bolsonarismo, Direito, Política

O que(m) diz o direito?

No mundo do direito penal, nada é a priori. Melhor dizendo, nada é simplesmente por ser. Qualquer coisa que seja, apenas passa a ser, no ordenamento jurídico, após uma atribuição. Não quero escrever um tratado de ontologia, ou melhor, quero, só que por razões evidentes não vou fazer isso, mas o que parece ser um conceito complexo, cheio de abstrações filosóficas, como linha geral é bastante simples e até óbvio, estando expresso no princípio que diz que não existe crime sem lei que previamente o defina.

Um grande amigo, Diego, me apresentou uma nova teoria do direito penal, mais especificamente sobre a questão dos delitos, que trata de coisas como que tipo de conduta é considerada crime, quando se pode exigir a aplicação da pena, quando se trata de dolo e quando é culpa, enfim. Essa teoria, desenvolvida por um sujeito chamado Vives Antón, e defendida no Brasil principalmente pelo procurador de justiça e professor no Paraná Paulo César Busato, atribui importância decisiva à linguagem nas conceituações de delito. Não vou entrar em maiores detalhes, inclusive porque não os tenho, já que recém tive o primeiro contato com a tese, que pretendo aprofundar. Entretanto, o pouco que vi fornece chaves importantes para entender algumas coisas que acontecem no braZil de Bolsonaro.

A mais superficial das análises vai mostrar que Daniel Silveira foi condenado por atos que foram, são e serão iguais em gravidade ou até menos graves do que os que os bolsonaros praticam há muito tempo. E esses atos, ou melhor, essas práticas, estão definidas como crime, tipificadas, para usar o jargão jurídico. Por que, então, o deputado marombado recebeu punição e os membros da família não? Claro que uma das explicações passa pela advocacia privada que o clã tem na PGR. Mas não é só isso. Há uma adequação da norma a cada caso, mesmo que esta seja pré-definida. Isso é típico da aplicação do direito e de fato assim deve ser, pois do contrário a administração da justiça se daria de forma autogestionada, bastando a existência da regra. A prerrogativa de interpretação da norma jurídica pelo órgão julgador, porém, enseja distorções gritantes. Eduardo Bolsonaro pode dizer que para fechar o STF não precisa de jipe nem de oficiais, mas Daniel Silveira não pode defender o fechamento do mesmo tribunal; Jair Bolsonaro pode subir em palanque, fazer ameaças e dizer que não vai cumprir as decisões da Corte, mas Daniel Silveira não pode deixar de carregar a bateria da tornozeleira eletrônica. Há uma clara flexibilização do princípio que diz que todos são iguais perante a lei. Tudo passa, então, pela interpretação das normas, que varia de acordo com quem as interpreta e, fundamentalmente, com o sujeito a quem elas serão aplicadas. Nos exemplos dados, é evidente que o neocomunista Alexandre de Moraes, consagrado constitucionalista, portanto conhecedor dos princípios do direito, sabe bem que uma coisa é condenar um inexpressivo deputado, usado como boi de piranha pelo sistema, e outra bem diferente é sentenciar o presidente da república ou um membro da família real (para evitar incômodos: a expressão família real contém ironia).

Para trazer outro exemplo, vamos lembrar o impeachment da presidenta Dilma, que teve como base a tal pedalada fiscal, que ninguém sabe direito explicar o que é, mas que todos/as, ou pelo menos quase todos/as que ocupam as chefias dos executivos, nas três esferas administrativas, usam e reusam. Por que Dilma foi impedida e outros/as não? Interpretações diferenciadas da norma. E, para evitar problemas, tão logo a presidenta foi afastada do cargo pelo golpe jurídico-parlamentar, a lei que trata das pedaladas fiscais, e consequentemente a sua interpretação, foi alterada.

Em outra situação, recentemente, a CPI(zza) elencou uma série de crimes de responsabilidade praticados por Jair Bolsonaro, alguns dos quais são reconhecidos até por organismos internacionais. Entretanto, o presidente da Câmara, a quem cabe abrir ou não um processo de impeachment, dá uma interpretação muito peculiar a cada um dos mais de cem pedidos de abertura de processo, muitos deles anteriores aos trabalhos do Senado, conferindo um destino único a todos eles: gaveta. Do mesmo modo, o Procurador-Geral da República, que tem a função institucional de autorizar procedimentos investigatórios contra o presidente, tem uma interpretação única sobre todas as notícias que chegam às suas mãos contra Bolsonaro, mesmo as que vêm diretamente do Supremo: Jair é inocente, arquive-se.

Outro caso marcante é o que envolve o ex-juiz, ex-ministro e ex-presidenciável, Sérgio Moro, cujos esquemas de interpretação da lei são tão particulares que permitiram que ele, apesar de magistrado, comandasse, segundo suas próprias palavras, uma operação judiciária que tinha o objetivo de suprir uma falha das forças políticas, aniquilando um partido e impedindo um candidato de concorrer à presidência da república. Hoje já foram lançadas luzes sobre a farsa judiciária chamada Lava Jato, mas as consequências funestas dela ainda estão surtindo os seus efeitos no governo protofascista que ela ajudou a levar ao Planalto. O mesmo Sérgio Moro, que abandonou a magistratura para se dedicar à política, disse, já como ministro do (des)governo cuja eleição foi por ele garantida, que, em alguns casos, basta o arrependimento para que se tenha o perdão. E assim o súper ministro Onyx Lorenzoni está legitimado a se lançar ao governo do Rio Grande do Sul, mesmo depois de ter confessado, em meio a um choro compungido, que fazia caixa 2. Para ilustrar essa flexibilidade interpretativa do comandante da Lava Jato, é interessante lembrar o que ele disse em 2017, na Universidade de Harvard: “Temos que falar a verdade, caixa 2 nas eleições é trapaça, é um crime contra a democracia. Corrupção em financiamento de campanha é pior que desvio de recursos para o enriquecimento ilícito”. (Fonte: https://sul21.com.br/ultimas-noticiaspolitica/2018/11/moro-sobre-caixa-2-de-onyx-lorenzoni-ele-ja-admitiu-e-pediu-desculpas/)

Os fatos aqui trazidos como exemplo, por sua notoriedade e grande repercussão, servem para comprovar as razões da Teoria da Ação Significativa, que citei no início do texto. Todavia, uma pesquisa rápida nas decisões judiciais cotidianas em matéria criminal vai mostrar que embora todos sejam iguais perante a lei, alguns são mais iguais que os outros. E assim, no país do bolsonarismo, vamos vivendo em absurda insegurança jurídica, sabendo que a aplicação do direito não obedece a critérios sólidos, em que pese a pré-definição das normas. Cada vez importa menos o que diz o direito e mais quem diz o direito.

Imagem de destaque copiada de: https://www.poder360.com.br/governo/aras-e-favoravel-a-bolsonaro-prestar-depoimento-sobre-interferencia-na-pf/. Acesso em: 5 de maio 2022.

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bolsonarismo, Política

FALTA ENVIDO!!

Numa das modalidades do Truco, uma dupla pode pedir a Falta Envido. A dupla adversária tem duas opções: não aceitar e perder um ponto, ou comprar a parada e ir pra disputa, caso em que a dupla vencedora ganhará pontos equivalentes aos que faltam para a que está na frente vencer o jogo. Pode parecer meio complicado, mas, como todo jogo de cartas, depois de algumas partidas a gente vai pegando a manha. Mas como no Xadrez, em que saber mover as peças não significa saber jogar, também no Truco não basta conhecer as regras determinadas, porque só a vivência do jogo vai fazer o bom jogador ou a boa jogadora. E do mesmo jeito que acontece no Pôquer, saber blefar é certamente o maior diferencial para ganhar. A Falta Envido, na perspectiva de quem está perdendo o jogo, é um ato de desespero. É o tudo ou nada. Se uma dupla está com 10 pontos à frente, por exemplo, faltando pouco para vencer, a dupla que está atrás pede a Falta Envido a cada rodada, mesmo sem ter jogo (blefe), contando que a outra vai fugir e assim poderá ir avançando ponto por ponto. Caso perca, azar, já estava perdido mesmo…

Ontem Bolsonaro pediu Falta Envido. E, como manda a tradição do truco, gritando.

Os sinais de isolamento estão cada vez mais evidentes. Faz tempo que Bolsonaro e Mourão já não falam a mesma língua, se é que algum dia falaram. O general (ou marechal?) esteve na Expointer na véspera do Dia Sete e exaltou o avanço no número de pessoas vacinadas, que foi fundamental para a realização da Feira com a presença de público, ao lado da adoção dos protocolos sanitários, como observou. Bolsonaro sabota a vacina, incentiva o não uso da máscara, faz questão de promover aglomerações, então a manifestação do vice-presidente teve tom notório de provocação.

Em algum momento de ontem, Mourão disse que por questões éticas não comentaria as declarações de Bolsonaro, como também já evitou em momentos anteriores. É evidente que ao se valer de princípios éticos para não comentar declarações de outra pessoa, está dizendo que é contrário a essas falas. Muitos pares de caserna de Mourão têm adotado a mesma postura, fazendo questão de se distanciar das loucuras bolsonaristas e desvincular as Forças Armadas das diatribes golpistas do estrategicamente tresloucado presidente.

Brazilian President Jair Bolsonaro (L) and his Vice-President Hamilton Mourao attend a ceremony marking the first 100 days of their government at Planalto Palace in Brasilia, on April 11, 2019. (Photo by EVARISTO SA / AFP)
Imagem copiada de: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/julgamento-tse-cassacao-bolsonaro-e-mourao/. Acesso em: 8/9/2021.

O fato de Mourão não ter estado ao lado de Bolsonaro nos palanques que o presidente frequentou ontem, assim como a ausência de outros ministros da linha de frente, mostra que os atos sempre foram articulados pró-bolsonaro e não pró-governo. Aceitar o contrário seria reconhecer que Mourão foi isolado do governo ou que não se importa com os rumos que ele vai tomar, mas a verdade é que quem deixou o governo é Bolsonaro. Se bem que para que isso seja verdade é preciso aceitar que algum dia Bolsonaro esteve à frente do governo, que é exatamente onde ele nunca esteve, uma vez que governa só para o seu cercadinho.

Bolsonaro foi o sujeito certo na hora certa que as elites encontraram para ocupar o espaço deixado pelas Esquerdas nas Jornadas de 2013, quando não souberam – ou acharam desnecessário – disputar o protagonismo dos atos e permitiram que se consolidasse o discurso que é melhor sem partidos. Bolsonaro se adequou tanto para ser a bola da vez que até este requisito cumpriu, sendo eleito por um partido de aluguel.

Não obstante seja um fantoche, Bolsonaro não é um imbecil. Um dos fatos que mais ocupou os/as analistas ontem, e certamente continuará hoje e pelos próximos dias, é a “convocação” pública do Conselho da República. Por que ele largou isso de forma quase aleatória, em meio a um discurso repleto de absurdos, em Brasília, e não repetiu quando se dirigiu a um público bem maior em São Paulo? Repito, Bolsonaro não é imbecil, e lançou um anzol para os peixes da grande mídia. Sabia que as produções dos jornais sairiam em desabalada corrida atrás das assessorias das autoridades que integram o Conselho da República, demandando precioso tempo nisso, e que os/as comentaristas entrevistariam juristas, cientistas políticos e toda a sorte de gente que adora ocupar o palanque midiático explicando durante horas coisas de importância bem menor. Tradução: cortina de fumaça.

Paralelamente, Bolsonaro acirrou o discurso de ódio e exortou o seu exército a atos extremos. Quando diz que não vai cumprir as decisões de Alexandre de Moraes, ele sabe que não está se referindo ao ministro de forma singular, mas sim ao Judiciário na totalidade. E, dizendo isso, sabe que a imbecilidade que o apoia vai se achar no direito de fazer o mesmo. Ele joga com a possibilidade de criar um caos absoluto na ordem social, o que vai atrair os holofotes da mídia e a opinião pública. Tradução: cortina de fumaça.

Poderia escrever folhas e folhas destacando cada frase de Bolsonaro cuidadosamente pensada com a intenção de provocar confusão, e cada ato previamente estudado para distrair o povo, como a aparição de Queiroz no meio do público. Mas isso não parece necessário. O que se tem aí de exemplo já é mais do que suficiente para mostrar que o desespero cresce na mesma proporção em que o clubinho começa a ficar restrito. Bolsonaro blefa porque sabe que quem tem o jogo na mão é a dupla adversária, então qualquer avanço de um ponto é motivo de comemoração. Enquanto ganha tempo com essas manobras aparentemente desvairadas, vai chuleando as próximas cartas para ver se a sorte lhe sorri.

Nesse Truco, o povo é a dupla que está na frente. Se souber jogar, o que significa recrudescer a pressão sobre as instituições e, principalmente, os agentes políticos, tomando as ruas em proporção cada vez maior, lotando as caixas de email de deputados e deputadas, senadoras e senadores, usando as ouvidorias dos órgãos, Ministério Público, Judiciário e outros, enfim, avançando em marcha acelerada contra o genocida, estará dando um passo importante para derrotar o bolsonarismo e recolocar o país no trilho da democracia. Entretanto, quem está acostumado a jogar Truco sabe que muitas vezes um bom blefador é capaz de virar um jogo perdido. Bolsonaro agoniza, mas enquanto não der o último expiro não podemos largar as cartas.

Imagem copiada de: https://www.notibras.com/site/multidao-ocupa-ruas-para-pressionar-forabolsonaro/. Acesso em: 8/9/2021.

*Imagem de destaque copiada de: https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/bolsonaro-raivoso-irritado-amargo.html. Acesso em: 8/9/2021.

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Política

Crônica de uma nau à deriva – Parte 2: o capitão

Desde que o ser humano se lançou pela primeira vez em aventuras náuticas se sabe que quando o barco começa a afundar os ratos saem na frente na corrida pela salvação. Na última sexta-feira, o ex-presidente da República de Curitiba pulou da barca. Também é da tradição que o capitão afunde com o navio. Às vezes mesmo por falta de opção.

O (des)governo bolsonaro é algo patético como nunca se viu na história recente da humanidade. Eu sempre fico na dúvida se o sujeito é tão mentalmente limitado como parece ser ou se isso é parte de uma estratégia muito bem engendrada de desviar a atenção para imbecilidades enquanto se levam os planos diabólicos em frente sem importunações. Ultimamente o presidente tem dado ares de imortalidade. Não faço referência ao grotesco episódio da suposta tentativa de assassinato, mas sim ao mandato. Já não é de hoje que se tem vários fatos consumados aptos a abrir processo(s) de impeachment com enormes possibilidades de condenação, mesmo que se considere a configuração putrefata do Congresso. E o homem não cai. Isso também pode ser uma estratégia da caserna, buscando o momento para o general assumir em condições ideais. Conjeturas, enfim.

Para fazer um histórico mais fiel das trapalhadas e das ilicitudes praticadas pelo Messias seriam necessárias muitas páginas de escritos, por isso o objetivo aqui é pensar apenas no que que aconteceu em relação ao ex-ministro e cabo eleitoral. Logo após a delação (ainda não) premiada, Bolsonaro foi às redes, seu palco predileto, dizer que em poucas horas faria um pronunciamento com o condão de restabelecer a verdade. O que se viu, porém, foi mais uma ária da Ópera-bufa que é este (des)governo desde o seu início. O quadro montado para a fala parecia querer reproduzir a imagem da Santa Ceia, apenas com a ausência do traidor, que, afinal, já havia feito o serviço. Durante quase uma hora, o Chefe do Executivo de um dos maiores países do planeta desfiou seu carretel de bobagens sem trégua nem pena da audiência mundial. Falou do desmonte do Inmetro; de como ficou magoado que a investigação do assassinato de Marielle tivesse para a pasta da Justiça mais importância que o seu próprio (mas… não foi consumado, foi?); se jactou pelas peripécias sexuais do filho número zero quatro; tudo isso e mais um monte de asneiras. Só não aprofundou o que realmente interessava.

Da perspectiva da manutenção do (des)governo, foi muito melhor não ter entrado em detalhes sobre a crise provocada pelo ministro demissionário, porque o pouco que fez já complicou a sua própria situação. Estou me referindo ao momento em que ele falou que o então ministro pediu que segurasse o Diretor da Polícia Federal até novembro, quando ocorreria a sua nomeação para o STF. Mesmo que tenha dito logo em seguida que não negociava cargos (ou algo parecido, o que não faz muita diferença no meio daquele festival de idiotices), essa referência foi uma confissão de culpa. Qualquer pessoa que tenha um cérebro minimamente apto a fazer a comunicação entre dois neurônios sabe que o ex-juiz não teria trocado uma promissora carreira na magistratura federal (promissora não pela competência, mas pelo papel desempenhado) pela aventura ao lado do descerebrado presidente da república sem a garantia de uma contrapartida que valesse a pena. Ao falar com toda a naturalidade do pedido de Moro para segurar o cargo do delegado até novembro, Bolsonaro não deixou dúvidas que esse era o acordo. E se esse não pode ser considerado o pior dos crimes – nem de longe o é – neste momento talvez seja o mais emblemático, porque escancara o tipo de artifício utilizado para o sucesso da empreitada fascista rumo ao poder. Ter no governo o homem que garantiu a eleição era ponto crucial para o projeto. E assim foi feito. E foram felizes pelo tempo em que durou o amor. A ruptura que ocorre agora pode ser algo que de fato não era esperado, como também pode ser mais um movimento de peças no tabuleiro do complexo jogo de xadrez armado (sem trocadilho) pela equipe bolsonarista. Isso porém, é coisa que talvez tenhamos a sorte de saber nos próximos dias. Ou talvez nunca saibamos, do mesmo jeito que quase tudo o que se sabe sobre a queda do inaufragável Titanic é especulação.

*Foto copiada do site https://jc.ne10.uol.com.br/politica/2020/04/5607293-paulo-guedes-nao-estava-descalco-no-pronunciamento-de-bolsonaro–era-uma-sapatilha.html, consultado em 27/4/2020.

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História, Política

Crônica de uma nau à deriva – Parte 1: o roedor

O ex-presidente da República de Curitiba chutou o balde. Há quem diga que foi o pior golpe externo sofrido pelo Messias no seu pontificado. Isso pode ser verdade, considerando que o ocupante do cargo máximo do Executivo nacional é pródigo em se autoflagelar e expor a própria imagem ao ridículo (refinadíssima manobra de diversionismo?). Algumas coisas, porém, exigem um pouco mais de atenção nos pronunciamentos que abalaram ainda mais a já frágil situação do (des)governo.

O ex-ministro-popstar, que, não esqueçamos, foi o grande artífice da tomada do poder pelo projeto bolsonarista, deixou escapar, propositadamente ou não, algumas coisas que sempre foram óbvias para quem quer que analisasse as conjunturas com um pouco menos de ódio. Ao dizer que nos governos Lula e Dilma não houve nenhuma interferência do poder nas investigações e processos, embora a corrupção tivesse grassado naqueles tempos (palavras suas), não fez mais do que confirmar os fatos, já que quadros políticos do mais alto escalão petista foram pegos nas operações da Polícia Federal e do MPF, e alguns julgados – e invariavelmente condenados, por vezes até sob meras suspeitas – pelo titular da 13ª Vara Criminal da Justiça Federal de Curitiba, inclusive. Ora, que governo que tivesse o ânimo de pautar as ações dos órgãos investigativos não o faria para proteger os seus, inclusive o presidente e depois a presidenta? Essa forma de corrupção não houve nos governos petistas, e isso foi dito pelo ex-ministro.

Por outro lado, o ministro demissionário, escancaradamente e sem nenhuma vergonha (nem cautela), jogou para a torcida na introdução da sua fala. Para afastar o que sempre se disse sobre a troca de favores, no caso a nomeação para o STF, falou que fez apenas uma exigência para aceitar o convite de integrar o (des)governo: que sua família não ficasse desamparada caso algo lhe acontecesse no heroico trabalho de combater a alta criminalidade. Se ficasse apenas nessa menção genérica, a questão poderia passar in albis, porém ele foi objetivo, dizendo que pediu uma pensão à família na sua eventual ausência, já que contribuiu por pouco mais de 20 anos à Previdência etc. Se isso é fato de menor gravidade, quase um crime de bagatela diante do que viria pela frente, é outro debate, porém que se constitui em ilicitude que em nada combina com a imagem de incorruptível paladino da ética cuidadosamente construída pelo ex-juiz, ninguém há de questionar.

Diz-se que a corrupção no Brasil foi trazida na frota de Cabral, tendo em Pero Vaz de Caminha relator da viagem, o primeiro corrupto. O pedido, ou melhor, a condição, conforme o próprio ex-ministro, não tem nenhuma sustentação legal, pelo contrário, trata-se justamente da troca de favores que tentava desconstituir. Moro nitidamente quis fazer média com o povo, consolidando a imagem do homem que se sacrifica pelo país, se importando pouco com a própria vida, mas que mantém a preocupação com a família, instituição tão cara no discurso que levou o projeto fascista ao poder. Porém, ao tentar construir essa narrativa, acabou por tropeçar nas palavras e se tornar confesso de ato de corrupção. Algo muito semelhante ao que fez o escriba d’El Rey nos idos de 1500.¹

A partir daí, o que se ouviu e viu foi algo que algumas pessoas muito bem chamaram de delação (ainda não) premiada. Cabe aqui, porém, mais um questionamento. Desde que assumiu as ações da Lava Jato, se transformando quase em parte de algumas delas, Moro se consubstanciou no cabo eleitoral perfeito de Bolsonaro, já que era responsável direto por botar atrás das grades o inimigo público nº 1 de boa parte dos brasileiros, lavando assim a alma de uma parcela da população sedenta por vingança contra algo que ainda não se sabe direito, mas que se especula. (Uma representante desta classe disse que não havia mais graça ir a Paris, pois era grande o risco de cruzar com o porteiro do prédio no aeroporto.² Lembram?) Mais do que cabo eleitoral, Moro, ainda como juiz, foi o fiador da eleição. Tê-lo no governo era questão estratégica para levar me frente o projeto. E um reconhecimento por serviços prestados, pois tirou de campo o único que poderia fazer frente a Bolsonaro na campanha. Fazendo uma analogia com o futebol é como se o árbitro que apita uma final de campeonato entre dois grandes rivais, e neste jogo prejudica um dos times a ponto do outro conquistar uma vitória relativamente fácil, fosse convidado para ser diretor do clube vitorioso logo ao fim do campeonato. É mais do que evidente que um juiz em franca ascensão não botaria no lixo uma carreira promissora na magistratura para se lançar num voo (cego) político ao lado de um sujeito tresloucado como Bolsonaro. Diante de tamanha aventura, talvez o cargo vitalício na Corte Suprema tenha sido apenas uma parte do acordo. A parte que ele decidiu abrir mão para agir como os roedores que abandonam o barco quando a água começa a entrar na casa das máquinas.

Mas, vamos pensar bem, será razoável que o ex-ministro privou da intimidade do chefe por pelo menos um ano e meio, contado só o tempo que durou o seu mandato, e somente agora conheceu o verdadeiro Bolsonaro? Ele não sabia que o corrupto presidente era no mínimo capaz dos crimes que denunciou, apesar de ter dito que não era novidade a tentativa de interferência do patriarca dos números (filho 01, 02, 03…) nas investigações da PF? Se não sabia mostra-se um homem de ingenuidade incompatível com os cargos que ocupou. Se sabia, era seu dever ético e legal, uma vez que ocupante do cargo de ministro, que denunciasse as práticas do seu superior. Em não o fazendo, Moro cometeu crimes típicos de servidor público, na melhor das hipóteses.

As pessoas que tinham em Moro um ídolo coadjuvante, escudeiro do … Mito, e que agora o elegem como o esteio moral da nação, por cair atirando para todos os lados, deveriam ampliar um pouco o campo de visão e tentar enxergar os pés dos seus santos, que talvez sejam de barro. Ou patas com garras afiadíssimas…

¹https://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/6367625

²https://www.geledes.org.br/o-perigo-de-dar-de-cara-com-o-porteiro-do-proprio-predio-danuza-leao-pede-desculpas-a-porteiros-e-leitores/

*Foto copiada do site https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-diz-nao-ter-compromisso-com-moro-no-stf-e-querer-evangelico-na-ancine/, consultado em 26/4/2020.

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Política

Hora de derrubar mitos

Não foi ontem que as pessoas progressistas e amantes das liberdades e da democracia descobriram que as coisas no Brasil vão de mal a pior. Nem foi no golpe engendrado para tirar do governo uma presidenta legitimamente eleita. Presidenta, aliás, que soube que não levaria a cabo o segundo mandato no exato instante em que o TSE proclamou a sua reeleição, em 2014. Naquele momento, o candidato derrotado anunciou que as forças conservadoras tornariam o país ingovernável. E cumpriu o prometido. Só que também não foi naquela ocasião que passamos a entender o que estava acontecendo. A gênese de tudo está no aeroporto, quando a socialite começou a encontrar o porteiro do prédio em Paris, e na Universidade, quando o filho preto da empregada pobre começou a dividir a sala de aula com a filha do patrão. (Sobre isso, recomendo “Que horas ela volta?”, filme brasileiro de 2015, dirigido por Anna Muylaert e magnificamente estrelado por Regina Casé.) “A Casa-Grande pira quando a Senzala vira médica”, foi o que disse a estudante Bruna Sena, ao ser aprovada em primeiro lugar para Medicina na USP, vestibular mais concorrido do país. E num país de elite historicamente escravocrata, como é o  nosso, quando a Casa-Grande pira, as consequências podem ser trágicas.

A eleição de um projeto autoritário e com matizes notadamente fascistas, porém, não é fruto somente de uma insatisfação das elites. Acreditar nisso é seguir trilhando o caminho de um erro que já provocou um resultado devastador. É preciso ir além, é preciso olhar para o nosso interior e detectar precisamente o ponto em que começamos a nos equivocar. A avaliação mais precisa do contexto político que se estabeleceu nas eleições deste ano não foi feita por um cientista político e nem por um jornalista, mas pelo rapper Mano Brown. E aconteceu durante um evento do próprio Partido dos Trabalhadores. Ao dizer que o PT deveria voltar a dialogar com as bases, Mano Brown não fez mais do que a crítica que o próprio partido deveria ter feito internamente há muito tempo e que vinha sendo feita, a bem da verdade, por alguns quadros históricos, como Olívio Dutra. Mas da mesma maneira que a dura reprimenda feita corajosamente por Mano Brown às vésperas do pleito não significou que ele estivesse “passando para o outro lado”, ou “dando um tiro no pé”, como tentaram dizer algumas figuras petistas de expressão, também as reflexões de Olívio não o afastaram das lutas democráticas. Pelo contrário, Olívio, do alto de seus mais de 70 anos, esteve engajado de corpo e alma na campanha pró-Haddad e Manuela, e no último sábado esteve de casa em casa em alguns bairros populares de Porto Alegre, fazendo a luta pela “virada”. E as palavras de Mano Brown, que certamente foram extremamente incômodas a quem sempre fechou os olhos para os erros cometidos pelo PT, estimularam a militância a seguir firme na busca por votos possíveis de inversão. Como depoimento pessoal, posso dizer que conquistei alguns votos para a chapa Haddad/Manuela a partir do discurso dele, pois algo que sempre incomodou e irritou os antipetistas é a incapacidade do partido em assumir os seus próprios erros. Quando o partido reconhece que não foi perfeito, as barreiras e restrições começam a ser relativizadas.

Todavia, a coisa toda não se explica somente por essas constatações. Há que se analisar também o caso do antipetismo, que teria levado milhões de brasileiros e brasileiras a eleger Bolsonaro e sua plataforma antidemocrática pela via da exclusão e da rejeição. Essa é uma meia verdade. Fosse a intenção do eleitorado bolsonarista tão somente barrar o PT, havia outras possibilidades, à direita e ao centro, ainda no primeiro turno. Alckmin, Marina, Amoedo e o próprio Ciro eram candidaturas viáveis a combater a ascensão petista, mas foram preteridas em favor de um discurso extremado, que agradou, sim, ao povo ávido por vingança. Eu escrevi vingança. O que pode agradar mais a chamada classe média do que a promessa de poder se vingar de quem lhe ameaça a segurança? E nesse caso, pouco importa se quem promete nada fez pela segurança pública nas últimas trés décadas, mesmo ocupando um cargo político importante. O cidadão mediano, que vive com medo de ser assaltado na rua, é seduzido pelo canto da sereia que representa a possibilidade poder usar uma arma de fogo para se defender. E empolgado com essa ideia, certamente não vai buscar informações sobre o que realmente está por trás dessa conversa, sobre que interesses serão contemplados com isso. Sequer essa pessoa vai se informar sobre o que acontece em países cuja posse e porte de arma de fogo é facilitada, como os EUA. A ele basta sonhar que vai poder dar um tiro na cara do assaltante, afinal, bandido bom é bandido morto. As causas que levaram esse bandido ao mundo da criminalidade também pouco lhe interessam, pois é suficiente que ele esteja morto. Se morrer um inocente, paciência, o próprio Messias já aliviou essa culpa. Ou seja, se há um componente de antipetismo na eleição do capitão, há muito mais do lado Mr. Hyde que habita o interior de cada “cidadão de bem”, que clama por justiça, mas quer ter o mórbido prazer de executá-la com as próprias mãos. Esse é o pensamento de quem reduz a luta pelos direitos humanos a uma defesa da bandidagem e é o pensamento que elegeu um projeto que afirma abertamente legitimar o justiçamento.

Conforme muito bem observou um amigo, Marcelo Cougo, o eleitor e a eleitora de Bolsonaro são as únicas pessoas que acreditam que ele não vai fazer o que prometeu. Isso leva a uma situação surreal, em que o voto é dado pela certeza do não cumprimento das promessas de campanha. Pessoas minimamente politizadas e conscientes votam em candidatos/as na esperança de que cumpram com o que se comprometeram, caso sejam eleitos/as. Algumas até mesmo deixam de votar em qualquer candidatura por entenderem que nenhum/a agente político é capaz ou tem interesse em cumprir as suas promessas. Mas votar num candidato porque ele não vai cumprir o que prometeu parece ser um caso singular na história democrática do Brasil e talvez do mundo. Ao longo da campanha, circularam inúmeros vídeos que mostram Bolsonaro afirmando com convicção as suas ideias de defesa da tortura e de admiração por torturadores, por exemplo. E não foram falas descontextualizadas. Estão aí disponíveis no Youtube. Também é da própria boca do presidente eleito que se ouviu a exortação à expulsão dos adversários políticos do país, assim como a defesa da tese de que o voto não pode mudar nada, que é preciso um golpe e que se for necessário matar alguns inocentes, não tem problema. Não vou me dar ao trabalho de incluir aqui os links para essas declarações, porque é só jogar no Google. O bolsonarianismo, porém, insiste em dizer que não é bem assim, que ele não disse o que disse, embora esteja tudo gravado e registrado, ou que ele disse isso em contexto diferente, ou ainda pior, que ele estava só brincando. Se alguém se dispõe a brincar de elogiar o maior facínora e mais sádico torturador da história do Brasil no momento mais crítico da história política recente do país (o voto no processo de impeachment da Presidenta Dilma), a coisa é ainda muito mais grave.

Com isso quero dizer que o processo que levou Bolsonaro ao cargo político máximo da República não se explica pela ideia simplista do antipetismo, e também afirmo que o próprio antipetismo não se explica pelas próprias mazelas do Partido dos Trabalhadores. Todos esses elementos estão presentes, por óbvio, na eleição de Bolsonaro, mas o que está na origem de tudo é o desejo de vingança, o ódio que o “cidadão de bem” passou a nutrir por tudo aquilo que ele não pode explicar racionalmente, seja por incapacidade mesmo ou por preguiça intelectual. Ao fugir da análise dos fatos geradores das desigualdades sociais e optar por trilhar o caminho fácil da eliminação da “bandidagem”, o eleitorado bolsonarista escancarou a sua face fascista, gostem ou não os meus amigos e as minhas amigas que votaram no B17. A prova de que a luta não é anticorrupção é o elemento que se tornou simbólico dessa cruzada moralista: a camisa da CBF, uma entidade mergulhada na roubalheira e na corrupção. E a prova de que a questão central nunca foi a segurança é a falta (ou omissão) de conhecimento de que o presidente eleito não apresentou sequer um projeto na área da segurança pública em quase 30 anos de atividade parlamentar.

De um lado, então, cabe à esquerda e as forças do campo democrático uma reflexão séria sobre os próprios equívocos, e a união em torno de um projeto de resistência e reconquista do terreno perdido nas áreas sociais, a fim de que o projeto fascista representado pela eleição de Bolsonaro não consiga se consolidar. E ao eleitorado bolosonarista não assumidamente fascista (porque fascismo não se discute, se combate) cumpre fazer uma reanálise acerca do discurso de ódio que motivou a votação em massa na plataforma autoritária de um candidato que, agora eleito, tem sim as condições de cumprir tudo aquilo que prometeu durante a campanha e ao longo da sua trajetória na vida pública. É preciso, em resumo, derrubar alguns mitos para que possamos recolocar o país no rumo de crescimento em que estava há pouco tempo. A minha esperança é que isso não seja um problema muito difícil de resolver, porque, como ouvi muito durante esses últimos tempos, se ficar ruim a gente tira…

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