bolsonarismo, Eleições, Política

O Manifesto Surrealista braZileiro

O primeiro debate da eleição presidencial já aconteceu. E não foi entre candidatos à presidência. Gregório Duvivier e Ciro Gomes promoveram, na última semana, uma daquelas coisas que é difícil imaginar acontecendo em outro país fora o braZil.

Tudo começou com o Gregório Duvivier dedicando um episódio do Greg News ao Ciro Gomes. Em pouco mais de meia hora, o programa faz uma radiografia da carreira de Ciro, que começou no movimento estudantil no fim dos anos 70, engajado na luta pela redemocratização do país – isso quem disse foi o próprio Ciro na resposta (ou react) -, mas que teve seu início formal no PDS, sucedâneo da Arena, para não criar problemas para o pai, dito também pelo próprio Ciro. Depois vieram o MDB, o PSDB, o PPS e por aí vai. O roteiro do programa incluiu outros momentos, em que o Cirão esteve envolvido com as suas próprias coisas, fora da política ( ou não…), como o tempo que passou em Harvard e no Beach Park. Beach Park que, para refrescar a memória recente, foi palco de ações pró-bolsonaro no ano passado.

Ciro não gostou do que viu e respondeu pelo seu canal de lives, fazendo o tal do react, que é uma espécie de réplica, em que ele pontuou todas as questões levantadas pelo Greg News. A retórica do Ciro é invejável e a sua capacidade de persuassão é gigantesca. Ele explica tudo, desde os fatos mais controversos, com uma clareza que deixa pouca dúvidas que sempre foi um grande democrata. Mostra que até mesmo a sua passagem pelo PDS foi em nome da democracia, ainda que tenha sido no partido da ditadura durante a ditadura. Eu disse que o homem é bom de conversa. Quem duvida que pode ser convencida/o, veja a live, basta jogar no google.

Disso resultou o debate, que teve vez na sexta-feira passada, e foi uma das coisas mais absurdas que eu já vi no ambiente político brasileiro, tirando, é claro, as bizarrices bolsonaristas e a possibilidade de Eduardo Leite ter renunciado ao governo do estado para concorrer ao… governo do estado. Se aceitarmos que Ciro é um democrata genuíno, e o argumento para isso pode ser a sua participação no ministério do primeiro governo Lula, e que Gregório é um militante da esquerda democrática, e isso pode ser atestado nos episódios do Greg News, teremos necessariamente de concluir que os dois deveriam estar do mesmo lado no combate ao pior mal: o bolsonarismo, que, não custa dizer uma vez mais, é maior do que Bolsonaro. Mas não foi o que se viu. Entre elogios protocolares, inclusa a declaração de voto em Ciro no primeiro turno de 2018, Gregório atacou duramente o político, sugerindo, entre outras coisas, que ele se aproveitou da atividade pública para conseguir uma cargo na diretoria do Beach Park, o que se traduz por corrupção (ativa ou passiva, sei lá), e Ciro, que se disse várias vezes fã de Gregório, atacou duramente o humorista, dizendo, entre outras coisas, que ele produz fakenews encomendadas, o que se traduz por corrupção (passiva ou ativa, sei lá). No meio desse tiroteio, sobrou, claro, para Lula, cujos adjetivos usados por Ciro nem vou declinar, porque basta dizer que ao final do seu react ele trouxe vídeos antigos de Gregório em que ele chama Lula de “brother de empreiteira” e diz que a chapa Dilma/Temer deveria ser cassada pelo TST.

Se somarmos o tempo desses três vídeos, vai dar mais de 4 horas. Acrescendo os comentários gerados e as matérias produzidas na rede sobre o assunto, vamos constatar facilmente que Gregório e Ciro, Ciro e Gregório, fizeram o trabalho sujo semanal do bolsonarismo, que desta vez nem precisou queimar os neurônios (da equipe, por óbvio, porque sabemos que o próprio Bolsonaro não os têm) procurando assunto para as bombas de fumaça. E, pior do que isso, se procurarmos nessas 4 horas e tanto, vamos pescar aqui e ali algum ataquezinho inexpressivo e sem qualquer efeito a Bolsonaro, que deveria ser o alvo de todos e todas que se dizem democratas nesse braZil. Posso imaginar a famiglia reunida em frente à tela, dando gargalhadas com direito à pipoca, guaraná e leite condensado de sobremesa.

A história recente do Brasil mostra um candidato racista, homofóbico, misógino, virulento, apoiador da violência militar, fã de torturadores, sendo eleito presidente porque uma grande parcela do seu eleitorado dizia que ele não cumpriria as promessas de campanha, e, passados quatro anos de um (des)governo trágico, uma esquerda incapaz de se articular minimamente em nome de uma resistência necessária, e cada vez mais enrolada na produção de fatos e notícias contra si própria. Enquanto isso, aquele presidente, que pode ser acusado de tudo menos de estelionato eleitoral, já que cumpriu quase todo o programa, agrega ao seu currículo um mandato genocida, dito pela CPIzza, com 650 mil mortes ligadas diretamente ao negacionismo e à condução assassina da crise, avançando nas intenções de voto de uma população órfã de uma plataforma democrática confiável que possa abraçar.

Segundo algumas pessoas, inclusive Ciro Gomes, Lula criou Bolsonaro; segundo outras, inclusive Gregório Duvivier, Ciro coloca em risco a possibilidade de já na próxima eleição jogar Bolsonaro no esgoto da história. Enquanto essa guerra de narrativas se trava nas redes, e a guerra fratricida confunde o povo, a máquina bolsonarista vai passando, abrindo caminho para a boiada destruir o que ainda resta de um país cada vez mais braZil e menos Brasil, que bem poderia ser retratado em uma tela de Dalí ou num filme de Buñuel.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.osaogoncalo.com.br/politica/86940/presidente-bolsonaro-provoca-witzel-apos-afastamento-do-governador. Acesso em: 25 de maio 2022.

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O que(m) diz o direito?

No mundo do direito penal, nada é a priori. Melhor dizendo, nada é simplesmente por ser. Qualquer coisa que seja, apenas passa a ser, no ordenamento jurídico, após uma atribuição. Não quero escrever um tratado de ontologia, ou melhor, quero, só que por razões evidentes não vou fazer isso, mas o que parece ser um conceito complexo, cheio de abstrações filosóficas, como linha geral é bastante simples e até óbvio, estando expresso no princípio que diz que não existe crime sem lei que previamente o defina.

Um grande amigo, Diego, me apresentou uma nova teoria do direito penal, mais especificamente sobre a questão dos delitos, que trata de coisas como que tipo de conduta é considerada crime, quando se pode exigir a aplicação da pena, quando se trata de dolo e quando é culpa, enfim. Essa teoria, desenvolvida por um sujeito chamado Vives Antón, e defendida no Brasil principalmente pelo procurador de justiça e professor no Paraná Paulo César Busato, atribui importância decisiva à linguagem nas conceituações de delito. Não vou entrar em maiores detalhes, inclusive porque não os tenho, já que recém tive o primeiro contato com a tese, que pretendo aprofundar. Entretanto, o pouco que vi fornece chaves importantes para entender algumas coisas que acontecem no braZil de Bolsonaro.

A mais superficial das análises vai mostrar que Daniel Silveira foi condenado por atos que foram, são e serão iguais em gravidade ou até menos graves do que os que os bolsonaros praticam há muito tempo. E esses atos, ou melhor, essas práticas, estão definidas como crime, tipificadas, para usar o jargão jurídico. Por que, então, o deputado marombado recebeu punição e os membros da família não? Claro que uma das explicações passa pela advocacia privada que o clã tem na PGR. Mas não é só isso. Há uma adequação da norma a cada caso, mesmo que esta seja pré-definida. Isso é típico da aplicação do direito e de fato assim deve ser, pois do contrário a administração da justiça se daria de forma autogestionada, bastando a existência da regra. A prerrogativa de interpretação da norma jurídica pelo órgão julgador, porém, enseja distorções gritantes. Eduardo Bolsonaro pode dizer que para fechar o STF não precisa de jipe nem de oficiais, mas Daniel Silveira não pode defender o fechamento do mesmo tribunal; Jair Bolsonaro pode subir em palanque, fazer ameaças e dizer que não vai cumprir as decisões da Corte, mas Daniel Silveira não pode deixar de carregar a bateria da tornozeleira eletrônica. Há uma clara flexibilização do princípio que diz que todos são iguais perante a lei. Tudo passa, então, pela interpretação das normas, que varia de acordo com quem as interpreta e, fundamentalmente, com o sujeito a quem elas serão aplicadas. Nos exemplos dados, é evidente que o neocomunista Alexandre de Moraes, consagrado constitucionalista, portanto conhecedor dos princípios do direito, sabe bem que uma coisa é condenar um inexpressivo deputado, usado como boi de piranha pelo sistema, e outra bem diferente é sentenciar o presidente da república ou um membro da família real (para evitar incômodos: a expressão família real contém ironia).

Para trazer outro exemplo, vamos lembrar o impeachment da presidenta Dilma, que teve como base a tal pedalada fiscal, que ninguém sabe direito explicar o que é, mas que todos/as, ou pelo menos quase todos/as que ocupam as chefias dos executivos, nas três esferas administrativas, usam e reusam. Por que Dilma foi impedida e outros/as não? Interpretações diferenciadas da norma. E, para evitar problemas, tão logo a presidenta foi afastada do cargo pelo golpe jurídico-parlamentar, a lei que trata das pedaladas fiscais, e consequentemente a sua interpretação, foi alterada.

Em outra situação, recentemente, a CPI(zza) elencou uma série de crimes de responsabilidade praticados por Jair Bolsonaro, alguns dos quais são reconhecidos até por organismos internacionais. Entretanto, o presidente da Câmara, a quem cabe abrir ou não um processo de impeachment, dá uma interpretação muito peculiar a cada um dos mais de cem pedidos de abertura de processo, muitos deles anteriores aos trabalhos do Senado, conferindo um destino único a todos eles: gaveta. Do mesmo modo, o Procurador-Geral da República, que tem a função institucional de autorizar procedimentos investigatórios contra o presidente, tem uma interpretação única sobre todas as notícias que chegam às suas mãos contra Bolsonaro, mesmo as que vêm diretamente do Supremo: Jair é inocente, arquive-se.

Outro caso marcante é o que envolve o ex-juiz, ex-ministro e ex-presidenciável, Sérgio Moro, cujos esquemas de interpretação da lei são tão particulares que permitiram que ele, apesar de magistrado, comandasse, segundo suas próprias palavras, uma operação judiciária que tinha o objetivo de suprir uma falha das forças políticas, aniquilando um partido e impedindo um candidato de concorrer à presidência da república. Hoje já foram lançadas luzes sobre a farsa judiciária chamada Lava Jato, mas as consequências funestas dela ainda estão surtindo os seus efeitos no governo protofascista que ela ajudou a levar ao Planalto. O mesmo Sérgio Moro, que abandonou a magistratura para se dedicar à política, disse, já como ministro do (des)governo cuja eleição foi por ele garantida, que, em alguns casos, basta o arrependimento para que se tenha o perdão. E assim o súper ministro Onyx Lorenzoni está legitimado a se lançar ao governo do Rio Grande do Sul, mesmo depois de ter confessado, em meio a um choro compungido, que fazia caixa 2. Para ilustrar essa flexibilidade interpretativa do comandante da Lava Jato, é interessante lembrar o que ele disse em 2017, na Universidade de Harvard: “Temos que falar a verdade, caixa 2 nas eleições é trapaça, é um crime contra a democracia. Corrupção em financiamento de campanha é pior que desvio de recursos para o enriquecimento ilícito”. (Fonte: https://sul21.com.br/ultimas-noticiaspolitica/2018/11/moro-sobre-caixa-2-de-onyx-lorenzoni-ele-ja-admitiu-e-pediu-desculpas/)

Os fatos aqui trazidos como exemplo, por sua notoriedade e grande repercussão, servem para comprovar as razões da Teoria da Ação Significativa, que citei no início do texto. Todavia, uma pesquisa rápida nas decisões judiciais cotidianas em matéria criminal vai mostrar que embora todos sejam iguais perante a lei, alguns são mais iguais que os outros. E assim, no país do bolsonarismo, vamos vivendo em absurda insegurança jurídica, sabendo que a aplicação do direito não obedece a critérios sólidos, em que pese a pré-definição das normas. Cada vez importa menos o que diz o direito e mais quem diz o direito.

Imagem de destaque copiada de: https://www.poder360.com.br/governo/aras-e-favoravel-a-bolsonaro-prestar-depoimento-sobre-interferencia-na-pf/. Acesso em: 5 de maio 2022.

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Sem Supremo, sem nada

O xadrez é um jogo de tabuleiro antiquissimo, cuja prática, dizem, torna as pessoas mais inteligentes. Mas xadrez também é o nome que a caserna usa para cadeia, inclusive em documentos oficiais. Jair Bolsonaro não tem inteligência suficiente para jogar xadrez, mas tem currículo de sobra para estar no xadrez. Bolsonaro, porém, é muito menor do que o bolsonarismo e quem está por trás do sistema, esses sim dominam a arte da estratégia do jogo político e, sobretudo, de poder.

A bola da vez é Daniel Silveira. Ao mesmo tempo em que é usado como mais uma das tantas cortinas de fumaça para passar a boiada (Ministério da Educação; Queiroz; cloroquina etc.), o deputado marombado é seríssimo candidato a ser arquivado antes das eleições. Notícias divulgadas nas redes nos últimos dias mostram que o homem era (ou é) um gravador ambulante. Respondeu a diversos processos éticos por gravar e divulgar ilegalmente reuniões do antigo partido, PSL, e há quem diga que ele tem gravações de conversas nada republicanas com o próprio Bolsonaro.

Não é de hoje que os bolsonaros mostram total desprezo pelo regime democrático. Antes da eleição do patriarca, o Filho nº 2 já avisou que não precisaria nem de jipe nem de oficial para fechar o STF, já que com apenas um soldado e um cabo faria o serviço. Ao longo dos últimos três anos e pouco, o presidente e sua família, protegidos por sua escolta institucional privada, protagonizaram dezenas de atos e fatos tão ou mais graves do que os que levaram Alexandre Moraes a aplicar a tornozeleira à perna de Daniel Silveira. Por que nunca foram incomodados para além de alguns editoriais do Jornal Nacional e de uma volumosa coleção de manifestos, cartas abertas e notas de repúdio das instituições, além de ameaças, não mais do que ameaças, dos comandantes do circo midiático apelidado de Comissão Parlamentar de Inquérito e do neocomunista ministro do STF?

Bolsonaro dispõe de advocacia de luxo na PGR. Por mais evidências que existam do cometimento de crimes pelo presidente, inclusive de responsabiliadade, que podem resultar em processo de impeachment, Augusto Aras sempre encontra uma maneira de arquivar qualquer investigação. Entretanto, o caso Daniel Silveira extrapola esse escancarado sistema de blindagem. O processo não precisaria ter ido tão longe, já que Silveira é um dos aliados dos bolsonaros e a sua eleição é fruto da defesa instransigente das práticas da família. Seria, portanto, merecedor de uma mediação do Bolsonaro pai para evitar a condenação. Mas é chegado o momento de começar a dar provas claras de poder. A liberação de Daniel Silveira depois da decisão do colegiado foi um claro recado de Bolsonaro ao Supremo. Recado que já foi passado de diversas formas. O perdão, ou graça, como queiram, concedido ao deputado, ao tempo em que acirra os ânimos da militância, que se alimenta do discurso de ódio e entra em êxtase quando o mito parte para o enfrentamento, também enseja a construção de um fantasioso discurso democrático, pois o argumento usado para embasar o decreto é o da defesa da liberdade de expressão. Nada mal para quem, escondido no direito da liberdade de expressão, defende tortura e torturadores abertamente.

O engavetamento das dezenas (mais de cem) pedidos de impeachment, é a prova de que a Câmara Federal está sob controle, assim como o Senado, cuja CPI(zza), que ameaçou prender e arrebentar, não passou de uma grande comédia de sessão da tarde. Os bolsonaros não temem nada e (ou porque) mantêm as instituições e os poderes da república sob a mira das forças armadas. Notícia de ontem, domingo, dá conta da indisposição entre Luís Roberto Barroso, ministro do STF, e o general Paulo Sérgio Nogueira, ministro da Defesa, em face de declarações de Barroso sobre a campanha difamatória promovida pelas Forças Armadas acerca do processo eleitoral. A história mostra que diante do poderio militar, os poderes constitucionais não fazem nem ameaça de resistência. E, vamos falar a verdade, alguém acredita mesmo que os militares não estão totalmente fechados com Bolsonaro?

Imagem copiada de: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2020/02/ministros-militares-bolsonaro/. Acesso em 25 de abr. 2022.

O bolsonarismo conta, ainda, com a eterna disputa de vaidades da esquerda. O interminável Ciro Gomes, que é de esquerda, mas começou na Arena, mais uma vez dispara sua metralhadora giratória contra tudo e contra todos; Marcelo Freixo deixa o PSol sob o argumento que setores do partido inviabilizam uma articulação das forças do campo democrático, mas se filia ao PSB, que, a julgar pelas alianças e as plataformas que tem defendido nas últimas eleições, de Socialista leva apenas o nome; a esquerda ortodoxa vai lançar candidaturas inexpressivas, que vão ter alguns segundos de propaganda eleitoral para defender a Revolução; o PCdoB deve ir na carona do PT novamente; e, falando em PT, Lula, que concentra as esperanças de uma grande parcela do povo, em vez de ser o articulador dessa grande frente de resistência, parece mais interessado em recuperar tucanos arrependidos.

Há chances assustadoramente grandes de que em 2023 se consolide de forma definitiva a plataforma nazifascista do bolsonarismo, com o prosseguimento do processo chefiado por Paulo Guedes de entrega do país às elites econômicas, cuja única nacionalidade é o dinheiro, que pode ser dólar, euro ou até criptomoeda, se render bem. Já não é tão absurda a hipótese de que isso se dê pela via democrática do voto, que, em verdade, não é tão democrática quanto parece, visto que passa pela pesada máquina de manipulação e fakenews operada com maestria pelo bolsonarismo e que ainda tem a ajuda das próprias forças do campo democrático, incapazes de superar o narcisismo das suas lideranças. Todavia, há o grande risco de tudo acontecer pela sanha golpista das forças armadas, que nasceu, em termos de república, com a sua fundação. E desta feita o golpe viria mesmo sem Supremo, sem nada…

Imagem de destaque copiada de: https://blogdaboitempo.com.br/2021/08/13/o-governo-militar-de-bolsonaro-e-neoliberal/#prettyPhoto/0/. Acesso em: 25 de abr. 2022.

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E agora, José? A festa acabou (O mundo não é tão bão, Sebastião…)

O ponto alto da extensa agenda oficial de comemorações dos 250 anos (também oficiais) de Porto Alegre foi a apresentação da Maria Rita na Redenção. Grande show, com direito a “Ele Não”, “Fora, Bolsonaro” e outras perigosas subversões. Só tenho dúvida se o prefeito Melo ficou à vontade com isso, já que a sua eleição se deu justamente na onda Bolsonaro. Mas a festa acabou e restou uma cidade para governar. Uma cidade conflagrada.

A mídia grande não tem conseguido dar curvas nos registros de violência na periferia apagada. Ainda hoje pela manhã (segunda-feira), ouvi na rádio que já são 24 mortes no que eles estão chamando de guerra de facções. Qualquer pessoa que more, trabalhe ou de alguma maneira se interesse pelo que acontece nos bairros mais pobres da cidade sabe que essa manchete é risível. O número de pessoas que morre em condições violentas nas comunidades periféricas, de bala “perdida”, de doença que já deveria estar erradicada, de fome, por queima de arquivo, é muito maior do que o que chega ao GZH, ou melhor, do que o que entra na pauta das editorias do grupo. Essas pessoas, porém, integram um grupo social ainda menos considerado pela oficialidade, os órgãos de segurança e a grande mídia: o grupo de quem não vira nem estatística. A diferença agora é que as ações estão sendo articuladas de outra forma, com estratégias de divulgação que ainda não tinham sido exploradas em escala mais ampla. Circulam mensagens em grupos de WhatsApp, cuja autenticidade é muitas vezes questionada e até negada, mas que acabam se mostrando de alguma maneira conectadas com os fatos. Qual o interesse de quem está promovendo a violência em publicizar e anunciar as ações antecipadamente, inclusive com detalhes de local e hora? Não estamos diante de um thriller hollywoodiano, em que o serial killer deixa pistas para a investigação por vaidade e para mostrar que é melhor que o policial. Não, aqui é a vida real e os interesses são outros.

Há quatro anos, um inexpressivo parlamentar do Rio de Janeiro saiu da obscuridade de uma série de mandatos em que pouquíssimos projetos foram apresentados e menos ainda foram aprovados, para ocupar a primeira cadeira do Planalto. A agenda econômica do ultraliberalismo estava na ordem do dia da plataforma bolsonarista. Entretanto, fosse só isso, a elite dispensaria o testa de ferro e lançaria o próprio Paulo Guedes, a cabeça por trás do esquema econômico. Bolsonaro não teve nenhuma vergonha de dizer, em campanha, que não entende nada de economia. Mas uma sucessão presidencial envolve muito mais do que conhecimento teórico e técnico acerca do mercado e dos seus reflexos no bolso da população.

Bolsonaro sabia muito bem que a pauta econômica, tratada em nível mais elevado e complexo, interessa diretamente apenas às elites. Entre o povo, as duas demandas mais caras ao eleitorado, especialmente as classes médias, eram/são: fim da corrupção e segurança. O primeiro item já vinha sendo trabalhado há bastante tempo, desde as investigações que se notabilizaram como mensalão (o petista, não o tucano, por óbvio), depois o petrolão, Lava Jato, Dallagnol, Moro e por aí vai. Quanto à questão da pseudo-segurança, nisso, e provavelmente só nisso, Bolsonaro é bom. Distorcer fatos, mascarar a insegurança em segurança, criar um discurso para convencer uma população descrente das instituições e com sede de justiçamento, tudo isso foi tarefa fácil para ele e uma família com trânsito livre no crime, especialmente entre as milícias do Rio de Janeiro.

E o que isso tudo tem a ver com a nossa “guerra porto-alegrense”? Estamos em ano eleitoral. Mais do que isso, estamos diante das eleições (plural, porque há eleições parlamentares) mais importantes da história do Brasil, porque podemos chancelar de forma irreversível o projeto nazifascista, ultraliberal, entreguista e lesa-pátria do bolsonarismo, ou tentar recolocar o país nos trilhos de um sistema de maior democracia e justiça social. Bolsonaro já não tem o escudo da Lava Jato, o que enfraquece muito um dos flancos mais eficientes do programa. É preciso, então, reforçar outras áreas. Recrudescer o discurso da segurança, que passa pelo armamento em massa da população civil, é uma medida fundamental. Com uma população convencida da falência das instituições e da ineficácia dos órgãos de segurança, que não conseguem evitar o fechamento de escolas, os toques de recolher e muito menos garantir que alguém não seja assassinado, por encomenda ou por engano, ao sair ou voltar do trabalho, torna-se muito mais fácil vender o discurso da “justiça com as próprias mãos”. Não se faz justiça com as próprias mãos sem armar a população. Qual o único programa eleitoral que defende abertamente o armamento civil como forma de garantir a segurança privada?

Embora não haja eleições municipais agora, as relações entre as esferas administrativas exercem muita influência nos pleitos. Ter uma base sólida de apoio nos estados e munícipios é essencial para qualquer candidato/a ao Executivo nacional. Dessa forma, o prefeito Sebsatião Melo vai ter de se posicionar, escolher um lado, e, a julgar pelo histórico da sua eleição em 2020, o apoio à reeleição de Jair Bolsonaro é a perspectiva. Com isso, apresentar a uma cidade assolada pela violência e criminalidade a narrativa de uma solução para a segurança é um prato cheio para o bolsonarismo e, por outro lado, pavimenta o caminho para uma repetição do mandato de Melo, que poderá usar a afinidade com o governo central em sua campanha em dois anos, caso o projeto fascista do bolsonarismo seja novamente bem sucedido.

Por isso, com a clareza de que a violência e a criminalidade não começaram em Porto Alegre há 15 dias, é hora de investigar a razão de somente agora, às portas das eleições nacionais, a atenção da grande mídia ter sido atraída para isso. Observar o posicionamento do prefeito Melo a partir da necessidade de dar uma resposta às demandas de segurança da população é uma boa providência e pode indicar o rumo das ações governamentais da prefeitura a partir de 2023. Se alguém pretende perder tempo dizendo que estou misturando as competências, que segurança pública é atribuição do governo estadual, peço que atente para o fato de ser essa uma discussão de políticas públicas em que todos os entes federativos estão implicados, outra não seria a razão da ampliação da atuação das guardas civis, por exemplo.

Sebastião Melo precisará tirar a máscara que usou no baile da cidade e mostrar a sua verdadeira cara, se é a do bolsonarista autoritário que se elegeu na carona do “mito” ou do democrata e conhecedor dos anseios do povo, cuja imagem ele tenta vender em suas andanças pela cidade. Melo será Lula, Bolsonaro ou observará a tudo do alto do muro da terceira via?

*Imagem de destaque copiada de: https://www.brasildefato.com.br/2020/12/10/bolsonaro-inaugura-ponte-em-porto-alegre-e-diz-que-pandemia-esta-no-finalzinho. Acesso em: 12 de abr. 2022.

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O bolsonarismo com Bolsonaro. Ou: a terceira via era a primeira

Sérgio Moro cumpriu um papel fundamental na história recente da política nacional. A sua escolha para comandar a farsa judiciária criada para acabar com o PT (segundo ele próprio) e com a economia nacional (segundo os fatos) não foi aleatória. Alguns nomes para jogar no Google e entender melhor esse processo: Foreign Corrupt Practices Act (FCPA); Clifford Sobel; Karine Moreno-Taxman; DOJ (Departamento de Justiça estadunidense); e, obviamente, os velhos conhecidos FBI, CIA e NSA (National Security Agency). Moro foi treinado nesse sistema e recebeu preciosas lições sobre como destruir a autonomia de um país desarticulando setores estratégicos da economia nacional. Essa atuação o credenciou como figura política importante. Do Judiciário para o Executivo, subvertendo a clássica tripartição dos poderes republicanos, sua nomeação para o Ministério da Justiça seria tratada como escândalo em qualquer país minimamente sério, mas por aqui foi saudada como uma vitória da cruzada anticorrupção. Frustrado o sonho do STF, Moro rompeu com Bolsonaro (não com o bolsonarismo) e tratou de pavimentar o caminho para suceder o presidente que ele próprio ajudou a eleger, com o aval da grande rede. O que a Globo e os think tanks parceiros não contavam é que a inépcia política e a absoluta falta de carisma do comandante da Lava Jato colocariam em risco a arquitetada terceira via.

Imagem copiada de: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-10-23/vaza-jato-a-investigacao-que-obrigou-a-imprensa-brasileira-se-olhar-no-espelho.html. Acesso em: 4 de abr. 2022.

Ao longo dos últimos anos, Bonner e sua turma trabalharam com Luciano Huck, que preferiu não arriscar uma rentável carreira de sucesso na TV em nome de um projeto não muito seguro de poder, e depois jogaram algumas fichas em João Dória e Eduardo Leite, mas tucano é animal de bico grande e por isso não beija outro da mesma família. O autocentrismo do engomadinho paulista e o narcisismo do agora ex-governador gay que não se quer gay ex-governador acabaram com qualquer chance de algum arranjo envolvendo seus nomes. Talvez por isso, para ter uma carta na manga em caso de situação de desespero, o anúncio da pré-candidatura de um obscuro Felipe D’Ávila pelo ultraliberal Partido Novo tenha sido agraciado com generosos minutos no horário nobre do JN do último sábado. Só uma hipótese. Corre por fora a medebista Simone Tebet, mas, como a história mostra, o partido é pouco afeito a disputar o poder na linha de frente, preferindo sempre a via golpista. Não se descarta, então, uma composição com algum nome de peso na cabeça e a filha de Ramez à espreita da possibilidade de ser a próxima vice a ganhar a cadeira no Planalto sem fazer grande esforço.

Por seu turno, a via da oposição a Bolsonaro recebeu uma chamada de alerta de Randolfe Rodrigues, que, não sem uma boa dose de razão, defendeu uma união das forças (por vezes nem tão) democráticas em torno do nome de Lula. Nessa proposição, não são descartados nem mesmo os nomes de Leite, Dória e até de Simone Tebet. Ciro Gomes, obviamente, integra a lista dos apoios requisitados pelo senador, que, com a sua declaração, escancara a real possibilidade – e sobretudo o medo – da reeleição de Bolsonaro. E é justamente aqui que aparece uma peça que por enquanto não se encaixa, mas que pode ser a chave para compreensão do complexo jogo de articulações e manipulações da Globo.

Desde que elegeu e deselegeu Fernando Collor, sabe-se que a Globo não entra na guerra de disputa de poder com exército fraco. Nenhum presidente ou presidenta do período pós-redemocratização chegou ao Planalto sem a subscrição da rede. O ponto de inflexão pode ter sido a reeleição de Dilma, contra a qual se contrapunha o então considerado eleito Aécio Neves. É preciso considerar que Lula e a própria Dilma já tinham mostrado que os governos do PT estavam longe de representar uma ameaça vermelha (José Alencar, Henrique Meirelles, Joaquim Levy são nomes que atuaram no primeiro escalão dos governos petistas), mas mesmo assim a derrota de Aécio no apagar das luzes foi um golpe forte. Tão forte que no mesmo momento já se anunciou um golpe de verdade, com Supremo, com tudo, levado a cabo pela campanha pesada da grande mídia.

Tudo isso leva necessariamente a uma pergunta: como a Globo reage à real possibilidade da reeleição de Bolsonaro? Esse é, talvez, o questionamento a que devemos nos atentar nas próximas semanas. No país das bombas de fumaça, talvez a Globo esteja se mostando muita mais mestra nessa arte do que somos capazes de imaginar. Considerando que a artilharia pesada desferida contra Bolsonaro nos últimos tempos não teve resultado nenhum para além das cartas abertas e notas de repúdio absolutamente inúteis das instituições, alguém tem convicção para afirmar que não pode ser ele mesmo o candidato global? Sei que neste momento pode parecer uma grande teoria conspiratória, mas é seguro descartar a possibilidade da Globo ter desviado a atenção durante todo esse tempo e, com os seus ataques a Bolsonaro, propositalmente ter fortalecido o seu nome, pelo recrudescimento da militância reativa às críticas da rede? Nesse sentido, a demora da entrada de Lula na pré (?) campanha pode ter sido um erro de avaliação. Se for, ainda há tempo de corrigir o rumo, mas é preciso, antes de mais nada, tentar entender o complexo jogo da casa dos marinhos, que passa por não deixar qualquer possibilidade, por mais absurda que pareça, sem atenção. Sem isso, parece que o bolsonarismo vai triunfar. E de novo com o prório Bolsonaro à frente.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.mtdefato.com.br/politica/governo-bolsonaro-aumenta-verba-da-globo-e-diminui-a-de-tvs-religiosas/107062. Acesso em: 4 de abr. 2022.

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Sejamos finalmente livres

Era 14 de março de 2018. Tiros foram disparados naquela noite quente de verão. Só mais uma noite no Rio, se não fosse pela vítima, a vereadora Marielle Franco, baleada com violência, quando voltava para casa de um evento a apenas alguns quilômetros de distância. O perpetrador? Essa é a pergunta que ainda não tem resposta.

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Jair Bolsonaro é uma das figuras mais conhecidas e desprezadas do Brasil. Sua ascensão à presidência, na onda trumpiana iniciada em 2016, inaugurou uma retórica política nunca ouvida publicamente no Brasil.

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O primeiro páragrafo traz um trecho da sinopse do livro “Memória Viva”, que Lu Olivero (Leuvis Manuel Olivero) publicou em 2020. O segundo é de outro livro de Olivero, “Enquanto o Ódio Governava, a Rua Falava”, também de 2020. Lu foi imigrante dominicano nos EUA e depois veio para o Brasil, onde viveu, constituiu família, jogou capoeira, investigou e escreveu. Em 10 de outubro, quando caminhava por uma rua da Tijuca, foi alvejado por homens que atiraram de dentro de um HB20. Era tarde quando o socorro chegou.

A história de mortes não explicadas no Brasil não é recente e tem as mais diversas causas oficiais. Um recorte temporal curto vai trazer à memória Teori Zavascki, ministro do STF (acidente aéreo), Marcelo Cavalcante, secretário do governo de Yeda Crusius no Rio Grande do Sul (suicídio), e muitos outros nomes, cuja listagem é desnecessária. No governo Jair Bolsonaro, porém, o número de pessoas que morrem assassinadas é impressionantemente alto. Todas essas mortes, seja qual for a causa apontada nos inquéritos, têm em comum o fato de invariavelmente não serem alvos de investigações sérias.

Não é nenhum equívoco dizer que o bolsonarismo é uma máquina de guerra. As centenas de milhares de pessoas que perderam parentes e amigos/as pela Covid podem dar testemunho disso. Muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas, caso a política do governo central fosse efetiva no combate à doença e não na sua propagação.

Entretanto, o genocídio provocado pela má condução da crise sanitária e outros atos da família bolsonaro incrivelmente não é o que mais assusta. A pasmaceira e o jogo de cena das instituições republicanas, isso sim é alarmante e mostra que estamos com o barco à deriva em plena tempestade. Bolsonaro e sua família dispõem de serviços de advocacia privada na PGR e na AGU e promovem alterações nas chefias dos órgãos de segurança e fiscalização sempre que necessário. Apenas para retomar o Caso Marielle, que tem como consequência evidente o assassinato de Lu Olivero e tantos outros, a investigação, decorridos quatro anos completados no último dia 14, já passou por quatro delegados da polícia civil e atualmente está nas mãos do quinto. No âmbito do MP, três grupos diferentes de promotores já atuaram. E até agora o que se avançou? Muito pouco, embora as evidências do envolvimento de certas pessoas sejam irrefutáveis.

Enquanto esses e outros crimes brutais vão acontecendo em ritmo industrial, o que fazem as nossas instituições? Notas de repúdio, manifestos, cartas abertas e toda a sorte de ações midiáticas que não resultam em nada. A CPI, em que pesem as muitas horas de trabalho e a veemencia dos discursos da mesa diretora, teve como resultado máximo a qualificação de Bolsonaro como genocida, algo que, dada a sua ignorância, ele nem sabe o que significa.

Alexandre de Moraes, o neocomunista ministro do STF, é pródigo em decisões que geram dias de debates nas redes, horas de repercussão nos telejornais e zero efeito jurídico. Barroso, seu colega, manifestou-se com força em defesa da Justiça Eleitoral e da urna eletrônica, mas e quanto a determinar uma investigação séria sobre o esquema de fake news que alavancou a votação da chapa Bolsonaro/Mourão, como se diria no vetusto jargão jurídico, quedou-se silente. Sérgio Moro, pré-candidato à sucessão de Bolsonaro, assumiu ter estado à frente da farsa lavajatiana apenas para fazer o serviço que as forças políticas não conseguiram, no que diz respeito a impedir uma nova eleição petista. O que fez o Judiciário? Nada!

Imagem copiada de: https://revistaforum.com.br/news/2020/1/31/moro-exclui-miliciano-ligado-flavio-bolsonaro-da-lista-dos-criminosos-mais-procurados-do-brasil-68418.html. Acesso em: 15 de mar. 2022.

E assim, entre crimes de brutalidade ostensiva, como os assasinatos de Marielle, Anderson e Lu Olivero, matanças coletivas, como as mortes provocadas pela Covid, e crimes de gabinete, como os de Sérgio Moro, avançamos rumo a uma nova eleição. E novamente o povo estará com a caneta, ou melhor, com o teclado à frente para mudar o rumo da história. Mas enquanto não atingirmos o ponto ideal de civilização, quando o povo não dependerá mais de representantes e dirigirá ele próprio o seu destino, é mais do que urgente a descida das lideranças do campo democrático ao chão da fábrica, à rua não asfaltada, ao pequeno sindicato, à associação de bairro, à organização coletiva da comunidade, porque é ali, onde o povo está e onde atuam as pessoas verdadeiramente abnegadas e interessadas na construção de um futuro melhor para todos e todas, que se articula a campanha. Discursar para intelectuais e ganhar elogios da comunidade acadêmica internacional não vai resolver os problemas do Brasil. Ou organizamos a luta com os de baixo, como bem definiu um querido amigo dias atrás, ou o fascismo bolsonarista (que não depende de Bolsonaro), seguirá livre, leve e solto. Como livres, leves e soltos estão os assassinos de Marielle, Anderson, Lu e tantas outras.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/06/cronica-e-dai-ou-como-conversar-com-quem-relativiza-fascista. Acesso em: 15 de mar. 2022.

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bolsonarismo, Eleições, Política

Acorda, amor!*

Jair Bolsonaro e Sérgio Moro têm mais coisas em comum do que a compulsão para a mentira e a notada pouca inteligência. Ambos são produtos dos interesses das elites e, justamente pela baixa capacidade de realizar sinapses, foram escolhidos como testas de ferro de projetos escusos. São, em última análise, marionetes de grupos poderosos. Mas os dois têm muita sorte. Quando parece que vão afundar as suas pretensões na autossabotagem involuntária, provocada pela própria estupidez, algum fator externo surge como bote de salvação. Assim foi, por exemplo, com a crise sanitária, que dominou o noticiário por longo tempo. Aqui é preciso dizer que se trata, a bem da verdade, de mais um paradoxo do bolsonarismo, pois ao mesmo tempo em que o morticínio decorrente da necropolítica do (des)governo fez com que a CPI(zza) o declarasse genocida, a pandemia tirou o povo das ruas, o que garantiu a sobrevivência do sistema e da família.

Por seu turno, caso estivéssemos em país minimamente sério e em que as instituições republicanas cumprissem o seu papel e não fossem verdadeiros bunkers que blindam os crimes praticados no poder, Sérgio Moro estaria preso ou, no mínimo, a caminho da cadeia. Que sistema verdadeiramente democrático jogaria panos quentes em um ex-juiz que assume ter comandado, quando no exercício do cargo, uma operação judiciária destinada a acabar com um partido político? Em que país com um sistema judiciário comprometido com os interesses da nação um homem estaria livre depois de ter sido comprovado que se valeu da atuação no cargo para posteriormente atuar, a peso de ouro, na recuperação das empresas que ajudou a quebrar, levando junto a economia do país para o fundo do poço? Este país por certo não é o braZil do bolsonarismo.

Mas, bafejado pela sorte, Moro foi ajudado por um seu correligionário, que tratou de criar um fato capaz de reconstituir a máscara ética do paladino da justiça e da luta anticorrupção. Arthur do Val, deputado estadual e (agora ex) pré-candidato ao governo de São Paulo pelo Podemos, partido pelo qual Sérgio Moro vai pleitear a presidência da república, um playboy que ganhou notoriedade com o sugestivo apelido de Mamãe Falei, e que foi a representação da juventude reacionária (?) que ajudou a eleger Bolsonaro, se encarregou de levantar a bola para que o ex-juiz, ex-ministro e ex-bolsonarista requentasse um discurso enfático de moralidade, dizendo que não aceita as atitudes do colega de partido e que jamais dividiria o palanque com alguém capaz de tamanha atrocidade.


Sérgio é um homem de fé, daqueles que ainda acreditam na humanidade e na premissa de bom caráter das pessoas. Não fosse assim, não fosse por essa quase ingenuidade, ele teria desconfiado muito antes que os bolsonaros não são a boa gente que ele ajudou a botar no poder. Precisou frequentar os gabinetes do planalto por mais de um ano – e ver frustrado o seu plano de ser nomeado ministro vitalício do STF – para ver que Bolsonaro não era o sujeito impoluto e acima de qualquer suspeita que ele imaginou que fosse. Quando descobriu os flertes do presidente e seus filhos com a corrupção, as milícias e o crime organizado, Moro se afastou da família e foi tratar de ganhar a vida honestamente (??) prestando consultoria na área em que atuou por tanto tempo do lado de lá do balcão. Depois, atendendo a um chamado divino (ou talvez da casa dos marinho), não hesitou em rasgar o discurso de que não seria jamais candidato a cargos políticos. Só que, inepto, não honrou a confiança da rede, deu declarações e praticou atos que colocaram em risco o sucesso do plano e fizeram com que a Globo recuasse na investida do seu nome como a “terceira via”. Até que ele, Moro, e os articuladores da sua campanha fossem agraciados pela imbecilidade de Arthur do Val e, como se viu, o autoproclamado comandante da Lava Jato pudesse reassumir a imagem de homem probo e comprometido com os preceitos éticos e morais que devem nortear a conduta de um potencial governante.

E foi assim que a catástrofe verborrágica de um político inexpressivo e de passagem efêmera pelos círculos de poder resolveu o problema da Globo, do Instituto Millenium, da FGV e das instituições organizadas pela elite. Tudo indica que se o próprio Moro não fizer mais nenhuma bobagem, o que é bastante improvável, está restituído ao posto de representante da terceira via e artífice do projeto ultraliberal entreguista que a Globo um dia imaginou que estaria em boas mãos com Jair Bolsonaro, por conta do aval do Chicago Boy, Paulo Guedes, e do próprio Sérgio Moro. Mamãe Falei a um só tempo implodiu a própria trajetória política, reconstituiu o discurso ético e moralista de Sérgio Moro e, de quebra, livrou a Globo e seus asseclas da penosa tarefa de procurar soluções em alternativas inusitadas, como uma parelha de Temer e Leite, que poderia ser a bola da vez.

Enquanto isso tudo acontece e o noticiário da grande rede se dedica em 80% de tempo para cobrir a guerra de Putin, como tem sido chamada, e divide os 20% restantes entre exaltar a recuperação da economia brasileira (em que pesem o desemprego que cresce em proporções geométricas e a inflação galopante) e a miscelânea, talvez seja prudente que Lula deixe de lado momentaneamente o lobby com as elites e os agentes internacionais e se volte para a conversa com o povo, afinal, alheio a tudo isso, o PDT do interminável Ciro Gomes já botou o bloco na rua. Tempos interessantes de articulações políticas pela frente.

*Julinho da Adelaide

Imagem de destaque copiada de: https://pleno.news/brasil/politica-nacional/moro-rompe-com-mamae-falei-apos-audio-sobre-ucranianas.html. Acesso em: 7 de mar. de 2022.

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bolsonarismo, Política

Guerras: escolha a sua

Os olhos do planeta se voltam para o leste da Europa. A guerra está deflagrada! Mas será que esta com que os noticiários ocupam 80 por cento ou mais do seu tempo é a única? Ainda, será que ela é a mais importante e a que tem efeitos mais imediatos e impactantes na nossa vida? Não quero nem entrar na questão das guerras que acontecem ininterruptamente há décadas em países africanos e que o ocidente libertador solenemente ignora. Nessas também se disputa fornecimento de energia ou exploração de minérios, mas seus protagonistas são de outra cor e não têm os olhos claros, então não despertam interesses humanitários das ONUs, OTANs e outras organizações do mundo livre, civilizado (e civilizador) e democrático. Eu quero mesmo é falar das guerras que travamos todos os dias, nas periferias das nossas cidades, e que eventualmente ocupam a pauta da grande mídia por terem chegado nas zonas nobres. Vamos ver o que há nisso.

Enquanto a guerra de Putin contra o mundo de bem (coletivo de cidadão de bem) se travava no discurso, um homem negro era espancado até a morte na beira de uma praia chique do Rio; em algum outro lugar, outro homem negro era assassinado por um militar que o confundiu com um assaltante; em outra praia, uma mulher é algemada com a sua amiga e levada à delegacia por ter ousado ficar com os peitos desnudos; em um estado do sul, um adolescente negro é suspeito de assaltar um supermercado, mesmo depois de ter confirmado com os seguranças se podia entrar com a sua mochila; em alguma periferia de alguma cidade, uma bala perdida encontra seu alvo no corpo de uma criança negra e um homem negro é fuzilado pela polícia dentro do seu carro, por que suspeitaram que ele tivesse roubado o veículo; uma mulher é brutalmente violentada e espancada pelo marido, uma menina de 5 anos é abusada pelo próprio pai, uma professora de uma escola tradicional é violentamente atacada nas redes sociais por falar em educação sexual com os seus alunos e alunas, um casal gay é atacado por neonazistas evangélicos…Acho que deu, né? Já tem guerra suficiente pra todo mundo por aqui também.

Imagem copiada de: https://www.oantagonista.com/brasil/moro-se-reune-com-temer/. Acesso em: 1º de mar 2022.

Mas vamos à guerra com o maior potencial destrutivo que está em curso. O Jornal Nacional ocupa o espaço que lhe sobra na narrativa antirrussa batendo em Bolsonaro por cima e por baixo. E, no intervalo, o agro é pop! O desaparecido Chicago Boy andou aparecendo na tela, com ótimas projeções para a economia nacional no pós-pandemia (quando será esse pós?). E a editoria do jornal, de forma (nem tão) sutil, começou a delimitar o que era ruim nos governos petistas, passou a ser bom em 2016 e voltou a ser ruim depois que Bolsonaro deixou de cumprir o que fora programado. Os dois anos do governo golpista foram, de acordo com o que se noticia, uma maravilha. E Bolsonaro estragou tudo ao conferir a si próprio uma autonomia inaceitável. Enquanto essa imagem se constrói veladamente no noticioso diário, a plataforma on demand lança uma série que requenta o Caso Celso Daniel.

Sobre isso, é legal uma atenção especial. Um querido amigo, meu compadre, muito antenado nas questões políticas e ávido consumidor de séries, disse que esta é muito bem feita e que afasta qualquer responsabilidade do PT pela morte do ex-prefeito de Santo André, ocorrida há 20 anos. Coisa que a Justiça já havia feito há bastante tempo, diga-se. Pois é sabido que vivemos tempos de imediatismo, em que as pessoas leem manchetes e saem deitando teses redes afora. Textos cuja leitura demande mais de 3 minutos, o tempo determinado para o sucesso comercial de uma canção pop nos anos 60, são descartados de forma arbitrária e implacável, mesmo que indiquem alguma possibilidade de terem sido bem escritos. Nesse mundo frenético, quem tem tempo de assistir com atenção e capacidade crítica a séries documentais? Um número restrito de pessoas, das que assistem séries, e que é ainda mais restrito em relação ao colégio eleitoral das próximas eleições, formado em sua maioria por pessoas que não têm a menor possibilidade de pagar pacotes de streaming, isso quando têm aparelhos de TV. Talvez se o meu compadre fizer um teste com essas pessoas e perguntar o que elas sabem sobre o caso Celso Daniel, muitas delas vão dizer que ele foi vítima de queima de arquivo do PT. E como elas não vão ver a série, muito menos ler bons textos sobre o tema, não saberão a verdade e ficarão com a mensagem subliminar (a Semiologia e a Linguística explicam) do nome Celso Daniel na cabeça. Então os processos mentais vão recorrer a informações prévias, arquivadas em algum lugar da cabeça, que dirão: Lula é o culpado! Está feita a narrativa e, assim, chegamos finalmente à pior das guerras, a das narrativas.

Imagem copiada de: https://marciokenobi.wordpress.com/tag/partido-da-imprensa-golpista/. Acesso em 28 de fev. 2022.

A partir dessa guerra suja de narrativas criadas ao sabor dos interesses das elites, e que incluem doses cavalares de notícias falsas (denominação antiga e em franco desuso para fake news), se delinearão as pesquisas de intenção de votos do Datafolha e outros. Com isso, a chance de permanecermos nessa marcha acelerada rumo à aniquilação das classes desfavorecidas do país cresce assustadoramente. E essa aniquilação tende a ocorrer muito antes do que o potencial bélico russo destrua o mundo civilizado. Por isso, é mais do que hora de pensarmos sobre que guerra devemos centrar nossa atenção. Não que a eventual terceira guerra mundial não tenha importância, longe disso, tem e muita. E é uma tragédia, como (quase) todas as guerras. Mas temos nossas guerras domésticas, que são diárias e nos impactam de forma muito mais imediata. E não são noticiadas. Quando o são, isso ocorre de forma distorcida e manipulada para embotar a visão da realidade e formar uma ideia míope que vai se refletir nas urnas. É hora, então, de segurarmos um pouquinho o desejo quase irrefreável de nos tornarmos autoridades em geopolítica e nos preocuparmos com a nossa realidade doméstica, que se não tem o glamour e o status de uma guerra nuclear, pode colocar em risco a subsistência de milhões de pessoas que vivem neste braZil nazifascista do bolsonarismo.

Imagem copiada de: https://ptnacamara.org.br/portal/2020/09/02/a-corrupcao-da-familia-bolsonaro/. Acesso em 28 de fev. 2022.

Você decide: qual a sua guerra?

*Imagem de destaque copiada de: https://domtotal.com/fato-em-foco/605/2020/07/violencia-policial-blindada-pela-impunidade/. Acesso em: 28 de fev. 2022.

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bolsonarismo, Política

A hora da elite trocar de posto

O bolsonarismo é um paradoxo em si próprio, a começar pela surreal situação de um sujeito inexpressivo, que não teria as mínimas condições de figurar sequer nos escalões inferiores da política nacional, chegar à presidência da república e emprestar o nome para apelidar um sistema (ou algo próximo disso). Em verdade, essa é uma das chaves de compreensão da conjuntura política brasileira hoje. Era preciso exatamente uma figura como Bolsonaro, com ares de novidade, devido à sua própria incompetência, já que em décadas de parlamento nunca fez absolutamente nada digno de nota, mas com toda a carga de conservadorismo capaz de atingir em cheio uma parte da população envolvida no discurso fácil da corrupção petista. Vale o clichê: Bolsonaro era o cara certo na hora certa.

O bolsonarismo – novo paradoxo – é um sistema simples com aparência complexa e por isso mesmo muito perigoso. A base discursiva está naquilo que o professor João Cezar de Castro Rocha chama de sistema de crenças Olavo de Carvalho, que nos anos 1990 surgiu como o porta-voz de uma nova direita, ou melhor, de uma velha direita repaginada, já que a essência da direita é a mesma desde que se pensou nela. Esta direita, que no fim daquela década ocupava o estranho posto de oposição, precisava se rearticular, mas para isso carecia de uma retórica que lhe desse sustentação, porque desde alguns anos já se via que o campo da esquerda transitava com desenvoltura na academia e nos espaços da cultura e, com Lula, um retirante nordestino, trabalhador braçal, começava a ocupar um espaço na população que não frequentava esses ambientes e que se via retratada naquela figura. Era, então, na guerra cultural que estava o caminho, e aí a participação de Olavo de Carvalho passou a ser decisiva.

A produção literária do guru dos bolsonaros está longe de ser desprezível, assim como é um grave equívoco (arrogância?) da elite intelectual carimbá-lo como um ignorante, charlatão etc. O homem era muito inteligente. Não no sentido tradicional da inteligência acadêmica, que estuda a vida toda, analisa tudo em pormenores à luz da ciência, discute os temas mais elevados entre pares; não, nada disso, a inteligência de Olavo de Carvalho era de outra natureza, muito mais pragmática e por isso mesmo próxima do que interessava aos inteligentes do poder, que detinham desde sempre o capital. Olavo muito cedo percebeu que a melhor maneira de vencer uma discussão era não dar ao adversário, transformado em inimigo, a chance de falar. Quantas vezes hoje, mesmo depois da extinção física do guru, se diz que com “bolsominion não tem como debater”? O próprio Bolsonaro venceu uma eleição sem participar de debates. Isso é um tipo de inteligência, e aqui não falo de Bolsonaro, que este é burro como uma porta, tanto que está botando a perder o projeto a que emprestou o nome, mas de Olavo de Carvalho. Tenho convicção que a arrogância e a megalomania de Bolsonaro teriam feito com que ele participasse dos debates em 2018, campo em que inevitavelmente seria trucidado, a começar pelo ilusionista Ciro Gomes, que tem na palavra um dos seus pontos mais fortes. Mas a estratégia armada passava por blindar Bolsonaro do debate sério, uma evidente inspiração olaviana. No palanque tudo bem, porque lá o que menos interessa é a solidez do discurso, e se precisa muito mais de algo próximo de um animador de auditório, um incitador de massas, e esse papel qualquer idiota, até Bolsonaro, era capaz de cumprir. E como a tensão era a tônica da política brasileira desde os protestos de 2013 e do golpe de 2016, com o discurso da corrupção petista consolidado pela Globo, nesse circo de horrores Bolsonaro não precisou sequer de grandes talentos dramáticos teatrais para simular o golpe decisivo na escalada ao poder. A sua atuação no atentado mais fake da história política mundial, quando o Messias foi atacado pelo Bispo, foi digna de um figurante das pornochanchadas do cinema brasileiro setentista. O resto já se sabe como foi.

Traçado esse breve desenho do esqueleto do sistema, é interessante pensar em mais um paradoxo, este que vai interromper a trajetória da famiglia no poder, o que não significa, como tenho repetido de forma enfática, o fim do bolsonarismo. A estrutura rasa do projeto, como se viu, foi dada por Olavo de Carvalho, com base na retórica do ódio (outro termo emprestado ao professor Castro Rocha), que passa pelo requentamento da paranoia do ataque comunista, o qual leva a uma revisitação da doutrina de segurança nacional, que depende das forças armadas etc. e tal. Entretanto, além de aniquilar o inimigo, seja pela impossibilidade do debate ou pela lavagem cerebral em torno da retomada dos valores tradicionais da família, feita em grande parte nos templos neopentecostais, era preciso também atender aos donos do poder no que têm de mais valioso, literalmente, que é o dinheiro. Assim, o bolsonarismo precisava de um anteparo econômico que estivesse habilitado a dar ao mercado, essa entidade etérea que domina o mundo, a segurança para apostar na plataforma protofascista do bolsonarismo. Entra em cena o posto ipiranga, com sólida formação na escola de Chicago e que já fizera o serviço no Chile: Paulo Guedes.

Ao mesmo tempo em que este representa um paradoxo, já que pode decretar o fim da continuidade do governo pelo que de mais sólido ele tinha, Guedes é, para mim, uma incógnita. Ele foi escolhido por quem escolheu Bolsonaro para dar a sustentação teórica e prática à agenda ultraliberal do projeto de governo. E foi blindado pelo governo e pelas suas forças de sustentação, a fim de poder fazer o trabalho sujo com tranquilidade. A Globo, que pelo menos desde o início da pandemia tem sido cruel com os bolsonaros, não disse até hoje uma só palavra contra o superministro, e o próprio Bolsonaro tratou de dizer, na reunião que derrubou o paladino da justiça e ex-potencial “terceira via”, que o único ministro com quem não precisava se preocupar era ele. Só que Guedes não conseguiu avançar quase nada em quase quatro anos além do que Michel Temer tinha conseguido em dois. As grandes reformas que destruíram a economia e a classe trabalhadora brasileira são obra feita no governo golpista de 2016-2018. O Chicago Boy, com todo o arcabouço técnico e doutrinário, não conseguiu levar ao cabo os projetos reformistas iniciados com Temer. E é aqui que as coisas ficam estranhas. Será que com toda a experiência e com a confiança que as elites econômicas lhe deram, Guedes foi incompetente para implementar com eficácia e na integralidade a parte econômica da plataforma (des)governista? Ou será que ele é mais diabo que o próprio diabo e usou os quatro anos de poder, a serem completados em breve, para fazer a sua própria política e engordar de maneira inimaginável as contas nos paraísos fiscais?

Eu tendo, neste momento, a pensar que o posto ipiranga é o grande golpista dessa fantástica equipe de golpistas. Tal como um roteiro pobre da tradição hollywoodiana de filmes destinados ao corujão, o inimigo estava no quarto ao lado e vai ser o único a sair ileso da implosão do desgoverno bolsonaro. Isso explicaria, talvez, o desespero da Globo e seus think tanks na busca por uma alternativa viável ao prosseguimento do projeto de poder que Guedes parece ter tomado para si. É preciso um novo posto, já que o ipiranga falhou. E talvez por aí, e só por aí, se tenham chaves pra entender o flerte de Lula com Alckmin e outras representatividades da direita. Esta última ainda não me parece a melhor estratégia, mas alguma coisa começa a se desanuviar no intricado tabuleiro de xadrez que as próximas eleições apresentam. Vamos manter os olhos vigilantes e a mente aberta às possibilidades mais impensáveis. Nunca se sabe de onde pode sair o próximo golpe.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.apostagem.com.br/2021/03/20/guedes-assume-que-a-politica-economica-do-governo-bolsonaro-fracassou/. Acesso em: 6/2/2022.

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Direitos Humanos, Linguística, Política

O tal do Lácio lá é planta pra dar flor?

Na semana passada, conversava com dois queridos amigos sobre questões de gênero, especificamente linguagem inclusiva e leinguagem neutra. Nenhum desses meus amigos se importaria que eu citasse os seus nomes aqui, mesmo porque eles têm opiniões fortes e muito consolidadas, das quais não se envergonham e nem têm medo de expor, por isso as defendem em qualquer debate. Entretanto, ainda levo a sério os preceitos éticos, e como não pedi autorização para declinar os nomes, não vou fazê-lo.

Esses meus amigos, que se não me engano nem se conhecem pessoalmente, têm muitas coisas em comum e a maneira como entendem este tema é basicamente a mesma. Para eles, as pautas identitárias, que são normalmente associadas à Esquerda, foram capturadas pelo capitalismo, viraram discurso da burguesia. Ambos têm argumentos fortes na defesa dessa ideia, que passam pelo fato de que essas lutas, segundo os próprios, acabam por deixar de lado ou colocar em segundo plano os problemas decorrentes do desequilíbrio das classes sociais, em outra palavra, a luta de classes. Esse debate dá pano pra manga. Pode começar na discussão objetiva sobre a precedência da luta de classes sobre as das liberdades individuais e/ou de grupos não hegemônicos e chegar até um embate filosófico sobre stalinismo, trotskismo, imperialismo, colonialismo, e outros tantos ismos. Não é o caso, não pretendo ir tão longe por aqui.

O uso das linguagem neutra e inclusiva é um assunto que me desperta grande interesse, mas sobre o qual ainda não tenho opinião bem formada. Em relação à língua, o que mais me atrai a atenção é a maneira como ela pode ser manipulada para manter sistemas de opressão e poder. Um exemplo contundente: por mais títulos de Doutor Honoris Causa com que possa ser agraciado, o Lula sempre vai ser tratado pelas1 que dele não gostam – e muitas vezes até por quem gosta – como um analfabeto, na melhor das hipóteses funcional. Por mais absurdo que seja acreditar que alguém que não sabe falar chegaria ao maior cargo eletivo do país e conquistaria respeito e admiração mundo afora. Aceitar isso seria mesmo desqualificar as universidades que lhe concederam títulos honoríficos, mas é o que se diz por aí: “Lula é um analfabeto, um capiau!”. Se pelo menos dissessem que é um doutor capiau… Isso mostra que língua (também) é política, nos sentidos concretos e abstratos do termo, porque, por exemplo, muitas das que se beneficiam dos programas sociais implementados durante o governo Lula não vão votar nele por ser um “analfabeto”. E o pior é que um grande número dessas nem se deu conta que votou em 2018 num sujeito, este sim, de pouquíssimas luzes. (Apenas para não deixar passar “in albis”, a impossibilidade ou dificuldade de falar está necessariamente relacionada a problemas de saúde, como malformação do aparelho fonador, transtornos neurológicos etc.)

Política institucional colocada em stand by, voltemos à vaca fria. Engenharia é uma ciência. Uma leiga, que nada entende dos cálculos matemáticos necessários a um projeto de construção de um prédio ou de abertura de um túnel, não discutiria com a engenheira responsável pela obra e muito menos diria que eles, os cálculos, estão errados. Mas em se tratando do uso da língua, ela não teria nenhum receio em corrigir alguém que fala pobrema por problema, mesmo que as CIENTISTAS linguísticas já tenham feito exaustivos estudos e comprovado que isso não é um erro, apenas uma variação, provocada por diversos fatores, às vezes até fisiológicos. (Abro um parêntese – parentesis, talvez? – para render uma homenagem à profissão das engenheiras, que conseguem, a partir de uma ciência hermética, Matemática, fazer tudo o que fazem. Fecha parênteses.) A propósito de erro, não é tão incomum vermos um pé de fruta, laranjeira, por exemplo, dar eventualmente um fruto um pouco diferente do padrão daquela árvore, maior que as outras, de cor ou formato um pouco diferente. Pensando melhor, vou dar um exemplo mais radical pra chegar aonde (ou onde?…) quero: há pessoas que nascem hermafroditas2. Ora, o padrão da espécie humana é que uma pessoa nasça com um aparelho reprodutor masculino ou feminino, mas não com os dois (e obviamente estou falando sem nenhum rigor científico, como determina a minha condição de leigo). No caso de alguém que tenha nascido com testículos e ovários, posso então dizer que essa pessoa nasceu errada, não posso? Assim como posso chamar de errada a laranja que nasce um pouco diferente do padrão das outras da mesma árvore. Não posso? Não? Devo aceitar isso como algo natural, raro, mas natural? Estranho! Então por que cargas d’água posso carimbar alguém que fala diferente de mim, ou melhor, alguém que fala diferente do que as gramáticas normativas determinam, como uma má falante? Sendo mais claro, como posso dizer simplesmente que essa mulher fala errado? Eu não digo que a laranja diferente está errada, mas digo que está errada a moça que fala frecha quando deveria falar flecha. Por quê?

A gramática, aquele livro chatíssimo que a gente estuda no colégio e desde o primeiro ano primário até o último do ensino médio tenta nos ensinar (e não consegue) que o certo é dizer voz fazeis e não vocês fazem, é simplesmente um código que busca sistematizar algumas questões da língua, a fim de facilitar as comunicações escritas ou eventualmente destinadas a um ambiente mais formal. Acabei de descrever um pedaço de um mundo ideal que não existe, porque infelizmente não é assim que a banda toca. Elas, as guardiãs da língua, conseguiram botar a carreta pra puxar o caminhão. Podemos fazer uma analogia com o Direito, área em que, a propósito, ainda se valoriza muito a língua “correta” (castiça, segregatória, horrorosa, enfadonha…), a Última Flor do Lácio, a nossa inculta e bela Língua Portuguesa, como dizem as românticas da língua de Camões. O Código Penal diz o que é ou não crime nas condutas sociais. Mas pra fazer isso, a legisladora parte da observação dos comportamentos humanos, verifica as condutas que causam problemas nas relações entre as mulheres, codifica e cria mecanismos pra evitá-las e, se for o caso, puni-las. Imaginem, então, se amanhã essa legisladora resolver que começar uma caminhada usando o pé esquerdo é crime. As inúmeras pessoas que usam o pé esquerdo pra dar o primeiro passo vão ser consideradas criminosas. Por outro lado, o senhor Napoleão Mendes de Almeida, a senhora Dad Squarisi e tantas outras, incluindo as que elaboram as provas dos vestibulares, dizem que uma pessoa não pode dizer… (“dizem que uma pessoa não pode dizer”: que repetição feia!), enfim, dizem que uma pessoa não pode falar “a gente vai” porque o certo é “nós vamos”. E vejam que estou dando como exemplo uma construção que nem é tão estigmatizada, mas substituam “a gente vai” por “nóis vai”. Posso ver as caras de nojo das gramáticas de plantão! Agora me digam se alguma dessas paladinas da norma… culta vai corrigir publicamente o Sílvio Santos pelos inúmeros “erros” dele ao falar, ou, como adoram dizer, pelos assassinatos contra o português que o hômi do baú comete todos os dias. Já a motorista do carro do patrão, se trocar bão por bom vai ser trucidada. O mundo não é tão bão, Sebastião…

Imagem copiada de: <https://www.saci.ufscar.br/servico_clipping?id=1194.&gt; Acesso em: 19 de jan. 2022.

Uma última situação hipotética pra encerrar (se é a última só pode ser pra encerrar…): duas pessoas ascendem socialmente e conquistam destaque social, poder e riqueza. Não obstante (agora mandei bem!), continuam a falar e até escrever de acordo com as variantes linguísticas em que se comunicam melhor. Uma é branca e outra é negra. Qual vai ser chamada de analfabeta?

O preconceito linguístico é cruel, um dos mais cruéis, na minha opinião, porque vai direto na subjetividade da pessoa e naquilo que pode ser considerando o único patrimônio inerente à sua condição humana, que é a língua. “Minha pátria é minha língua”, cantou Caê (ou foi outro Pessoa?). E é ainda mais cruel porque é disseminado em quase todos os ambientes, principalmente nas escolas tradicionais, que estabelecem níveis para enquadrar as alunas de acordo com a sua capacidade ou falta de capacidade de conjugar o verbo fazer no pretérito mais-que-perfeito do subjuntivo. É mais-que-passada a hora, então, de incluir com força o preconceito linguístico na paleta das lutas.

Agora que cheguei ao fim, alguém deve estar se perguntando porque eu falei lá no início sobre a conversa com os meus dois amigos, se pouco falei de linguagem inclusiva, que era o tema do papo, afinal. Ora, fi-lo porque qui-lo!3 Mas acho provável que volto a esse assunto quando tiver uma opinião pouco mais consolidada, como os meus amigos.

*Imagem de destaque copiada de: <https://redes.moderna.com.br/2017/06/29/preconceito-linguistico-combate/.&gt;. Acesso em 19 de jan. 2022.

1A marca universal de gênero será sempre feminina neste texto.

2Hermafroditas é termo em desuso, que foi mantido no texto apenas para maior clareza da ideia que se quer expressar. Para a espécie humana se usa a palavra intersexual e na Biologia monoica e dioica, respectivamente para a presença ou não dos dois aparelhos reprodutores na mesma indivídua.

3À guisa de explicação, pra que não fiquem pontos sem is, diz que o velho JQ mandou mal nessa, porque o “certo” é fi-lo porque o quis.

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