Cultura, Música

Tristeza*

https://youtu.be/C8py3MaTT4Q

Mandela Day

It was 25 years they take that man away
Now the freedom moves in closer every day
Wipe the tears down from your saddened eyes
They say Mandela’s free so step outside
Oh oh oh oh Mandela day
Oh oh oh oh Mandela’s free
It was 25 years ago this very day
Held behind four walls all through night and day
Still the children know the story of that man
And I know what’s going on right through your land
25 years ago
Na na na na Mandela day
Oh oh oh Mandela’s free
If the tears are flowing wipe them from your face
I can feel his heartbeat moving deep inside
It was 25 years they took that man away
And now the world come down say Nelson Mandela’s free
Oh oh oh oh Mandela’s free
The rising suns sets Mandela on his way
Its been 25 years around this very day
From the one outside to the ones inside we say
Oh oh oh oh Mandela’s free
Oh oh oh set Mandela free
Na na na na Mandela day
Na na na na Mandela’s free
25 years ago
What’s going on
And we know what’s going on
Cos we know what’s going on

Dia de Mandela

Há 25 anos eles prenderam aquele homem
Agora a liberdade se aproxima a cada dia
Enxugue as lágrimas dos seus olhos entristecidos
Eles dizem que Mandela está livre, então pise lá fora
Oh oh oh oh Dia de Mandela
Oh oh oh oh Mandela está livre
Há 25 anos nesse mesmo dia
Preso entre 4 paredes durante noite e dia
As crianças ainda sabem a história daquele homem
E eu sei o que está acontecendo bem na sua terra
25 anos atrás
Na na na na o Dia de Mandela
Oh oh oh o Mandela está livre
Se as lágrimas estão fluindo, enxugue-as de seu rosto
Eu posso sentir a batida do coração dele movendo bem fundo
Há 25 anos eles levaram embora aquele homem
E agora o mundo desce e diz “Nelson Mandela está livre”
Oh oh oh oh o Mandela está livre
O sol nascente guia Mandela em seu caminho
Faz 25 anos nesse mesmo dia
Desde o dia livre até os dias presos, nós dizemos
Oh oh oh oh o Mandela é livre
Oh oh oh o Mandela é livre
Na na na na o Dia de Mandela
Na na na na o Mandela é livre
25 anos atrás
O que está acontecendo?
E nós sabemos o que está acontecendo
Porque nós sabemos o que está acontecendo

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 6/12/2013.

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Amor, Liberdade, Republicados

Ah, o amor…*

No último domingo, eu tive a honra e o prazer de assistir, junto com a minha família, um casamento em Brasília. Não foi um casamento que ainda se possa chamar de comum, eis que de duas MULHERES. Grafo em maiúsculas porque ainda (até quando?) é comum que se usem outros termos nesse caso, como lésbica, machorra, sapatão e por aí vai. Só que mulheres são mulheres e homens são homens, não importa a sua orientação sexual. No caso específico, trata-se de duas mulheres jovens, bonitas, inteligentes, bem sucedidas profissionalmente, de boa família e sólida formação moral. Sobretudo, trata-se de duas mulheres corajosas.

A partir desse evento, que incluiu uma festa nota 100, me permiti algumas reflexões, incentivado, inclusive, por algumas rápidas (re)leituras de “O homem e seus símbolos”, que havia na casa onde ficamos (muito bem) hospedados, pelo que já agradeço às pessoas que nos acolheram de forma tão carinhosa. Pensei sobre o que leva uma pessoa a compartilhar a sua vida com outra, oficializando, por assim dizer, isso através do casamento. Poderia falar em outras formas análogas ao casamento, mas uso uso este instituto porque foi o que ocorreu lá em Brasília, um casamento. Vários fatores motivam um casamento, e, infelizmente, nem sempre entre eles está o amor. As pessoas se casam por conveniências, por interesses financeiros, para manter aparências, por causa de alguma gravidez inesperada, para satisfazer as famílias etc. etc. etc. E, obviamente, muitas vezes por amor. Mas o que leva duas pessoas do mesmo sexo biológico ao altar (e uso altar como uma imagem simbólica, ao gosto do Jung)? No casamento a que estou me referindo, as companheiras (uso este termo porque não sei qual seria  mais adequado) não precisariam ter feito esse procedimento, porque já moram juntas há algum tempo, gozavam já de todos os direitos – embora haja ainda controvérsias – e, principalmente, não escondiam de ninguém a sua condição de casal. Como eu disse, elas são profissionais muito bem sucedidas, portanto uma não depende da outra no aspecto econômico. Então por que elas se casaram? Creio que posso responder sem medo de errar: por amor!

Uma pessoa rica que se casa com outra pobre, em geral sofre preconceito. Da mesma foram com uma pessoa branca que se casa com uma negra. Falo da relação homem e mulher. Acho, porém, que nenhum preconceito dessa natureza é capaz de superar aquele que se estabelece quando duas mulheres ou dois homens se casam. Retomo a pergunta, acrescentando este elemento: se não é por interesse diverso e se é sabido que o preconceito vai ser pesado, por que, então, duas mulheres se casam? Vamos de novo: por amor!

Não quero, neste momento, entrar em discussões maiores, coisas como a possibilidade de adoção por FAMÍLIAS (olha as maiúsculas de novo…) formadas por pessoas do mesmo sexo. Acho importante que se discuta isso, e se alguém quiser propor os temas nos comentários, agradeço. Mas o meu texto tem pretensão próxima bem menor, que é apenas prestar uma singela homenagem a essas duas MULHERES, que tiveram a coragem de praticar esse ato e nos deram a honra, a mim, particularmente, de tomar parte nesse que eu considero um momento de escrever a história. Minha psicóloga comentou sobre o que dirão os nosso netos (meus e da Patrícia), um dia, comentando sobre o fato dos avós terem estado presentes a um dos primeiros casamentos gays (peço permissão pra usar essa expressão) realizados no Brasil. Acho que isso vai ser umas das coisas de que eles poderão se orgulhar em nós.

Obrigado, gurias, por terem nos permitido compartilhar esse momento com vocês. E obrigado pelo enorme carinho que têm pelas nossas filhas, e saibam que com certeza o exemplo de vocês será muito importante pra elas.

 

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 26/6/2013.

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Memórias, Republicados

Álcool: de 100 pra zero*

Segundo reveion sem álcool. Legal observar a evolução da abstinência. Não da interrupção do álcool em si, porque esta se deu literalmente do dia pra noite, mas como a minha relação com essa nova situação foi se desenrolando.

No início, uma certa desconfiança e até alguma insegurança. A resposta pra negar o copo era mais ou menos sempre a mesma: “não tô bebendo”. O gerúndio aponta pra algo momentâneo, circunstancial. Não bebo neste momento, mas quem sabe mais adiante… A justificativa (sempre tem que ter alguma?) invariavelmente passava pelos remédios, porque isso evitava a insistência. Algumas vezes uma que outra brincadeira com a balada segura. O fato é que não existia a afirmativa: “Parei de beber!” Talvez porque o fato tenha se dado justamente numa virada de ano e no verão seja ainda mais difícil resistir aos apelos da cana.

Mais pra frente, um pouco mais seguro, apareceu o “Parei de beber!” Mas ainda guardando uma relação com o tempo etílico. Parei de beber implica no reconhecimento de que bebi. E em geral com o adicional de quantidade: muito! Os remédio aos poucos deixaram de ser muletas. Às vezes uma deslizada pelo “Dei um tempo!”, mas quase sempre deixando esse tempo em aberto por um bom tempo.

Atualmente, “não bebo”. Só “não bebo”, sem mais. Pra quem me conhece de outros anos novos, isso pouco diz, mas pras novas amizades, até que se aprofunde no assunto, sugere-se que nunca bebi. E isso não carrega nenhum constrangimento. Não há mais a necessidade de mostrar o passado alcoólico. Isso é bom!

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E a tal cerveja sem álcool? Troço bem ruim! E perigoso… Quando bebia, cheguei a tomar uma vez que outra, mas só por curiosidade, e como logo em seguida derramava o álcool por cima, a coisa ficava no ar. Dia desses, porém, aceitei uma sem álcool, mais pra não fazer desfeita. Bem gelada, no calorão da noite pré-natal, desceu bem o primeiro gole. Depois enjoa e o cara não chega na segunda lata. Mas aí é que o gato esconde o tapa. No meu tempo de aventuras etílicas cerveja era, na ordem de preferência, polar, brahma, antarctica, skol, kaiser (sim, eu tinha tendências suicidas). Tinha algumas especiais, tipo brahma extra, original, serramalte, boêmia. Alguns lugares, como o Zelig, tinham outras cositas, tipo a bavária premium antiga, long neck, com um papel laminado branco cobrindo a tampa; havia alguma importada, tipo budweiser e a coisa ficava por aí. Sou do tempo que a gente olhava nos filmes os caras amassando uma lata com a mão e ficava impressionado, porque a lata por aqui era de ferro, impossível de amassar sem uma marreta, e só da skol. Mas voltando à vaca fria, hoje chega a dar nojo de tanta cerveja que tem por aí. E mais nojo ainda de tanto mestre cervejeiro dando dica de cor, textura, borbulhas e o escambau!

(Parêntese pra contar uma rapidinha que ilustra a minha grossura: certa vez fomos no aniversário de uma amiga, professora da inglês da UFRGS, num pub desses que se vieram na onda das bacanezas oropeias que aportaram por acá. Gente bonita, papo cabeça, a Patrícia e alguns maloqueiros [sim, Diego e Flávio, é docês que eu tô falando]. E eis que o garção veio com o mení e sugeriu que começássemos apreciando uma mais fraquinha, pra depois avançarmos pelas mais encorpadas. Do alto das minhas décadas de beberagem eu pedi uma heineken, ao que o sujeito, muito solícito e cordial respondeu que tomando logo uma mais forte isso poderia prejudicar a apreciação dos sabores que viriam. E eu disse: “valeu a dica, parceiro, mas a questão não é o gosto do troço, mas o preço, então, se tiver alguma mais fraquinha que seja também mais barata, é nessa que eu vou”. Bueno, não preciso dizer que a fubangagem [vocês de novo, Diego e Flávio] se divertiu e a Patrícia queria se enfiar em baixo da mesa.)

Voltando de novo à vaca, que a essa altura já deve estar gelada, eu não sei se hoje em dia o gosto da cerveja álcool 0 é muito diferente de tantos outros que tem à disposição. Então hoje pode ser que o cara beba esse negócio numa boa enão queira ir pras outras. Mas prum bebedor da média guarda, como eu, o gosto dessa coisa lembra muito pouco o da cerveja que eu tomava, mas dá uma vontade de chamar uma velha polar bem gelada.

Por isso, meus amigos que pretendam enveredar pela abstinência, sugiro que não caiam nessa de tomar essas sem álcool. Primeiro porque não vai matar a saudade, porque isso pode ser qualquer coisa, menos cerveja. E segundo, decorrência disso, vai ser difícil segurar a onda depois.

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Pra encerrar, não sei se já disse isso, mas o melhor de não beber não é ver que eu posso fazer tudo de bom que fazia com álcool na cabeça, mas saber de tudo de ruim que eu deixo de fazer justamente por não estar sob efeito.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 3/1/2013.

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Ideologia, Política de Cotas, Políticas Afirmativas, Políticas Sociais, Republicados

A consciência negra, a (in)consciência branca, as cotas raciais e a lei do boi*

Um fato comentado pela minha filha hoje quando eu a levava pro colégio me deixou impressionado e assustado. Ela disse, na sua inocência como se fosse algo positivo, que a professora de geografia (6ª série) falou que a instituição de um dia para chamar a atenção para a consciência negra é uma forma de preconceito. Tenho vontade de conversar com a professora para saber em que ela baseia essa sua ideia. Deve ser nos mesmos argumentos de quem é contrário às cotas raciais na universidade.

Bueno, em primeiro lugar, acho importante lembrar um fato que é esquecido ou deliberadamente desconsiderado por muitas pessoas, que se dizem progressistas e liberais. O Brasil foi o último, isso mesmo, o último país das Américas a abolir o sistema escravista. E isso aconteceu há pouco mais de 100 anos. Teorias criacionistas à parte, a ciência estima que o surgimento de algo parecido com o Homem no nosso planeta se deu há alguns milhões de anos. Alguns milhões de anos!! Antes do patrício Cabral, havia homens andando pelo nosso Brazil. A historiografia oficial diz que o Brasil foi encontrado em 1.500. (Eu aprendi no colégio que o Pedro queria ir pras Índias, buscar pimenta e canela, e uma ventania fez com que ele desse as caras na terra de Santa Cruz. E aprendi também que os portuga eram tudo gente fina, que mandaram os padrecos pra cá pra civilizar os índios, que andavam peladões por aí. Essas cositas a gente aprendia nos idos dos 70’s…) Mas, voltando à vaca fria, diante desses dados, o que são cento e poucos anos? Nada! Pois o tempo em que os negros são “livres” no país da miscigenação e da democracia racial é mais ou menos este: cento e poucos anos. Por pouco não temos entre nós pessoas que viveram na senzala. Mas netos dessa gente têm bastante e certamente até alguns filhos.

Talvez eu não tenha conseguido ser tão claro quanto pretendia no parágrafo anterior, então vou melhorar o que eu disse:

num país de 500 anos, que se insere num contexto em que o homem apareceu há alguns milhões de anos, cento e poucos anos de abolição da escravatura é nada, nada, NADA!

Se considerarmos que “libertação” dos escravos ocorreu de maneira que eles estavam “livres” de um dia para o outro, mas sem trabalho, sem casa, sem vida social, sem nada, dá pra reduzir ainda mais esses 100 anos. Disseram assim pra negrada: “Ó, gente, a partir de amanhã vocês são livres. Vão à luta!” E se considerarmos que a Lei Afonso Arinos, que é a primeira no país que trata da discriminação racial, é de 1951, ou seja, tem pouco mais de meio século, vamos ver que esses 100 anos são, na verdade, cinquenta e poucos. E se pensarmos que ainda hoje é necessário que se crie uma política de cotas para que os pretos possam estudar na universidade, chegaremos à conclusão que a escravidão não acabou.

Quem acha um absurdo que seja instituída oficialmente uma semana da consciência negra e que seja designado um dia específico para esta celebração, casualmente o dia de hoje (isso tem algo a ver com o Zumbi…), certamente não se deu ao trabalho de examinar as condições que levaram à criação dessa efeméride. Dizer que isso é uma forma de preconceito é, no mínimo, uma demonstração inequívoca de preguiça de pensar, para não dizer coisa pior.

Os processos de conscientização dos negros (que não se restringem aos negros, mas a todos aqueles que conseguem enxergar um palmo á frente do nariz) se inserem num quadro muito maior de lutas dos movimentos negros, que buscam o reconhecimento das pessoas de cor preta como cidadãos  efetivos, que têm os mesmo direitos que todos os outros, brancos, amarelos, vermelhos. Nesta semana da consciência negra, estão sendo realizados eventos alusivos ao tema por toda a cidade, desde palestras, debates, passeios pelos quilombos urbanos de Porto Alegre (sim, existem!), shows, festivais etc. Quem tiver interesse em aprofundar um pouco a visão sobre o assunto, pode escolher algum desses eventos, que são na maioria gratuitos. Basta um pouquinho de vontade. Vão descobrir coisas muito legais, como por exemplo o antigo apelido da esquina da Rua da Praia com a Borges, que antes de virar Esquina Democrática era a Esquina do Zaire.

Pergunto aos que se posicionam contra as cotas raciais na universidade e defendem apaixonadamente as suas razões, dizendo que se trata de racismo, protecionismo, assistencialismo e outros ismos, se eles se manifestaram com a mesma veemência durante o tempo de vigência da “Lei do Boi” (bota lá no google), que destinava cotas, é, cotas, para que os filhos dos fazendeiros pudessem entrar na universidade? Olha, procurei bastante pela internet a fim de encontrar alguém que se posicione contrariamente às cotas raciais e que tenha sido coerente, criticando as cotas ruralistas. Não encontrei um, sequer um! E o seu Onyx Lorenzoni já fazia política nessa época. Por que ele(s) não disseram nada? Será por que não existem e nunca existiram fazendeiros negros ou filhos negros de ruralistas que não sejam “bastardos” (lembrando que a Constituição Cidadã baniu esse termo)?

Sei lá, vai entender a lógica dessa gente…

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 20/11/2012.

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Cultura, Língua Portuguesa, Linguística, Republicados

Preconceito linguístico: existe mesmo? Faça uma REVISTA nos seus (pre)conceitos e VEJA com seus próprios olhos

Em outro texto, falei sobre o livrinho (ão) “Língua e liberdade”, do professor Celso Pedro Luft. Hoje vou falar sobre outro livro, que pelo tamanho é um livrinho, mas pelo conteúdo é um LIVRÃO (ÃO, ÃO, ÃO…). Trata-se do “Preconceito linguístico: o que é, como se faz”, do pesquisador, cientista, linguista, escritor, poeta… ufa!, enfim, do PROFESSOR Margos Bagno. A minha edição é a 21ª, de 2003, da editora Loyola.

O livro do Professor Luft e este têm muita coisa em comum, a começar pela escolha muito feliz dos títulos. Em “Língua e liberdade”, é demonstrada de maneira muito simples e direta, em linguagem acessível a todos, inclusive, e talvez principalmente, a leigos – se é que existem brasileiros leigos em relação ao português – como a língua, tomada em sentido amplo, pode ser ao mesmo tempo um poderoso instrumento de opressão e um artefato libertador, pelo qual qualquer pessoa, desde uma criança de 3 ou 4 anos até um idoso que nunca aprendeu a ler ou escrever, manifesta-se, comunica-se e expõe os seus pensamentos, desejos, anseios, posições, ideologias etc. Neste “Preconceito linguístico”, o Professor Marcos Bagno apresenta, escancara, desmascara, desmitifica e propõe formas para erradicar este que é um dos mais odiosos preconceitos sociais, que é usado de forma muito consciente pela elites dominantes, mas que, infelizmente, é disseminado de forma ingênua por milhões de brasileiros, que são convencidos de forma nefasta que não sabem o português, sua língua materna, com a qual se comunicam perfeitamente desde a mais tenra infância. 

Decidi adotar o mesmo sistema do texto referido anteriormente, citando trechos do livro e fazendo alguns comentários quando achar necessário. Os grifos estão no original, exceto quando indicado. As minhas intervenções aparecem em negrito. A grafia foi mantida como no original.

Não sendo linguista, sem formação na área, mas tendo muita preocupação com os preconceitos generalizados que a nossa sociedade propaga, especificamente este, valho-me da técnica de reproduzir o pensamento de estudiosos para tentar apresentar os fatos e fazer com que as pessoas tomem consciência e, se acharem por bem (e devem achar), engajem-se na luta contra as discriminações, que representam entraves para a construção de uma sociedade mais justa e que se constituem no arsenal das elites para a manutenção do estado atual das coisas. Muitos já disseram que a grande revolução não está em somente seguir as palavras dos grande líderes, mas que começa dentro de cada um de nós. Disse certa vez o meu Mestre: “Antes de escrever o livro que o guru lhe deu você precisa escrever o seu.” Sendo assim, 

À REVOLUÇÃO!

Capítulo I – A mitologia do preconceito lingüístico

Mito nº 1 – “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”

Este mito é muito prejudicial à educação porque, ao não reconhecer a verdadeira diversidade do português falado no Brasil, a escola tenta impor a sua norma lingüística como se ela fosse, de fato, a língua comum a todos os 160 milhões de brasileiros, independentemente de sua idade, de sua origem geográfica, de sua situação socioeconômica, de seu grau de escolarização etc. (p. 15)

Mito nº 2 – “Brasileiro não sabe português/Só em Portugal se fala bem português”

O brasileiro sabe português, sim. O que acontece é que nosso português é diferente do português falado em Portugal. Quando dizemos que no Brasil se fala português, usamos esse nome simplesmente por comodidade e por uma razão histórica, justamente a de termos sido uma colônica de Portugal. Do ponto de vista lingüístico, porém, a língua falada no Brasil já tem uma gramática – isto é, tem regras de funcionamento – que cada vez mais se diferencia da gramática da língua falada em Portugal. Por isso os lingüistas (os cientistas da linguagem) preferem usar o termo português brasileiro, por ser mais claro e marcar bem essa diferença. (p. 24)

Mito nº 3 – “Português é muito difícil”

Está provado e comprovado que uma criança entre os 3 e 4 anos de idade já domina perfeitamente as regras gramaticais de sua língua! O que ela não conhece são sutilezas, sofisticações e irregularidades no uso dessas regras, coisas que só a leitura e o estudo podem lhe dar. Mas nenhuma criança brasileira dessa idade vai dizer, por exemplo: “Uma meninos chegou aqui amanhã”. (p.35)

Por quê? Porque toda e qualquer língua é “fácil” para quem nasceu e cresceu rodeado por ela! (p. 36)

Se tanta gente continua a repetir que “português é difícil” é porque o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português. (p. 36)

O professor pode mandar o aluno copiar quinhentas mil vezes a frase: “Assisti ao filme”. Quando esse mesmo aluno puser o pé fora da sala de aula, ele vai dizer ao colega: “Ainda não assisti filme do Zorro!” (…)

(…) aquelas mesmas pessoas que, por causa da pressão policialesca da escola e da gramática tradicional, usam a preposição a depois do verbo assistir, também dizem que “o jogo foi assistido por vinte mil pessoas”. Ora, se o verbo assistir pede um preposição é porque ele não é transitivo direto, e só os verbos transitivos diretos podem, segundo as gramáticas assumir a voz passiva. Desse modo, quem diz “assisti ao jogo” não poderia, teoricamente, dizer “o jogo foi assistido”. (pp. 36 e 37)

No fundo, a idéia de que “português é muito difícil” serve como mais um dos instrumentos de manutenção do status quo das classes sociais privilegiadas.  (p. 39) (Grifos meus.)

Mito nº 4 – “As pessoas sem instrução falam tudo errado”

(…) do mesmo modo como existe o preconceito contra a fala de determinadas classes sociais, também existe o preconceito contra a fala característica de certas regiões. É um verdadeiro acinte aos direitos humanos, por exemplo, o modo como a fala nordestina é retratada nas novelas de televisão, principalmente da Rede Globo. Todo personagem de origem nordestina é, sem exceção, um tipo grotesco, rústico, atrasado, criado para provocar o riso, o escárnio e o deboche dos demais personagens e do espectador. No plano lingüístico, atores não-nordestinos expressam-se num arremedo de língua que não é falada em nenhum lugar do Brasil, muito menos no Nordeste. Costumo dizer que aquela deve ser a língua do Nordeste de Marte! Mas nós sabemos muito bem que essa atitude representa uma forma de marginalização e exclusão.(pp. 43 e 44) (Grifo meu.)

Abro um parêntese para acrescentar que esse artifício de exclusão utilizado de forma muito consciente pela Rede Globo vai muito além do preconceito linguístico. Até pouco tempo, aos atores negros eram sempre reservados os papéis de empregados, motoristas, ladrões etc. Esse panorama mudou. Hoje negros ocupam papéis de protagonismo. Contudo, examinemos um pouco melhor essa “mudança”. Na última novela das sete, um dos personagens principais era interpretado pela negra Thaís Araújo. Em outro folhetim, coube ao ator negro Lázaro Ramos o protagonismo. O que têm em comum esses dois atores, além do fato de serem negros e marido e mulher? Ambos são exemplos típicos da beleza padronizada pelo mundo ocidental, têm rostos e corpos bonitos, dentes perfeitos, cabelos perfeitamente ajustadosAtores negros, cuja beleza não possa ser facilmente reconhecida pelo senso comum, continuam a desempenhar papéis secundários ou que representem elementos negativos em relação ao caráter, conduta social etc. Caso alguém tenha algum exemplo em contrário, um único, por favor me aponte. Um negro “feio” que seja o mocinho da novela. Uma negra “gorda” a quem não seja destinado o papel da cozinheira. Não que ser cozinheira desmereça qualquer mulher, branca, negra, vermelha, mas a forma estereotipada com que é apresentado o papel faz com que o imaginário popular solidifique a ideia distorcida de que essas profissões são menos importantes e, portanto, possíveis a pessoas a quem faltem “maiores qualificações”, entre elas um “melhor trato com a língua”.  

Mito nº 5 – “O lugar onde melhor se fala o português no Brasil é no Maranhão”

Convém salientar que a determinação das normas culta e não-culta é uma questão de grau de freqüência das variantes (o que os normativistas consideram erros ou acertos). Por exemplo, coisas como “os menino tudo” ou “houveram fatos” podem aparecer na fala de brasileiros cultos.

É preciso abandonar essa ânsia de tentar atribuir a um único local ou a uma única comunidade de falantes o “melhor” ou o “pior” português e passar a respeitar igualmente todas as variedades da língua, que constituem um tesouro precioso de nossa cultura. Todas elas têm o seu valor, são veículos plenos e perfeitos de comunicação e de relação entre as pessoas que as falam. Se tivermos de incentivar o uso de uma norma culta, não podemos fazê-lo de modo absoluto, fonte do preconceito. Temos de levar em consideração a presença de regras variáveis em todas as variedades, a culta inclusive. (p. 51)

Mito nº 6 – “O certo é falar assim porque se escreve assim”

O que acontece é que em toda língua do mundo existe um fenômeno chamado variação, isto é, nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares, assim como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico. (p. 52)

É claro que é preciso ensinar a escrever de acordo com a ortografia oficial, mas não se pode fazer isso tentando criar uma língua falada “artificial” e reprovando como “erradas” as pronúncias que são resultado natural das forças internas que governam o idioma. Seria mais justo e democrático dizer ao aluno que ele pode dizer BUnito ou BOnito, mas que só pode escrever BONITO, porque é necessária uma ortografia única para toda a língua, para que todos possam ler e compreender o que está escrito, mas é preciso lembrar que ela funciona como a partitura de uma música: cada instrumentista vai interpretá-la de um modo todo seu, particular! (pp. 52 e 53) (Grifo meu.)

Com esta afirmação e esta orientação, o professor Bagno destrói o argumento raso dos conservadores e reacionários “defensores” da “Ultima Flor do Lácio”, que sempre dizem que os linguistas estão propondo uma deturpação total da língua portuguesa, que busca incutir na cabeça das pessoas a ideia de que vale tudo na língua. Não! O que se propõe é que a língua seja analisada e estudada como um organismo vivo e, como tal, em constante modificação, sem que se criem visões anacrônicas e preconceituosas de que a única forma correta de utilizar a língua é aquela de que se valem os detentores do conhecimento da gramática normativa. Mesmo porque esse suposto domínio total das regras gramaticais é impossível, mesmo aos gramáticos prescritivos e dicionaristas.

A língua escrita, por seu lado, é totalmente artificial, exige treinamento, memorização, exercício, e obedece a regras fixas, de tendência conservadora, além de ser uma representação não exaustiva da língua falada.

Faça você mesmo o teste: pegue uma palavra bem simples – fogo, por exemplo – e pronuncie-a com todas as inflexões e tons de voz que conseguir: espanto, medo, alegria, tristeza, saudade, ira, remorso, horror, felicidade, histeria, pavor… Depois tente reproduzir por escrito essas mesmas inflexões e tons de voz. É impossível. O máximo que a língua escrita oferece são os sinais de exclamação e de interrogação! A mera forma escrita não é capaz de traduzir as inflexões e as intenções pretendidas pelo falante. Por isso, os autores de textos teatrais indicam, entre parênteses, a emoção, sensação ou sentimento que o ator deve expressar numa dada fala. (p. 55)

A espécie humana tem, pelo menos, um milhão de anos. Ora, as primeiras formas de escrita, conforme a classificação tradicional dos historiadores, surgiram há apenas nove mil anos. A humanidade, portanto, passou 990.000 anos apenas falando! (p. 56)

Mito nº 7 – “É preciso saber gramática para falar e escrever bem”

É muito comum, também, os pais de alunos cobrarem dos professores o ensino dos “pontos” de gramática tais como eles próprios os aprenderam em seu tempo de escola. E não faltam casos de pais que protestaram veementemente contra professores e escolas que, tentando adotar uma prática de ensino da língua menos conservadora,não seguem rigorosamente “o que está nas gramáticas”. Conheço gente que triou seus filhos de uma escola porque o livro didático ali adotado não ensinava coisas “indispensáveis” como “antônimos”, “coletivos” e “análise sintática”…” (p. 62)

Acrescento às palavras do autor a observação que, em geral, nem os pais aprenderam de fato os “pontos” de gramática na escola. No máximo eles decoraram algumas regras arbitrárias, que, no mais das vezes, servem para muito pouca coisa além de demonstrar uma suposta erudição e… excluir os que não “dominam” essas regras.  

O que aconteceu, ao longo do tempo, foi uma inversão da realidade histórica. As gramáticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como “regras” e “padrões” as manifestações lingüísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração, modelos a ser imitados. Ou seja, a gramática normativa é decorrência da língua, é subordinada a ela, dependente dela. Como a gramática, porém, passou a ser um instrumento de poder e de controle, surgiu essa concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam da gramática, como se ela fosse uma espécie de fonte mística invisível da qual emana a língua “bonita”, “correta” e “pura”. (p. 64) (Grifo no original e meu.)

As plantas só existem porque os livros de botânica as descrevem? É claro que não. Os continentes só passaram a existir depois que os primeiros cartógrafos desenharam seus mapas? Difícil acreditar. A Terra só passou a ser esférica depois que as primeiras fotografias tiradas do espaço mostraram-na assim? Não. Sem os livros de receita não haveria culinária? (p. 66)

Mito nº 8 – “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social”

Ora, se o domínio da norma culta fosse realmente um instrumento de ascensão na sociedade, os professores de português ocupariam o topo da pirâmide social, econômica e política do país, não é mesmo? (p. 69)

(…) um grande fazendeiro que tenha apenas alguns poucos anos de estudo primário, mas que seja dono de milhares de cabeças de gado, de indústrias agrícolas e detentor de uma grande influência política em sua região vai poder falar à vontade sua língua de “caipira”, com todas as formas sintáticas consideradas “erradas” pela gramática tradicional, porque ninguém vai se atrever a corrigir seu modo de falar. 

O que estou tentando dizer é que o domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha todos os dentes, que não tenha casa decente para morar, água encanada, luz elétrica e rede de esgoto. O domínio da norma culta de nada vai servir a uma pessoa que não tenha acesso às tecnologias modernas, aos avanços  da medicina, aos empregos bem remunerados, à participação ativa e consciente nas decisões políticas que afetam sua vida e a de seus concidadãos. O domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha seus direitos de cidadão reconhecidos plenamente, a uma pessoa que viva numa zona rural onde um punhado de senhores feudais controlam extensões gigantescas de terra fértil, enquanto milhões de famílias de lavradores sem-terra não têm o que comer. (p. 70) (Grifos meus.)

Capítulo II – O círculo vicioso do preconceito lingüístico

1. Os três elementos que são quatro

(…) o sujeito que usa um termo em inglês no lugar do equivalente em português é, na minha opinião, um idiota. (p. 78) [Referência à afirmação de Pasquale Cipro Neto em uma entrevista concedida à revista Veja, edição de 10/09/1997.]

2. Sob o império de Napoleão

Os delinqüentes da língua portuguesa fazem do princípio histórico “quem faz a língua é o povo” verdadeiro moto para justificar o desprezo de seu estudo, de sua gramática, de seu vocabulário, esquecidos de que a falta de escola é que ocasiona a transformação, a deterioração, o apodrecimento de uma língua. Cozinheiras,babás,engraxates, trombadinhas, vagabundos, criminosos é que devem figurar, segundo esses derrotistas, como verdadeiros mestres da nossa sintaxe e legítimos defensores do nosso vocabulário. (p. 79) [Referência ao verbete “VERNÁCULO”, no “Dicionário de questões vernáculas”, de Napoleão Mendes de Almeida (2ª ed.: 1994. São Paulo, LCTE)]

Napoleão Mendes de Almeida, um dos expoentes da “língua pura” mais cultuados pelos que acreditam e defendem essa monstruosidade, considerado por eles um verdadeiro repositório do saber contido nas raízes latinas do idioma oficial do Brasil, oferece uma prova substancial de que o preconceito linguístico não anda sozinho. Vejam que ele associa cozinheiras, babás e engraxates a  trombadinhas, vagabundos e criminosos, todos responsáveis pelo “apodrecimento” da língua portuguesa. Um sujeito desses ainda hoje é (muito) citado como referencial de amor à língua e cultivo das formas mais elevadas de utilização do português. Ao perceber isso, tenho que me socorrer do calendário para me certificar que estamos em 2012 e não na Idade Média…

3. Um festival de asneiras

(…) tenta ensinar coisas perfeitamente inúteis, como a pronúncia “correta” do nome inglês do modelo de um carro que, por sinal, já deixou de ser fabricado (Monza Classic SE) e também das siglas FNM e DKW (igualmente extintas), a grafia “correta” do apelido da apresentadora de televisão Xuxa (que, segundo ele, deveria se escrever Chucha), ou a conjugação apropinquar-se, que ninguém em sã consciência usa no Brasil, a menos que queira provocar risos ou passar por pedante… (p. 83) [Referência ao livro “Não erre mais!”, de Luiz Antônio Sacconi (23ª ed.: 1998. São Paulo, Atual)

Julgo importante reproduzir na íntegra um texto da lavra de Dad Squarisi, famosa colunista que fornece dicas de português em conceituadas publicações do país. Segundo o autor, a coluna foi publicada no “Correio Braziliense”, de 22/06/1996, e no “Diário de Pernambuco”, em 15/11/1998. Vamos, então, a algumas dicas da professora Squarisi:

Português ou caipirês?
 
Dad Squarisi
 
 
     Fiat lux. E a luz se fez. Clareou este mundão cheinho de jecas-tatus. À direita, à esquerda, à frente, atrás, só se vê uma paisagem. Caipiras, caipiras e mais caipiras. Alguns deslumbrados, outros desconfiados. Um – só um – iluminado. Pobre peixinho fora d’água! Tão longe da Europa, mas tão perto de paulistas, cariocas, baianos e maranhenses.
 
     Antes tarde do que nunca. A definição do caráter tupiniquim lançou luz sobre um quebra-cabeça que atormenta este país capiau desde o século passado. Que língua falamos? A resposta veio das terras lusitanas.
 
     Falamos o caipirês. Sem nenhum compromisso com a gramática portuguesa. Vale tudo: eu era, tu era, nós era, eles era. Por isso não fazemos concordância em frases como “Não se ataca as causas” ou “Vende-se carros”.
 
     Na língua de Camões, o verbo está enquadrado na lei da concordância. Sujeito no plural? O verbo vai atrás. Sem choro nem vela. Os sujeitos causas e carros estão no plural. O verbo, vaquinha de presépio, deveria acompanhá-los. Mas se faz de morto. O matuto, ingênuo, passa batido. Sabe por quê?
 
     O sujeito pode ser ativo ou passivo. Ativo, pratica a ação expressa pelo verbo: Os caipiras (sujeito) desconhecem (ação) o outro lado. Passivo, sofre a ação: O outro lado (sujeito) é desconhecido (ação) pelos caipiras. Reparou? O sujeito – o outro lado – não pratica a ação.
 
      Há duas formas de construir a voz passiva:
 
     a. com o verbo ser (passiva analítica): A cultura caipira é estudada por ensaístas. Os carros são vendidos pela concessionária.
 
     b. com o pronome se (passiva sintética): estuda-se a cultura caipira. Vendem-se carros. No caso, não aparece o agente. Mas o sujeito está lá. Passivo,mas firme.
 
     Dica: use o truque dos tabaréus cuidadosos: troque a passiva sintética pela analítica. E faça a concordância com o sujeito. Vende-se casas ou vendem-se casas? Casas são vendidas (logo: Vendem-se casas). Não se ataca ou não se atacam as causas? As causas não são atacadas (não se atacam as causas). Fez-se ou fizeram-se a luz? A luz foi feita (fez-se a luz). Firmou-se ou firmaram-se acordos? Acordos foram firmados (firmaram-se acordos). 
 
     Na dúvida, não bobeie. Recorra ao truque. Só assim você chega lá e ganha o passaporte para o mundo. Adeus, Caipirolândia. (pp. 95 e 96)
Na sequência da reprodução do texto, além de discorrer sobre o preconceito explícito que escorre como veneno das palavras da colunista, o autor explica detalhadamente porque as dicas gramaticais não funcionam sob nenhum aspecto, mesmo à luz da gramática normativa. Como o meu objetivo é chamar a atenção para as formas preconceituosas com que se utiliza a língua, vou me abster de transcrever as lições do Professor Bagno, limitando-me a reproduzir um trecho do conto “O contador de pronomes”, de Monteiro Lobato,publicado em 1924. Neste conto, o professor Aldrovando Cantagalo, gramático normativista ortodoxo, depara-se com uma placa com os dizeres “Ferra-se cavalos” e tenta explicar ao ferreiro que o verbo deveria estar no plural, porque o sujeito da frase está no plural. Ao que o ferreiro respondeu:
 
– V. Sa. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele SE da tabuleta refere-se cá a este seu criado. (p. 104)  
     
Capítulo III – A desconstrução do preconceito lingüístico
 
1. Reconhecimento da crise
 
Uma coisa não podemos deixar de reconhecer: existe atualmente uma crise no ensino da língua portuguesa. (p. 105)
Não é difícil perceber que a norma culta – por diversas razões de ordem política, econômica, social, cultural – é algo reservado a poucas pessoas no Brasil. (p. 105)
 
A norma culta, como vimos, está tradicionalmente muito vinculada à norma literária, à língua escrita. Com tantos analfabetos, lamentar a “decadência” ou a “corrupção” da norma culta no Brasil é, no mínimo, uma atitude cínica. (p. 107)
2. Mudança de atitude
Enquanto essa gramática [gramática da norma culta brasileira] não chega, temos de combater o preconceito lingüístico com as armas de que dispomos. E a primeira campanha a ser feita, por todos na sociedade, é a favor da mudança de atitude. Cada um de nós, professor ou não, precisa elevar o grau da própria auto-estima lingüística: recusar com veemência os velhos argumentos que visem menosprezar o saber lingüístico individual de cada um de nós. Temos de nos impor como falantes competentes de nossa língua materna. Parar de acreditar que “brasileiro não sabe português”, que português é muito difícil”, que os habitantes da zona rural ou das classes sociais mais baixas “falam tudo errado”. Acionar nosso senso crítico toda vez que nos depararmos com um comando paragramatical [nome que o autor dá aos consultórios gramaticais, colunas de auxílio gramatical em jornais e revistas, programas de correção gramatical na televisão etc.] e saber filtrar as informações realmente úteis, deixando de lado (e denunciando, de preferência) as afirmações preconceituosas, autoritárias e intolerantes. (p. 115)
Se milhões de brasileiros de norte a sul, de leste a oeste, em todas as regiões e em todas as classes sociais falam e escrevem Aluga-se salas ou se há flutuação no uso de onde e aonde, o problema, evidentemente, não está nesses milhões de pessoas, mas na explicação insuficiente (errada, até, nesses casos) dada a esses fenômenos pela gramática tradicional. (p. 116)
3. O que é ensinar português?
Esforçar-se para que o aluno conheça de cor o nome de todas as classes de palavras, saiba identificar os termos da oração, classifique as orações segundo seus tipos, decore as definições tradicionais de sujeito, objeto, verbo, conjunção etc. – nada disso é garantia de que esse aluno se tornará um usuário competente da língua culta.
 
Quando alguém se matricula numa auto-escola, espera que o instrutor lhe ensine tudo o que for necessário para se tornar um bom motorista, não é? Imagine, porém, se o instrutor passar onze anos abrindo a tampa do motor e explicando o nome de cada peça, de cada parafuso (…) Esse aluno tem alguma chance de se tornar um bom motorista? Quando muito, estará se candidatando a um emprego de mecânico de automóveis… Mas quantas pessoas existem por aí, dirigindo tranqüilamente seus carros, tirando o máximo proveito deles, sem ter a menor idéia do que acontece dentro do motor? (…) 
 
(…) E então? O que pretendemos formar com nosso ensino: motoristas da língua ou mecânicos da gramática? (pp. 119 e 120)
Quando digo coisas assim em público, algumas pessoas levantam a objeção de que o ensino da nomenclatura tradicional, das definições, das classificações, da análise sintática é necessário porque são essas coisas que serão cobradas ao aluno no momento de fazer um concurso ou de prestar o vestibular. Se é assim, cabe a nós, professores, pressionar pelos meios de que dispomos – associações profissionais, sindicatos, cartas à imprensa – para que as provas de concursos sejam elaboradas de outra maneira, trocando as velhas concepções de língua por novas. Não temos de nos conformar passivamente com uma situação absurda e prosseguir na reprodução dos velhos vícios gramatiqueiros simplesmente porque haverá uma cobrança futura ao aluno. (p. 121)
Nunca consegui entender por que uma pessoa que quer estudar Direito precisa fazer prova de física, química, biologia e matemática, se o que ela prendeu dessas matérias já foi avaliado na conclusão do 2º grau.
 
Com o fim do vestibular, desaparecerá também – assim esperamos ardentemente – toda a indústria que se formou em torno dele: os nefandos “cursinhos” onde ninguém aprende nada, onde não há nenhuma produção de conhecimento mas apenas reprodução de informações desconexas, onde centenas de alunos se apinham numa sala, onde tudo o que se faz é entupir a cabeça do aluno com “truques” e “macetes” que em nada contribuem para a sua verdadeira formação intelectual e humanística. (pp. 122 e 123)
4. O que é erro?
 
(…) uma elevada porcentagem do que se rotula de “erro de português” é, na verdade,mero desvio da ortografia oficial. (p. 122)
(…) em cartazes e placas não aparecem “erros de português” e, sim, “erros” de ortografia. Escrever, digamos, LOGINHA DE ARTEZANATO onde a lei obriga a escrever LOJINHA DE ARTESANATO em nada vai prejudicar a intenção do autor da placa: informar que ali se vende objetos de artesanato. (p. 123)
No início do século XX o “certo” era escrever: EM NICHTEROY ELLE POUDE ESTUDAR SCIENCIAS NATURAES, CHIMICA E PHYSICA. Se hoje o “certo” é escrever: EM NITERÓI ELE PÔDE ESTUDAR CIÊNCIAS NATURAIS, QUÍMICA E FÍSICA, isso não altera a sintaxe nem a semântica do enunciado: o que mudou foi só a ortografia. (p. 123)
Todo falante nativo de uma língua é um falante plenamente competente dessa língua, capaz de discernir intuitivamente a gramaticalidade ou agramaticalidade de um enunciado, isto é, se um enunciado obedece ou não às regras de funcionamento da língua.
 
Ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna, assim como ninguém comete erros ao andar ou ao respirar. (p. 124) (Grifo meu.)
 
(…) podemos até dizer que existem “erros de português”, só que nenhum falante nativo da língua os comete! Por exemplo, seriam “errados” os enunciados abaixo (o asterisco indica construção agramatical)
 
(1) *Aquela garoto me xingou
(2) *Eu nos vimos ontem na escola
(3) *Júlia chegou semana que vem
(4) *Não duvido que ele não queira não vir aqui
(5) *Que o livro que a moça que Luís que trabalha comigo me apresentou escreveu é bom não nego
 
Esses enunciados, precisamente por serem agramaticais, isto é, por não respeitarem as regras de funcionamento da nossa língua, não aparecem na fala espontânea e natural de falantes nativos do português do Brasil, mesmo que sejam crianças pequenas que ainda não freqüentam escola ou adultos totalmente iletrados. (p. 125)
 
5. Então vale tudo?
 
Algumas pessoas me dizem que a eliminação da noção de erro dará a entender que, em termos de língua, vale tudo. Não é bem assim. Na verdade, em termos de língua, tudo vale alguma coisa, mas esse valor vai depender de uma série de fatores. Falar gíria vale? Claro que vale: no lugar certo, no contexto adequado, com as pessoas certas. E usar palavrão? A mesma coisa.
 
Uma das principais tarefas do professor de língua é conscientizar seu aluno de que a língua é como um grande guarda-roupa, onde é possível encontrar todo tipo de vestimenta. Ninguém vai só de maiô fazer compras num shopping-center, nem vai entrar na praia, num dia de sol quente, usando terno de lã, chapéu de feltro e luvas… (p. 130)
 
6. A paranóia ortográfica
 
Essa Gramática [“Gramática da língua portuguesa”, de Pasquale Cipro Neto & Ulisses Infante] filia-se à tradição que atribui ao domínio da escrita um elemento de distinção social, que é na verdade um elemento de dominação por parte dos letrados sobre os iletrados. 
Existe um mito ingênuo de que a linguagem humana tem a finalidade de “comunicar”, de “transmitir idéias” – mito que as modernas correntes da lingüística vêm tratando de demolir, provando que a linguagem é muitas vezes um poderoso instrumento de ocultação da verdade, de manipulação do outro, de controle, de intimidação, de opressão, de emudecimento. (p. 133)  (Grifo meu.) 
 
O aprendizado da ortografia se faz pelo contato íntimo e freqüente com textos bem escritos, e não com regras mal elaboradas ou com exercícios pouco esclarecedores. (p. 138)
7. Subvertendo o preconceito lingüístico
 
(…) talvez tenhamos de continuar ensinando aquelas coisas que nos são cobradas pela sociedade, pela direção das escolas, pelos pais dos nossos alunos. Mas podemos ensinar essas coisas criticando-as ao mesmo tempo e deixando bem claro que aquilo ali não é tudo o que se pode saber a respeito da língua, que há um milhão de outras coisas muito mais interessantes e gostosas para descobrir no universo da linguagem. (p. 141)
Capítulo IV – O preconceito contra a lingüísitca e os lingüistas
 
1. Uma “religião” mais velha que o cristianismo
 
A Gramática Tradicional permanece viva e forte porque, ao longo da história, ela deixou de ser apenas uma tentativa de explicação filosófica para os fenômenos da linguagem humana e foi transformada em mais um dos muitos elementos de dominação de uma parcela da sociedade sobre as demais(p. 149) (Grifo meu.)
 
Querer cobrar, hoje em dia, a observância dos mesmos padrões lingüísticos do passado é querer preservar, ao mesmo tempo, idéias, mentalidades e estruturas sociais do passado. (p. 150)
Ora, o novo assusta, o novo subverte as certezas, compromete as estruturas de poder e dominação há muito vigentes. (150)
(…) grupos de pessoas que dizem promover ridículos “movimentos de defesa da língua portuguesa”, como se fosse necessário defender a língua de seus próprios falantes nativos, a quem ela pertence de fato e de direito. (p. 151)
(…) o simples fato de pertencer à Academia Brasileira de Letras é exemplo de sua filiação a um ideário conservador e elitista – ele já declarou, por exemplo, que a função da escola é levar os alunos a falar “melhor e com os melhores” (…) (p. 158) [Referindo-se a Evanildo Bechara.] 
No mesmo momento em que eu escrevo, ou transcrevo, leio a frase para a Patrícia, minha esposa, e ela me faz a  pergunta, um tanto quanto retórica, mas que inevitavelmente salta à mente de quem tenha uma mínima capacidade de reflexão: “Quem são os melhores?” Eu respondo simplesmente, numa respeitosa “homenagem” ao professor Evanildo: “Os que sabem falar…”
4. A quem interessa calar os lingüistas?
(…) se um deputado sem formação em medicina inventasse um projeto de lei que tivesse relação com a prática cirúrgica e se todos os médicos do país se manifestassem contra o projeto, será que ele conseguiria ser aprovado? Por que toda e qualquer pessoa se acha no direito de dar palpites infundados e preconceituosos sobre as questões que dizem respeito à língua? (p. 164) [Referindo-se ao projeto do então deputado federal Aldo Rebelo, atual Ministro dos Esportes, de 1999, sobre “a promoção , a proteção, a defesa e o uso da língua portuguesa”.]
 
O autor lembra que o então deputado se refere à Napoleão Mendes de Almeida (aquele mesmo que comparou babás e engraxates com trombadinhas e criminosos) como um dos nossos maiores linguistas, sendo que na visão deste mesmo Napoleão, os linguistas são responsáveis, ao lado das babás, engraxates e criminosos, pelo apodrecimento da língua portuguesa.
 
Que ameaça ao tipo de sociedade em que vivemos representa a democratização do saber lingüístico, a divulgação ampla das descobertas deste campo científico, a liberação da voz de tantos milhões de pessoas condenadas ao silêncio por “não saber português” ou por “falar tudo errado”? A quem interessa defender o “português ortodoxo” de uns pouquíssimos “melhores” contra a suposta “heresia gramatical” de muitos milhões de outros? (p. 165) 

Na parte final de “Preconceito linguístico”, o autor transcreve uma carta que enviou ao editor da Veja, em resposta a uma matéria publicada na edição de número 1.725 (novembro de 2001), intitulada “Falar e escrever bem, eis a questão”, na qual o jornalista João Gabriel de Lima destila o mesmo veneno preconceituoso examinado ao longo do livro. Da extensa missiva, destaco dois trechos que de certa forma sintetizam tudo o que eu pretendi dizer com este texto e as transcrições nele feitas:

Segundo a reportagem, as críticas que o Sr. Pasquale Cipro Neto recebe dessa “corrente relativista”deixam-no “irritado”. Ora, o que parece realmente irritar o Sr. Pasquale é o fato de que, apesar de obter tanto sucesso entre os leigos, nada do que ele diz ou escreve é levado a sério nos centros de pesquisa científica sobre a linguagem, sediados nas mais importantes universidades do Brasil – centros de pesquisa lingüística, diga-se de passagem, reconhecidos internacionalmente como entre alguns dos melhores do mundo. Muito pelo contrário, se o nome do Sr. Pasquale é mencionado nas nossas universidades, é sempre como exemplo de uma atitude anticientífica dogmática e até obscurantista no que diz respeito à língua e seu ensino (em vários de seus artigos em jornais e revistas ele já chamou os lingüistas de “idiotas”, “ociosos”, “defensores do vale-tudo” e “deslumbrados”). (p. 170)

Se existe, porém, uma grande resistência contra o redimensionamento do lugar do ensino da gramática na escola é porque todos sabemos que, ao longo do tempo, o conhecimento mecânico da doutrina gramatical se transformou num instrumento de discriminação e de exclusão social. “Saber português”, na verdade, sempre significou “saber gramática”, isto é, ser capaz de identificar – por meio de uma terminologia falha e incoerente – o “sujeito’ e o “predicado” de uma frase, pouco importante o que essa frase queria dizer, os efeitos de sentido que podia provocar etc. Transformada num saber esotérico, reservado a uns poucos “iluminados”, a “gramática” passou a ser reverenciada como algo misterioso e inacessível – daí surgiu a necessidade de “mestres” e “guias”, capazes de levar o “ignorante” a atravessar o abismo que separa os que sabem dos que não sabem português…” (p. 182)

Infelizmente o livro não informa se a carta foi ou não publicada, por isso deixo a pergunta: 

será que Veja publicou a carta do professor Marcos Bagno ou deixou que as distorções da matéria sobre a língua adquirissem ares de verdade (nazismo?? – sei lá…)? 

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 14/11/2012.

 

Padrão
História, Imprensa, Jornalismo, Política

O verdadeiro papel da imprensa*

Não tenho o hábito de publicar na íntegra textos alheios, mas este vale a pena. Discordo de pequenos detalhes, que podem até ser considerados irrelevantes, e faço uma pequena observação quanto ao fato de que a emissora requisitada por Leonel Brizola para estabelecer a “Cadeia da Legalidade” foi a Rádio Guaíba e não as rádios Gaúcha e Farroupilha, como aponta o autor.

Agradeço ao meu amigo Flávio, que me mandou o texto por mail.

“Todos temos que lembrar”

Luiz Cláudio Cunha*

*Jornalista, em discurso na cerimônia de

diplomação de Notório Saber em Jornalismo,

Universidade Nacional de Brasilia (UnB)

9-5-2011.

Coletado em 25/05/2011

http://www.ericovalduga.com.br/content/LeiturasRecomendadasShow.asp?postBackMessage=Email%20enviado%20com%20sucesso!

O jornalismo é a atividade humana que depende essencialmente da pergunta, não da resposta. O bom jornalismo se faz e se constrói com boas perguntas. O jornalismo de excelência se faz com excelentes perguntas.

A pergunta desafia, provoca, instiga, ilumina a inteligência, alimenta o pensamento. Ao longo de milênios, o homem evoluiu seguindo a linha tortuosa de suas dúvidas, das perguntas que produziam respostas, das respostas insatisfatórias que geravam novas questões, que provocavam mais incertezas, mais perguntas.

Perguntando, o homem saiu da caverna, cresceu, evoluiu e se definiu como ser pensante. O homem se agrupou em tribos, criou hábitos, estabeleceu regras de convívio, preservou a espécie, expandiu habilidades, depurou a fala, criou a escrita, disseminou experiências, inventou ferramentas, desenvolveu recursos, ganhou qualidade de vida, garantiu o alimento para o corpo e para o espírito. Um processo civilizatório irrefreável sempre escoltado por perguntas, outras perguntas, mais perguntas.

Este nobre recinto, a universidade, é o santuário desta saudável circunstância humana: a busca incessante pelo conhecimento, pela informação, pelo saber. O ambiente universitário resume nos últimos dez séculos, desde a pioneira escola italiana de Bolonha, o ofício incessante do cérebro humano iluminado por sua ancestral e redentora curiosidade. Aqui, como no jornalismo, cultiva-se o princípio desafiador do ceticismo e se estimula a dúvida sistemática que realimenta o conhecimento. Posso dizer, portanto, que me sinto em casa.

Este é o lugar, este é o momento para lembrar que aqui — na universidade — se faz o bom combate da dúvida, da luz e da ciência contra as certezas, as trevas e as crendices das religiões que tentam submeter o pensamento criador pelo conformismo da fé ou pelo fanatismo destruidor dos sectários. A ameaça se faz maior quando o Estado laico assiste, inerte, a invasão da mídia eletrônica por instituições religiosas que compram espaços e vendem milagres em rádio e TV, maldizendo regras da concessão pública de meios de comunicação que deveriam estar imunes a credos e a pregadores de telemarketing.

Sem maiores perguntas, o Brasil e suas instâncias do poder temporal assistem de joelhos ao choque de credos numa área de interesse direto do jornalismo e do distinto público: a mídia eletrônica. A igreja católica agrupa mais de 200 rádios e quase 50 emissoras de TV, contra 80 rádios e quase 280 emissoras de oito braços do ramo evangélico.

A postura mais agressiva dos pastores acua padres e fiéis da maior nação católica do mundo. Entre 1940 e 2000, os católicos caíram de 95,2% para 73,8% entre os brasileiros, enquanto os evangélicos saltaram de 2,6% para 15,4%. A explosão de 50% apenas na última década coincide com a compra da Rede Record em 1989 pela Igreja Universal.

A overdose de pregadores que já ocupam as manhãs e o horário nobre das TVs abertas deve piorar ainda mais: os quatro maiores grupos evangélicos disputam agora o horário da madrugada em rede nacional do Grupo SBT. O combalido Sílvio Santos topa tudo pelo dinheiro farto dos pastores, que negociam o aluguel mensal da telinha por R$ 20 milhões. Os usos e abusos dessa invasão nada silente e sempre sonante despertam uma pergunta no repórter mais crédulo: até onde isso vai?

Cinco séculos antes de Cristo, a dúvida sobrevoou a cabeça de um general ateniense: por que os sobreviventes de uma epidemia não sucumbiam aos surtos posteriores da doença? Ele não sabia, mas percebeu ali os fundamentos do que a ciência mais tarde reconheceria como o sistema imunológico do organismo. O conflito de 27 anos entre Atenas e Esparta acabou e o general, que também se curou da praga do tifo, teve força e talento para escrever oito volumes sobre a Guerra do Peloponeso, o clássico de Tucídides que é tido como o primeiro trabalho acadêmico em História. Ao contrário de Heródoto, seu ilustre predecessor, Tucídides registrava a história como produto das escolhas e das ações dos seres humanos, não como resultado da ira dos deuses. Desprezando lendas, superstições e relatos de segunda mão, Tucídides preferia ouvir testemunhas oculares e entrevistar participantes dos eventos, desprezando a suposta intervenção divina nos assuntos humanos.

Com o faro de jornalista e o rigor de historiador, Tucídides eternizou a ‘Oração Fúnebre’ de Péricles, o maior dos gigantes da Era de Ouro de Atenas, na fala onde o estadista exalta os mortos e defende a democracia: “Toda a Terra é o sepulcro dos homens famosos. Eles são honrados não só por colunas e inscrições em sua própria terra, mas também em terras estrangeiras por monumentos esculpidos não em pedra, mas nos corações e mentes dos homens”, exaltou Péricles.

Assim, Tucídides pode ser considerado de fato o primeiro repórter da história, mesclando nele as virtudes e os atributos que a academia identifica no profissional da imprensa: o historiador do presente, o repórter da atualidade que, pelo conhecimento acumulado, acaba de fato registrando a história do passado que vai prevalecer no futuro. Como fez o repórter Tucídides, que transpôs a crônica contingente de seu tempo para a lembrança imanente de todas as gerações.

Senhoras e Senhores,

A memória da humanidade é um patrimônio de todos e de cada um de nós. Nem sempre sabemos, mas todos lembramos. Todos precisamos lembrar. O jornalista, como o historiador, além de lembrar, tem o dever de contar.

Minha geração dos anos 1950 é marcada por uma tragédia: a ditadura mais longa da história brasileira.

Eu era uma criança de 12 anos quando irrompeu o golpe de março de 1964. Mas, como as crianças da escola de Realengo, já tinha a idade suficiente para reconhecer a violência, para sofrer o trauma, para sentir o medo. Os efeitos do longo pesadelo de 21 anos se projetaram no calendário. Meu primeiro voto para presidente da República só aconteceu quando tinha 38 anos. Cassaram nossa cidadania, limitaram nossa liberdade, calaram nossos amigos, exilaram nossos líderes, machucaram nosso povo.

Atacaram com violência maior o que mais assusta os tiranos: a universidade, o santuário do conhecimento, a trincheira do livre-pensamento, a sede da consciência crítica. Profanaram o espaço desta universidade, a Universidade de Brasília, a academia que estava no coração da nova ordem sem coração, o regime que combatia a força das ideias pela ideia da força armada, desalmada, desatinada.

Um regime que expurgou da UnB seus dois primeiros reitores, nomes primeiros da educação e do compromisso ético com a escola e com a liberdade do pensamento: Darcy Ribeiro, criador e fundador da UnB, e Anísio Teixeira, lançador do movimento da ‘Escola Nova’ – uma escola que enfatizava o desenvolvimento do intelecto e a capacidade de julgamento. Juntos, Darcy e Anísio assentaram os pilares desta universidade. Anísio inventou na Liberdade, o bairro mais populoso e pobre de Salvador nos anos 1940, a ‘Escola Parque’, que tinha padaria, um jornal diário e uma rádio comunitária por alto-falante, com médico e dentista e turno integral para as crianças.

O modelo revolucionário inspirou Darcy a criar os CIEPs anos depois, no Rio de Janeiro. Anísio também ajudou a fundar a SBPC e a CAPES e dirigiu o INEP, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, onde defendia o fim do ensino religioso obrigatório nas escolas.

A nova ordem que trazia a desordem institucional afastou ambos, Darcy e Anísio, da UnB, de Brasília, das escolas, dos jovens, do país. Em 12 de março de 1971, auge da violência do mandato do notório general Médici, Anísio desapareceu no Rio, depois de visitar o amigo Aurélio Buarque de Holanda. Os militares disseram que ele estava detido, mas não informaram o seu paradeiro. Dois dias depois, seu corpo foi encontrado, sem sinais de queda nem hematomas, no fundo do poço do elevador do prédio de Aurélio, na praia de Botafogo. Causa da morte: ‘acidente’.

Aqueles eram tempos estranhos, muito estranhos, quando nem os acidentes deixavam rastro.

Pensadores e mestres como Darcy e Anísio resumem bem a história do país e da UnB. E nenhum estudante simboliza melhor esta universidade do que o primeiro lugar em Geologia do ano de 1965, um jovem goiano de 18 anos chamado Honestino Guimarães.

É um dos 144 desaparecidos políticos do país. Presidente da Federação dos Estudantes Universitários de Brasília, foi preso pelo Exército e expulso da universidade por reagir à invasão do campus da UnB em 1968.

Caiu na clandestinidade com o AI-5, chegou à presidência nacional da UNE e foi preso em outubro de 1973.

A jornalista brasiliense Taís Morais fez as perguntas certas e, no seu livro Sem Vestígios (Prêmio Jabuti de 2006), descobriu o macabro trajeto final de Honestino, percorrendo todo o alfabeto de siglas letais da repressão brasileira: detido no Rio de Janeiro pelo CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), trazido a Brasília pelo CIE (Centro de Informações do Exército), torturado durante cinco meses no PIC (Pelotão de Investigações Criminais, no subsolo do prédio do Comando do Exército, na Esplanada dos Ministérios) e levado em fevereiro de 1974 a Marabá num jatinho fretado da Líder Táxi Aéreo por quatro agentes do CIE liderados por um certo major-aviador Jonas, do CISA (Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica).

Lá, no sul do Pará, Honestino foi executado e enterrado na selva pelas tropas que combatiam a guerrilha do Araguaia. Honestino desapareceu aos 26 anos, mas o hoje coronel-aviador da reserva (R-1), com nome, sobrenome e endereço conhecido, circula sem chamar a atenção por Brasília, sem que nenhum jornalista se aproxime dele para fazer uma simples e básica pergunta:

− Coronel Jonas, o que aconteceu com Honestino?

Juntos, Darcy e Anísio, as duas referências maiores da UnB, não permaneceram mais do que 25 meses à frente da universidade. O mais longevo reitor em Brasília resistiu no cargo 106 meses, quase nove anos. Resistiu porque era um militar, um interventor, um duro preposto da nova ordem que desprezava a velha ordem democrática: José Carlos Azevedo, o novo reitor, era um capitão-de-mar-e-guerra da Marinha, o que não deixa de ser simbólico da visão estreita que a ditadura tinha da universidade.

Ele desembarcou na UnB em maio de 1976, uma semana após o Dia Nacional de Lutas contra Prisões Arbitrárias. O capitão começou punindo os estudantes, eles reagiram com uma greve de quatro meses e Azevedo chamou a PM. Era a quarta invasão armada do campus, desde o golpe de 64. Mais de mil estudantes foram expulsos, assim como professores de esquerda. Homem de confiança do CENIMAR que sequestrou Honestino, o capitão-reitor ainda convocaria mais duas vezes a polícia-militar para sustentar sua gestão de mão-de-ferro, que só acabaria em março de 1985, três dias antes que o último general da ditadura, seu amigo João Figueiredo, deixasse o Planalto pela porta dos fundos para não passar a faixa ao sucessor civil.

Os grandes homens, como dizia a oração de Péricles, estão guardados em nossos corações e mentes, mas também esculpidos na pedra dos monumentos, dos museus, das escolas. Aqui mesmo temos a Fundação Darcy Ribeiro, o Pavilhão Anísio Teixeira, a revista Darcy e o recém-inaugurado Memorial Darcy Ribeiro, que ele mesmo — fiel ao seu estilo sedutor — batizou como ‘Beijódromo’. O Diretório Central dos Estudantes da UnB tem o nome de Honestino Guimarães, que ainda batiza o Museu Nacional, projeto de Niemeyer em forma de cúpula na Esplanada dos Ministérios.

O capitão Azevedo morreu em fevereiro de 2010, adornado por um indulgente perfil no obituário do Correio Braziliense: “Um servidor da educação como ninguém, um cientista exato e um humanista completo”, definiu o jornal, confirmando a piedosa tradição brasileira de maquiar biografias pela mera fatalidade da morte. Apesar da generosidade do retrato, o reitor-interventor não tem um só espaço com seu nome na UnB que ele ultrajou.

Todos precisamos lembrar.

Eu, como jornalista, tenho o dever de contar.

Senhoras e senhores,

A construção desse mundo, vasto mundo, é feita no dia a dia pelos pequenos gestos e pelas grandes ações dos homens, grandes ou pequenos. O filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson (1803-1822) dizia: “Na verdade, não existe história; apenas biografia”. As revoluções, as guerras, os levantes, as tragédias, as epopeias, os movimentos de massa, ontem como hoje, são produto de homens e mulheres que deram um passo à frente e desataram ações e reações que nem eles mesmos previam ou mediam.

Seus nomes às vezes se diluem na multidão e se dissolvem na voragem dos fatos, mas eles estão lá, cedo ou tarde resgatados do anonimato pelo historiador meticuloso ou pelo repórter curioso.

A insurreição bolchevique que subiu as escadarias do Palácio de Inverno de São Petersburgo, em 1917, ganhou cara, nome, calor humano e dimensão histórica pelo relato apaixonado de uma testemunha ocular, o repórter John Reed, que inaugurou o jornalismo moderno com a descrição eletrizante daqueles dez dias que abalaram o mundo. É uma das dez melhores reportagens do frenético século 20, segundo a avaliação de jornalistas e universidades dos Estados Unidos.

A melhor reportagem de todas, por aclamação, é o acurado resgate que o repórter John Hersey fez sobre um minuto decisivo na história do mundo: 8h15m da manhã de 6 de agosto de 1945, quando a primeira bomba atômica pulverizou instantaneamente 100 mil pessoas em Hiroshima. Meses depois daquele súbito clarão que deu à humanidade a percepção de seu próprio fim na treva da era nuclear, Hersey reconstruiu aquele inferno pela biografia de seis sobreviventes que recontavam a história.

Trabalhou cerca de duas semanas no Japão para fazer as perguntas necessárias e outros 50 dias nos Estados Unidos para escrever sua enxuta reportagem de 31.347 palavras. Hersey extraiu do evento mais desumano de todas as guerras o relato mais pungente da dignidade humana.

Hiroshima era uma reportagem tão fascinante que o editor da revista semanal The New Yorker, conhecida pela excelência e rigor de seus trabalhos de qualidade literária, não conseguiu quebrar o texto – e tomou a histórica decisão de publicar todo o material de Hersey numa única edição da revista, a de 31 de agosto de 1946, toda ela dedicada àquele monumento jornalístico construído sobre os escombros de uma barbárie.

Duas perguntas cruciais definem aquele momento único da história.

Nenhuma delas foi feita por jornalistas.

Meses antes da bomba cair em Hiroshima, os Estados Unidos planejavam a maior operação militar da história: a invasão terrestre do Japão. A Operação Coronet, na região de Tóquio, previa o desembarque em março de 1946 de 25 divisões de Exército, o dobro do contingente que invadiu a Normandia. A Operação Olympic, no sul da ilha, reuniria em novembro de 1945 a mais fantástica armada da história: 42 porta-aviões, 24 encouraçados, 400 destroieres.

Todo esse levantamento ruiu em 16 de julho com o sucesso de Trinity, a primeira bomba nuclear da história, detonada na área secreta de testes no deserto de Alamogordo, no estado americano do Novo México. Nas Filipinas, um coronel entrou apressado na sala do comandante supremo aliado do Pacífico, general Douglas MacArthur, para lhe dar a notícia da bomba. Desolado com o virtual abandono de meses de exaustivo planejamento, o coronel, num último esforço para salvar seu trabalho, fez a primeira pergunta:

— General, e se a bomba não funcionar?

MacArthur pensou, tirou da boca o cachimbo de espiga de milho que copiou do poderoso Popeye e mirou no horizonte, como quem via além da guerra que morria, como quem antevia a paz que nascia. O general respondeu com outra pergunta:

— E se funcionar, coronel? E se a bomba funcionar?

A bomba, como se lê no relato de John Hersey, funcionou em 6 de agosto em Hiroshima. E funcionou outra vez, três dias depois, em Nagasaki. Ao meio-dia de 15 de agosto de 1945, pela primeira vez na história, os súditos do Japão ouviram pelo rádio a voz precária do seu Imperador anunciando a capitulação num japonês formal que a população mais simples não entendeu claramente. “Resolvemos abrir caminho para uma paz geral para todas as gerações vindouras, suportando o insuportável e sofrendo o insofrível”, disse o imperador Hiroíto.

Em tempos insuportáveis e insofríveis, as dúvidas são ainda maiores.

O Brasil da ditadura era um país assustado, acuado, abafado, apequenado.

A prepotência não permitia perguntas para números sem resposta: 500 mil cidadãos investigados pelos órgãos de segurança; 200 mil detidos por suspeita de subversão; 50 mil presos só entre março e agosto de 1964; 11 mil acusados nos inquéritos das Auditorias Militares, 5 mil deles condenados, 1.792 dos quais por ‘crimes políticos’ catalogados na Lei de Segurança Nacional; 10 mil torturados apenas na sede paulista do DOI-CODI; 6 mil apelações ao Superior Tribunal Militar (STM), que manteve as condenações em 2 mil casos; 10 mil brasileiros exilados; 4.862 mandatos cassados, com suspensão dos direitos políticos, de presidentes a governadores, de senadores a deputados federais e estaduais, de prefeitos a vereadores; 1.148 funcionários públicos aposentados ou demitidos; 1.312 militares reformados; 1.202 sindicatos sob intervenção; 245 estudantes expulsos das universidades pelo Decreto 477 que proíbe associação e manifestação; 128 brasileiros e 2 estrangeiros banidos; 4 condenados à morte (sentenças depois comutadas para prisão perpétua); 707 processos políticos instaurados na Justiça Militar; 49 juízes expurgados; 3 ministros do Supremo afastados, o Congresso Nacional fechado por três vezes; 7 Assembleias estaduais postas em recesso; censura prévia à imprensa e às artes; 400 mortos pela repressão; 144 deles desaparecidos até hoje.

Conto e lembro porque isso precisa sempre ser recontado e relembrado, para que ninguém duvide que a ditadura não foi branda, nem breve. Todos e cada um desta longa contabilidade de violência encerravam um universo de dor, de frustração, de lamento, de medo e de opressão que se espalhava, que contaminava, que amesquinhava um país e um povo.

Quando se estreita o limite da dignidade amplia-se o espaço para o cinismo, um desvio da verdade que deve ser combatido pelo jornalismo e pelos jornalistas que respeitam este ofício.

Os atuais comandantes militares brasileiros foram cínicos nas críticas que fizeram ao projeto do próprio Governo sobre a Comissão Nacional da Verdade, destinada a investigar violações da ditadura aos direitos humanos. Falando em nome do Exército, Marinha e Aeronáutica, no documento revelado pelo jornal O Globo em março passado, os oficiais-generais escrevem: “Passaram-se quase 30 anos do fim do governo chamado militar…”.

Só um raciocínio de má-fé explícita impede que se identifique o finado regime de 64 pela palavra que o define com precisão: uma ditadura, nascida do golpe que derrubou o presidente constitucional, trocado pelo rodízio no poder de cinco generais, com atos de força que esmagavam a Constituição, apoiados num dispositivo repressivo que prendia, torturava e matava, julgando civis em tribunais militares, sufocando a política, impondo censura, decretando cassação e forçando o exílio.

Pergunto: Os militares fizeram tudo aquilo e ainda duvidam do que fizeram?

Afinal, querem que chamem tudo aquilo do quê?

Lamento que quase ninguém, na imprensa ou no Parlamento, tenha repudiado este desrespeito oficial para com a história recente do país.

É justo lembrar que, nesse pedaço feio da história, os militares não estavam sós.

Tinham ao seu lado toda a grande imprensa brasileira, não apenas nos editoriais raivosos, mas na conspiração científica que mobilizou o empresariado nacional nos três anos que antecederam o golpe – como revelou em 1981 o historiador e cientista político uruguaio René Armand Dreifuss (1945-2003), professor da Universidade Federal Fluminense, em seu clássico 1964: A conquista do Estado.

Como na loucura de Hamlet, havia método na conspiração civil-militar para derrubar João Goulart, que começa já em novembro de 1961, três meses após a renúncia de Jânio Quadros, com a criação do IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. Militares da reserva entram então no barco do conluio, um deles um general chamado Golbery do Couto e Silva.

No início de 1962 oficiais das Forças Armadas foram a São Paulo para um encontro com o jornalista Júlio de Mesquita Filho, a quem entregaram um documento sobre as normas que iriam comandar o governo militar após a queda de Jango. O grupo, integrado pelos generais Cordeiro de Farias e Orlando Geisel, foi mais explícito com o dono de O Estado de S.Paulo: o novo regime queria ficar no poder por pelo menos cinco anos, o que viria a ser a primeira mentira do golpe. O regime militar perdurou quatro vezes mais.

Animado com a conversa, Mesquita chegou ao ponto de sugerir oito nomes para o futuro ministério golpista. O jornalista, acreditem, chegou a fazer o rascunho de um Ato Institucional para fechar Senado, Câmara e Assembleias e para cassar mandatos. Ironia da história: o instrumento de força esboçado por Júlio Mesquita era o mesmo a que a ditadura submeteria seu jornal em 1968 com o AI-5. Os ex-amigos do golpe confabulado pelo dono do Estadão forçariam o jornal a cobrir os espaços censurados nas páginas com versos de Camões e receitas de bolo.

Precisamos lembrar, devemos contar.

Os militares não podem ser cínicos. Os jornalistas, jamais.

Lamento o revisionismo histórico daqueles que, de forma apressada, carimbam como terroristas todos os que chegaram ao limite da própria vida para confrontar o arbítrio. É uma leviandade que fere os fatos, a memória e principalmente a universidade. Foi na parcela mais consciente, mais insubmissa, mais generosa da juventude que se buscou a força do bem para o bom combate, o justo combate ao mal da força e da prepotência.

Esse bando de irmãos estava aqui, com vocês, na universidade.

Para eles Skakespeare escreveu, em Henrique V:

Esta história o bom homem ensinará ao seu filho;

E nenhuma festa de São Crispim acontecerá

Desde este dia até o fim do mundo

Sem que nela sejamos lembrados;

Nós poucos, nós poucos e felizes, nós, bando de irmãos;

Pois quem hoje derramar seu sangue comigo,

Será meu irmão; seja ele o mais vil que for,

Este dia enobrecerá sua condição

We few, we happy few, we band of brothers…

Foi da universidade, desse bando de irmãos, que se elevou o protesto mais veemente, a rebeldia mais indignada, o gesto mais altivo contra o mal, a prepotência, a força. Repudiando o que fizeram aqui, ao atropelar a sagrada autonomia da universidade, denunciando o que fizeram ali, ao afrontar o sagrado império da lei, ao violar a Constituição, o Parlamento, os tribunais, as liberdades, ferindo os direitos humanos, machucando o corpo humano.

Muitos jovens deste país poderiam ter calado, ter sufocado, ter consentido com o que se fazia e desfazia. Mas buscaram as ruas, as escolas, os parlamentos. Quando estes espaços foram cercados, ocupados e desfigurados pela força, foram obrigados à resistência e ao confronto extremo.

No limite do insuportável e do insofrível, abandonaram famílias, carreiras, amigos, afetos e a luz do dia para um combate desproporcional, arrojado, irrestrito, utópico contra a violência que atingia a todos.

Não fizeram aquilo porque eram mandados, comandados, teleguiados. Fizeram tudo aquilo porque queriam, porque sentiam, porque deviam, pelo justo imperativo da sobrevivência, pelo forte motivo da urgência, pelo simples dever de consciência. Arriscaram suas vidas, acabaram suas vidas lutando e combatendo por nossas vidas.

Foram resistentes, como a Resistência francesa que lutou contra o invasor e o opressor nazista. Foram inconfidentes, como os heróis da conjuração mineira que anteciparam o grito por liberdade. Foram combatentes, como os jovens do exército brancaleone de George Washington que desafiaram o Império britânico para estabelecer os fundamentos do regime democrático.

Foram insurgentes como os negros que combatiam o apartheid na África do Sul, como os povos de Angola e Moçambique contra o regime colonial de Salazar, como os frágeis camponeses do Vietnã que ao longo de décadas expulsaram de suas lavouras de arroz os impérios poderosos de chineses, japoneses, franceses e norte-americanos.

Lutaram pela liberdade contra a opressão de exércitos, regimes e sistemas que só sobrevivem à custa da liberdade dos outros.

Fizeram levantes sancionados pelo direito imemorial e universal da luta contra a tirania.

Guerrilha não se confunde com terrorismo, definido sim pelo deliberado objetivo de infundir terror entre a população civil, sob o risco assumido de vítimas inocentes – como no caso do terror consumado do 11 de Setembro em Nova York, como no caso do terror frustrado da bomba do Riocentro no Rio de Janeiro.

É por isso que ninguém, nem mesmo um cínico, se atreve a escrever “terroristas de Sierra Maestra” ou “terroristas do Araguaia”. Eram guerrilheiros, não terroristas.

Terrorista era o Estado, que usou da força e abusou da violência para alcançar e machucar dissidentes presos, indefesos, algemados, pendurados, desprotegidos diante de um aparato impiedoso que agia à margem da lei, na clandestinidade, nos porões, torturando e matando sob o remorso de um codinome, encoberto na treva de um capuz.

Terroristas eram os assassinos de Honestino Guimarães, Vladimir Herzog, David Capistrano da Costa, Manoel Raimundo Soares, Stuart Angel Jones, Manoel Fiel Filho, Paulo Wright, Zuzu Angel, entre tantos outros.

“A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram”, ensinou Ulysses Guimarães, no dia da promulgação da Constituição de 1988. “Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”, reforçou Ulysses.

Aos guerrilheiros que combateram a ditadura, minha emoção.

Aos cínicos, meu lamento.

Senhoras e Senhores,

A hipocrisia nacional diz que a mera lembrança desses nomes e fatos não passa de revanchismo, de mera volta ao passado.

Uma médica chilena, torturada em 1975 e eleita presidente em 2006, desmente isso: “Só as feridas lavadas cicatrizam”, ensina Michelle Bachelet. O Supremo Tribunal Federal teve, no ano passado, a chance de lavar esta ferida. E, vergonhosamente, abdicou desse dever.

Apenas dois dos nove ministros do STF – Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Brito – concordaram com a ação da OAB, que contestava a anistia aos agentes da repressão. “Um torturador não comete crime político”, justificou Ayres Brito. “Um torturador é um monstro. Um torturador é aquele que experimenta o mais intenso dos prazeres diante do mais intenso sofrimento alheio perpetrado por ele. Não se pode ter condescendência com o torturador. A humanidade tem o dever de odiar seus ofensores porque o perdão coletivo é falta de memória e de vergonha”.

Apesar da veemência de Ayres Brito, o relator da ação contra a anistia, ministro Eros Grau, ele mesmo um ex-comunista preso e torturado no DOI-CODI paulista, manteve sua posição contrária: “A ação proposta pela OAB fere acordo histórico que permeou a luta por uma anistia ampla, geral e irrestrita”, disse Eros Grau, certamente esquecido ou desinformado, algo imperdoável para quem é juiz da mais alta Corte e também sobrevivente da tortura.

A anistia de 1979 não é produto de um consenso nacional. É uma lei gestada pelo regime militar vigente, blindada para proteger seus acólitos e desenhada de cima para baixo para ser aprovada, sem contestações ou ameaças, pela confortável maioria parlamentar que o governo do general Figueiredo tinha no Congresso: 221 votos da ARENA, a legenda da ditadura, contra 186 do MDB, o partido da oposição. Nada podia dar errado, muito menos a anistia controlada.

Amplo e irrestrito, como devia saber o ministro Grau, era o perdão indulgente que o regime autoconcedeu aos agentes dos seus órgãos de segurança. Durante semanas, o núcleo duro do Planalto de Figueiredo lapidou as 18 palavras do parágrafo 1° do Art. 1° da lei que abençoava todos os que cometeram “crimes políticos ou conexos com estes” e que não foram condenados. Assim, espertamente, decidiu-se que abusos de repressão eram “conexos” e, se um carcereiro do DOI-CODI fosse acusado de torturar um preso, ele poderia replicar que cometera um ato conexo a um crime político.

Assim, numa única e cínica penada, anistiava-se o torturado e o torturador. Em 22 de agosto de 1979, após nove horas de tenso debate, o Governo aprovou sua anistia, a 48ª da história brasileira. Com a pressão da ditadura, aprovou-se uma lei que não era ampla (não beneficiava os chamados ‘terroristas’ presos), nem geral (fazia distinção entre os crimes perdoados) e nem irrestrita (não devolvia aos punidos os cargos e patentes perdidos).

Mesmo assim, o regime suou frio: ganhou na Câmara dos Deputados por apenas 206 votos contra 201, graças à deserção de 15 arenistas que se juntaram à oposição para tentar uma anistia mais ampliada.

Um dos mentores do ‘crime conexo’ era o chefe do Serviço Nacional de Informações, o SNI, general Octávio Aguiar de Medeiros, signatário da anistia de agosto de 1979.

Menos de dois anos depois, em abril de 1981, um Puma explodiu antes da hora no Riocentro, no Rio de Janeiro. Tinha a bordo dois agentes terroristas do Exército: o sargento Guilherme do Rosário, que morreu com a bomba no colo, e o capitão do DOI-CODI Wilson Machado, que sobreviveu impune e, apesar das feias cicatrizes no peito, virou professor do Colégio Militar em Brasília.

Em 24 de abril passado, em trabalho admirável, os repórteres Chico Otávio e Alessandra Duarte, de O Globo, revelaram ao país a agenda pessoal do sargento morto, a agenda que o Exército considerou desimportante para seu arremedo de investigação. Pois lá estão anotados os nomes reais (sem codinome) e os telefones de 107 pessoas, de oficiais graduados a soldados, de delegados a detetives, passando pelo Estado-Maior da PM e o comando da Secretaria de Segurança. Nessa ‘Rede do Terror’ que conspirava para endurecer o regime não consta o nome de um único guerrilheiro. Todos os terroristas, ali, integravam o aparelho de Estado, patrono da complacente autoanistia que não satisfazia nem seus radicais.

O nome mais ilustre da agenda é Freddie Perdigão, membro de um certo ‘Grupo Secreto’ organização paramilitar de direita que jogava no fechamento político. Perdigão era coronel da Agência Rio do SNI do general Medeiros.

Nada mais cínico, nada mais conexo do que isso.

O ‘Grupo Secreto’ é responsável por algumas das 100 bombas que explodiram no Rio e São Paulo entre a anistia de agosto de 1979 e o atentado do Riocentro de abril de 1981, endereçadas a bancas de jornal, publicações alternativas da oposição, Assembleia Legislativa e às sedes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

Apesar da equivocada decisão do Supremo, o Brasil acaba de ser condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA por se eximir da investigação e punição aos agentes do Estado responsáveis pelo desaparecimento forçado de 70 guerrilheiros do Araguaia. “A Lei da Anistia do Brasil é incompatível com a Convenção americana, carece de efeito jurídico…”, criticou a Corte da OEA.

Em novembro passado, o Ministério Público Federal em São Paulo ajuizou ação civil pública pedindo a responsabilização civil de três oficiais das Forças Armadas e um da PM paulista sobre morte ou desaparecimento de seis pessoas e a tortura de outras 20 detidas em 1970 pela Operação Bandeirante (Oban), o berço de dor e sangue do DOI-CODI — a sigla maldita que marcou o regime e assombrou os brasileiros. O capitão reformado do Exército Maurício Lopes Lima é frontalmente acusado pelos 22 dias de suplício a uma das presas, líder da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Nome da presa torturada: Dilma Rousseff.

Agora presidente, Dilma Rousseff encara este desafio que intimidou os cinco homens que a antecederam no Palácio do Planalto a partir de 1985, quando acabou a ditadura: a punição aos torturadores do golpe de 1964.

Não será por revanchismo, mas pelo dever ético de todo país que respeita a verdade, a memória e sua história. Como fazem com altivez a Argentina, o Uruguai, o Chile ao lavar suas feridas, feias como as nossas.

Uma enorme frustração cabe aos dois presidentes que somam 16 anos no poder.

Fernando Henrique Cardoso, descendente de três gerações de generais e sociólogo de origem marxista, esperou o último dia de seu segundo mandato, em dezembro de 2002, para duplicar vergonhosamente os prazos de sigilo dos documentos oficiais que podem jogar luz sobre a história do país.

Lula, o líder sindical que nasceu do movimento operário mais atingido pelo autoritarismo, sucedeu FHC na presidência sob a expectativa de que iria corrigir aquele ato de lesa-conhecimento de seu antecessor. E Lula, cúmplice maior, não fez absolutamente nada para facilitar e agilizar o acesso aos registros contingenciados pelos 21 anos de regime militar.

O sociólogo e o metalúrgico, assim, nivelaram-se na submissa inércia dos últimos 16 anos de governos tementes à eventual reação da caserna e seus ex-comandantes de pijama.

Dilma Rousseff, com maior hombridade que seus antecessores, pode limpar essa mancha. Seu governo apoia, no Congresso, o projeto que impõe limites estreitos para documentos hoje com sigilo infinito. Aprovado, o texto estabelece um prazo de 25 anos para o sigilo máximo de ‘ultrassecreto’, renovável uma única vez.

Senhoras e Senhores,

O governo, qualquer governo, faz mal à imprensa.

A imprensa, toda a imprensa, faz bem ao governo – principalmente quando critica.

Governo não precisa do ‘sim’ da imprensa. Governo evolui com o ‘não’ da imprensa.

A proximidade da imprensa com o governo abafa, distorce o jornalismo. A distância entre governo e imprensa é conveniente para ambos, útil para a sociedade e saudável para a verdade.

Jornalismo é tudo aquilo de que o governo não gosta. Tudo aquilo de que o governo gosta é propaganda.

Certa vez, o segundo presidente da ditadura, general Costa e Silva, queixou-se das críticas da imprensa. Sua interlocutora, a condessa Pereira Carneiro, dona do Jornal do Brasil, esclareceu que eram apenas “críticas construtivas”. O general, sempre franco, foi direto ao ponto: “Mas o que eu gosto mesmo é de elogio!…”

Isso é uma grande injustiça com Costa e Silva. Ele não era o único. Todos os presidentes acham e querem a mesma coisa, só não dizem.

A transição de poder de Lula para Dilma permite notar, neste campo, uma evidente evolução. A boa novidade surgiu já no primeiro discurso da primeira mulher presidente, na noite de sua vitória:

“Disse e repito que prefiro o barulho da imprensa livre ao silencio das ditaduras. As criticas do jornalismo livre ajudam ao país e são essenciais aos governos democráticos, apontando erros e trazendo o necessário contraditório”, falou Dilma, enunciando algo impensável na cabeça de seu loquaz antecessor.

A imprensa, numa definição mais simples, deve ser o fiscal do poder e a voz do povo. Com o estrito cuidado para não inverter esta equação.

A função primordial da imprensa está acima e além do governo, de qualquer governo.

O leitor vive hoje, no Brasil, um certo momento de desconforto. O debate em torno do governo separa, reduz e rebaixa a imprensa. Um maniqueísmo feroz divide os meios de comunicação, em suas variadas plataformas, num jogo de perde-ganha, de simpatias e antipatias, amor e ódio, admiração e repulsa, que se retroalimentam e se excluem. Parecem duas torcidas ferozes que vão ao estádio não para exaltar ou vaiar o jogo no campo, mas para brigar na arquibancada.

O reducionismo político das últimas eleições divide veículos e profissionais em dois campos aparentemente incompatíveis: PT x PSDB, Lula x FHC, petista x tucano, governista x oposicionista, independente x adesista, golpista x chapa-branca, blog sujo x blog limpo…

É uma regressão lamentável ao estágio exaltado da imprensa da primeira metade do século 20, quando os grandes jornais e seus principais jornalistas tinham forte alinhamento partidário, num momento político em que o Brasil se dividia em torno da figura de Getúlio Vargas, encarnação do bem e do mal para devotos e desafetos.

Mais do que simpatia, os veículos tinham então linhas de aberta empatia partidária, regular afinidade publicitária e velada contribuição financeira.

Quando cai na armadilha do restrito conflito partidário, a imprensa se apequena e se distancia dos temas mais relevantes da sociedade, perdendo foco e relevância como jornalismo.

Qualquer tentativa de discussão mais serena sobre um tema específico se emaranha imediatamente na rede de desconfiança mútua sobre as motivações políticas e as preferências partidárias subjacentes. Como fogo na palha, isso se reproduz, em doses cada vez mais cavalares, nos comentários de leitores e internautas que assumem o controle do debate e desviam o foco para velhas pendengas que nada têm a ver com o texto original.

Tudo isso agravado por um mal insidioso que com frequência torna a Internet absolutamente insuportável e insofrível: a praga do anonimato.

Com o temerário respaldo dos portais, jornais, revistas e blogs, o inexplicável manto para aqueles que não ousam dizer seu nome é uma porteira aberta para o debate desqualificado, a troca de ofensas, as grosserias crescentes e a total sensação de perda de tempo. O tiroteio entre os internautas — limitado pelo recorrente embate tucano versus petista que parece resumir o universo — fulmina qualquer tentativa de um debate inteligente e enriquecedor.

O país vive uma completa democracia, que não se reflete na qualidade do que se vê e se lê no tedioso belicismo da Internet, com raras exceções. Nada, portanto, justifica o sigilo do nome e o abuso de codinomes engraçados ou ridículos que apenas ocultam a pobreza de ideias e o despreparo para a discussão inteligente. Eu, por princípio, só entro no espaço de comentários com meu nome, profissão e cidade, certo de que é um dever meu me qualificar perante quem me lê.

Espaço de uma justa e infinita liberdade, a Internet deveria simplesmente impor a regra da identificação a quem deseja usufruir de seu espaço democrático. Apenas isso. Imediatamente, resgataríamos o espaço e o tempo perdidos para os que não têm a coragem de expor suas ideias, boas ou ruins, com o próprio nome.

A Internet é uma ferramenta que impressiona, encanta, desafia e assusta. Especialmente a indústria da informação e o próprio profissional de imprensa.

Atitudes, comportamentos, decisões e requisitos precisam ser redefinidos para situar o papel do jornalista neste admirável mundo novo. Na vida compassada do século 19, o dia já tinha 24 horas, mas o jornal só tinha o livro como concorrente. Dava para ler tudo, da primeira à ultima página. Agora, no frenético século 21, o dia parece mais curto, e o jornal certamente vive uma crise de identidade.

Uma pesquisa da Associação Nacional de Jornais (ANJ) mostra que o leitor em 2001 gastava 64 minutos por dia na leitura do jornal. Seis anos depois, essa média baixou para 45 minutos. O jornal está sendo trocado pela Internet. Nesse período, o tempo diante da tela do computador pulou de 2 para mais de 3 horas diárias.

Em 2009, a ANJ registrou uma retração de 3.5% na circulação diária total no país, em relação ao ano anterior: a soma de jornais caiu de 8,5 milhões para 8,2 milhões de exemplares. É a segunda queda de circulação desde 2003, a primeira consecutiva. O Rio de Janeiro é o melhor exemplo dessa preocupante retração. Nos anos 1950, quando ainda era a capital, a cidade de 3 milhões de habitantes tinha 18 jornais diários, com tiragem diária de 1,2 milhão de exemplares. Hoje, com o dobro da população, o Rio tem apenas dois grandes jornais e 500 mil exemplares/dia.

Duas décadas atrás, a Folha de S.Paulo se gabava de ser “o 3° maior jornal do ocidente”, com uma edição dominical de 1 milhão de exemplares. Em 2010, a tiragem média despencou para 294 mil exemplares e a Folha ainda perdeu o primeiro lugar no ranking nacional para o Super Notícia, um jornal popular de Belo Horizonte, vendido a 25 centavos para as classes C e D e que atrai leitores com prêmios como panelas, faqueiros e bugigangas. No sábado, 30 de abril, dia seguinte ao casamento real em Londres, a manchete do maior jornal do Brasil tinha outro tema: “Tarado causa pânico em Sabará”.

Mês passado, num fórum sobre liberdade na PUC de Porto Alegre, o músico Lobão, um dos astros do rock nacional, compôs uma bela frase sobre o vórtice da era digital:

– As pessoas, com cada vez mais informação à disposição, estão cada vez menos informadas – disse Lobão.

Senhoras e Senhores,

Regimes fechados e controles rigorosos são ultrapassados pela disseminação da tecnologia, que tira a notícia das mãos exclusivas dos repórteres. Simples cidadãos, militantes da oposição ou transeuntes eventuais sacam de suas engenhocas — smartphones poderosos, vídeo-câmeras minúsculas ou netbooks de acesso mundial — e se transformam em repórteres acidentais e testemunhas oculares e virtuais da história que se desenrola à sua frente, nas praças, nas ruas, diante da varanda de seus apartamentos.

A derrubada de Hosni Mubarak no Egito, o cerco a Muammar Kadafi na Líbia e os solavancos da revolução popular que toma as praças das grandes cidades no norte da África são revelados, acompanhados e disseminados em primeira mão pelos cidadãos que vivem na carne os dramas políticos de seus países e seus regimes. Os jornalistas chegam depois, alertados pelas primeiras imagens disseminadas de forma amadora, embrionária, pelo povo armado pela tecnologia.

E os jornalistas ali chegados continuam se abastecendo dessa rede informal, espontânea, capaz de cobrir tudo, em todos os lugares, com imagens e detalhes que uma equipe reduzida de TV jamais conseguirá reproduzir.

É a informação multimídia, multiforme, multifacetada, onipresente, intermitente, onisciente, on-line, ao vivo, 24 horas por dia, numa overdose de mídias que pode esgotar o público e exaurir o repórter.   O jornalista destes novos e frenéticos tempos terá que se reciclar e aprender a conviver com tudo isso, extraindo desses avanços os recursos e as manhas que lhes concedam o exercício desse jornalismo numa realidade febril induzida pelas novas tecnologias.

Uma avalanche noticiosa que pode desnortear o repórter pela vaguidão, pela irrelevância, pela amplitude de um mundo onde tudo é notícia, tudo é noticiado, tudo é testemunhado e nada pode ser desprezado. A mídia impressa, premida pela concorrência, comprime prazos, corta custos, elimina espaços, reduz equipes e privilegia a informação mais curta, mais rápida, mais digerível. O espetáculo midiático concorre com o jornalismo, o supérfluo invade colunas, comentários, blogs e páginas editoriais em detrimento de temas de conteúdo mais sério.

Ontem, domingo, uma chamada num dos portais mais importantes do país destacava esta transcendental notícia: “Mulher acaba presa após dar mordida no lábio do namorado”.

A facilidade e a rapidez injetam comodismo e preguiça no repórter destes novos tempos. Cada vez menos gente se atreve a abandonar o ambiente refrigerado das redações cibernéticas mais avançadas. O contato direto e pessoal do repórter com a fonte é mediado, em nome da eficiência e do relógio, pelos recursos tecnológicos de praxe – celular, e-mail, videocâmara, laptop. Todos se conectam, se comunicam e se informam via tecnologia multimídia.

Um mês atrás, o escritor Gay Talese, que brindou o jornalismo com exemplos admiráveis de textos de fôlego e excelência, concedeu uma bela entrevista a Fernando de Oliveira, repórter de um pequeno jornal gaúcho, o Diário Regional, de Santa Cruz do Sul.

A oportuna reflexão de Gay Talese: “Um bom trabalho não é rápido, nem fácil. Ele demora um longo tempo, mas também dura um longo tempo. Muito do jornalismo de hoje é feito a partir de um laptop, de jornalistas falando de outros jornalistas. Eles procuram informações a partir da internet. Eles não falam com muitas pessoas…”

Talese diz que o jornalismo tem se tornado muito previsível: “Nada é profundo, pensado ou divagado. O jornalismo está se tornando preguiçoso, porque os jornalistas não querem se mexer. Estão perdendo todo o contexto da vida. Querem fazer tudo rápido, de maneira eficiente, sem perder nenhum tempo”.

O mestre do new journalism ensina: “Às vezes você aprende com o silêncio, com os momentos de indecisão. Mas você não vai conseguir isso utilizando o Google, um telefone celular, um gravador. Tem que sair na rua e cultivar uma relação, gastar tempo com ela”. Gay Talese chama isso the art of hanging out, ou seja, “a arte de sair por aí”. Ricardo Kotscho, o grande repórter, traduz tudo isso como “gastar a sola do sapato”.

No jornalismo da Internet, tudo é rápido, inodoro, insípido, frio. Os contatos são rápidos e telegráficos como os textos produzidos aos borbotões, sobre tudo e todos, nos portais, blogs e sites. Produções sem esmero de texto, sem revisão, sem muita reflexão. O velho ‘furo’ é medido em minutos, às vezes segundos.

Nada sobrevive às teclas do Ctrl-V / Ctrl-C, o batido Copiar/Colar que sustenta tanta produção e tanta pretensão, reproduzindo sem limites erros, estilos e imprecisões que ganham a eternidade na Grande Rede. Escrevendo na ordem direta, com a rapidez possível e a brevidade exigida, os repórteres são treinados a abandonar textos mais longos, analíticos, reflexivos. Não há muito tempo para reflexão. A pressa é uma virtude, a lapidação é um pecado demorado que trava e entrava a velocidade exigida de todos para tudo. Não há tempo a perder.

A chamada Web 2.0, que abriu o mundo da interconexão social, criou a rede de mão dupla que torna o usuário um personagem ativo do universo informático. Isso produz uma nova, desconhecida realidade no mundo da comunicação. Antes, o público leitor recebia passivamente, em suas casas, o jornal, a revista ou o programa de TV produzido, editado, escolhido e transmitido por empresas e jornalistas absolutamente hegemônicos sobre o resultado de seu trabalho. Eles decidiam o que, quando, como, onde e por quanto a informação seria gerada e transmitida para seus consumidores e usuários.

A Internet subverteu tudo isso, fazendo o usuário avançar sobre os territórios nunca dantes devassados das grandes mídias. O cidadão-internauta agora escolhe a mídia, o momento, a forma e o custo que mais lhe convém para receber a notícia, a música, o vídeo, a propaganda.

Acabou o jogo unilateral. Agora todos jogam, todo o tempo, em todos os lugares.

Qualquer um, hoje, pode ser um cidadão-usuário-internauta-jornalista. A comunicação não é mais um privilégio da grande indústria de mídia, controlada por big-shots ou pelos herdeiros presuntivos de famílias de sobrenomes quase aristocratas da imprensa mais tradicional. O poder não é controlado por ninguém e é moldado por todos.

Desde 2004 existe uma rede social nos Estados Unidos, chamada Digg (‘cavar’, em inglês), que tem 8,5 milhões de acessos por mês. O seu princípio é simples: os internautas votam nas notícias que mais lhes agradam, criando uma cotação onde blogs geralmente superam grandes portais. É o próprio usuário que qualifica e classifica as notícias, podcasts e vídeos mais importantes. O criador do Digg, Kevin Rose, um estudante de ciência da computação da Universidade de Las Vegas, Nevada, tinha apenas 27 anos quando fez a sua aposta: “Antes, era um punhado de editores que determinava o que iria para a primeira página do jornal. Agora, com o Digg, são quase um milhão de editores registrados e continuamente à procura de grandes notícias, informações, histórias e vídeos para expor à comunidade”, concede Rose.

É a consumação da “sabedoria das multidões”, expressão cunhada pelo jornalista John Heilemann, da revista New York. Fui lá no site testar o que o milhão de sábios do Digg escolhia para minha leitura selecionada. Num sábado, 26 de fevereiro, descobri as coisas mais essenciais do mundo, naquele dia: um carro elétrico que atravessou a Austrália, a descoberta no Texas sobre o efeito afrodisíaco da urina do macaco-prego macho sobre a fêmea, a mulher de Boston que perdeu a cobra de estimação no metrô, a vencedora do concurso “pior mãe do mundo” e a criação de um vírus para derrubar a blindagem dos computadores da Apple. Nenhuma das 17 notícias mais importantes do Digg, naquele dia, roçava no tema que atraía a atenção do mundo: o cerco ao ditador líbio Kadafi e os levantes populares que agitavam o mundo árabe.

As multidões, pela simples matemática, nem sempre são mais justas, ou ao menos sábias. Em agosto de 1934, 42 milhões de alemães foram às urnas para decidir num plebiscito se o chanceler Adolf Hitler deveria acumular o cargo de presidente da República, vago há duas semanas com a morte de Paul von Hindenburg. Mais de 38 milhões, 90% do eleitorado, aprovaram a acumulação de poder no homem que, cinco anos depois, arrastaria o mundo para o maior conflito bélico da história, que matou entre 50 e 70 milhões de pessoas.

O Führer gostou dessa atravessada idéia de sabedoria popular. Em abril de 1938, na Áustria já ocupada pelas tropas nazistas, Hitler promoveu outro plebiscito, desta vez com uma única pergunta ao acuado povo austríaco: “Você concorda com a reunificação da Áustria à Alemanha e você vota no partido do nosso líder Adolf Hitler?”. A cédula não era colocada diretamente na urna. O eleitor entregava a cédula a um gentil ‘fiscal’ alemão postado ao lado da seção eleitoral. Hitler ganhou com 99,73% dos votos.

A sabedoria das multidões, ainda hoje, pode privilegiar uma sesquipedal burrice.

Cerca de 2.200 km separam São Bernardo do Campo, em São Paulo, de Cocal dos Alves, no interior do Piauí. Na cidade paulista mora Maria Helena, de 27 anos. Na cidade piauiense vive Izael Francisco, de 14 anos. Ela é modelo e falante, ele é tímido e mora na roça com o avô analfabeto.

Maria acaba de ganhar R$ 1,5 milhão de prêmio, em dinheiro, como vencedora do BBB 11, o Big Brother Brasil, aquele programa da Rede Globo que atrai milhões de pessoas no país para acompanhar durante 11 semanas os diálogos patetas de garotas curvilíneas com garotos musculosos, todos transbordantes de hormônios e carentes de neurônios.

O professor de ética jornalística da Faculdade Casper Líbero, Eugênio Bucci, rotulou o BBB como “o mais deseducativo programa da TV brasileira, onde a fama justifica qualquer humilhação”.

Apesar disso, mais de 100 mil jovens brasileiros se inscreveram para o BBB que pode parar até a maior cidade brasileira: 40% de Ibope, sua audiência média, significam quase dez milhões de telespectadores, metade da população da Grande SP. No programa final, Maria recebeu, pelo telefone, 51 milhões de votos. Se fosse candidata a presidente, teria derrotado José Serra por mais de 7 milhões de votos e teria perdido para Dilma Rousseff por pouco mais de 4,5 milhões de votos.

Izael Francisco acaba de ganhar R$ 100 mil (15 vezes menos que Maria) em bolsa-educação como vencedor do Soletrando, quadro do programa “Caldeirão do Huck”, apresentado por Luciano Huck na mesma Rede Globo. Venceu 500 mil alunos de escolas públicas, selecionados em mini-seletivas que duraram seis meses em todo o país, num concurso empolgante para soletrar as palavras mais difíceis da língua portuguesa — algo impossível de alcançar no parvo paredão do Big Brother Brasil. Além da bolsa, o garoto ganhou um netbook. O terceiro colocado do BBB recebeu R$ 50 mil, dois carros e duas motos.

Izael Francisco pretende estudar para jornalismo (seja bem-vindo, Izael!) e se prepara agora para vencer a Olimpíada Brasileira de Matemática, marcada para agosto.

Maria Helena já acertou os números, assinou contrato e será a capa da edição de junho da revista Playboy.

Senhoras e Senhores,

A era digital ainda navega, com altos e baixos, neste turbilhão que confunde entretenimento com informação. Suas ferramentas ainda podem ser um estorvo. O Twitter, por exemplo. É um fenômeno ainda incompreendido. Em 2008 tinha 5 milhões de usuários. Em 2010, essa sábia multidão chegava a 175 milhões. Apesar do sucesso, que não me comove, continuo sem entender esse tal de Twitter.

O The New York Times revelou em março a lista das 10 pessoas no mundo que causam mais impacto no Twitter. Acertou quem disse que Barack Obama, líder da maior potência militar do planeta, não é “o cara”. O presidente dos Estados Unidos ficou com um modesto sétimo lugar.

O sujeito mais poderoso no planeta do Twitter, pelo conceito do número de vezes em que é citado pelos usuários do microblog, é um inofensivo jornalista de 35 anos. Mais grave: é um humorista da TV. Pior: é brasileiro. Muito pior: é gaúcho. E, para completar a piada: um jornalista gaúcho e torcedor do Internacional, coitado!

Rafinha Bastos, “o cara” do Twitter, é a estrela mais destacada do CQC, o programa de humor da Rede Bandeirante que prova que existe vida inteligente na TV brasileira — apesar do mau-humor crônico do senador Renan Calheiros.

Esta esquisita lista do top-ten da rede social levanta uma dúvida crucial: tem alguma coisa errada aí – ou com o Twitter, ou com o Rafinha, ou com o Obama. O Osama Bin Laden devia ter desconfiado…

Nas mãos de um político, o Twitter pode virar uma piada ou a prova de um crime. O então senador Aloísio Mercadante, apressado, anunciou pelo twitter a sua “demissão irrevogável”, revogada minutos depois pela conversa sedutora do presidente Lula. O que era piada, no caso Mercadante, virou ato de truculência e estupidez nas mãos do senador Roberto Requião. Irritado com uma pergunta pertinente, ele se vangloriou pelo twitter de ter confiscado o gravador de um repórter de rádio, que ele classificou de “provocador engraçadinho”.

Requião tuitou: “Numa boa, vou deletá-lo”. Foi o que fez o senador engraçadinho, num dos mais inacreditáveis atos de violência e censura praticada por um parlamentar após a ditadura. Devolveu depois o gravador com a entrevista apagada. Divulgou a entrevista na íntegra depois em seu site, com um argumento digno dos garotões de músculos avantajados do BBB: “Eu mesmo quis ter o controle da entrevista, sem trucagens”, explicou o mais novo e violento editor da imprensa brasileira.

Apesar da brutalidade, Requião corre o risco de ser mais um na multidão da impunidade. O presidente do Senado, José Sarney, amenizou a estupidez explícita como uma simples “questão de temperamento”.

Senhoras e Senhores,

A biografia é o fio condutor da história. Ela tem, sobre o jornalista, a atração que a luz exerce sobre os pirilampos. Uma bela biografia é isca segura para uma bela reportagem. O sedutor relato de vida das pessoas, simples ou poderosas, faz a diferença para o bom repórter.

Nada atrai mais o jornalismo do que o traço e o gesto das pessoas que movem o mundo, que geram ideias, que inspiram exemplos, que arrastam multidões, que transformam os tempos e ganham espaço cativo na estante da história e na memória dos homens.

O foco preferencial do jornalismo são as pessoas que dizem ‘não’, as pessoas que têm a coragem de dizer ‘não’, a coragem de enfrentar desafios, de contrariar interesses, de rebater dogmas, de fazer as perguntas mais impertinentes, mais abusadas, mais necessárias.

O ‘não’ mais corajoso da história foi o do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882). Ele enfrentou preconceitos, venceu suas origens culturais e superou restrições religiosas para recolocar o homem no seu devido lugar. Seu cérebro prodigioso desfez fábulas celestiais para nos situar, com humildade, apenas como o representante mais inteligente de um mundo animal que tem sua origem comum nas espécies selecionadas pelo elegante, caprichoso, indesmentível mecanismo da evolução natural.

Dizer ‘não’ a Deus e à Igreja, naqueles tempos inflexíveis da ortodoxia vitoriana, define a coragem e a grandeza eterna de Darwin.

Um segundo ‘não’ vem de um jornalista. Conservador, reacionário, imperialista, rabugento, desbocado, teimoso, beberrão e fumante compulsivo, Winston Churchill (1874-1965) foi grandioso nas atitudes inspiradoras, insuperável na elegância da melhor prosa inglesa, imbatível na fina ironia e invencível na determinação de enfrentar a mais assustadora ameaça do século 20: Hitler e sua ideologia totalitária. Seu granítico “não” salvou a humanidade da submissão ao nazismo. Em cinco dias decisivos de maio de 1940, entre a sexta-feira, 24, e a terça-feira, 28, a Grã-Bretanha estava assombrada pela rendição inesperada da França e o virtual esmagamento das tropas inglesas em Dunquerque. Churchill estava virtualmente só, inclusive dentro do gabinete, que procurava uma saída para o armistício com o III Reich.

Opondo-se a Lorde Halifax, o ministro das Relações Exteriores que apoiava a política do apaziguamento com Hitler desde Munique, o primeiro-ministro mudou a história ao dizer ‘não” à paz em separado. Se tivesse cedido, a Inglaterra teria saído da guerra e o nazismo triunfaria para sempre, com seus aliados da Itália e Japão.

Um terceiro ‘não’ veio de Ulysses Guimarães (1916-1992). Seu maior momento foi nas praças de todo o país, comandando multidões nas Diretas-Já, e sua melhor fala foi na noite de Salvador de 1978, no simbólico 13 de maio, quando repeliu de dedo em riste os soldados e os cães que tentavam acuá-lo, produzindo um ‘não’ encharcado de dignidade: “Respeitem o líder da Oposição! Baioneta não é voto e cachorro não é urna!”.

Ainda assim, na autobiografia que acaba de lançar, José Sarney ousou qualificar Ulysses como “um político menor”. Esqueceu de dizer que, diferente de Ulysses, ele foi o político menor que disse ‘sim’ ao Pacote de Abril de 1977 que fechou o Congresso, que cancelou as eleições diretas para governador e que inventou o monstrengo do senador-biônico.

No fecho da Constituinte, em 1988, Ulysses proclamou: “A censura é a inimiga feroz da verdade. É o horror à inteligência, à pesquisa, ao debate, ao diálogo”. Hoje, nesta segunda-feira, 9 de maio, completam-se 647 dias de censura ao jornal O Estado de S.Paulo, patrocinada pela família Sarney — agora sem baioneta e sem cachorro.

O quarto ‘não’, expresso pela costureira negra Rosa Parks(1913-2005), mudou a história dos Estados Unidos. Ela tinha 42 anos quando se recusou a ceder o lugar a um branco, no ônibus da cidade de Montgomery, e foi presa. O gesto incendiou Alabama e o país inteiro, que viu o primeiro boicote à segregação. Os negros começaram a andar a pé, de bicicleta, mula, carroça ou em táxis de negros que cobravam 10 centavos, a mesma tarifa dos ônibus agora vazios. A desobediência civil desatada pelo ‘não’ de Parks levou, um ano depois, em dezembro de 1956, à decisão histórica da Corte Suprema proibindo a discriminação na cidade, passo fundamental para garantir os direitos civis aos negros em todo o país.

Leonel Brizola também disse ‘não’. Às 3h da madrugada de domingo, 27 de agosto de 1961, as luzes estavam acesas nos porões do Palácio Piratini, em Porto Alegre, para um ‘não’ que mudaria a história do país. O governador gaúcho não aceitou o veto dos militares à posse do vice-presidente João Goulart e começou ali, pelos microfones das rádios Gaúcha e Farroupilha, uma série empolgante de discursos através da rede de 104 rádios em defesa da legalidade constitucional. Foi um movimento popular tão arrebatador que o general Machado Lopes, comandante do III Exército, não conseguiu dizer ‘sim’ ao golpe – e, nove horas após a primeira fala de Brizola, aderiu à Campanha da Legalidade, determinando o seu sucesso pela imprevista cisão militar.

Os Estados Unidos começaram a dizer ‘não’ à guerra do Vietnã na pequena aldeia de My Lay. Na manhã de 16 de março de 1968, um helicóptero sobrevoou o local bombardeado e notou corpos de civis com vida. Ao aterrissar, o piloto Hugh Thompson Jr. (1943-2006) percebeu que os soldados estadunidenses disparavam em mulheres, velhos e crianças. Discutiu com o comandante da operação sobre o resgate de civis feridos numa cabana, e o oficial disse que iria tirá-los dali com granadas de mão. Num gesto inédito na história militar americano, ele apontou as metralhadoras do helicóptero contra o pelotão americano, avisando que iria atirar se ele não recuasse. Recuou e várias vidas foram salvas. Mas já tinham sido mortos entre 350 e 500 civis, o maior massacre de civis na guerra do Vietnã.

Inicialmente perseguido por seus chefes, Thompson acabaria recebendo, 30 anos depois, a Medalha do Soldado, a mais alta condecoração do Exército para atos de heroísmo fora de combate. O ‘não’ de Thompson foi um ponto de inflexão no apoio à guerra em território americano. A partir dali, cresceram as manifestações pela retirada dos Estados Unidos do Vietnã.

O ‘não’ do capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho (1930-1994) impediu que a tropa de elite da Aeronáutica, o Para-Sar, treinada para salvar vidas, se tornasse um esquadrão da morte. Conhecido como ‘Sérgio Macaco’, ele disse ‘não’ ao nome mais temido da FAB, o notório brigadeiro João Paulo Burnier. No tenso ano de 1968, o brigadeiro era o expoente da linha-dura que imaginava explodir o Gasômetro, a central de gás encanado no Rio de Janeiro, ao lado da rodoviária, num momento em que 100 mil pessoas transitavam pelo local. A culpa seria jogada nos comunistas, pretexto para endurecer o regime. Apesar de ter sido preso, expulso da FAB e cassado em dezembro pelo AI-5 que ele abortou em junho, a recusa de Sérgio Macaco desarticulou o plano terrorista e salvou milhares de vidas.

Senhoras e Senhores,

Nossos poucos heróis e muitos vilões estão ao nosso alcance, com suas histórias de vida em busca de um repórter que tenha a arte de andar por aí, como prega Gay Talese, ou que se disponha a gastar a sola do sapato, como sugere Ricardo Kotscho.

Quando fui chamado para trabalhar na revista Veja em Porto Alegre, em 1971, o chefe da sucursal era Paulo Totti. Aos 32 anos, era o mais talentoso jornalista do Rio Grande do Sul, a melhor escola que um repórter poderia ter.

Em dezembro de 2007, cinco meses antes de completar 70 anos, Totti conquistou o Prêmio Esso de Economia com uma reportagem sobre a China, publicada no diário Valor Econômico.

O melhor jornalista gaúcho há 40 anos é ainda hoje um dos grandes repórteres brasileiros. É dele esta frase consoladora:

— A função do repórter é a única que vai sobreviver no jornalismo do futuro. Sempre vamos precisar, no futuro, de alguém que pergunte.

Totti disse e eu completo:

O importante – ontem, hoje e sempre – é duvidar e perguntar.

 

Espero que o título honroso que a UnB hoje me confere seja o reconhecimento não às respostas que obtive, mas às perguntas que fiz ao longo destas últimas quatro décadas.

 

Muito obrigado.

*Jornalista, em discurso na cerimônia de diplomação de Notório Saber em Jornalismo, UnB, 9-5-2011.

 

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 30/10/2012.

Padrão
Arte, Cinema, Cultura, Filmes, História, Música, Republicados

Gavilan*

Antes de mais nada, uma nota de louvor ao Sindicato dos Bancários, que fica ali no centro do Centro, bem no meio da Rua da Ladeira, General Câmara, para os menos velhos. Lá tem uma ótima sala de cinema, bem confortável, com bastante espaço entre as filas de cadeiras, excelente sistema de som, enfim, tudo o que uma boa sala de cinema precisa, sem luxos dispensáveis. E o preço da entrada inteira é 5 reais. Sim, não me enganei, CINCO reais. Ou seja, quando objetivo não é financiar as férias dos donos do cinema nas ilhas gregas, é possível aliar qualidade e preço justo.

Dito isso, o filme. O filme é uma obra de arte. À altura da personalidade retratada: Violeta Parra. “Violeta foi para o céu” baseia-se no livro de Angél Parra, filho de Violeta, que deve ser muito bom, a julgar pela sua versão cinematográfica.

O diretor, Andrés Wood, evitou todos os clichês que se apresentam como tentações a quem pretende rodar  um filme biográfico. Seria tranquilo, por exemplo, explorar o fato de Violeta ter sido cantada por Joan Baez. Ou mesmo toda a influência que ela exerceu na arte latino-americana, particularmente no campo da chamada canção de protesto (daí a sua relação com Joan Baez, Mercedes  Sosa). Mas não, ele trilhou outro caminho, mais perigoso, no que diz respeito às pretensões de sucesso de bilheteria do filme.

A narrativa é fragmentada e intercala cenas da infância e da juventude de Violeta, com outras, quando ela, mais velha, expõe todas as atribulações do seu espírito indômito (traços do sangue indígena, talvez) e revolucionário, contrapostas à sua busca constante por amor, refletida na relação carinhosa, sem deixar de ser firme, que tem com os filhos e com o próprio namorado. Permeando todo esse jogo de emoções e sentimentos, há uma entrevista dela para uma televisão chilena, que funciona como uma espécie de fio condutor que costura os elementos da narração.

No desenrolar dos eventos do filme, o que se apresenta é um ser humano extremamente forte e muitíssimo frágil ao mesmo tempo. A mesma mulher que desafia figurões da política e das artes e os chama a todos de “mierda”, depois que é orientada a jantar na cozinha de um evento, é capaz de protagonizar crises de ciúmes quase adolescentes. Essa abordagem acaba, de certa maneira, por desmistificar a imagem que tendemos a construir dos grandes artistas como ídolos perfeitos. Eles são, no mais das vezes, tão humanos quanto nós e mostrar isso é uma das virtudes da fita.

Violeta era uma artista na acepção plena da palavra e tinha a exata noção da qualidade e valor da sua arte, que, como ela mesmo definia, emanava da relação que tinha com o seu povo. A cena em que o namorado suíço pergunta porque havia tantos quadros no quarto em que eles se hospedavam em Paris e ela responde dizendo para ele não se preocupar porque eles iriam vender todos, é antológica, principalmente pelo seu desfecho. O cara diz que o Louvre não admite que sejam feitas vendas fora do museu e ela, com a naturalidade de um gênio da arte, diz simplesmente: “bom, então vamos ter que vender lá dentro”.

A interpretação da atriz Francisca Gavilan, que inclusive interpreta as músicas, é de arrepiar. Os outros atores também são excelentes, então não há nada a dizer do filme que não seja elogio.

Não vou ficar falando mais, porque não sou crítico de cinema tudo o que posso fazer é dar a minha opinião e esta diz que o filme é imperdível.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 31/7/2012.

Padrão
História, Imprensa, Jornalismo, Política, Republicados

Saudade do pau-de-arara*

Nos piores anos da ditadura eu era bem piá. Meus pais nunca tiveram nenhum tipo de atuação política que lhes pudesse causar problemas com a repressão. Pelo contrário, o político preferido da mãe era o Marchezan (o velho). O mais próximo que eu estive de alguma atitude rebelde na família foi quando a minha vó votou no Pedro Simon contra o Jair Soares. Entretanto, quando aprendi a ler, as coisas começaram a mudar, e então tenho certeza que se eu fosse um pouco mais velho e tivesse vivido aquele período já na juventude ou como adulto, hoje não estaria aqui escrevendo. E mesmo que tenha dito em uma postagem anterior que sinto saudade do tempo em que a gente brincava tranquilo na rua o dia inteiro, isso não quer dizer que eu achava que aquele período era melhor do que a democracia que vivemos hoje, com todos os seus problemas, que não são poucos.

Na postagem anterior eu falei que existem entre nós muitos saudosos dos anos de chumbo. Pois vejam o que foi publicado na última segunda-feira no Blog do Prévidi (previdi.blogspot.com.br) e tirem suas conclusões:

 
 
PENSANDO BEM

Na época da ditadura…
Podíamos namorar dentro do carro até a meia- noite sem perigo de sermos mortos por bandidos e traficantes.
Mas, não podíamos falar mal do presidente.

Podíamos ter o INPS como único plano de saúde sem morrer a míngua nos corredores dos hospitais.
Mas não podíamos falar mal do presidente.

Podíamos comprar armas e munições à vontade, pois o governo sabia quem era cidadão de bem, quem era bandido e quem era terrorista,
Mas, não podíamos falar mal do Presidente.

Podíamos paquerar a funcionária, a menina das contas a pagar ou a recepcionista sem correr o risco de sermos processados por “assédio sexual”,
Mas, não podíamos falar mal do Presidente.

Não usávamos eufemismos hipócritas para fazer referências a raças (ei! negão!), credos (esse crente aí!) ou preferências sexuais (fala! sua bicha!) e não éramos processados por “discriminação” por isso.
Mas, não podíamos falar mal do presidente.

Podíamos tomar nossa redentora cerveja no fim do expediente do trabalho para relaxar e dirigir o carro para casa, sem o risco de sermos jogados à vala da delinqüência, sendo preso por estar “alcoolizado”,
Mas, não podíamos falar mal do Presidente.

Podíamos cortar a goiabeira do quintal, empesteada de taturanas, sem que isso constituísse crime ambiental.
Mas, não podíamos falar mal do presidente.

Podíamos ir a qualquer bar ou boate, em qualquer bairro da cidade, de carro, de ônibus, de bicicleta ou a pé, sem nenhum medo de sermos assaltados, sequestrados ou assassinados,
Mas, não podíamos falar mal do presidente.

Hoje a única coisa que podemos fazer…
…é falar mal do presidente!

P.S.: e hoje podemos falar mal da PRESIDENTA!

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 18/7/2012.

Padrão
História, Ideologia, Imprensa, Jornalismo, Política, Republicados

Revoluções e rEVOLUÇÕES*

As Revoluções deixam marcas indeléveis na história da humanidade. As revoluções também, mas dessas a gente deveria se envergonhar. Há três dias se comemorou, embora eu não tenha visto nenhuma notinha nos jornais (impressos, radiofônicos ou televisivos), a passagem da data que marca simbolicamente o início da maior de todas as Revoluções, aquela que mostrou ao mundo que TODOS os cidadãos têm direitos. Já o 1º de abril (poderia ter data mais sugestiva?), é o dia da revolução que tentou mostrar que só alguns cidadãos têm direitos, ou melhor, que alguns cidadãos sequer merecem essa qualificação e não têm direito nenhum. Esta data sempre enseja comentários na mídia, principalmente dos saudosos que gostam de dizer que naquela época sim se vivia bem, com segurança, ordem, respeito e blá, blá, blá.

A história do Brasil se caracteriza pelas relações de compadrio e isso está bem claro em Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda e outros que tentaram interpretar o nosso belo patropi. Nos tempos do revolucionário (com R ou r?) Getúlio (“Bota o retrato do velho no mesmo lugar…”), era comum os amigos serem agraciados com cartórios e outros presentinhos. É por isso, por exemplo, que ainda hoje se veem placas como “Primeiro Tabelionato de Notas – Antigo Cartório Trindade” e coisas do tipo. O revolucionário período que teve início em 64, e que nos salvou, entre outras coisas, de mais um “ataque do monstro comunista”, foi pródigo na distribuição de cargos e empregos públicos aos correligionários. Muitos desses distintos senhores (e senhoras), cuja maior, senão única, qualificação era a capacidade de se relacionar e prestar favores para as pessoas certas, ainda andam por aí deixando seus paletós e casacos nas cadeiras.

E é aqui que eu entro no assunto que quero abordar. A abertura política elegeu como inimigo número 1 da sociedade o funcionário público. Sei que hoje se diz servidor, mas eu sou velho e além disso me soa melhor a ideia de exercer uma função do que a de servir. Independentemente da nomenclatura que se queira usar, o fato é que a partir do fim dos anos de chumbo ficou fácil bater em barnabé. Funcionário público virou sinônimo de marajá. Aliás, o célebre caçador está aí de novo, lépido e faceiro a presidir comissões no Senado…

Costuma-se dizer que funcionário público ganha bem. Mas em que dados essa gente se baseia para alardear esse tipo de coisa? Se a gente pegar dez caras que ganham 500 reais e dois que ganham 1.000, a média salarial vai dar 583,33. A coisa foi puxada pra baixo. Mas se acrescentarmos um outro que ganha 50.000, a média sobe pra 4.400. Este último número reflete a realidade? Muito menos do que o primeiro! Pois é, mas é esse tipo de manipulação que vira “informação” e denúncia na voz de um Lasier Martins, de um Rogério Mendelski, de um Diego Casagrande. Tem razão o jornalista que usa um horário nobre da TV, uma coluna de um jornal lido por milhares de pessoas, ou um microfone de 100kW para dizer que é uma aberração um funcionário de nível médio da Assembleia Legislativa receber 25 mil por mês para trabalhar 3 horas por dia. Só que pra notícia ficar mais completa, ele também tem que dizer que dezenas de outros funcionários da Casa muitas vezes não ganham um salário sequer compatível com as suas funções e os seus horários. E propugnar pela correção das duas distorções. Isso seria um jornalismo sério e ético. Mas não é isso que acontece na prática e a maneira atravessada que eles usam para prestar a informação forma uma ideia totalmente equivocada na cabeça da população, que passa a acreditar na verdade goebeliana que tem se fazer de tudo pra acabar com a “mamata” no serviço público.

Volta e meia os caras vêm denunciar o absurdo que é a aposentadoria integral do funcionário público, quando um “trabalhador comum” (e o funcionário é um “trabalhador incomum”?) se aposenta com um benefício muito menor do que era o seu salário na ativa. Só que eles largam essa conversa e se “esquecem” de explicar a situação como ela é de fato. O funcionário público contribui para a Previdência com um percentual de 11% que incide sobre todo o seu salário. Já o celetista paga uma faixa de 8 a 11% e somente até um determinado limite, a partir do que o seus vencimentos estão totalmente livres. Para que se entenda melhor, vou usar alguns números hipotéticos: um funcionário público e um trabalhador privado ganham um salário de 10 mil reais cada um. O primeiro recolhe para a Previdência todos os meses o valor de 1.100 reais, que corresponde à porcentagem de 11% do total dos vencimentos. Já o segundo vai pagar, arredondando os números, cerca de 400 reais, porque a tributação considera apenas o valor de 3.000 reais, enquanto os outros 7.000 estão isentos. Se essa situação perdurar durante 35 anos, até a aposentadoria de ambos, e a matemática continuar a ser uma ciência exata, a diferença vai ser bem razoável, creio eu. Repito que usei números hipotéticos, mas em essência é isso.

Além disso, o funcionário público, com exceção de alguns casos previstos em lei, não pode exercer uma segunda função remunerada, não é beneficiário do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, não pode acumular um cargo eletivo com a sua função pública, entre outras condições que o diferenciam de forma desvantajosa do trabalhador da iniciativa privada. Só que isso a nossa isenta e ética mídia sempre deixa passar ao largo.

Sobre a tão atual questão da divulgação dos salários já falei em outra postagem (INTERESSE: VALE O PÚBLICO OU O PRIVADO?), mas nunca é demais lembrar que os direitos humanos, cuja primeira notícia veio com a Revolução Francesa, não distinguem funcionários públicos ou privados. Se por um lado o cidadão, e aí se inclui o funcionário público, tem todo o direito de saber como o dinheiro do seu imposto é empregado, não se pode negar a este o direito à privacidade, como se fosse um cidadão de segunda classe. Então que se divulgue tudo, menos o nome e algumas informações de interesse exclusivamente particular (pensões, empréstimos, etc.). E, principalmente, que se transmitam  informações verdadeiras e completas, não pela metade e de forma distorcida, conforme certos interesses que sustentam a nossa imprensa gigante.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 17/7/2012.

Padrão
Educação, Legislação, Política, Racismo, Republicados

Universidade: universalismo de fato*

Tema de extrema relevância, com grande repercussão social, apaixonante, capaz de provocar debates e discussões acaloradas, que nem sempre primam pela racionalidade dos argumentos, isso tudo e muito mais é a política de reserva de vagas para negros nas universidades públicas brasileiras, popularmente chamada de sistema das cotas raciais, uma das chamadas Políticas de Ação Afirmativa, que, ao contrário do que se pensa comumente, deita suas raízes na Índia, em sua luta pela libertação do jugo britânico, e não nos Estados Unidos da América.

Há negros que são contrários, há brancos que as defendem; há quem diga que isso é coisa de “gente de esquerda”, na forma mais pejorativa aplicável à expressão, e os que apontam para uma omissão do Estado em problemas maiores, dizendo que ele usa as cotas apenas para dar uma satisfação à sociedade. Enfim, opiniões e posições há para todos os lados e é natural que cada um tenha a sua, ou as suas. O que me preocupa é quando as manifestações surgem de pessoas que exercem certo poder no contexto social e aqui me refiro especificamente aos jornalistas e comunicadores, que têm largos espaços nos órgãos de imprensa e não raro confundem liberdade de imprensa, tão cara ao regime democrático, com um certo tipo de libertinagem, que lhes permite emitir opiniões e sentenças peremptórias sobre os mais diversos assuntos, muitas vezes sem ter nenhum embasamento para isso. Para não me alongar muito, apenas cito como exemplos o Rogério Mendelski, cujas manifestações preconceituosas e sectárias não devem provocar surpresa em mais ninguém, e o pretenso intelectual David Coimbra, para quem tudo se resolveria com um sistema de cotas para as escolas públicas (está lá no blog dele, em 18 de maio).

Esse tipo de manifestação me levou a escrever sobre o assunto, que me interessa há muito tempo e sobre o qual procuro ler tudo o que me chega às mãos. Pretendo falar brevemente sobre um dos tantos argumentos usados pelos que são contrários ao sistema de cotas e que me causa um pouco de perturbação, que é a ideia que as cotas raciais deveriam ser simplesmente substituídas pelas cotas sociais, privilegiando o aspecto econômico, que, segundo alguns, nivela brancos e negros na pobreza. Na minha ótica, como se verá adiante, não é assim que a coisa funciona.

Começo por examinar o termo “universidade”, cujo primeiro significado no dicionário Hoauiss é “qualidade ou condição do que é universal”, página 2.807, da 1ª edição, de 2001. A segunda definição faz referência à ideia de instituição de ensino. Ou seja, a universidade, como instituição de ensino, deve, na medida do possível, como denota a origem da sua denominação, fazer uma reprodução do universo social, e esse inclui brancos, negros, amarelos, vermelhos, etc. Todavia, não é preciso muita pesquisa de campo para se verificar que não é essa a realidade da UFRGS, que é a que nos interessa no momento por ser a mais próxima de nós. Cursei alguns semestres de Letras e me lembro de pouquíssimos colegas negros. A bem da verdade, apenas de uma. Pobres, ou pessoas com condições econômicas desfavoráveis, havia em número considerável, se bem que longe do que talvez seja o ideal. Por outro lado, quando a minha esposa estava na faculdade de Odontologia, nunca vi um negro que fosse seu colega. E ela própria pode servir como representação de alguém que veio de uma classe social pouco ou quase nada privilegiada e chegou à universidade. De novo se observa que pobres há, ainda que poucos, mas negros inexistem. Conheci, em diversas áreas, inclusive na Faculdade de Letras, professores e profissionais que vieram de famílias pobres. Não me lembro de nenhum negro. Isto é, ainda que longe do que se espera, as classes economicamente desfavorecidas têm alguma representação na universalidade da universidade, com o perdão da redundância. Os negros não têm nenhuma. Pelo menos não que se possa considerar como tal.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal pôs fim a uma discussão sobre a constitucionalidade do sistema de cotas. Era o julgamento de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo DEM – Democratas – partido sucedâneo da ARENA –Aliança Renovadora Nacional -, de saudosa memória para alguns, que tem um programa extremamente conservador e que congrega em seus quadros políticos e militantes que defendem a pena de morte, a esterilização em massa, etc. Ideologias à parte, para quem tiver interesse, sugiro a leitura dos votos dos ministros, que está disponível no site http://www.stf.jus.br, e, no caso de desejarem um aprofundamento, há textos bastante esclarecedores,  com ótimas remissões, disponíveis em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa.

O professor Hélio Santos, doutor em Economia e Administração, e negro, tem uma frase muito significativa e sugestiva: “O problema foi o dia 14.” De fato, se pensarmos no dia 13 de maio como um marco da disseminação da luta contra o preconceito racial, tudo fica muito bonito. Mas e o dia 14? O que aconteceu a partir daí? Negros libertos? Sim! Trabalho, terras, bens, dignidade, condições mínimas para uma vida decente? NÃO!! E observem que não foi por questão estilística que optei por usar o termo libertos quando poderia dizer livres. Há uma sutil distinção entre libertos e livres. Os negros, ex-escravos, estavam, pós-abolição, fisicamente livres, mas na prática apenas deixaram de morrer pelo açoite para morrer de fome, pois não lhe foram dadas as mínimas condições para que pudessem levar uma vida que se pudesse dizer humana. Os que sobreviveram deram origem aos guetos e favelas que existem e se proliferam ainda nos nossos dias, em nossa sociedade “livre do preconceito racial”. E hoje estamos distantes apenas 124 da Lei Áurea, o que significa dizer que há entre nós descendentes diretos de escravos. Bisnetos, netos, até mesmo filhos. Eu, que não tenho ascendentes negros, senão que talvez remotamente, posso saber com exatidão das dificuldades que sente um desses, cuja origem escrava está logo ali, há pouco mais de um século? Obviamente não. Por outro lado, posso me considerar exatamente igual, no sentido de ter as mesmas condições de vida, como preconiza a Constituição Federal (“Todos são iguais perante a lei.”) a um negro com esse histórico? Também não. Diante dessa simples constatação, cai por terra o mito da igualdade racial no Brasil.

Vejamos o que diz o psicanalista Contardo Calligaris:

 

“Em meus primeiros contatos com a cultura brasileira, acreditei inevitavelmente ter encontrado o paraíso de uma democracia racial. (…) Mas essa sensação inicial não demorou muito tempo, pois logo tive a oportunidade, ao me estabelecer no Brasil, de analisar alguns pacientes negros. Bastou para descobrir imediatamente que minha impressão de uma paradisíaca democracia racial devia ser perfeitamente unilateral. (…) O mito da democracia racial é fundado em uma sensação unilateral e branca de conforto nas relações inter-raciais. Esse conforto não é uma invenção. Ele existe de fato: é o efeito de uma posição dominante incontestada. (…) Sonhar com a continuação da pretensa ‘democracia racial brasileira’ é aqui a expressão da nostalgia do que foi descrito antes, ou seja, de uma estrutura social que assegura a tal ponto o conforto de uma posição branca dominante, que o branco – e só ele – pode se dar ao luxo de afirmar que a raça não importa.” (CALLIGARIS, Contardo. “Notas sobre o desafio para o Brasil.” In: Anais do Seminário Internacional “Multiculturalismo e racismo: o papel da Ação Afirmativa nos estados democráticos contemporâneos.” Brasília: Ministério da Justiça/Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 1997. p. 243-245.)

Em 2004, a UFRGS convidou o então presidente da República Popular de Moçambique, Joaquim Alberto Chissano, um homem com um grande currículo de lutas pela emancipação dos países africanos, para ministrar uma Aula Magna, com o tema Cooperação África e Brasil no âmbito da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD). E vejam  o que ele disse:

“(…) E quero destacar um ponto que até pode ser polêmico mas eu sempre gostei de dizer coisas chocantes, inclusive para os meus colegas brasileiros presidentes da República e ministros das Relações Exteriores. Dessa forma, tenho ouvido que o Brasil é um país multirracial, um país onde não há racismo, um país de igualdade, onde cada habitante se sente com sangue brasileiro. Porém, muitas vezes me senti incomodado com essas expressões pois me pareciam não corresponder à realidade. A primeira vez que aqui estive, fui a Bahia e lá vi muito negro na rua, vi muito negro no mercado e Salvador me pareceu uma parte da África. Depois, tive encontros, reuniões de ‘business’ e senti-me, de novo, na Europa. Lá não vi nenhum negro, não senti a igualdade, o sangue brasileiro estava camuflado.” (“Cooperação África e Brasil no âmbito da nova parceria para o desenvolvimento da África (NEPAD): aula magna UFRGS 2004/ Joaquim Alberto Chissano”. – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.)

            As palavras do mandatário moçambicano, pessoa insuspeita para tratar do assunto, escancaram a realidade brasileira, que muitos tentam mascarar. Nas ruas, nos locais públicos, onde seria impossível evitar a convivência, os negros estão por todas as partes. Nos locais restritos, porém, palcos das discussões políticas e econômicas, que decidem como vai ser a vida da população, eles estão alijados da participação. Que “democracia racial” é essa que só se exerce onde é impossível evitar a sua prática? Mesmo lá, nos locais em que os negros estão, é pouco provável que os “democratas raciais” estejam à vontade dividindo seus espaços com essa “subclasse de cidadãos”.

Sobre o que diz o David Coimbra, referido antes, que a solução está na oferta de vagas reservadas para estudantes oriundos de escolas públicas, basta que se faça um pequeno resgate histórico de alguns anos, nos tempos em que o nível da escola pública era considerado bom, para que observemos que naquela época os negros não tinham acesso ao ensino proporcionado pelo Estado, pois não podiam dividir o espaço com os brancos. E isso não faz muito tempo. Expandindo a questão, há que se dizer que uma coisa são as cotas sociais e outras são as de recorte racial. Elas têm base em problemas diferentes e, consequentemente, visam à correção de distorções distintas. Se o problema fosse meramente econômico, me parece que seria razoável que o “Dr.” Coimbra defendesse também a reserva de vagas em concursos públicos não para portadores de deficiência e mulheres, mas apenas para portadores de deficiência pobres e mulheres pobres. Observe-se que temos aqui quatro tipos diferentes de discriminação: contra portadores de deficiência, contra mulheres, contra pobres e contra negros. Cada tipo com as suas particularidades, o que enseja a adoção de iniciativas próprias para combater cada um deles.

No início do ano, quando se discutia a adoção de reserva de vagas para negros nos concursos públicos estaduais no Rio Grande do Sul, a Procuradoria-Geral do Estado emitiu extenso parecer, do qual resgatei o trecho a seguir:

 “Diga-se, ainda, que as cotas raciais, se por um lado não são incompatíveis com as denominadas cotas sociais, por outro lado não as substituem nem por elas podem ser substituídas, sendo possível, isto sim, associação de critérios entre estas e aquelas. Mas há que se advertir que as cotas étnico-raciais, especificamente as dirigidas às pessoas negras, se justificam mesmo diante da possibilidade de adoção do critério de cotas sociais. Pois como demonstram os dados estatísticos e demais estudos sociológicos aqui trazidos ou referidos, há na realidade da exclusão e de desigualdades sociais uma perversa tônica em desfavor das pessoas negras. Mesmo dentro das margens de maiores desigualdades em que também pessoas brancas são abarcadas, as pessoas negras são as mais inferiorizadas, as mais discriminadas e as que estão submetidas às maiores desigualdades.

Por outro lado, as cotas raciais não têm objetivo único de atacar as desigualdades sofridas por negros e negras em seu viés econômico, senão que para além disso, buscam também sanar os aspectos culturais mórbidos de discriminação fundados no preconceito de cor, que é onde residem muitas das determinantes da própria desigualdade social e econômica.”  (Carlos César D’Elia, Procurador do Estado, Coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Parecer nº 15.703/PGE, 16/03/2012. www.pge.rs.gov.br/upload/estudosdireito1[1]cotasraciais.pdf.)

                Ou seja, um estudo abalizado, feito por uma entidade da estatura da PGE/RS, aponta que a discriminação racial vai além da questão econômica. Brancos pobres são segregados, mas negros pobres são mais ainda. Brancos ricos têm situação favorável na sociedade, negros ricos, porém, por maior destaque que obtenham, não escaparão dos olhares desconfiados. Alguém se lembra daquele caso, ocorrido há alguns anos, em que dois jovens negros que corriam para evitar o atraso para o vestibular da UFRGS foram abordados por brigadianos e acabaram de fato perdendo a prova? Eles eram filhos de um engenheiro, portanto a sua situação social certamente não era das piores. O que fez com que os policiais desconfiassem deles? Fossem brancos, o fato teria ocorrido? Foi a triste consumação daquela piada que diz: “branco correndo está atrasado, negro correndo está fugindo da polícia.” Diante dessa realidade, cotas sociais resolveriam o problema?

                Quando se diz que um aluno cotista está tirando a vaga de outro que apresentou melhor desempenho e por isso o sistema é injusto, apenas se está buscando uma simplificação do problema. Como bem observou o Ministro Marco Aurélio Mello, no seu voto por ocasião da ADPF citada:

“A meritocracia sem ‘igualdade de pontos de partida’ é apenas uma forma velada de aristocracia”. 

Ou seja, não basta apenas criar uma situação fictícia de igualdade, pela qual negros e brancos concorreriam nas mesmas condições. É preciso que essa igualdade seja alcançada lá nos pontos de partida e as cotas podem representar um instrumento muito eficaz para que se logre êxito nesse objetivo. A conta de mais negros nas universidades emana seus reflexos na sociedade, com mais negros com maior nível de esclarecimento em suas comunidades, que serão capazes de transmitir valores mais elevados aos seus pares. Em algum tempo teremos mais professores negros, mais médicos negros, mais dentistas negros (a propósito, alguém conhece algum?), enfim, mais negros ocupando posições de destaque e prestígio social e, como consequência disso, as práticas de preconceito e segregação tenderão a ser enfraquecidas.

                No mesmo sentido da argumentação do Ministro Marco Aurélio, está o posicionamento do renomado jurista Dalmo de Abreu Dallari:

 

“O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os primeiros em situação de privilégio, mesmo que sejam socialmente inúteis ou negativos.” (DALLARI, Dalmo de Abreu. “Elementos da Teoria Geral do Estado.” 25ª ed. São Paulo: Saraiva. P. 309. In voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186, em 25/04/2012.)

                Defendendo a adoção de medidas que, embora aparentemente contrárias ao princípio constitucional da igualdade formal, que é fictício e precário diante da realidade social, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos diz:

 

“(…) temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.” (SANTOS, Boaventura de Sousa. “Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural.” Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P.56. in voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186, em 25/04/2012.)

                      Não basta que sejamos iguais perante a lei. É preciso que sejamos iguais perante a sociedade, visto que não há um fator genético de diferenciação entre negros e brancos, segundo o qual estes supostamente teriam maiores aptidões ao desenvolvimento intelectual. É o que diz o representante da Fundação Ford, Jean Dassin:

 

“Em nove anos de funcionamento, o IPF comprovou definitivamente que talento intelectual e compromisso social abundam nas comunidades marginalizadas de todo o mundo em desenvolvimento e que o acesso à educação superior pode ser ampliado sem prejuízo dos padrões acadêmicos.” (DASSIN, Jean. “Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação da Fundação Ford.” In: “Acesso aos direitos sociais: infância, saúde, educação, trabalho.” São Paulo: Fundação Ford/Fundação Carlos Chagas. 2010.)

                Assim, a ideia que defendo, cuja validade pretendi certificar com a argumentação feita, é que as cotas sociais e raciais não são excludentes. Pelo contrário, elas se complementam e devem ser adotadas até o momento em que as discriminações sociais de toda a ordem tenham sido erradicadas, no caso particular do preconceito pela cor, que a democracia racial deixe de ser uma ficção jurídica e passe a ser uma realidade.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça Pra Baixo, em 26/6/2012.

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