bolsonarismo, Direitos Humanos, Eleições, Política

Sejamos finalmente livres

Era 14 de março de 2018. Tiros foram disparados naquela noite quente de verão. Só mais uma noite no Rio, se não fosse pela vítima, a vereadora Marielle Franco, baleada com violência, quando voltava para casa de um evento a apenas alguns quilômetros de distância. O perpetrador? Essa é a pergunta que ainda não tem resposta.

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Jair Bolsonaro é uma das figuras mais conhecidas e desprezadas do Brasil. Sua ascensão à presidência, na onda trumpiana iniciada em 2016, inaugurou uma retórica política nunca ouvida publicamente no Brasil.

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O primeiro páragrafo traz um trecho da sinopse do livro “Memória Viva”, que Lu Olivero (Leuvis Manuel Olivero) publicou em 2020. O segundo é de outro livro de Olivero, “Enquanto o Ódio Governava, a Rua Falava”, também de 2020. Lu foi imigrante dominicano nos EUA e depois veio para o Brasil, onde viveu, constituiu família, jogou capoeira, investigou e escreveu. Em 10 de outubro, quando caminhava por uma rua da Tijuca, foi alvejado por homens que atiraram de dentro de um HB20. Era tarde quando o socorro chegou.

A história de mortes não explicadas no Brasil não é recente e tem as mais diversas causas oficiais. Um recorte temporal curto vai trazer à memória Teori Zavascki, ministro do STF (acidente aéreo), Marcelo Cavalcante, secretário do governo de Yeda Crusius no Rio Grande do Sul (suicídio), e muitos outros nomes, cuja listagem é desnecessária. No governo Jair Bolsonaro, porém, o número de pessoas que morrem assassinadas é impressionantemente alto. Todas essas mortes, seja qual for a causa apontada nos inquéritos, têm em comum o fato de invariavelmente não serem alvos de investigações sérias.

Não é nenhum equívoco dizer que o bolsonarismo é uma máquina de guerra. As centenas de milhares de pessoas que perderam parentes e amigos/as pela Covid podem dar testemunho disso. Muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas, caso a política do governo central fosse efetiva no combate à doença e não na sua propagação.

Entretanto, o genocídio provocado pela má condução da crise sanitária e outros atos da família bolsonaro incrivelmente não é o que mais assusta. A pasmaceira e o jogo de cena das instituições republicanas, isso sim é alarmante e mostra que estamos com o barco à deriva em plena tempestade. Bolsonaro e sua família dispõem de serviços de advocacia privada na PGR e na AGU e promovem alterações nas chefias dos órgãos de segurança e fiscalização sempre que necessário. Apenas para retomar o Caso Marielle, que tem como consequência evidente o assassinato de Lu Olivero e tantos outros, a investigação, decorridos quatro anos completados no último dia 14, já passou por quatro delegados da polícia civil e atualmente está nas mãos do quinto. No âmbito do MP, três grupos diferentes de promotores já atuaram. E até agora o que se avançou? Muito pouco, embora as evidências do envolvimento de certas pessoas sejam irrefutáveis.

Enquanto esses e outros crimes brutais vão acontecendo em ritmo industrial, o que fazem as nossas instituições? Notas de repúdio, manifestos, cartas abertas e toda a sorte de ações midiáticas que não resultam em nada. A CPI, em que pesem as muitas horas de trabalho e a veemencia dos discursos da mesa diretora, teve como resultado máximo a qualificação de Bolsonaro como genocida, algo que, dada a sua ignorância, ele nem sabe o que significa.

Alexandre de Moraes, o neocomunista ministro do STF, é pródigo em decisões que geram dias de debates nas redes, horas de repercussão nos telejornais e zero efeito jurídico. Barroso, seu colega, manifestou-se com força em defesa da Justiça Eleitoral e da urna eletrônica, mas e quanto a determinar uma investigação séria sobre o esquema de fake news que alavancou a votação da chapa Bolsonaro/Mourão, como se diria no vetusto jargão jurídico, quedou-se silente. Sérgio Moro, pré-candidato à sucessão de Bolsonaro, assumiu ter estado à frente da farsa lavajatiana apenas para fazer o serviço que as forças políticas não conseguiram, no que diz respeito a impedir uma nova eleição petista. O que fez o Judiciário? Nada!

Imagem copiada de: https://revistaforum.com.br/news/2020/1/31/moro-exclui-miliciano-ligado-flavio-bolsonaro-da-lista-dos-criminosos-mais-procurados-do-brasil-68418.html. Acesso em: 15 de mar. 2022.

E assim, entre crimes de brutalidade ostensiva, como os assasinatos de Marielle, Anderson e Lu Olivero, matanças coletivas, como as mortes provocadas pela Covid, e crimes de gabinete, como os de Sérgio Moro, avançamos rumo a uma nova eleição. E novamente o povo estará com a caneta, ou melhor, com o teclado à frente para mudar o rumo da história. Mas enquanto não atingirmos o ponto ideal de civilização, quando o povo não dependerá mais de representantes e dirigirá ele próprio o seu destino, é mais do que urgente a descida das lideranças do campo democrático ao chão da fábrica, à rua não asfaltada, ao pequeno sindicato, à associação de bairro, à organização coletiva da comunidade, porque é ali, onde o povo está e onde atuam as pessoas verdadeiramente abnegadas e interessadas na construção de um futuro melhor para todos e todas, que se articula a campanha. Discursar para intelectuais e ganhar elogios da comunidade acadêmica internacional não vai resolver os problemas do Brasil. Ou organizamos a luta com os de baixo, como bem definiu um querido amigo dias atrás, ou o fascismo bolsonarista (que não depende de Bolsonaro), seguirá livre, leve e solto. Como livres, leves e soltos estão os assassinos de Marielle, Anderson, Lu e tantas outras.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/06/cronica-e-dai-ou-como-conversar-com-quem-relativiza-fascista. Acesso em: 15 de mar. 2022.

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Gentes

Dizem que os crocodilos derramam lágrimas enquanto devoram suas presas. Daí a expressão “chorar lágrimas de crocodilo” pra dizer que alguém está sendo falso, cínico. Bolsonaro não corre o risco de virar crocodilo (que bom para os animais), afinal (diz que) não tomou a vacina. Mas a lamentação pela morte de Marília Mendonça se encaixa direitinho na definição da expressão.

Como disse o Moisés Mendes, Marília nunca foi uma ativista política e ele mesmo observa que no meio musical em que ela consolidou a sua curta carreira isso seria impossível. Mas ela falou publicamente que não votaria no candidato do fascismo. Não frequento a dita sofrência, sertanejo universitário, baronato da pisadinha ou o nome que tenha o tipo de música que ela fazia, mas tenho razões de sobra pra acreditar que ela tenha sido a única dessa turma a se posicionar assim. E, por óbvio, isso teve consequências, ela foi ameaçada e também a sua família, o que fez com que se recolhesse. Deve ser criticada por isso? Não por mim, porque entendo bem o passo atrás de quem sofre ameaças de assassinos. E que o exército bolsonarista é formado por assassinos, a memória de Marielle e Mestre Moa do Katendê (além de tantos outros e tantas outras) não nos deixa esquecer.

Imagem copiada de: <https://www.conversaafiada.com.br/brasil/sao-paulo-homenageia-mestre-moa-do-katende-e-marielle&gt;. Acesso em: 9 de nov. 2021.

A morte de Marília não vai transformar a música que ela fazia numa coisa boa. E, claro, digo isso apenas a partir da minha perspectiva, porque os e as milhões de fãs da cantora dizem diferente. Mas a morte de uma artista de 26 anos, que construiu a carreira e atingiu o sucesso de forma honesta – essa é a informação que eu tenho – é algo a ser lamentado. Quando se sabe que ela tinha um filho de pouco menos de 2 anos, o lamento vira dor, porque nenhuma criança deveria perder a mãe e muito menos nessas condições trágicas.

A partir da morte da Marília, Moisés Mendes aponta outra questão interessante para uma reflexão. Ele diz que do lado deles ninguém morre, ou morre e ninguém percebe. Como figura de linguagem vale, mas não é de todo verdade. Morre gente deles sim, bastante, e até vítima do vírus da gripezinha. Mas talvez realmente a gente não perceba. Ou se percebe não dá muita bola. Mas o inverso é muito verdadeiro, do nosso lado morre muita gente. A maioria das mais de 600 mil vidas perdidas pela Covid é gente nossa; a maioria das crianças e jovens negras e negros assassinados/as diariamente, sem notícia no JN, é gente nossa. E a nossa gente morre também sem morrer. Cada mulher violentada que tem medo de denunciar é gente nossa morrendo aos poucos; cada gay que é alvo de piadas (e também de violência física), cada pessoa que aparece nas transmissões televisivas das igrejas evangélicas como exemplo do satanismo das religiões de matrizes africanas, é gente nossa que morre; cada jovem da ciência que tem a verba da sua pesquisa cortada é gente nossa morrendo.

Dizer gente nossa aqui não tem necessariamente a intenção de dizer que é gente das nossas amizades e nem mesmo gente de quem gostamos. Tem gente nossa de quem eu gosto pouco ou quase nada. E tem até gente nossa de quem eu não gosto. Gente nossa é uma coisa ampla, é a gente que sofre com o projeto fascista e genocida que se instalou no Planalto e adjacências; é a gente que sabe que se deixar pra ir amanhã no mercado ou no posto de gasolina já não vai pagar o mesmo preço; é a gente que entra num posto de saúde sucateado em que profissionais precisam pagar material do próprio bolso para continuarem salvando vidas, e que depois passa na frente de um prédio do Judiciário que mais parece um Palácio de Versalhes. Se bem que na Justiça Federal, onde estão os prédios mais suntuosos, agora ninguém mais passa sem pagar o pedágio do parque privatizado. Mas, enfim, gente nossa é essa que sofre diariamente pelo abismo que nos separa da gente deles.

E enquanto a nossa gente morre, de verdade e simbolicamente, a gente deles entope as contas no estrangeiro com o dinheiro surrupiado de gente nossa. E sabem o que é pior? Essa gente que é deles de direito e de fato é muito pouca. A maioria da gente deles é, na verdade, gente nossa que só ainda não sabe disso. Espero que essa gente, que é nossa e pensa que é deles, entenda logo qual o lado certo para se (re)posicionar. Antes que só sobre gente deles por aí.

Se chegou até aqui, peço alguns segundos de silêncio em honra à memória da Marília Mendonça, da Marielle Franco, do Mestre Moa do Katendê e de tanta gente nossa que se foi; e um pequeno silêncio também para gerar um grande campo de vibração para nos fortalecer nas lutas contra a gente deles, porque… tá difícil, oh se tá! Mas nós não vamos desistir!

Imagem copiada de: <https://pcdob.org.br/noticias/enfermeira-e-atacada-por-funcionario-do-ministerio-de-damares/&gt;. Acesso em: 9 de nov. 2021.

*Imagem de destaque copiada de: <https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-cobra-apoio-de-ruralistas-na-disputa-pela-presidencia-da-camara/&gt;. Acesso em: 9 de nov. 2021.

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