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Siga o chefe! Ou: de quando a hierarquia explica a violência

Farda e violência são palavras que ocupam o mesmo campo semântico. Desde que a humanidade passou a se organizar em sociedade, a criação de instituições destinadas à mediação das relações e dos conflitos decorrentes dessa estrutura comunitária se fez necessária. E na proporção em que as populações aumentavam e os grupos sociais ficavam maiores e mais heterogêneos, também essas instituições aumentavam em número e complexidade. Os órgãos responsáveis pela segurança do povo foram se tornando instrumentos importantes do processo civilizatório. Quando foi, então, que esses órgãos de segurança se transmutaram em órgãos de INsegurança?

Retomando a ideia inicial, as polícias e as forças armadas existem em função da violência, em todos os aspectos, seja na função institucional de conter a violência, seja na forma encontrada para fazer esse enfrentamento, baseada cada vez menos na inteligência e cada vez mais na própria violência. Claro que é uma afirmação a ser contestada rapidamente pelos defensores das organizações policiais e militares. Mas, como se costuma dizer, contra fatos não há argumentos e os acontecimentos das últimas semanas comprovam a hipótese.

Presidente Jair Bolsonaro assiste a demonstração de manobras táticas da Operação Formosa 2021, que contou com a participação das três Forças Armadas. Os exercícios contam com 2.500 homens da Marinha, Exército e Aeronáutica. O presidente acionou o disparo Obusteiro de artilharia, ao lado do ministro Ciro Nogueira (Casa Civíl). Sérgio Lima/Poder360 16.08.2021 Imagem copiada de: https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-teve-recorde-de-eventos-militares-antes-de-7-de-setembro/. Acesso em: 31 de maio 2022.

No que diz respeito aos órgãos de segurança fardados (polícias, forças armadas etc.), a organização se dá expressamente com base na hierarquia e na disciplina. O comando mais alto das forças armadas e a chefia do ministério da justiça, a que estão vinculadas as polícias, cabe à presidência da república. A minha conversa de hoje poderia terminar aqui, já que o mote são os assassinatos promovidos por agentes de órgãos de segurança nos últimos tempos. A observação de que a chefia desses órgãos é exercida por Jair Bolsonaro dispensaria maiores explicações sobre os fatos, mas vou avançar um pouco.

Nunca antes na história inteira do país de norte a sul (aqui lanço mão propositalmente da técnica discursiva de Olavo de Carvalho, que formou a base narrativa da extrema-direita desde os anos 90 e, por consequência, deu origem ao bolsonarismo) um chefe do executivo foi tão responsável pela violência praticada pelas instituições. Pode parecer absurda essa afirmação, afinal tivemos a ditadura do estado novo, a ditadura instituída pelo golpe de primeiro de abril e tantos outros momentos de regimes de exceção. Entretanto, que expressão usamos para referir os momentos mais sombrios do regime militar? Porões da ditadura. Os generais da época sabiam que as coisas mais cruéis não podiam ser feitas à luz do dia. E estamos tratando de um tempo em que não existia internet e muito menos câmeras de celular aptas a registrar tudo e mandar ao vivo para o mundo. Por que, então, hoje, uns caras se sentem à vontade para assassinar um homem de um jeito absolutamente brutal dentro de um porta-malas de uma viatura policial, mesmo sabendo que estão sendo vistos, ouvidos, filmados? Por que outros caras não têm nenhum receio de entrar numa comunidade periférica e metralhar aleatoriamente, matando gente trabalhadora? Por que um militar se acha no direito de tirar a vida de um homem que chegava em casa pela simples desconfiança que ele fosse um assaltante? A resposta é simples: porque sabem que o chefe vai dar apoio. Não foi o que fez Bolsonaro ao elogiar a ação polical na Vila Cruzeiro? Já quando foi perguntado sobre o assassinato de Genivaldo, a resposta foi lacônica: “Preciso me informar melhor.” Como se as imagens não bastassem.

Imagem copiada de: https://tribunasaocarlense.com.br/a-psicopatia-de-jair-bolsonaro/. Acesso em: 31 de maio 2022.

Os bolsonaros não só convivem bem com a violência como a incentivam. Se deleitam com o sofrimento alheio. São pessoas elas mesmas violentas e cruéis. Bolsonaro e seus filhos sequer podem ser comparados ao seu ídolo maior, o torturador reverenciado no voto golpista do impeachment. Brilhante Ustra, um dos homens mais abjetos dos tantos que esse país já pariu, praticava seus atos nas salas escuras e escondidas dos aparelhos do regime. Albert Hening Boilesen, o presidente da Ultragaz que financiou a ditadura e pedia para participar das sessões de tortura, não teria a ousadia de apoiar abertamente a violência extrema, como fazem Bolsonaro e seus filhos. Isso tem reflexo evidente na atuação das pessoas que de alguma maneira estão sob seu comando ou que, mesmo agindo por conta própria, se sentem autorizadas à violência.

A escalada da violência institucional e civil no país nos últimos anos está ligada diretamente à postura do presidente da república, que se diverte com assasinatos brutais e que faz piada com o sofrimento de quem perdeu familiares e pessoas queridas para uma doença cujos efeitos teriam sido muito menos devastadores se o (des)governo adotasse uma política eficaz de combate e não a estratégia de sabotagem praticada por Bolsonaro e os seus generais. Mas o que se poderia esperar de um homem que disse que não estupraria uma colega porque ela não merecia?; que disse que preferia ter um filho morto a um filho gay?; que disse que a filha nasceu de uma fraquejada?; que disse que o erro dos militares foi terem matado pouca gente?; que, perguntado sobre as pessoas mortas pela Covid, limitou-se a dizer que não era coveiro? Desta pessoa, que o melhor dicionário não me apresenta adjetivo para qualificar, não se pode esperar nada, a não ser sadismo, crueldade e violência. Mas eu posso esperar que o eleitorado de 2018, paradoxalmente iludido pelo não cumprimento das promessas de campanha, não cometa o mesmo crime quatro anos depois. Sim, porque o voto em Bolsonaro não tem outro nome que não seja crime. Se ao eleitorado de Bolsonaro no último pleito pode se conceder o benefício de ter sido responsável apenas indireto pelos crimes que ele cometeria nos próximos quatro anos, neste 2022, quem votar neste facínora passará a condição de coautor. E não terá o perdão da história.

Imagem de destaque editada pelo autor a partir de original copiada de: https://www.apostagem.com.br/2021/10/01/bolsonaro-usou-crianca-para-fazer-apologia-a-violencia-e-violou-o-eca/. Acesso em: 31 de maio 2022.

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Foda-se! A culpa é do Camões

No sábado passado ocorreu o 113.074.825º caso isolado de racismo no futebol brasileiro. Talvez algum tenha passado esquecido, então o número pode não ser exato, mas são casos isolados (não esqueçamos que desde os anos de 1930 sabe-se que aqui vivemos no paraíso da democracia racial).

Caralho e macaco têm de semelhança fonética apenas o fato de serem paroxítonas, como a maioria das palavras usadas pelo português brasileiro oficializado: ca-rá-lho – ma-cá-co. Se alguém diz foda-se, caralho, eu posso facilmente entender foda-se, carvalho e até foda-se, baralho, mas se no meio do caminho o caralho virar macaco alguma coisa está errada com o meu aparelho auditivo. Ninguém vai preso por dizer caralho. Pelo menos não só por isso. E aqui começa de verdade o problema, porque também quase ninguém vai preso por chamar outra pessoa de macaco. É sempre em tom de brincadeira ou algo dito no calor do momento. Se a coisa for adiante, a criatividade linguística do povo braZileiro resolve com um divertido mi-mi-mi (mi mi mi, talvez?).

Recordemos alguns fatos, sem precisar viajar no tempo, até a Liga da Canela Preta, por exemplo. Vamos ficar no século 21 mesmo. Antes, porém, aviso que não vou citar nomes, porque o tipo de gente que naturaliza o racismo é o mesmo que adora processar quem se insurge contra ele. Vamos lá.

Certa feita, o presidente de um clube de futebol porto-alegrense se defendeu de acusações de racismo dizendo que a sua empregada era negra; houve também o caso de um dirigente de outro – ênfase na palavra outro – clube de futebol de Porto Alegre que queria substituir o mascote histórico deste clube, por achar que aquela figura, recolhida do mais legítimo folclore brasileiro, fazia alusão ao uso de drogas e passava uma imagem de perdedor – a palavra é esta mesmo, perdedor – por não ter uma perna; recentemente, em reunião do Conselho Deliberativo de um clube de futebol da capital, que não digo ser um ou o outro, um importante conselheiro, que viria a ocupar cargo na gestão, manifestou-se com expressões de forte cunho racista, como “época negra” para falar de um tempo sem vitórias, e por aí afora. Confrontado pelo chat da reunião, que se realizava na modalidade virtual, fez pouco caso, tratando isso como mimimi (aqui uma terceira forma gráfica da expressão).

No plano coletivo, e aqui não se fala em nomes, parte da torcida do Grêmio, tem o hábito de entoar cânticos racistas contra a torcida do Inter. Por seu lado, parte da torcida do Inter entoa cânticos homofóbicos contra a torcida do Grêmio. E sabem como isso historicamente foi tratado pela crônica esportiva gaúcha? Folclore, que, neste caso, a riqueza linguística brasileira aceita como um eufemismo para mimimi.

Em paralelo aos casos de racismo que têm ganhado as manchetes nos últimos tempos, e que graças ao trabalho magnífico de entidades como o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, estão se deslocando do campo do folclore para ganhar um debate mais sério, tivemos recentemente a notícia de um torcedor do Brasil de Pelotas que se viu envolvido em uma briga de torcidas, foi detido, junto com tantos outros, pela Brigada Militar, deixou o estádio em condições físicas muito boas e hoje luta pela vida numa UTI. O que houve no trajeto entre o estádio e o hospital é objeto de investigação, mas ouvi hoje pelo rádio uma entrevista com o advogado da vítima, que categoricamente atribuiu a culpa a policiais militares e disse, ainda, que este torcedor teria falado, quando ainda estava consciente, em alerta às outras pessoas detidas, palavras mais ou menos como “Se me matarem vocês sabem quem foi”.

Esses fatos mostram uma vez mais que a violência, o racismo e a homofobia são naturalizados no futebol. Entretanto, o problema é bem maior, porque a violência, o racismo e a homofobia na sociedade estão não só naturalizados como, de certa forma, institucionalizados pela plataforma nazifascista que assumiu o poder em 2019. Bolsonaro e sua família estimulam esses comportamentos a todo momento e isso faz com que a massa descerebrada de seus seguidores se entenda no direito de fazer o mesmo. E isso acontece com a conivência, quando não com a participação ativa de pessoas que deveriam atuar no lado contrário. Em tempos em que o STF proíbe a criação de dossiês antifascistas ordenados por Bolsonaro – e isso é grave, porque atesta que eles existem e certamente vão continuar a ser produzidos ao arrepio das decisões dos/das neocomunistas da Corte -, já que estamos falando de futebol, ou de coisas que envolvem o futebol, não custa lembrar que homens de escol de um clube da capital se reuniram há uns três anos, para, entre vinhos e cervejas importadas e generosos nacos de filé num restaurante tradicional da cidade, estabelecerem estratégias de perseguição a torcedores e torcedoras deste clube que se declaravam antifascistas e realizavam ações de combate a essas práticas. Esses macartistas continuam dando as cartas no tal clube.

Tudo isso leva a uma constatação: o racismo, a homofobia e tantas outras formas de discriminação estão na estrutura social do país e não é lançando notas e manifestos, ditando decisões judiciais que não terão nenhum efeito prático, enfim, não é jogando para a torcida, para ficar no jargão futebolístico, que as coisas vão mudar. É preciso uma tomada de consciência por parte da sociedade no sentido de que é necessária uma varredura – para a lata do lixo e não para debaixo do tapete – de toda essa escória desumana que comanda o país e é tolerada, senão apoiada, por quem representa a sociedade em outras esferas, como no âmbito do futebol, que, como já se disse, das coisas menos importantes é a mais importante. Se não aproveitarmos os fatos lamentáveis que estão sendo noticiados diariamente para virar o jogo e recolocar o país no lado certo da estrada, vamos homologar a falência da sociedade humana. Ou talvez possamos simplesmente percorrer os escritos de Camões para ver que palavra ele usaria para expressar o mimimi.

Imagem de destaque: acervo do autor.

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O H da História

Acervo do autor.

Quando George Orwell defendeu a ideia de que a história é escrita pelos vencedores, os tempos eram outros. Notícias demoravam dias, semanas ou até meses para chegar aos lugares mais distantes dos grandes centros. Pior do que isso, muitas vezes nem chegavam. E como os grandes conflitos sempre deixavam um povo ou comunidade aniquilado, de fato quem dizia a história eram aqueles que venciam as guerras. Assim se construíram, por exemplo, os heróis do panteão nacional. E depois de consolidada uma narrativa, desfazê-la é tarefa dificílima. No imaginário da Guerra dos Farrapos, mito fundador do gauchismo, Bento Gonçalves é o grande herói do povo. Sabe-se que isso é mera narrativa e que o caudilho não era exatamente o libertário que a historiografia registrou ao longo dos tempos. A própria história da guerra é contada de forma distorcida, já que na prática a cada 20 de setembro o Rio Grande comemora uma epopeia em que a sonhada pátria gaúcha foi derrotada. Isso mostra o poder das elites na propagação de mentiras tomadas como registros históricos fiéis.

Em tempos de informação circulando em tempo real, já não se justifica uma atitude passiva em face da escrita da história. Nós somos responsáveis pelos fatos e devemos também ser pelos seus registros. Neste ano da graça de 2022, estamos na iminência de um desses momentos decisivos para a humanidade. Aproxima-se a hora de decidir como a história do povo brasileiro será contada a partir dos próximos anos e décadas. Não podemos terceirizar a nossa responsabilidade. Vamos deixar que se saiam vencedores os neofascistas que tomaram o poder em 2018? Esses, que são responsáveis pela morte de milhares de pessoas, seja pela negação da crise sanitária e o boicote às medidas de segurança (máscaras, vacinas etc.), seja pelo massacre dos povos originários em nome da expansão do agronegócio, é que contarão a história aos nossos/as descendentes? Seremos covardes a tal ponto?

A candidatura Lula/Alckimin é uma dessas coisas estranhas que o jogo político nos impõe. Outrora inimigos ferrenhos, agora andam de braços dados. Tão apaixonados estão que o tucano arrependido não se furta nem mesmo de fazer piada com o apelido, dado pelo próprio Lula, se não me falha a memória. A solução para o Brasil é lula com chuchu, anda dizendo por aí o Geraldo. Parece uma piada de péssimo gosto, mas qual a alternativa? O Ciro Gomes, que começou a carreira política na esteira da Arena, tem sólidas vinculações com as oligarquias nordestinas e abandonou a luta depois do primeiro turno de 2018? Ou será que a redenção do povo virá pela “terceira via”, esta coalizão de forças conservadoras e até reacionárias, descontentes por terem sido excluídas do butim bolsonarista?

Sim, Alckmin é um representante das elites e deve muitas explicações sobre as políticas do seu antigo partido, a começar pelo escândalo das merendas escolares em São Paulo. Sim, é absolutamente questionável o pragmatismo petista ao se aliar com esse tipo de gente em nome da sustentação de uma campanha e posteriormente de um governo. Lula usa Alckimin para vencer a resistência do empresariado, mas sabemos que alianças dessa natureza podem trazer consequências terríveis. Se de certa maneira funcionou com José Alencar e Lula fez governos razoáveis ao lado do grande capitalista, somos testemunhas do que aconteceu no caso Temer. Tudo isso é fato, mas neste momento, em que temos de decidir como a história vai ser contada, nada parece ser pior do que manter essa tarefa nas mãos do bolsonarismo.

Bolsonaro e seus filhos sintetizam tudo o que pode ter de pior em termos de política e da perversidade do ser humano, que, no caso deles, sequer merecem ser assim chamados. O patriarca e os filhos nº 1, nº 2, nº 3… são seres abjetos, que despertam os piores sentimentos em quem guarda dentro de si algum resquício mínimo de humanidade. Eles não têm respeito por nada nem por ninguém, talvez nem mesmo por eles próprios. São racistas, homofóbicos, xenófobos, divertem-se com o sofrimento alheio, têm torturadores como ídolos. Mas, querem algo ainda pior? O bolsonarismo é muito maior do que os bolsonaros.

Em breve a família bolsonaro vai ser vomitada para o esgoto da história. Quando não forem mais necessários, Jair Messias e seus filhos depravados vão ser descartados como lixo inservível, do tipo que não se aproveita nem para adubo, mas, se não cumprirmos o nosso dever, as pessoas que comandam o sistema continuarão ditando as regras e escrevendo a história. Elas estão por aí o tempo todo e em todos os lugares, às vezes como eminências pardas, entidades etéreas que não se comprometem diretamente com o trabalho sujo, e outras como participantes ativos das plataformas políticas do bolsonarismo, mas que permanecem inatacáveis. Paulo Guedes nunca é incomodado pelo Jornal Nacional, que é o mesmo veículo que não noticia o número absurdo de generais e coronéis que ocupam cargos nos escalões superiores. Esses atuam livremente no (des)governo, mas há ainda os que trabalham nos bastidores. Quem são os financiadores das motociatas de campanha de Bolsonaro? Onde estão os que incendeiam as terras indígenas e dizimam as comunidades tradicionais em nome da expansão de lavouras de soja e de campos de pastagem? Qual o esconderijo dos donos das mineradoras que provocam desastres ambientais que matam centenas de pessoas e acabam com a vida de milhares de outras? Todos esses são os verdadeiros bolsonaristas, mais do que a própria família miliciana.

A história vai sendo escrita dia a dia e a máquina produtora de escândalos diversionistas segue funcionando a pleno vapor. Daniel Silveira já é folha de jornal que embrulha o peixe, como também já foram para o esquecimento o ex-ministro que dispara arma sem querer em aeroporto e aquele outro que queria usar a pandemia para passar a boiada. Algum bolsonarista dirá: “Mas o que o MITO tem a ver com isso? Ele até demitiu os ministros corruptos!” Não vou perder tempo com esse debate proposto pela esquizofrenia bolsonarista. A hora agora é de limpar as lentes propositalmente embaçadas por essas bombas de fumaça e juntar forças para dar um fim à marcha nazifascista do bolsonarismo.

Imagem copiada de: https://belemonline.com.br/tag/bolsonaro-doente-bolsobnaro-internado/. Acesso em: 10 de maio 2022. (editada pelo autor)

Vamos pensar, pois, em nós como aqueles/as que vão escrever os livros de história das próximas gerações. E vamos entender a grandeza da responsabilidade que temos diante de nós daqui até outubro. Lula não é a solução imediata para todos os problemas do braZil, muito menos na desagradável companhia de Alckmin. Mas se queremos pelo menos poder reclamar algo a partir do próximo 1º de janeiro, sem meias palavras, é nele que devemos votar. Mas não é só isso. Devemos eleger parlamentares que tenham comprometimento com os interesses do povo, porque, é bom lembrar, de nada adianta eleger um Executivo bom – ou menos ruim – e deixá-lo à própria sorte nas mãos de um congresso apodrecido como o que temos hoje.

Diante da encruzilhada que se apresenta na estrada, temos de decidir entre ganhar as ruas agora para começar a mudar as coisas ou homologar a plataforma genocida do bolsonarismo. E depois de vencida esta etapa, não vamos acreditar que tudo estará resolvido. Há um caminho longo e este é somente o primeiro passo. Não vamos delegar a Lula e Alckimin a responsabilidade pela construção de uma sociedade mais justa. Isso nunca deu certo. Nos libertemos uma vez do sebastianismo impregnado pela nossa ascendência lusitana e passemos a nos ver como os donos e donas do nosso tempo, da nossa história. Só assim vamos começar a transformar o braZil em Brasil.

Se a História deve ser escrita por quem vence, vamos nós ser as vencedoras e vencedores. A primeira batalha é derrotar os bolsonaros, para, no segundo momento, destruir o bolsonarismo. E isso só será possível com a tomada das ruas, com a atuação forte nas comunidades, com as ações feitas pelo povo e no meio do povo. O voto certo será consequência desse trabalho. Ou é isso ou cumpriremos o ideal alertado por Chico Buarque e Ruy Guerra e nos tornaremos um grande império colonial. Temos agora um livro com uma página em branco aberta. Cabe a nós o que será escrito nela, se será uma história ou a História.

Imagem de destaque copiada de: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/09/elas-sim-ele-nao.html. Acesso em 10 de maio 2022.

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Guerras: escolha a sua

Os olhos do planeta se voltam para o leste da Europa. A guerra está deflagrada! Mas será que esta com que os noticiários ocupam 80 por cento ou mais do seu tempo é a única? Ainda, será que ela é a mais importante e a que tem efeitos mais imediatos e impactantes na nossa vida? Não quero nem entrar na questão das guerras que acontecem ininterruptamente há décadas em países africanos e que o ocidente libertador solenemente ignora. Nessas também se disputa fornecimento de energia ou exploração de minérios, mas seus protagonistas são de outra cor e não têm os olhos claros, então não despertam interesses humanitários das ONUs, OTANs e outras organizações do mundo livre, civilizado (e civilizador) e democrático. Eu quero mesmo é falar das guerras que travamos todos os dias, nas periferias das nossas cidades, e que eventualmente ocupam a pauta da grande mídia por terem chegado nas zonas nobres. Vamos ver o que há nisso.

Enquanto a guerra de Putin contra o mundo de bem (coletivo de cidadão de bem) se travava no discurso, um homem negro era espancado até a morte na beira de uma praia chique do Rio; em algum outro lugar, outro homem negro era assassinado por um militar que o confundiu com um assaltante; em outra praia, uma mulher é algemada com a sua amiga e levada à delegacia por ter ousado ficar com os peitos desnudos; em um estado do sul, um adolescente negro é suspeito de assaltar um supermercado, mesmo depois de ter confirmado com os seguranças se podia entrar com a sua mochila; em alguma periferia de alguma cidade, uma bala perdida encontra seu alvo no corpo de uma criança negra e um homem negro é fuzilado pela polícia dentro do seu carro, por que suspeitaram que ele tivesse roubado o veículo; uma mulher é brutalmente violentada e espancada pelo marido, uma menina de 5 anos é abusada pelo próprio pai, uma professora de uma escola tradicional é violentamente atacada nas redes sociais por falar em educação sexual com os seus alunos e alunas, um casal gay é atacado por neonazistas evangélicos…Acho que deu, né? Já tem guerra suficiente pra todo mundo por aqui também.

Imagem copiada de: https://www.oantagonista.com/brasil/moro-se-reune-com-temer/. Acesso em: 1º de mar 2022.

Mas vamos à guerra com o maior potencial destrutivo que está em curso. O Jornal Nacional ocupa o espaço que lhe sobra na narrativa antirrussa batendo em Bolsonaro por cima e por baixo. E, no intervalo, o agro é pop! O desaparecido Chicago Boy andou aparecendo na tela, com ótimas projeções para a economia nacional no pós-pandemia (quando será esse pós?). E a editoria do jornal, de forma (nem tão) sutil, começou a delimitar o que era ruim nos governos petistas, passou a ser bom em 2016 e voltou a ser ruim depois que Bolsonaro deixou de cumprir o que fora programado. Os dois anos do governo golpista foram, de acordo com o que se noticia, uma maravilha. E Bolsonaro estragou tudo ao conferir a si próprio uma autonomia inaceitável. Enquanto essa imagem se constrói veladamente no noticioso diário, a plataforma on demand lança uma série que requenta o Caso Celso Daniel.

Sobre isso, é legal uma atenção especial. Um querido amigo, meu compadre, muito antenado nas questões políticas e ávido consumidor de séries, disse que esta é muito bem feita e que afasta qualquer responsabilidade do PT pela morte do ex-prefeito de Santo André, ocorrida há 20 anos. Coisa que a Justiça já havia feito há bastante tempo, diga-se. Pois é sabido que vivemos tempos de imediatismo, em que as pessoas leem manchetes e saem deitando teses redes afora. Textos cuja leitura demande mais de 3 minutos, o tempo determinado para o sucesso comercial de uma canção pop nos anos 60, são descartados de forma arbitrária e implacável, mesmo que indiquem alguma possibilidade de terem sido bem escritos. Nesse mundo frenético, quem tem tempo de assistir com atenção e capacidade crítica a séries documentais? Um número restrito de pessoas, das que assistem séries, e que é ainda mais restrito em relação ao colégio eleitoral das próximas eleições, formado em sua maioria por pessoas que não têm a menor possibilidade de pagar pacotes de streaming, isso quando têm aparelhos de TV. Talvez se o meu compadre fizer um teste com essas pessoas e perguntar o que elas sabem sobre o caso Celso Daniel, muitas delas vão dizer que ele foi vítima de queima de arquivo do PT. E como elas não vão ver a série, muito menos ler bons textos sobre o tema, não saberão a verdade e ficarão com a mensagem subliminar (a Semiologia e a Linguística explicam) do nome Celso Daniel na cabeça. Então os processos mentais vão recorrer a informações prévias, arquivadas em algum lugar da cabeça, que dirão: Lula é o culpado! Está feita a narrativa e, assim, chegamos finalmente à pior das guerras, a das narrativas.

Imagem copiada de: https://marciokenobi.wordpress.com/tag/partido-da-imprensa-golpista/. Acesso em 28 de fev. 2022.

A partir dessa guerra suja de narrativas criadas ao sabor dos interesses das elites, e que incluem doses cavalares de notícias falsas (denominação antiga e em franco desuso para fake news), se delinearão as pesquisas de intenção de votos do Datafolha e outros. Com isso, a chance de permanecermos nessa marcha acelerada rumo à aniquilação das classes desfavorecidas do país cresce assustadoramente. E essa aniquilação tende a ocorrer muito antes do que o potencial bélico russo destrua o mundo civilizado. Por isso, é mais do que hora de pensarmos sobre que guerra devemos centrar nossa atenção. Não que a eventual terceira guerra mundial não tenha importância, longe disso, tem e muita. E é uma tragédia, como (quase) todas as guerras. Mas temos nossas guerras domésticas, que são diárias e nos impactam de forma muito mais imediata. E não são noticiadas. Quando o são, isso ocorre de forma distorcida e manipulada para embotar a visão da realidade e formar uma ideia míope que vai se refletir nas urnas. É hora, então, de segurarmos um pouquinho o desejo quase irrefreável de nos tornarmos autoridades em geopolítica e nos preocuparmos com a nossa realidade doméstica, que se não tem o glamour e o status de uma guerra nuclear, pode colocar em risco a subsistência de milhões de pessoas que vivem neste braZil nazifascista do bolsonarismo.

Imagem copiada de: https://ptnacamara.org.br/portal/2020/09/02/a-corrupcao-da-familia-bolsonaro/. Acesso em 28 de fev. 2022.

Você decide: qual a sua guerra?

*Imagem de destaque copiada de: https://domtotal.com/fato-em-foco/605/2020/07/violencia-policial-blindada-pela-impunidade/. Acesso em: 28 de fev. 2022.

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Top less na areia… dando cadeia

Num dia como hoje em 1980, um juiz, Manuel Moralles, determinou que na cidade de Sorocaba estavam proibidos os beijos. A população respondeu transformando a cidade num grande beijódromo. Quem nos conta isso é o Eduardo Galeano, n’Os Filhos dos Dias.

O fato ocorreu há mais de 40 anos, quando os generais já davam mostras de estarem querendo largar o osso (ou não). Passadas 4 décadas e um processo de reabertura democrática, seguido de alguns golpes e um retrocesso de cores nazifascistas, uma mulher resolve fazer como os homens e praticar top less na praia. Em vez de virar sereia, como uma vez cantou a Marina, ela e a amiga que se solidarizou foram presas. Ah, não, elas não chegaram a ir em cana, então talvez dê pra dizer que elas foram apenas… detidas para averiguação. Mas foram algemadas uma ao pé da outra, afinal, perigosíssimas atentadoras da moral e dos bons costumes, poderiam se evadir dos agentes da lei (lei?) e continuar a praticar as atrocidades obscenas praia afora. Apenas mais uma informação interessante: a despudorada nudista foi namorada da atriz Camila Pitanga.

Que país é esse em que mulheres são algemadas e humilhadas publicamente por simplesmente fazer algo que, como se sabe, os homens fazem sem nenhum tipo de importunação desde sempre? Eu respondo: o país em que a ministra dos direitos humanos e da mulher diz que meninos vestem azul e meninas vestem rosa e, ainda, que a culpa por abusos, violências e estupros de meninas acontece porque elas não usam calcinha. É o mesmo país em que o Ministério Público do Trabalho resolve intensificar as investigações sobre os processos escravizatórios no trabalho informal depois de um homem africano negro ser espancado até a morte por ter ido cobrar diárias pelo trabalho que fazia na beira da praia. É o mesmo país em que outro homem, negro, é claro, é confundido com um ladrão e morto a tiros por um militar, este que deveria ser treinado para o uso de armas e situações de risco. É o mesmo país em que o presidente de uma fundação criada para implementar políticas voltadas para as pessoas negras, ele mesmo um negro, nega o racismo e os efeitos devastadores da escravidão no país. É o mesmo país em que um homem que tem um dos maiores torturadores da história como ídolo maior, diz que a linha dura, aquela mesma que proíbe o beijo, matou pouco, diz que uma presidenta da república tem que deixar o cargo nem que seja vitimada por um câncer, e que uma sua colega de parlamento não merece ser estuprada por ser muito feia, neste país este sujeito, que disse e fez isso e muito mais, chega à presidência da república. Ele que é o patriarca de uma família da qual se diz sejam os filhos criminosos e milicianos e cuja única filha nasceu, segundo o próprio de uma fraquejada sua. Precisa dizer mais?

O povo brasileiro tem algo em torno de 9 meses, mais ou menos o tempo de uma gestação humana, para decidir entre dar aval à marcha protofascista que se instalou no poder a partir do golpe de 2016, ou fazer uma tentativa de virar o jogo, mudando a direção na busca de uma verdadeira redemocratização e um tempo de maior justiça social. E, é bom lembrar, o bolsonarismo não depende de bolsonaro e a Rede Globo já noticiou com indisfarçada satisfação que o ex-presidente golpista Michel Temer está livre da acusação de corrupção que sofria por conta de uma ação infiltrada no meio da Lava Jato, a fim de comprovar que a operação comandada por Sérgio Moro, o juiz, não tinha partido. E por aqui, a sucursal global insere programetes diários o tempo todo exaltando as novas façanhas do governador gay que não se quer gay governador. Ou seja, enquanto pessoas negras são mortas brutalmente por qualquer razão e mulheres são presas, ops, detidas e algemadas por exercerem a mesma liberdade dos homens, uma nova dupla pode estar sendo construída para ser a tão sonhada terceira via da Rede Globo.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/bolsonaro-o-gesto-da-arma-na-marcha-para-jesus-e-a-risada-cafajeste-dos-pastores-por-daniel-trevisan/. Acesso em: 8.2.2022.

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Tá lá o corpo estendido no chão: ou a arte de morrer na contramão atrapalhando o tráfego

Quando Danuza Leão lamentou o risco de encontrar o porteiro do prédio no aeroporto de Paris (https://www.geledes.org.br/o-perigo-de-dar-de-cara-com-o-porteiro-do-proprio-predio-danuza-leao-pede-desculpas-a-porteiros-e-leitores/), não estava expressando uma frustração meramente pessoal por ver que os espaços privativos do high society estavam ameaçados. A lógica que pobre só frequenta a universidade quando está trabalhando na construção do prédio estava sendo subvertida e era preciso fazer uma espécie de manifesto dando conta da insatisfação coletiva de uma classe que não estava acostumada a dividir o seu espaço com gente estranha. Naquele momento, Danuza assumia o papel de porta-voz de uma elite que se importa antes em manter a distância da “turma de baixo” do que com os próprios prazeres que as melhores condições econômicas podem oferecer. Poderia impregnar a conversa de uma ortodoxia marxista e examinar se Danuza integra a classe que detém o capital e os meios de produção, ou se é a contragosto integrante de uma classe “especial”, que é explorada, mas se recusa a aceitar e se enxerga no topo da pirâmide econômica. Isso não interessa agora, porém.

Algum tempo antes, um raivoso jornalista vociferou num telejornal de Santa Catarina contra os malditos miseráveis que naqueles tempos podiam comprar carros. As palavras do inexpressivo apresentador são tão chocantes que vale a pena reproduzir uma parte:

Se um desgraçado destes é atrop… – e esta é a palavra – se um desgraçado destes é atropelado e feito sanduíche na pista, o que é que vão dizer? Este trânsito insano!! Insano é o cara que para o camarada [sic], para o carro, atravessa a BR pra ver o que aconteceu com outra pessoa. Então é isso: estultícia, falta de respeito, frustração, casais que não se toleram [!], popularização do automóvel, resultado deste governo espúrio [o ano era 2010], que popularizou pelo crédito fácil o carro para quem nunca tinha lido um livro. Com a arrogância típica de quem é dono da verdade, o encerramento foi com um: É isso! (O comentário completo pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=4tbOIuPU5Vs&ab_channel=CRSS3.) Não vou entrar em detalhes sobre os estudos que mostram que os acidentes automobilísticos mais violentos são provocados por máquinas com preços de 6 dígitos e até mais, que, obviamente, não são pilotadas pelos desgraçados miseráveis referidos pelo colunista. Também não vem ao caso.

Na última terça-feira, estava ouvindo o programa Sala de Redação, e na transição para o Gaúcha Mais, quando costumeiramente ocorre um bate-papo entre os integrantes dos dois programas, o apresentador Paulo Germano fez uma referência à nova orla do Guaíba. Querendo destacar a democratização das áreas públicas da cidade, ele disse que as classes mais altas vão frequentar a beira do rio por conta da excelência do local, do alto nível dos equipamentos de lazer que lá serão disponibilizados (quadras de esportes, pista de skate etc.), enfim, atraídas pelo que de melhor aquele espaço vai oferecer. As classes mais populares também vão estar lá, segundo o comunicador, mas por uma razão diferente: é de graça.

É interessante observar rapidamente os perfis das pessoas que fizeram os comentários aí de cima. Danuza Leão é uma típica figura da geração Bossa Nova, a alta sociedade da zona sul carioca que fez sucesso entre a segunda metade do século passado e o começo dos anos 2000; já Luís Carlos Prates é um jornalista anacrônico, do tipo que não atende mais os requisitos das editorias modernas, mas que ainda encontra espaço aqui e ali em programas sensacionalistas ou em veículos com fortes vinculações com os interesses e as ideologias das elites. São, portanto, duas pessoas com uma trajetória de vida mais longa, que atravessaram um período de transição da sociedade, com grandes mudanças nos comportamentos e nas tecnologias. Assim, de certa forma é possível contextualizar as posições que elas expressam, absolutamente injustificáveis, mas compreensíveis. Assustador mesmo é o caso do Paulo Germano.

PG, como é conhecido, tem a imagem requisitada para trabalhar no jornalismo “sério” contemporâneo: jovem, descolado, com uma bagagem cultural interessante, transita com desenvoltura por assuntos diversos, como políticas públicas, música e livros (o fato de dia desses ter associado Bukowski aos Beats é – ou não – irrelevante), e é interessado nos acontecimentos diários da cidade. Assim o portal da Famecos o descreve: “Espontâneo e carismático. Um jornalista humano que consegue exercer a empatia em tudo o que faz. Paulo Germano Moreira Boa Nova, nascido em 17 de dezembro de 1982, sonhava em ser um pop star de sucesso mundial, mas acabou encontrando no jornalismo o sentido que tanto desejava para a sua vida.” (http://portal.eusoufamecos.net/muito-mais-que-profissional-a-famecos-me-formou-como-gente/).

Deixando Danuza e Prates de lado, pelos motivos mais ou menos já referidos, me intriga saber o que leva um cara com o perfil de Paulo Germano a expressar uma ideia tão datada e tão preconceituosa como a de que rico procura qualidade e pobre procura preço baixo. Como Marilena Chauí e Brecht já nos ensinaram que tudo é política, não vou me furtar do “mimimi” de colocar essa desimportante fala do jornalista da RBS num contexto mais amplo, de sustentação dos padrões segregatórios da sociedade moderna, das discriminações de todas as ordens, do racismo estrutural, do sexismo, da violência de gênero, enfim, de tudo o que de mais podre tem na mente humana e que reverbera nas relações sociais. Pego carona em Tolstói pra pensar que ao descrever um fato da aldeia, Paulo Germano está se manifestando quanto à cultura universal. Porque o que está por trás de uma fala aparentemente inofensiva dessas é tudo que está aí a sustentar essa sociedade de exclusão em que vivemos. Pensar num espaço público que é frequentado por umas pessoas pela qualidade e por outras só por ser gratuito é naturalizar a existência de pessoas de categorias humanas diferentes. É o tipo de pensamento que faz estranhar a presença de uma pessoa preta e pobre em um museu de arte, mas permite passar batido pela ausência de pessoas pretas e pobres em meio às que frequentam o Cais Embarcadero a passeio; é o tipo de pensamento que acha bobagem a preocupação em eliminar termos e expressões racistas e sexistas da linguagem diária, sob o argumento que apenas refletem costumes arraigados; é o tipo de pensamento que permite ver que Paulo Germano, David Coimbra, Cristina Ranzolin, Daniela Ungaretti etc. etc. etc., dividem os espaços da linha frente dos veículos da maior rede de comunicação do Rio Grande do Sul com a Fernanda Carvalho, e só com ela de mulher negra, além de nenhuma PCD, e achar isso normal; é o tipo de pensamento que talvez imagine que não há mulheres trans nem homens assumidamente gays nas faculdades de jornalismo ou que essas pessoas não têm competência e qualificação profissional para estar na RBS; é o tipo de pensamento que acha normal que o Jornal do Almoço dê início à programação comemorativa dos 250 anos da capital da europa brasileira sem fazer referência às pessoas negras que construíram a grandeza da cidade e que, quando aparecem nas matérias, é apenas pelos aspectos pitorescos que são construídos, como histórias de superação e exceção, dignas de admiração por pena e não por respeito e reconhecimento aos seus valores; é o mesmo pensamento que não vai mostrar a luta das comunidades indígenas da zona sul da cidade para manter a posse das suas terras e a sua dignidade, e que vai naturalizar que mães e crianças guaranis sejam tratadas como pedintes no Brique da Redenção. Redenção, a propósito, que é um nome lindo e cheio de significados, mas não oficial, porque o que está nos registros da municipalidade homenageia os grandes heróis (e abigeatários) farrapos.

Enfim, queiram ou não, a frase aparentemente sem importância do Paulo Germano transporta essa pesadíssima carga de discriminações e violências, mesmo que talvez ele não seja, como provavelmente não é, conscientemente racista e elitista. E este é justamente o problema maior que enfrentamos: o racismo quase nunca é consciente, assim como quase nunca o são a homofobia, a misoginia e tudo mais. Raramente vamos ver alguém dizendo abertamente: “Eu sou racista!” ou “Eu sou homofóbico!” Mesmo Jair Bolsonaro, que disse preferir um filho morto a um filho gay e comparou quilombolas com bois, não se assume como racista e homofóbico e tem um exército de seguidores fanáticos sempre de prontidão para defendê-lo dessas – e de outras – acusações. Assim, fica cada vez mais evidente que enquanto não pararmos de “passar pano” para essas veladas manifestações de discriminação (refiro-me às do PG), naturalizando e dando pouca importância a elas, não avançaremos nos processos verdadeiramente civilizatórios (eu prefiro mesmo chamar de humanizatórios) que precisamos implementar.

Em um conversa recente sobre essas coisas, o meu amigo Douglas Ricalde me fez atentar para o artigo 7º da Lei 12.711, de 2012, que trata da política de cotas nas universidades. Este artigo determina que no prazo de 10 anos a partir da publicação da lei, o programa deve passar por revisão. Isso vai acontecer no ano que vem e há duas possibilidades: por ser ano eleitoral, talvez o Congresso se dobre às pressões que deverão ser feitas pelas pessoas e grupos interessados não só na manutenção do sistema quanto no seu aperfeiçoamento; por outro lado, dada a terrível configuração do parlamento, formado em grande parte por gente ligada a todo tipo de interesse espúrio, há forte chance da lei ser até revogada. No embate que certamente vai se travar, cabe à sociedade civil e ao campo progressista pensar a articulação desde agora para que esta não seja mais uma política de avanço social a ser aniquilada pelas forças nazifascistas que comandam o país.

*Imagem de destaque copiada de: <https://edisilva64.blogspot.com/2018/09/quando-o-pobre-adere-ao-discurso-do.html&gt;. Acesso em: 5 de set. 2021. (A imagem foi editada para que não apareçam os rostos das pessoas.)

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Agronegócio, bolsonarismo, Direitos Humanos, Política, Rio Grande do Sul

A neve nos campos de soja: ou o estado das três capitais

O que não tem faltado ultimamente é assunto para a crônica política. Hoje poderia especular, por exemplo, o que está por trás do suposto desentendimento entre Bolsonaro e o chicago boy na taxação das elites. Poderia fazer um crossover de esporte e política, pensando que a rede goebbels, ops, Globo, poderia terminar de vez com o discurso quadrienal hipócrita da superação e do heroísmo dos e das atletas olímpicas do BraSil – que se superam e são heróis e heroínas – e usar todo o seu poder para cobrar incentivos reais dos governos e da classe empresarial para que o esporte seja realmente um caminho para melhorar o país. Seria legal ir mais especificamente a um ponto alto desta olimpíada, onde tem aqui sim um crossover maravilhoso que une Bach e MC João. E o Mário Frias? Não daria pano pra manga falar sobre a desgraceira cultural no braZil com essa gente no poder?

Imagem copiada de https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/07/4940245-planalto-homenageia-dia-do-agricultor-com-imagem-de-homem-armado.html

Só que esta semana um amigo me mandou por WhatsApp algo que ele escreveu. Este meu amigo é uma das referências mais importantes no meu envolvimento com coisas da política, desde as lutas sindicais do serviço público federal nos anos 90 e da formalização do Diretório Acadêmico Osvaldo Oppitz, no velho colegião do Direito da Ritter dos Reis, em Canoas, ainda nos 90’s. A análise que ele faz da conjuntura política do enclave europeu em terras brazilis é preciosa. Pedi autorização para compartilhar o texto e ele disse que sim, mas que por algumas razões não queria que fosse revelada a autoria dele. Sugeriu que eu assinasse como meu. Jamais faria isso! Seria uma sacanagem com ele, que mesmo com a sua decisão de anonimato respeitada, claro, é o autor; mas seria uma sacanagem ainda maior comigo mesmo, porque as pessoas que me leem esperariam daqui pra diante que eu escrevesse dessa maneira e eu preciso de muita estrada pra chegar perto do que o A… – ops, quase entreguei a rapadura! – faz. E, ademais, a proposta aqui é divulgar ideias e não autorias. Então, muito obrigado pela generosidade de partilhar o teu pensamento, meu querido amigo, e me permitir a honra de ser o teu porta-voz neste momento! Segue aí o teu texto, que agora é de todes.

“Hoje no Rio de Janeiro, faz 32 graus e quem pode, se mandou para a praia. Mais tarde, os infelizes cariocas vão tomar uma cerveja antes de dormir, escutando os inúmeros tiroteios que já fazem parte da ecologia acústica local. Quem sobreviver à Guerra Civil, poderá ver reality shows idiotas com pessoas mascaradas cantando.

O gaúcho empobrecido não se importa em andar de Havaianas no meio da chuva congelada. Importante mesmo é saber que os estancieiros da Farsul estão produzindo soja pelos poros e pressionando pela dragagem do Super Porto. Enquanto o gaúcho pobre, separatista de Extrema Direita e chauvinista odeia a China e denuncia o seu vírus fabricado em laboratório, os estancieiros gaúchos supremacistas brancos, risonhos e rechonchudos vendem soja para Pequim.

Imagem copiada de https://oglobo.globo.com/brasil/em-campanha-no-sul-bolsonaro-diz-que-nao-sera-jairzinho-paz-amor-23020818

É fato: os cariocas e os fluminenses são analfabetos políticos porque conseguiram eleger Jair Bolsonaro, seus filhos sádicos e o pastor Marcelo Crivella. Os cariocas gostam de figuras sebosas e criminosas que usam a política para se valer do Foro privilegiado. São portanto diferentes dos gaúchos: os gaúchos são politizados, e elegeram Antônio Britto, Germano Rigotto, Yeda Crusius, Lasier Matins, Ana Amélia Lemos, e o garoto do governo perfeito sem questionamentos, Eduardo Leite. Também conseguiram transformar em deputados Onyx Lorenzoni e Danrlei de Deus, e catapultaram ao senado o líder da SS local, Luis Carlos Heinze.

Heinze é um racista patético, bolsonarista inflamado e que não nega a gloriosa tradição ariana: lidera pesquisas para o governo do estado. Em 2014, então deputado federal, Heinze se referiu aos quilombolas, indígenas e homossexuais como “tudo o que não presta”. Eleito pelos europeus “o racista do ano” naquele longínquo 2014, Heinze agora se tornou famoso por dizer que Cloroquina cura de berne no gado à Covid. Naquele ano, nosso vereador de Rio Grande, Wilson Batista (PMDB), vulgo Kanelão, se nivelou a Luis Carlos Heinze ao dizer que na Democracia rural gaúcha, os negros podiam até comer em restaurantes. Os gaúchos elegem esta gente graças ao seu projeto: uma pátria que seja um Reich. Avante gaúchos da Gestapo!

Imagem copiada de https://www.correiodopovo.com.br/colunistas/eduardo-conill/senador-heinze-recebe-condecora%C3%A7%C3%A3o-1.511846

Os gaúchos colocaram Heinze no senado porque são politizados e inteligentes. São inteligentes graças à sua genealogia, pois conforme a RBS são todos brancos, não fazem parte do Brasil e estão no topo da ciência vitoriana, com sangue caucasoide. No Rio Grande do sul da RBS, qualquer um que morrer de hipotermia, estará dando a sua vida pelo grande projeto da pátria pampeana: o sonhado Reich local.

Enquanto as multinacionais lavam dinheiro em consórcios nacionais, e compram nossas estatais por preços de terrenos nos subúrbios de Rio Grande, os gaúchos empobrecidos, sem bombachas e sem chimarrão, guardam para si o único souvenir da enorme pátria pampeana que lhes resta: o frio. Há frio para todos aqui. Falo de frio de verdade. Há muito frio hoje no Rio Grande do Sul. O povo gaúcho é frio: odeia o magistério, odeia os indígenas, odeia os sem terra. O gaúcho não tem onde morar, mas defende o direito dos latifundiários armados. O gaúcho também é homofóbico, mas engole Eduardo Leite, porque ele é o gay que não afronta os estancieiros heteronormativos que manobram o relho no interior.

Nossas frentes frias não vêm da Terra do fogo e nem do pampa argentino, mas sim da nossa gênese positivista: os gaúchos acreditam na meritocracia e quem nela não se encaixa, que seja banido pelo Darwinismo social, com a nossa seleção natural. Educados pela Farsul e pela RBS, conglomerado do jornalismo canalha e conservador, boa parte dos gaúchos é separatista e quer expulsar daqui índios e negros. Nesta lógica, a lógica patife da Rede Brasil Sul, o estado terá 3 capitais: Porto Alegre será a capital administrativa, para o empresariado negociar como comprará nossa infraestrutura a preços baixos. Torres será a capital no verão, para receber turistas brancos. Milícias de brigadianos cercarão Gramado, que será a capital de inverno: uma cidade fortificada onde pobres não entram.

Ao lembrar que logo será setembro, e que milícias de bombachudos gaúchos sairão a dar relhadas em gays que se atreverem a desfilar com a bandeira LGBT, lembro enfim do que fizeram deste estado e da propaganda do McDonald´s: Eu odeio muito tudo isto.”

Imagem copiada de https://www.portaldasmissoes.com.br/noticias/view/id/3608/pobre,-mestico,-sem-terra,-marginalizado…–o-gau.html

*Imagem de destaque copiada de https://domtotal.com/artigo/7517/2018/06/latifundio-violencia-campesinato-classe-social-que-luta-pela-terra/

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América Latina, bolsonarismo, Política

Cristóvão ou Jorge, que santo salvará Bolsonaro?

NENHUM!

Os acontecimentos políticos mais recentes na América do Sul escancaram que o braZil de Bolsonaro insiste em andar na contramão da estrada. Essa desorientação pode ter motivos religiosos. A tradição católica consagra o dia 25 de julho a São Cristóvão, que em algum momento foi designado pelo papa da hora para representar os interesses das e dos motoristas no plano divino. Como se sabe, Bolsonaro é terrivelmente evangélico e, portanto, professa fé numa vertente do cristianismo que não reconhece os santos e as santas do panteão católico. Se bem que, se pensarmos melhor, porque deveria aceitar a ajuda de algum intermediário de segundo escalão se ele é o próprio Messias? Crendo ou não nos santos, a vida de Bolsonaro parece estar sob a guarda das Armas de Jorge, já que nem mesmo um vírus letal ou facas pontiagudas podem derrubá-lo.

Em que pese o motivo, se por falta de ajuda espiritual ou mera incompetência, sem descartar a possibilidade de puro banditismo de quem o dirige, o fato é que o carro brasileiro segue em alta velocidade e sem freio ladeira abaixo, ao contrário do que acontece em alguns vizinhos nossos.

Uma breve cronologia (meramente exemplificativa):

  • 8 de novembro de 2020: o nascer do sol viu o povo boliviano reunido na praça Murillo, onde se localiza a sede do governo, celebrando e pedindo a proteção da Pachamama. Naquele momento, a Whipala tremulava forte, altaneira e feliz pelo fim do golpe de 2019 (mais um nessa longa estrada), com a eleição de Luis Arce, professor universitário com histórico político de comprometimento com as causas sociais. O (des)governo brasileiro não mandou representação para a posse;
  • 21 de julho de 2021: Alberto Fernández, que, é bom que se diga, recentemente andou se atrapalhando com palavras e referências, anunciou a reformulação dos registros civis, com um novo DNI (Documento Nacional de Identificação), que vai garantir o direito de não identificação de gênero às pessoas que não se consideram nem homens nem mulheres. Acertando a fala desta vez, o presidente argentino disse: “Existem outras identidades além do homem e da mulher que devem ser respeitadas”. E perguntou: “O que importa para o Estado saber a orientação sexual de seus cidadãos?” Corre à boca pequena que Bolsonaro encaminhou essa pergunta à ministra Damares…
  • 28 de julho de 2021: Pedro Castillo vai tomar posse na presidência do Peru. Se vai fazer um bom governo ou não é coisa que os próximos tempos dirão, mas não é pequeno o simbolismo dele ter derrotado o sangue Fujimori na eleição. Desta vez o Brasil (ou seria o braZiu?) vai estar representado na cerimônia. Bolsonaro designou o general Mourão para o encargo. Um observador incauto poderia pensar que o vice-presidente foi escolhido a fim de prestar um tipo de homenagem ao povo peruano, por conta da sua ancestralidade indígena. Eu tenho cá minhas dúvidas quanto a isso.

Há um fato, porém, que tem uma carga simbólica ainda maior. No ano que vem, quando se espera que pela vacina e conscientização o mundo esteja livre da ameaça do Corona, o Chile vai iniciar um movimento decidido para livrar o país de outro vírus, tão ou mais mortal: o fantasma Pinochet. Em maio foi eleita a assembleia que vai escrever a nova constituição, que substituirá a carta de 1980, um libelo antipovo e lesa-pátria, que só consolidou a política neoliberal do governo fascista e promoveu a entrega do estado às elites econômicas, inclusive, e principalmente, estrangeiras. É bom que nunca esqueçamos que a plataforma entreguista ultraliberal pinochetiana, origem do suicídio de milhares de pessoas que ficaram sem perspectiva diante da destruição das políticas sociais, teve participação efetiva do execrável Paulo Guedes, o “nosso” chicago boy. Mas o Chile está superando essa fase de obscurantismo e violência golpista. Isso se comprova na forte representação popular que terá a constituinte, principalmente dos povos originários. É histórico o fato que a assembleia vai ser presidida por uma Mapuche, a professora universitária Elisa Loncón. Isso mostra que a irresignação do povo diante da opressão pode demorar a mudar o rumo das coisas, afinal as forças do capital são poderosas, mas um dia os ventos mudam de direção. E os ventos que sopram da Cordilheira recolocam o automóvel chileno na estrada da sua história de grandeza.

Imagem copiada de https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2021/07/4936829-elisa-loncon-constituicao-deve-reconhecer-a-pluralidade-do-chile.html

Acervo do autor

Comecei essa conversa com uma efeméride religiosa. Acontece que o mesmo dia de São Cristóvão marca outra celebração, muito mais significativa: 25 de julho é o DIA DA MULHER NEGRA, LATINA E CARIBENHA. No Brasil, a celebração faz referência à Tereza de Benguela. Não vou aprofundar a data e nem a biografia da homenageada, porque implicaria em estender demais o texto. Uma pesquisa na internet é suficiente para conhecer melhor a história dessa celebração e da gigante braSileira que foi Tereza. A relação que faço aqui diz respeito ao que vi no último sábado nas ruas de Porto Alegre: milhares de mulheres negras, caminhando ao lado de outras e outros, e outres, brancas, brancos, negros, negres, indígenas, asiáticas, para derrubar o governo desgovernado de Jair Bolsonaro. O vento sul-americano sopra forte em alguns países vizinhos e aqui está começando a se transformar no furacão que vai varrer o fascismo que resiste no braZil e empurrar o carro que transporta Bolsonaro e seu exército de bandidos para a lata de lixo da história.

¡VIVA EL PUEBLO LATINOAMERICANO!

*Imagem de destaque copiada de https://www.grupoescolar.com/pesquisa/a-america-latina-e-suas-lutas-sociais.html

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