escolas, os parlamentos. Quando estes espaços foram cercados, ocupados e desfigurados pela força, foram obrigados à resistência e ao confronto extremo.

No limite do insuportável e do insofrível, abandonaram famílias, carreiras, amigos, afetos e a luz do dia para um combate desproporcional, arrojado, irrestrito, utópico contra a violência que atingia a todos.

Não fizeram aquilo porque eram mandados, comandados, teleguiados. Fizeram tudo aquilo porque queriam, porque sentiam, porque deviam, pelo justo imperativo da sobrevivência, pelo forte motivo da urgência, pelo simples dever de consciência. Arriscaram suas vidas, acabaram suas vidas lutando e combatendo por nossas vidas.

Foram resistentes, como a Resistência francesa que lutou contra o invasor e o opressor nazista. Foram inconfidentes, como os heróis da conjuração mineira que anteciparam o grito por liberdade. Foram combatentes, como os jovens do exército brancaleone de George Washington que desafiaram o Império britânico para estabelecer os fundamentos do regime democrático.

Foram insurgentes como os negros que combatiam o apartheid na África do Sul, como os povos de Angola e Moçambique contra o regime colonial de Salazar, como os frágeis camponeses do Vietnã que ao longo de décadas expulsaram de suas lavouras de arroz os impérios poderosos de chineses, japoneses, franceses e norte-americanos.

Lutaram pela liberdade contra a opressão de exércitos, regimes e sistemas que só sobrevivem à custa da liberdade dos outros.

Fizeram levantes sancionados pelo direito imemorial e universal da luta contra a tirania.

Guerrilha não se confunde com terrorismo, definido sim pelo deliberado objetivo de infundir terror entre a população civil, sob o risco assumido de vítimas inocentes – como no caso do terror consumado do 11 de Setembro em Nova York, como no caso do terror frustrado da bomba do Riocentro no Rio de Janeiro.

É por isso que ninguém, nem mesmo um cínico, se atreve a escrever “terroristas de Sierra Maestra” ou “terroristas do Araguaia”. Eram guerrilheiros, não terroristas.

Terrorista era o Estado, que usou da força e abusou da violência para alcançar e machucar dissidentes presos, indefesos, algemados, pendurados, desprotegidos diante de um aparato impiedoso que agia à margem da lei, na clandestinidade, nos porões, torturando e matando sob o remorso de um codinome, encoberto na treva de um capuz.

Terroristas eram os assassinos de Honestino Guimarães, Vladimir Herzog, David Capistrano da Costa, Manoel Raimundo Soares, Stuart Angel Jones, Manoel Fiel Filho, Paulo Wright, Zuzu Angel, entre tantos outros.

“A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram”, ensinou Ulysses Guimarães, no dia da promulgação da Constituição de 1988. “Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”, reforçou Ulysses.

Aos guerrilheiros que combateram a ditadura, minha emoção.

Aos cínicos, meu lamento.

Senhoras e Senhores,

A hipocrisia nacional diz que a mera lembrança desses nomes e fatos não passa de revanchismo, de mera volta ao passado.

Uma médica chilena, torturada em 1975 e eleita presidente em 2006, desmente isso: “Só as feridas lavadas cicatrizam”, ensina Michelle Bachelet. O Supremo Tribunal Federal teve, no ano passado, a chance de lavar esta ferida. E, vergonhosamente, abdicou desse dever.

Apenas dois dos nove ministros do STF – Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Brito – concordaram com a ação da OAB, que contestava a anistia aos agentes da repressão. “Um torturador não comete crime político”, justificou Ayres Brito. “Um torturador é um monstro. Um torturador é aquele que experimenta o mais intenso dos prazeres diante do mais intenso sofrimento alheio perpetrado por ele. Não se pode ter condescendência com o torturador. A humanidade tem o dever de odiar seus ofensores porque o perdão coletivo é falta de memória e de vergonha”.

Apesar da veemência de Ayres Brito, o relator da ação contra a anistia, ministro Eros Grau, ele mesmo um ex-comunista preso e torturado no DOI-CODI paulista, manteve sua posição contrária: “A ação proposta pela OAB fere acordo histórico que permeou a luta por uma anistia ampla, geral e irrestrita”, disse Eros Grau, certamente esquecido ou desinformado, algo imperdoável para quem é juiz da mais alta Corte e também sobrevivente da tortura.

A anistia de 1979 não é produto de um consenso nacional. É uma lei gestada pelo regime militar vigente, blindada para proteger seus acólitos e desenhada de cima para baixo para ser aprovada, sem contestações ou ameaças, pela confortável maioria parlamentar que o governo do general Figueiredo tinha no Congresso: 221 votos da ARENA, a legenda da ditadura, contra 186 do MDB, o partido da oposição. Nada podia dar errado, muito menos a anistia controlada.

Amplo e irrestrito, como devia saber o ministro Grau, era o perdão indulgente que o regime autoconcedeu aos agentes dos seus órgãos de segurança. Durante semanas, o núcleo duro do Planalto de Figueiredo lapidou as 18 palavras do parágrafo 1° do Art. 1° da lei que abençoava todos os que cometeram “crimes políticos ou conexos com estes” e que não foram condenados. Assim, espertamente, decidiu-se que abusos de repressão eram “conexos” e, se um carcereiro do DOI-CODI fosse acusado de torturar um preso, ele poderia replicar que cometera um ato conexo a um crime político.

Assim, numa única e cínica penada, anistiava-se o torturado e o torturador. Em 22 de agosto de 1979, após nove horas de tenso debate, o Governo aprovou sua anistia, a 48ª da história brasileira. Com a pressão da ditadura, aprovou-se uma lei que não era ampla (não beneficiava os chamados ‘terroristas’ presos), nem geral (fazia distinção entre os crimes perdoados) e nem irrestrita (não devolvia aos punidos os cargos e patentes perdidos).

Mesmo assim, o regime suou frio: ganhou na Câmara dos Deputados por apenas 206 votos contra 201, graças à deserção de 15 arenistas que se juntaram à oposição para tentar uma anistia mais ampliada.

Um dos mentores do ‘crime conexo’ era o chefe do Serviço Nacional de Informações, o SNI, general Octávio Aguiar de Medeiros, signatário da anistia de agosto de 1979.

Menos de dois anos depois, em abril de 1981, um Puma explodiu antes da hora no Riocentro, no Rio de Janeiro. Tinha a bordo dois agentes terroristas do Exército: o sargento Guilherme do Rosário, que morreu com a bomba no colo, e o capitão do DOI-CODI Wilson Machado, que sobreviveu impune e, apesar das feias cicatrizes no peito, virou professor do Colégio Militar em Brasília.

Em 24 de abril passado, em trabalho admirável, os repórteres Chico Otávio e Alessandra Duarte, de O Globo, revelaram ao país a agenda pessoal do sargento morto, a agenda que o Exército considerou desimportante para seu arremedo de investigação. Pois lá estão anotados os nomes reais (sem codinome) e os telefones de 107 pessoas, de oficiais graduados a soldados, de delegados a detetives, passando pelo Estado-Maior da PM e o comando da Secretaria de Segurança. Nessa ‘Rede do Terror’ que conspirava para endurecer o regime não consta o nome de um único guerrilheiro. Todos os terroristas, ali, integravam o aparelho de Estado, patrono da complacente autoanistia que não satisfazia nem seus radicais.

O nome mais ilustre da agenda é Freddie Perdigão, membro de um certo ‘Grupo Secreto’ organização paramilitar de direita que jogava no fechamento político. Perdigão era coronel da Agência Rio do SNI do general Medeiros.

Nada mais cínico, nada mais conexo do que isso.

O ‘Grupo Secreto’ é responsável por algumas das 100 bombas que explodiram no Rio e São Paulo entre a anistia de agosto de 1979 e o atentado do Riocentro de abril de 1981, endereçadas a bancas de jornal, publicações alternativas da oposição, Assembleia Legislativa e às sedes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

Apesar da equivocada decisão do Supremo, o Brasil acaba de ser condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA por se eximir da investigação e punição aos agentes do Estado responsáveis pelo desaparecimento forçado de 70 guerrilheiros do Araguaia. “A Lei da Anistia do Brasil é incompatível com a Convenção americana, carece de efeito jurídico…”, criticou a Corte da OEA.

Em novembro passado, o Ministério Público Federal em São Paulo ajuizou ação civil pública pedindo a responsabilização civil de três oficiais das Forças Armadas e um da PM paulista sobre morte ou desaparecimento de seis pessoas e a tortura de outras 20 detidas em 1970 pela Operação Bandeirante (Oban), o berço de dor e sangue do DOI-CODI — a sigla maldita que marcou o regime e assombrou os brasileiros. O capitão reformado do Exército Maurício Lopes Lima é frontalmente acusado pelos 22 dias de suplício a uma das presas, líder da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Nome da presa torturada: Dilma Rousseff.

Agora presidente, Dilma Rousseff encara este desafio que intimidou os cinco homens que a antecederam no Palácio do Planalto a partir de 1985, quando acabou a ditadura: a punição aos torturadores do golpe de 1964.

Não será por revanchismo, mas pelo dever ético de todo país que respeita a verdade, a memória e sua história. Como fazem com altivez a Argentina, o Uruguai, o Chile ao lavar suas feridas, feias como as nossas.

Uma enorme frustração cabe aos dois presidentes que somam 16 anos no poder.

Fernando Henrique Cardoso, descendente de três gerações de generais e sociólogo de origem marxista, esperou o último dia de seu segundo mandato, em dezembro de 2002, para duplicar vergonhosamente os prazos de sigilo dos documentos oficiais que podem jogar luz sobre a história do país.

Lula, o líder sindical que nasceu do movimento operário mais atingido pelo autoritarismo, sucedeu FHC na presidência sob a expectativa de que iria corrigir aquele ato de lesa-conhecimento de seu antecessor. E Lula, cúmplice maior, não fez absolutamente nada para facilitar e agilizar o acesso aos registros contingenciados pelos 21 anos de regime militar.

O sociólogo e o metalúrgico, assim, nivelaram-se na submissa inércia dos últimos 16 anos de governos tementes à eventual reação da caserna e seus ex-comandantes de pijama.

Dilma Rousseff, com maior hombridade que seus antecessores, pode limpar essa mancha. Seu governo apoia, no Congresso, o projeto que impõe limites estreitos para documentos hoje com sigilo infinito. Aprovado, o texto estabelece um prazo de 25 anos para o sigilo máximo de ‘ultrassecreto’, renovável uma única vez.

Senhoras e Senhores,

O governo, qualquer governo, faz mal à imprensa.

A imprensa, toda a imprensa, faz bem ao governo – principalmente quando critica.

Governo não precisa do ‘sim’ da imprensa. Governo evolui com o ‘não’ da imprensa.

A proximidade da imprensa com o governo abafa, distorce o jornalismo. A distância entre governo e imprensa é conveniente para ambos, útil para a sociedade e saudável para a verdade.

Jornalismo é tudo aquilo de que o governo não gosta. Tudo aquilo de que o governo gosta é propaganda.

Certa vez, o segundo presidente da ditadura, general Costa e Silva, queixou-se das críticas da imprensa. Sua interlocutora, a condessa Pereira Carneiro, dona do Jornal do Brasil, esclareceu que eram apenas “críticas construtivas”. O general, sempre franco, foi direto ao ponto: “Mas o que eu gosto mesmo é de elogio!…”

Isso é uma grande injustiça com Costa e Silva. Ele não era o único. Todos os presidentes acham e querem a mesma coisa, só não dizem.

A transição de poder de Lula para Dilma permite notar, neste campo, uma evidente evolução. A boa novidade surgiu já no primeiro discurso da primeira mulher presidente, na noite de sua vitória:

“Disse e repito que prefiro o barulho da imprensa livre ao silencio das ditaduras. As criticas do jornalismo livre ajudam ao país e são essenciais aos governos democráticos, apontando erros e trazendo o necessário contraditório”, falou Dilma, enunciando algo impensável na cabeça de seu loquaz antecessor.

A imprensa, numa definição mais simples, deve ser o fiscal do poder e a voz do povo. Com o estrito cuidado para não inverter esta equação.

A função primordial da imprensa está acima e além do governo, de qualquer governo.

O leitor vive hoje, no Brasil, um certo momento de desconforto. O debate em torno do governo separa, reduz e rebaixa a imprensa. Um maniqueísmo feroz divide os meios de comunicação, em suas variadas plataformas, num jogo de perde-ganha, de simpatias e antipatias, amor e ódio, admiração e repulsa, que se retroalimentam e se excluem. Parecem duas torcidas ferozes que vão ao estádio não para exaltar ou vaiar o jogo no campo, mas para brigar na arquibancada.

O reducionismo político das últimas eleições divide veículos e profissionais em dois campos aparentemente incompatíveis: PT x PSDB, Lula x FHC, petista x tucano, governista x oposicionista, independente x adesista, golpista x chapa-branca, blog sujo x blog limpo…

É uma regressão lamentável ao estágio exaltado da imprensa da primeira metade do século 20, quando os grandes jornais e seus principais jornalistas tinham forte alinhamento partidário, num momento político em que o Brasil se dividia em torno da figura de Getúlio Vargas, encarnação do bem e do mal para devotos e desafetos.

Mais do que simpatia, os veículos tinham então linhas de aberta empatia partidária, regular afinidade publicitária e velada contribuição financeira.

Quando cai na armadilha do restrito conflito partidário, a imprensa se apequena e se distancia dos temas mais relevantes da sociedade, perdendo foco e relevância como jornalismo.

Qualquer tentativa de discussão mais serena sobre um tema específico se emaranha imediatamente na rede de desconfiança mútua sobre as motivações políticas e as preferências partidárias subjacentes. Como fogo na palha, isso se reproduz, em doses cada vez mais cavalares, nos comentários de leitores e internautas que assumem o controle do debate e desviam o foco para velhas pendengas que nada têm a ver com o texto original.

Tudo isso agravado por um mal insidioso que com frequência torna a Internet absolutamente insuportável e insofrível: a praga do anonimato.

Com o temerário respaldo dos portais, jornais, revistas e blogs, o inexplicável manto para aqueles que não ousam dizer seu nome é uma porteira aberta para o debate desqualificado, a troca de ofensas, as grosserias crescentes e a total sensação de perda de tempo. O tiroteio entre os internautas — limitado pelo recorrente embate tucano versus petista que parece resumir o universo — fulmina qualquer tentativa de um debate inteligente e enriquecedor.

O país vive uma completa democracia, que não se reflete na qualidade do que se vê e se lê no tedioso belicismo da Internet, com raras exceções. Nada, portanto, justifica o sigilo do nome e o abuso de codinomes engraçados ou ridículos que apenas ocultam a pobreza de ideias e o despreparo para a discussão inteligente. Eu, por princípio, só entro no espaço de comentários com meu nome, profissão e cidade, certo de que é um dever meu me qualificar perante quem me lê.

Espaço de uma justa e infinita liberdade, a Internet deveria simplesmente impor a regra da identificação a quem deseja usufruir de seu espaço democrático. Apenas isso. Imediatamente, resgataríamos o espaço e o tempo perdidos para os que não têm a coragem de expor suas ideias, boas ou ruins, com o próprio nome.

A Internet é uma ferramenta que impressiona, encanta, desafia e assusta. Especialmente a indústria da informação e o próprio profissional de imprensa.

Atitudes, comportamentos, decisões e requisitos precisam ser redefinidos para situar o papel do jornalista neste admirável mundo novo. Na vida compassada do século 19, o dia já tinha 24 horas, mas o jornal só tinha o livro como concorrente. Dava para ler tudo, da primeira à ultima página. Agora, no frenético século 21, o dia parece mais curto, e o jornal certamente vive uma crise de identidade.

Uma pesquisa da Associação Nacional de Jornais (ANJ) mostra que o leitor em 2001 gastava 64 minutos por dia na leitura do jornal. Seis anos depois, essa média baixou para 45 minutos. O jornal está sendo trocado pela Internet. Nesse período, o tempo diante da tela do computador pulou de 2 para mais de 3 horas diárias.

Em 2009, a ANJ registrou uma retração de 3.5% na circulação diária total no país, em relação ao ano anterior: a soma de jornais caiu de 8,5 milhões para 8,2 milhões de exemplares. É a segunda queda de circulação desde 2003, a primeira consecutiva. O Rio de Janeiro é o melhor exemplo dessa preocupante retração. Nos anos 1950, quando ainda era a capital, a cidade de 3 milhões de habitantes tinha 18 jornais diários, com tiragem diária de 1,2 milhão de exemplares. Hoje, com o dobro da população, o Rio tem apenas dois grandes jornais e 500 mil exemplares/dia.

Duas décadas atrás, a Folha de S.Paulo se gabava de ser “o 3° maior jornal do ocidente”, com uma edição dominical de 1 milhão de exemplares. Em 2010, a tiragem média despencou para 294 mil exemplares e a Folha ainda perdeu o primeiro lugar no ranking nacional para o Super Notícia, um jornal popular de Belo Horizonte, vendido a 25 centavos para as classes C e D e que atrai leitores com prêmios como panelas, faqueiros e bugigangas. No sábado, 30 de abril, dia seguinte ao casamento real em Londres, a manchete do maior jornal do Brasil tinha outro tema: “Tarado causa pânico em Sabará”.

Mês passado, num fórum sobre liberdade na PUC de Porto Alegre, o músico Lobão, um dos astros do rock nacional, compôs uma bela frase sobre o vórtice da era digital:

– As pessoas, com cada vez mais informação à disposição, estão cada vez menos informadas – disse Lobão.

Senhoras e Senhores,

Regimes fechados e controles rigorosos são ultrapassados pela disseminação da tecnologia, que tira a notícia das mãos exclusivas dos repórteres. Simples cidadãos, militantes da oposição ou transeuntes eventuais sacam de suas engenhocas — smartphones poderosos, vídeo-câmeras minúsculas ou netbooks de acesso mundial — e se transformam em repórteres acidentais e testemunhas oculares e virtuais da história que se desenrola à sua frente, nas praças, nas ruas, diante da varanda de seus apartamentos.

A derrubada de Hosni Mubarak no Egito, o cerco a Muammar Kadafi na Líbia e os solavancos da revolução popular que toma as praças das grandes cidades no norte da África são revelados, acompanhados e disseminados em primeira mão pelos cidadãos que vivem na carne os dramas políticos de seus países e seus regimes. Os jornalistas chegam depois, alertados pelas primeiras imagens disseminadas de forma amadora, embrionária, pelo povo armado pela tecnologia.

E os jornalistas ali chegados continuam se abastecendo dessa rede informal, espontânea, capaz de cobrir tudo, em todos os lugares, com imagens e detalhes que uma equipe reduzida de TV jamais conseguirá reproduzir.

É a informação multimídia, multiforme, multifacetada, onipresente, intermitente, onisciente, on-line, ao vivo, 24 horas por dia, numa overdose de mídias que pode esgotar o público e exaurir o repórter.   O jornalista destes novos e frenéticos tempos terá que se reciclar e aprender a conviver com tudo isso, extraindo desses avanços os recursos e as manhas que lhes concedam o exercício desse jornalismo numa realidade febril induzida pelas novas tecnologias.

Uma avalanche noticiosa que pode desnortear o repórter pela vaguidão, pela irrelevância, pela amplitude de um mundo onde tudo é notícia, tudo é noticiado, tudo é testemunhado e nada pode ser desprezado. A mídia impressa, premida pela concorrência, comprime prazos, corta custos, elimina espaços, reduz equipes e privilegia a informação mais curta, mais rápida, mais digerível. O espetáculo midiático concorre com o jornalismo, o supérfluo invade colunas, comentários, blogs e páginas editoriais em detrimento de temas de conteúdo mais sério.

Ontem, domingo, uma chamada num dos portais mais importantes do país destacava esta transcendental notícia: “Mulher acaba presa após dar mordida no lábio do namorado”.

A facilidade e a rapidez injetam comodismo e preguiça no repórter destes novos tempos. Cada vez menos gente se atreve a abandonar o ambiente refrigerado das redações cibernéticas mais avançadas. O contato direto e pessoal do repórter com a fonte é mediado, em nome da eficiência e do relógio, pelos recursos tecnológicos de praxe – celular, e-mail, videocâmara, laptop. Todos se conectam, se comunicam e se informam via tecnologia multimídia.

Um mês atrás, o escritor Gay Talese, que brindou o jornalismo com exemplos admiráveis de textos de fôlego e excelência, concedeu uma bela entrevista a Fernando de Oliveira, repórter de um pequeno jornal gaúcho, o Diário Regional, de Santa Cruz do Sul.

A oportuna reflexão de Gay Talese: “Um bom trabalho não é rápido, nem fácil. Ele demora um longo tempo, mas também dura um longo tempo. Muito do jornalismo de hoje é feito a partir de um laptop, de jornalistas falando de outros jornalistas. Eles procuram informações a partir da internet. Eles não falam com muitas pessoas…”

Talese diz que o jornalismo tem se tornado muito previsível: “Nada é profundo, pensado ou divagado. O jornalismo está se tornando preguiçoso, porque os jornalistas não querem se mexer. Estão perdendo todo o contexto da vida. Querem fazer tudo rápido, de maneira eficiente, sem perder nenhum tempo”.

O mestre do new journalism ensina: “Às vezes você aprende com o silêncio, com os momentos de indecisão. Mas você não vai conseguir isso utilizando o Google, um telefone celular, um gravador. Tem que sair na rua e cultivar uma relação, gastar tempo com ela”. Gay Talese chama isso the art of hanging out, ou seja, “a arte de sair por aí”. Ricardo Kotscho, o grande repórter, traduz tudo isso como “gastar a sola do sapato”.

No jornalismo da Internet, tudo é rápido, inodoro, insípido, frio. Os contatos são rápidos e telegráficos como os textos produzidos aos borbotões, sobre tudo e todos, nos portais, blogs e sites. Produções sem esmero de texto, sem revisão, sem muita reflexão. O velho ‘furo’ é medido em minutos, às vezes segundos.

Nada sobrevive às teclas do Ctrl-V / Ctrl-C, o batido Copiar/Colar que sustenta tanta produção e tanta pretensão, reproduzindo sem limites erros, estilos e imprecisões que ganham a eternidade na Grande Rede. Escrevendo na ordem direta, com a rapidez possível e a brevidade exigida, os repórteres são treinados a abandonar textos mais longos, analíticos, reflexivos. Não há muito tempo para reflexão. A pressa é uma virtude, a lapidação é um pecado demorado que trava e entrava a velocidade exigida de todos para tudo. Não há tempo a perder.

A chamada Web 2.0, que abriu o mundo da interconexão social, criou a rede de mão dupla que torna o usuário um personagem ativo do universo informático. Isso produz uma nova, desconhecida realidade no mundo da comunicação. Antes, o público leitor recebia passivamente, em suas casas, o jornal, a revista ou o programa de TV produzido, editado, escolhido e transmitido por empresas e jornalistas absolutamente hegemônicos sobre o resultado de seu trabalho. Eles decidiam o que, quando, como, onde e por quanto a informação seria gerada e transmitida para seus consumidores e usuários.

A Internet subverteu tudo isso, fazendo o usuário avançar sobre os territórios nunca dantes devassados das grandes mídias. O cidadão-internauta agora escolhe a mídia, o momento, a forma e o custo que mais lhe convém para receber a notícia, a música, o vídeo, a propaganda.

Acabou o jogo unilateral. Agora todos jogam, todo o tempo, em todos os lugares.

Qualquer um, hoje, pode ser um cidadão-usuário-internauta-jornalista. A comunicação não é mais um privilégio da grande indústria de mídia, controlada por big-shots ou pelos herdeiros presuntivos de famílias de sobrenomes quase aristocratas da imprensa mais tradicional. O poder não é controlado por ninguém e é moldado por todos.

Desde 2004 existe uma rede social nos Estados Unidos, chamada Digg (‘cavar’, em inglês), que tem 8,5 milhões de acessos por mês. O seu princípio é simples: os internautas votam nas notícias que mais lhes agradam, criando uma cotação onde blogs geralmente superam grandes portais. É o próprio usuário que qualifica e classifica as notícias, podcasts e vídeos mais importantes. O criador do Digg, Kevin Rose, um estudante de ciência da computação da Universidade de Las Vegas, Nevada, tinha apenas 27 anos quando fez a sua aposta: “Antes, era um punhado de editores que determinava o que iria para a primeira página do jornal. Agora, com o Digg, são quase um milhão de editores registrados e continuamente à procura de grandes notícias, informações, histórias e vídeos para expor à comunidade”, concede Rose.

É a consumação da “sabedoria das multidões”, expressão cunhada pelo jornalista John Heilemann, da revista New York. Fui lá no site testar o que o milhão de sábios do Digg escolhia para minha leitura selecionada. Num sábado, 26 de fevereiro, descobri as coisas mais essenciais do mundo, naquele dia: um carro elétrico que atravessou a Austrália, a descoberta no Texas sobre o efeito afrodisíaco da urina do macaco-prego macho sobre a fêmea, a mulher de Boston que perdeu a cobra de estimação no metrô, a vencedora do concurso “pior mãe do mundo” e a criação de um vírus para derrubar a blindagem dos computadores da Apple. Nenhuma das 17 notícias mais importantes do Digg, naquele dia, roçava no tema que atraía a atenção do mundo: o cerco ao ditador líbio Kadafi e os levantes populares que agitavam o mundo árabe.

As multidões, pela simples matemática, nem sempre são mais justas, ou ao menos sábias. Em agosto de 1934, 42 milhões de alemães foram às urnas para decidir num plebiscito se o chanceler Adolf Hitler deveria acumular o cargo de presidente da República, vago há duas semanas com a morte de Paul von Hindenburg. Mais de 38 milhões, 90% do eleitorado, aprovaram a acumulação de poder no homem que, cinco anos depois, arrastaria o mundo para o maior conflito bélico da história, que matou entre 50 e 70 milhões de pessoas.

O Führer gostou dessa atravessada idéia de sabedoria popular. Em abril de 1938, na Áustria já ocupada pelas tropas nazistas, Hitler promoveu outro plebiscito, desta vez com uma única pergunta ao acuado povo austríaco: “Você concorda com a reunificação da Áustria à Alemanha e você vota no partido do nosso líder Adolf Hitler?”. A cédula não era colocada diretamente na urna. O eleitor entregava a cédula a um gentil ‘fiscal’ alemão postado ao lado da seção eleitoral. Hitler ganhou com 99,73% dos votos.

A sabedoria das multidões, ainda hoje, pode privilegiar uma sesquipedal burrice.

Cerca de 2.200 km separam São Bernardo do Campo, em São Paulo, de Cocal dos Alves, no interior do Piauí. Na cidade paulista mora Maria Helena, de 27 anos. Na cidade piauiense vive Izael Francisco, de 14 anos. Ela é modelo e falante, ele é tímido e mora na roça com o avô analfabeto.

Maria acaba de ganhar R$ 1,5 milhão de prêmio, em dinheiro, como vencedora do BBB 11, o Big Brother Brasil, aquele programa da Rede Globo que atrai milhões de pessoas no país para acompanhar durante 11 semanas os diálogos patetas de garotas curvilíneas com garotos musculosos, todos transbordantes de hormônios e carentes de neurônios.

O professor de ética jornalística da Faculdade Casper Líbero, Eugênio Bucci, rotulou o BBB como “o mais deseducativo programa da TV brasileira, onde a fama justifica qualquer humilhação”.

Apesar disso, mais de 100 mil jovens brasileiros se inscreveram para o BBB que pode parar até a maior cidade brasileira: 40% de Ibope, sua audiência média, significam quase dez milhões de telespectadores, metade da população da Grande SP. No programa final, Maria recebeu, pelo telefone, 51 milhões de votos. Se fosse candidata a presidente, teria derrotado José Serra por mais de 7 milhões de votos e teria perdido para Dilma Rousseff por pouco mais de 4,5 milhões de votos.

Izael Francisco acaba de ganhar R$ 100 mil (15 vezes menos que Maria) em bolsa-educação como vencedor do Soletrando, quadro do programa “Caldeirão do Huck”, apresentado por Luciano Huck na mesma Rede Globo. Venceu 500 mil alunos de escolas públicas, selecionados em mini-seletivas que duraram seis meses em todo o país, num concurso empolgante para soletrar as palavras mais difíceis da língua portuguesa — algo impossível de alcançar no parvo paredão do Big Brother Brasil. Além da bolsa, o garoto ganhou um netbook. O terceiro colocado do BBB recebeu R$ 50 mil, dois carros e duas motos.

Izael Francisco pretende estudar para jornalismo (seja bem-vindo, Izael!) e se prepara agora para vencer a Olimpíada Brasileira de Matemática, marcada para agosto.

Maria Helena já acertou os números, assinou contrato e será a capa da edição de junho da revista Playboy.

Senhoras e Senhores,

A era digital ainda navega, com altos e baixos, neste turbilhão que confunde entretenimento com informação. Suas ferramentas ainda podem ser um estorvo. O Twitter, por exemplo. É um fenômeno ainda incompreendido. Em 2008 tinha 5 milhões de usuários. Em 2010, essa sábia multidão chegava a 175 milhões. Apesar do sucesso, que não me comove, continuo sem entender esse tal de Twitter.

O The New York Times revelou em março a lista das 10 pessoas no mundo que causam mais impacto no Twitter. Acertou quem disse que Barack Obama, líder da maior potência militar do planeta, não é “o cara”. O presidente dos Estados Unidos ficou com um modesto sétimo lugar.

O sujeito mais poderoso no planeta do Twitter, pelo conceito do número de vezes em que é citado pelos usuários do microblog, é um inofensivo jornalista de 35 anos. Mais grave: é um humorista da TV. Pior: é brasileiro. Muito pior: é gaúcho. E, para completar a piada: um jornalista gaúcho e torcedor do Internacional, coitado!

Rafinha Bastos, “o cara” do Twitter, é a estrela mais destacada do CQC, o programa de humor da Rede Bandeirante que prova que existe vida inteligente na TV brasileira — apesar do mau-humor crônico do senador Renan Calheiros.

Esta esquisita lista do top-ten da rede social levanta uma dúvida crucial: tem alguma coisa errada aí – ou com o Twitter, ou com o Rafinha, ou com o Obama. O Osama Bin Laden devia ter desconfiado…

Nas mãos de um político, o Twitter pode virar uma piada ou a prova de um crime. O então senador Aloísio Mercadante, apressado, anunciou pelo twitter a sua “demissão irrevogável”, revogada minutos depois pela conversa sedutora do presidente Lula. O que era piada, no caso Mercadante, virou ato de truculência e estupidez nas mãos do senador Roberto Requião. Irritado com uma pergunta pertinente, ele se vangloriou pelo twitter de ter confiscado o gravador de um repórter de rádio, que ele classificou de “provocador engraçadinho”.

Requião tuitou: “Numa boa, vou deletá-lo”. Foi o que fez o senador engraçadinho, num dos mais inacreditáveis atos de violência e censura praticada por um parlamentar após a ditadura. Devolveu depois o gravador com a entrevista apagada. Divulgou a entrevista na íntegra depois em seu site, com um argumento digno dos garotões de músculos avantajados do BBB: “Eu mesmo quis ter o controle da entrevista, sem trucagens”, explicou o mais novo e violento editor da imprensa brasileira.

Apesar da brutalidade, Requião corre o risco de ser mais um na multidão da impunidade. O presidente do Senado, José Sarney, amenizou a estupidez explícita como uma simples “questão de temperamento”.

Senhoras e Senhores,

A biografia é o fio condutor da história. Ela tem, sobre o jornalista, a atração que a luz exerce sobre os pirilampos. Uma bela biografia é isca segura para uma bela reportagem. O sedutor relato de vida das pessoas, simples ou poderosas, faz a diferença para o bom repórter.

Nada atrai mais o jornalismo do que o traço e o gesto das pessoas que movem o mundo, que geram ideias, que inspiram exemplos, que arrastam multidões, que transformam os tempos e ganham espaço cativo na estante da história e na memória dos homens.

O foco preferencial do jornalismo são as pessoas que dizem ‘não’, as pessoas que têm a coragem de dizer ‘não’, a coragem de enfrentar desafios, de contrariar interesses, de rebater dogmas, de fazer as perguntas mais impertinentes, mais abusadas, mais necessárias.

O ‘não’ mais corajoso da história foi o do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882). Ele enfrentou preconceitos, venceu suas origens culturais e superou restrições religiosas para recolocar o homem no seu devido lugar. Seu cérebro prodigioso desfez fábulas celestiais para nos situar, com humildade, apenas como o representante mais inteligente de um mundo animal que tem sua origem comum nas espécies selecionadas pelo elegante, caprichoso, indesmentível mecanismo da evolução natural.

Dizer ‘não’ a Deus e à Igreja, naqueles tempos inflexíveis da ortodoxia vitoriana, define a coragem e a grandeza eterna de Darwin.

Um segundo ‘não’ vem de um jornalista. Conservador, reacionário, imperialista, rabugento, desbocado, teimoso, beberrão e fumante compulsivo, Winston Churchill (1874-1965) foi grandioso nas atitudes inspiradoras, insuperável na elegância da melhor prosa inglesa, imbatível na fina ironia e invencível na determinação de enfrentar a mais assustadora ameaça do século 20: Hitler e sua ideologia totalitária. Seu granítico “não” salvou a humanidade da submissão ao nazismo. Em cinco dias decisivos de maio de 1940, entre a sexta-feira, 24, e a terça-feira, 28, a Grã-Bretanha estava assombrada pela rendição inesperada da França e o virtual esmagamento das tropas inglesas em Dunquerque. Churchill estava virtualmente só, inclusive dentro do gabinete, que procurava uma saída para o armistício com o III Reich.

Opondo-se a Lorde Halifax, o ministro das Relações Exteriores que apoiava a política do apaziguamento com Hitler desde Munique, o primeiro-ministro mudou a história ao dizer ‘não” à paz em separado. Se tivesse cedido, a Inglaterra teria saído da guerra e o nazismo triunfaria para sempre, com seus aliados da Itália e Japão.

Um terceiro ‘não’ veio de Ulysses Guimarães (1916-1992). Seu maior momento foi nas praças de todo o país, comandando multidões nas Diretas-Já, e sua melhor fala foi na noite de Salvador de 1978, no simbólico 13 de maio, quando repeliu de dedo em riste os soldados e os cães que tentavam acuá-lo, produzindo um ‘não’ encharcado de dignidade: “Respeitem o líder da Oposição! Baioneta não é voto e cachorro não é urna!”.

Ainda assim, na autobiografia que acaba de lançar, José Sarney ousou qualificar Ulysses como “um político menor”. Esqueceu de dizer que, diferente de Ulysses, ele foi o político menor que disse ‘sim’ ao Pacote de Abril de 1977 que fechou o Congresso, que cancelou as eleições diretas para governador e que inventou o monstrengo do senador-biônico.

No fecho da Constituinte, em 1988, Ulysses proclamou: “A censura é a inimiga feroz da verdade. É o horror à inteligência, à pesquisa, ao debate, ao diálogo”. Hoje, nesta segunda-feira, 9 de maio, completam-se 647 dias de censura ao jornal O Estado de S.Paulo, patrocinada pela família Sarney — agora sem baioneta e sem cachorro.

O quarto ‘não’, expresso pela costureira negra Rosa Parks(1913-2005), mudou a história dos Estados Unidos. Ela tinha 42 anos quando se recusou a ceder o lugar a um branco, no ônibus da cidade de Montgomery, e foi presa. O gesto incendiou Alabama e o país inteiro, que viu o primeiro boicote à segregação. Os negros começaram a andar a pé, de bicicleta, mula, carroça ou em táxis de negros que cobravam 10 centavos, a mesma tarifa dos ônibus agora vazios. A desobediência civil desatada pelo ‘não’ de Parks levou, um ano depois, em dezembro de 1956, à decisão histórica da Corte Suprema proibindo a discriminação na cidade, passo fundamental para garantir os direitos civis aos negros em todo o país.

Leonel Brizola também disse ‘não’. Às 3h da madrugada de domingo, 27 de agosto de 1961, as luzes estavam acesas nos porões do Palácio Piratini, em Porto Alegre, para um ‘não’ que mudaria a história do país. O governador gaúcho não aceitou o veto dos militares à posse do vice-presidente João Goulart e começou ali, pelos microfones das rádios Gaúcha e Farroupilha, uma série empolgante de discursos através da rede de 104 rádios em defesa da legalidade constitucional. Foi um movimento popular tão arrebatador que o general Machado Lopes, comandante do III Exército, não conseguiu dizer ‘sim’ ao golpe – e, nove horas após a primeira fala de Brizola, aderiu à Campanha da Legalidade, determinando o seu sucesso pela imprevista cisão militar.

Os Estados Unidos começaram a dizer ‘não’ à guerra do Vietnã na pequena aldeia de My Lay. Na manhã de 16 de março de 1968, um helicóptero sobrevoou o local bombardeado e notou corpos de civis com vida. Ao aterrissar, o piloto Hugh Thompson Jr. (1943-2006) percebeu que os soldados estadunidenses disparavam em mulheres, velhos e crianças. Discutiu com o comandante da operação sobre o resgate de civis feridos numa cabana, e o oficial disse que iria tirá-los dali com granadas de mão. Num gesto inédito na história militar americano, ele apontou as metralhadoras do helicóptero contra o pelotão americano, avisando que iria atirar se ele não recuasse. Recuou e várias vidas foram salvas. Mas já tinham sido mortos entre 350 e 500 civis, o maior massacre de civis na guerra do Vietnã.

Inicialmente perseguido por seus chefes, Thompson acabaria recebendo, 30 anos depois, a Medalha do Soldado, a mais alta condecoração do Exército para atos de heroísmo fora de combate. O ‘não’ de Thompson foi um ponto de inflexão no apoio à guerra em território americano. A partir dali, cresceram as manifestações pela retirada dos Estados Unidos do Vietnã.

O ‘não’ do capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho (1930-1994) impediu que a tropa de elite da Aeronáutica, o Para-Sar, treinada para salvar vidas, se tornasse um esquadrão da morte. Conhecido como ‘Sérgio Macaco’, ele disse ‘não’ ao nome mais temido da FAB, o notório brigadeiro João Paulo Burnier. No tenso ano de 1968, o brigadeiro era o expoente da linha-dura que imaginava explodir o Gasômetro, a central de gás encanado no Rio de Janeiro, ao lado da rodoviária, num momento em que 100 mil pessoas transitavam pelo local. A culpa seria jogada nos comunistas, pretexto para endurecer o regime. Apesar de ter sido preso, expulso da FAB e cassado em dezembro pelo AI-5 que ele abortou em junho, a recusa de Sérgio Macaco desarticulou o plano terrorista e salvou milhares de vidas.

Senhoras e Senhores,

Nossos poucos heróis e muitos vilões estão ao nosso alcance, com suas histórias de vida em busca de um repórter que tenha a arte de andar por aí, como prega Gay Talese, ou que se disponha a gastar a sola do sapato, como sugere Ricardo Kotscho.

Quando fui chamado para trabalhar na revista Veja em Porto Alegre, em 1971, o chefe da sucursal era Paulo Totti. Aos 32 anos, era o mais talentoso jornalista do Rio Grande do Sul, a melhor escola que um repórter poderia ter.

Em dezembro de 2007, cinco meses antes de completar 70 anos, Totti conquistou o Prêmio Esso de Economia com uma reportagem sobre a China, publicada no diário Valor Econômico.

O melhor jornalista gaúcho há 40 anos é ainda hoje um dos grandes repórteres brasileiros. É dele esta frase consoladora:

— A função do repórter é a única que vai sobreviver no jornalismo do futuro. Sempre vamos precisar, no futuro, de alguém que pergunte.

Totti disse e eu completo:

O importante – ontem, hoje e sempre – é duvidar e perguntar.

 

Espero que o título honroso que a UnB hoje me confere seja o reconhecimento não às respostas que obtive, mas às perguntas que fiz ao longo destas últimas quatro décadas.

 

Muito obrigado.

*Jornalista, em discurso na cerimônia de diplomação de Notório Saber em Jornalismo, UnB, 9-5-2011.

 

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 30/10/2012.

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