História, Política

Ora pro nobis

Imagem copiada de: http://nodeoito.com/povos-indigenas-massacre/. Acesso em: 21 de fev. 2022.

Lá pelos anos de 1500, quando o império português começou a mandar gente (dizem que da pior qualidade) para terras brazilis, os bravos representantes da Coroa não encontraram uma terra abandonada ou deserta. Mas isso pouco interessou. A expansão ultramarina estava em pleno curso e a todo vapor. Aqui chegaram, aqui invadiram, aqui se estabeleceram e aqui se tornaram proprietários. Aos habitantes locais, que foram chamados genericamente de índios, ofereceram o benefício de trabalhar para os novos donos em troca de algum lugar pra dormir, quando possível, e algum resto de comida, quando sobrasse. Os tais índios, na maioria, não aceitaram muito bem isso, e em consequência começaram a ser assassinados, dizimados. Depois, El Rey entendeu por bem mandar os padres pra civilizar aquelas espécies. Saber orar é fundamental. De qualquer sorte, precisando de mais força pra trabalhar, trouxeram gente da África, em condições iguais ou piores que os selvagens aborígenes. Essa é, resumidamente, a história de como o Brasil virou um grande Portugal antes mesmo que virasse Brasil.

O velho Pedro Segundo, incensando como uma das mais brilhantes e visionárias mentes da história política brasileira, conhecia bem a história da queda dos impérios europeus, e já tinha se precavido há algumas décadas desse risco, instituindo um negócio chamado de laudêmio, que ficou conhecido como taxa do príncipe, pelo que a família real, incluindo todos os seus integrantes ad aeternum, teria (como tem) direito a um percentual sobre todas as negociações imobiliárias realizadas nas adjacências da tal Fazenda do Córrego Seco, que hoje corresponde à área nobre da chamada cidade imperial, Petrópolis. Isso, e algumas outras benesses, garantem aos herdeiros da Casa de Bragança o direito de nunca precisar derramar uma gota de suor em trabalho pela terra que tanto amam.

No final do século 19, os marechais resolveram acabar com a festa da Corte e numa quartelada acabaram com o regime imperial. Estava nascendo a república, do latim, res publica, ou coisa pública. A família imperial teve sorte diferente dos antigos donos da terra. Por um breve período de tempo, a lei do banimento manteve Pedro Segundo e sua turma fora do país, uma saída honrosa, como se poderia dizer. Mas, na prática, isso foi logo resolvido, os herdeiros voltaram ao país, e na consolidação do novo regime, os imperiais mantiveram o pleno gozo dos direitos adquiridos em tempos de fartura – eufemismo para vagabundagem.

Pois vejam agora a magnanimidade desses homens de sangue azul. Ante a tragédia que destruiu a sua cidade e a vida daquelas pessoas que regiamente garantem a subsistência dos príncipes, ofereceram… suas orações. Vale transcrever o trecho final da carta assinada pelo Príncipe Imperial do Brasil, que, em nome de seu irmão, o nó da família imperial, Príncipe Dom Luiz de Orleans e Bragança, oferece a solidariedade “à boa gente petropolitana”: “A Família Imperial, tão estreitamente ligada à Petrópolis, encontra-se sempre disposta a servir ao seu povo, oferecendo ainda as nossas orações e solidariedade a todos que vêm sofrendo. Rogo a Deus Nosso Senhor, por intercessão do Padroeiro São Pedro de Alcântara, que proteja e dê alento à boa gente petropolitana nesta hora de aflição.” Assina Dom Bertrand de Orleans e Bragança.

Alguém precisa dizer ao nobre imperial que oração é bom e importante, mas não bota comida na mesa e nem reconstrói casa derrubada. Mas, acima de tudo, alguém precisa acabar com os privilégios das elites sanguessugas, que parasitam o Brasil desde que a frota cabralina atracou aqui. Infelizmente esses absurdos só aparecem nos piores momentos, mas que pelo menos eles sirvam pra ver que as coisas precisam mudar no país e que a primeira mudança possível é a organização dos de baixo, até para influenciar fortemente nas urnas. Eleger governantes e, sobretudo, parlamentares comprometidos com os interesses do povo e não com a manutenção de privilégios históricos e a construção de novos, é fundamental.

Imagem copiada de: https://revistaforum.com.br/brasil/2022/2/18/petropolis-taxa-imoral-paga-familia-imperial-numa-cidade-enterrada-na-lama-110378.html. Acesso em: 21 de fev. 2022.

Depois de votar e eleger, é preciso acompanhar, fiscalizar e cobrar. Uma dica para o momento: o projeto de lei que acaba com essa farra do boi, ou melhor, com essa farra do príncipe, pode ser consultado aqui: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2238509

*Imagem de destaque copiada de: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/brasil/2022/02/laudemio-entenda-o-que-e-a-taxa-paga-a-familia-real-em-petropolis.html. Acesso em: 21 de fev. 2022.

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Direitos Humanos, Ideologia, Mídia, Sociedade

Tá lá o corpo estendido no chão: ou a arte de morrer na contramão atrapalhando o tráfego

Quando Danuza Leão lamentou o risco de encontrar o porteiro do prédio no aeroporto de Paris (https://www.geledes.org.br/o-perigo-de-dar-de-cara-com-o-porteiro-do-proprio-predio-danuza-leao-pede-desculpas-a-porteiros-e-leitores/), não estava expressando uma frustração meramente pessoal por ver que os espaços privativos do high society estavam ameaçados. A lógica que pobre só frequenta a universidade quando está trabalhando na construção do prédio estava sendo subvertida e era preciso fazer uma espécie de manifesto dando conta da insatisfação coletiva de uma classe que não estava acostumada a dividir o seu espaço com gente estranha. Naquele momento, Danuza assumia o papel de porta-voz de uma elite que se importa antes em manter a distância da “turma de baixo” do que com os próprios prazeres que as melhores condições econômicas podem oferecer. Poderia impregnar a conversa de uma ortodoxia marxista e examinar se Danuza integra a classe que detém o capital e os meios de produção, ou se é a contragosto integrante de uma classe “especial”, que é explorada, mas se recusa a aceitar e se enxerga no topo da pirâmide econômica. Isso não interessa agora, porém.

Algum tempo antes, um raivoso jornalista vociferou num telejornal de Santa Catarina contra os malditos miseráveis que naqueles tempos podiam comprar carros. As palavras do inexpressivo apresentador são tão chocantes que vale a pena reproduzir uma parte:

Se um desgraçado destes é atrop… – e esta é a palavra – se um desgraçado destes é atropelado e feito sanduíche na pista, o que é que vão dizer? Este trânsito insano!! Insano é o cara que para o camarada [sic], para o carro, atravessa a BR pra ver o que aconteceu com outra pessoa. Então é isso: estultícia, falta de respeito, frustração, casais que não se toleram [!], popularização do automóvel, resultado deste governo espúrio [o ano era 2010], que popularizou pelo crédito fácil o carro para quem nunca tinha lido um livro. Com a arrogância típica de quem é dono da verdade, o encerramento foi com um: É isso! (O comentário completo pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=4tbOIuPU5Vs&ab_channel=CRSS3.) Não vou entrar em detalhes sobre os estudos que mostram que os acidentes automobilísticos mais violentos são provocados por máquinas com preços de 6 dígitos e até mais, que, obviamente, não são pilotadas pelos desgraçados miseráveis referidos pelo colunista. Também não vem ao caso.

Na última terça-feira, estava ouvindo o programa Sala de Redação, e na transição para o Gaúcha Mais, quando costumeiramente ocorre um bate-papo entre os integrantes dos dois programas, o apresentador Paulo Germano fez uma referência à nova orla do Guaíba. Querendo destacar a democratização das áreas públicas da cidade, ele disse que as classes mais altas vão frequentar a beira do rio por conta da excelência do local, do alto nível dos equipamentos de lazer que lá serão disponibilizados (quadras de esportes, pista de skate etc.), enfim, atraídas pelo que de melhor aquele espaço vai oferecer. As classes mais populares também vão estar lá, segundo o comunicador, mas por uma razão diferente: é de graça.

É interessante observar rapidamente os perfis das pessoas que fizeram os comentários aí de cima. Danuza Leão é uma típica figura da geração Bossa Nova, a alta sociedade da zona sul carioca que fez sucesso entre a segunda metade do século passado e o começo dos anos 2000; já Luís Carlos Prates é um jornalista anacrônico, do tipo que não atende mais os requisitos das editorias modernas, mas que ainda encontra espaço aqui e ali em programas sensacionalistas ou em veículos com fortes vinculações com os interesses e as ideologias das elites. São, portanto, duas pessoas com uma trajetória de vida mais longa, que atravessaram um período de transição da sociedade, com grandes mudanças nos comportamentos e nas tecnologias. Assim, de certa forma é possível contextualizar as posições que elas expressam, absolutamente injustificáveis, mas compreensíveis. Assustador mesmo é o caso do Paulo Germano.

PG, como é conhecido, tem a imagem requisitada para trabalhar no jornalismo “sério” contemporâneo: jovem, descolado, com uma bagagem cultural interessante, transita com desenvoltura por assuntos diversos, como políticas públicas, música e livros (o fato de dia desses ter associado Bukowski aos Beats é – ou não – irrelevante), e é interessado nos acontecimentos diários da cidade. Assim o portal da Famecos o descreve: “Espontâneo e carismático. Um jornalista humano que consegue exercer a empatia em tudo o que faz. Paulo Germano Moreira Boa Nova, nascido em 17 de dezembro de 1982, sonhava em ser um pop star de sucesso mundial, mas acabou encontrando no jornalismo o sentido que tanto desejava para a sua vida.” (http://portal.eusoufamecos.net/muito-mais-que-profissional-a-famecos-me-formou-como-gente/).

Deixando Danuza e Prates de lado, pelos motivos mais ou menos já referidos, me intriga saber o que leva um cara com o perfil de Paulo Germano a expressar uma ideia tão datada e tão preconceituosa como a de que rico procura qualidade e pobre procura preço baixo. Como Marilena Chauí e Brecht já nos ensinaram que tudo é política, não vou me furtar do “mimimi” de colocar essa desimportante fala do jornalista da RBS num contexto mais amplo, de sustentação dos padrões segregatórios da sociedade moderna, das discriminações de todas as ordens, do racismo estrutural, do sexismo, da violência de gênero, enfim, de tudo o que de mais podre tem na mente humana e que reverbera nas relações sociais. Pego carona em Tolstói pra pensar que ao descrever um fato da aldeia, Paulo Germano está se manifestando quanto à cultura universal. Porque o que está por trás de uma fala aparentemente inofensiva dessas é tudo que está aí a sustentar essa sociedade de exclusão em que vivemos. Pensar num espaço público que é frequentado por umas pessoas pela qualidade e por outras só por ser gratuito é naturalizar a existência de pessoas de categorias humanas diferentes. É o tipo de pensamento que faz estranhar a presença de uma pessoa preta e pobre em um museu de arte, mas permite passar batido pela ausência de pessoas pretas e pobres em meio às que frequentam o Cais Embarcadero a passeio; é o tipo de pensamento que acha bobagem a preocupação em eliminar termos e expressões racistas e sexistas da linguagem diária, sob o argumento que apenas refletem costumes arraigados; é o tipo de pensamento que permite ver que Paulo Germano, David Coimbra, Cristina Ranzolin, Daniela Ungaretti etc. etc. etc., dividem os espaços da linha frente dos veículos da maior rede de comunicação do Rio Grande do Sul com a Fernanda Carvalho, e só com ela de mulher negra, além de nenhuma PCD, e achar isso normal; é o tipo de pensamento que talvez imagine que não há mulheres trans nem homens assumidamente gays nas faculdades de jornalismo ou que essas pessoas não têm competência e qualificação profissional para estar na RBS; é o tipo de pensamento que acha normal que o Jornal do Almoço dê início à programação comemorativa dos 250 anos da capital da europa brasileira sem fazer referência às pessoas negras que construíram a grandeza da cidade e que, quando aparecem nas matérias, é apenas pelos aspectos pitorescos que são construídos, como histórias de superação e exceção, dignas de admiração por pena e não por respeito e reconhecimento aos seus valores; é o mesmo pensamento que não vai mostrar a luta das comunidades indígenas da zona sul da cidade para manter a posse das suas terras e a sua dignidade, e que vai naturalizar que mães e crianças guaranis sejam tratadas como pedintes no Brique da Redenção. Redenção, a propósito, que é um nome lindo e cheio de significados, mas não oficial, porque o que está nos registros da municipalidade homenageia os grandes heróis (e abigeatários) farrapos.

Enfim, queiram ou não, a frase aparentemente sem importância do Paulo Germano transporta essa pesadíssima carga de discriminações e violências, mesmo que talvez ele não seja, como provavelmente não é, conscientemente racista e elitista. E este é justamente o problema maior que enfrentamos: o racismo quase nunca é consciente, assim como quase nunca o são a homofobia, a misoginia e tudo mais. Raramente vamos ver alguém dizendo abertamente: “Eu sou racista!” ou “Eu sou homofóbico!” Mesmo Jair Bolsonaro, que disse preferir um filho morto a um filho gay e comparou quilombolas com bois, não se assume como racista e homofóbico e tem um exército de seguidores fanáticos sempre de prontidão para defendê-lo dessas – e de outras – acusações. Assim, fica cada vez mais evidente que enquanto não pararmos de “passar pano” para essas veladas manifestações de discriminação (refiro-me às do PG), naturalizando e dando pouca importância a elas, não avançaremos nos processos verdadeiramente civilizatórios (eu prefiro mesmo chamar de humanizatórios) que precisamos implementar.

Em um conversa recente sobre essas coisas, o meu amigo Douglas Ricalde me fez atentar para o artigo 7º da Lei 12.711, de 2012, que trata da política de cotas nas universidades. Este artigo determina que no prazo de 10 anos a partir da publicação da lei, o programa deve passar por revisão. Isso vai acontecer no ano que vem e há duas possibilidades: por ser ano eleitoral, talvez o Congresso se dobre às pressões que deverão ser feitas pelas pessoas e grupos interessados não só na manutenção do sistema quanto no seu aperfeiçoamento; por outro lado, dada a terrível configuração do parlamento, formado em grande parte por gente ligada a todo tipo de interesse espúrio, há forte chance da lei ser até revogada. No embate que certamente vai se travar, cabe à sociedade civil e ao campo progressista pensar a articulação desde agora para que esta não seja mais uma política de avanço social a ser aniquilada pelas forças nazifascistas que comandam o país.

*Imagem de destaque copiada de: <https://edisilva64.blogspot.com/2018/09/quando-o-pobre-adere-ao-discurso-do.html&gt;. Acesso em: 5 de set. 2021. (A imagem foi editada para que não apareçam os rostos das pessoas.)

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bolsonarismo, Política

O messias e o bispo: uma fábula braZileira

Em 20 de setembro é difícil pensar em discutir outro assunto que não seja a esfarrapada farsa farroupilha. Mas o estranho mundo de Bolsonaro não dá trégua. Tem ainda os desdobramentos do sete e principalmente do nove de setembro; tem a bomba de fumaça do momento, promovida pelo Ministério da Saúde; tem tanta coisa. Sobre bombas de fumaça, a propósito, é uma facilidade enorme para este (des)governo produzi-las. Pegue-se como exemplo esta da liberação de vacinas para adolescentes e a posterior desautorização. É o assunto principal da grande mídia – e até da mídia alternativa -, das redes, dos postos de saúde, dos bares. É evidente que se trata de diversionismo puro, mas dada a inépcia de todos os setores do Executivo Federal, há boas razões para quem não acompanha de perto as movimentações políticas achar que se trata de uma esculhambação genuína. Não deixa de ser esculhambação, mas é uma esculhambação programada e apropriada para criar assuntos que se desviem e desviem os olhares do que realmente interessa. Nesse sentido, talvez a frase que melhor defina o governo bolsonaro tenha sido dita pelo ex-ministro do meio ambiente: “Enquanto isso, vamos passando a boiada”.

Por ora, deixo essas manobras diversionistas em espera e os assuntos da data magna do Continente de São Pedro para o Mário Maestri e o Juremir Machado, que têm trabalhos esclarecedores nessa área, e me ocupo de outra farsa, coincidentemente envolvendo arma branca, que, como se sabe, é um fetiche da gauchada.

Na semana passada, a TV 247 lançou o documentário “Bolsonaro e Adélio – Uma facada no coração do Brasil”, dirigido por Joaquim de Carvalho e Max Alvim, que pode, ou melhor, deve ser assistido aqui: https://www.youtube.com/watch?v=vOcBT2js54U&ab_channel=TV247. É um documento jornalístico extraordinário, de valor inestimável para quem quer entender o braZil do bolsonarismo. E todo o povo deveria ter esse interesse.

O filme é longo para as configurações de velocidade e urgência da sociedade moderna, mais de duas horas. Para ajudar, a Cristina Dornelles e eu fizemos uma versão compacta, que, a bem da verdade, continua longa, quase uma hora, mas em função do volume de dados e da maneira como ele foi produzido, indo direto aos pontos importantes, é impossível sintetizar ainda mais. Ao final deste texto coloco uma espécie de índice que fizemos para melhor acompanhamento da versão integral.

O documentário apresenta com uma riqueza de detalhes contundente as provas que tudo foi uma grande armação com vistas a criar um mito. E mitos dificilmente perdem eleições. E assim foi. A história política do Brasil parece estar sempre às voltas com um tipo de sebastianismo tardio, que procura um homem – e aqui a palavra homem não é usada no seu sentido genérico – que se responsabilize por fazer tudo aquilo que cabe, na verdade, ao conjunto das forças sociais realizar. Numa sociedade ideal, o governo é apenas o mediador dos conflitos sociais e o executor das políticas construídas pelas comunidades. Aqui não, estamos sempre transferindo esse papel e delegando poderes. Pelo menos desde Getúlio isso é muito claro, com um hiato a partir de 64, período que reproduz outro tipo de história e, portanto, demanda outro tipo de análise. Mas logo ao fim do regime inaugurado pelo Golpe de Primeiro de Abril, uma velha raposa mineira, presente na cena desde o Estado Novo, trouxe novamente a figura messiânica à ordem do dia. A partir daí vieram o Caçador de Marajás, o pai do Real e Lula, todos com a capacidade de avocar a imagem do salvador da pátria, afinal, governo após governo sempre há uma pátria a ser salva. Dilma também foi outro caso, porque foi eleita na esteira das políticas de bom resultado social dos governos Lula. O patriarcado e as elites aguentaram a duras penas e com farta produção de noticias falsas e distorcidas um mandato de uma presidenta altamente capaz no aspecto técnico, mas com algumas dificuldades no traquejo político. Assim, já na largada do segundo governo estava definido o golpe, com Supremo e tudo, que interrompeu abruptamente a caminhada (menos rápida do que seria ideal, diga-se) rumo a um equilíbrio das esferas sociais.

Esta rápida digressão é necessária para amarrar a corda que liga a retirada violenta e ilegítima de Dilma do governo aos eventos de Juiz de Fora. Neste segundo momento, as forças de resistência haviam conseguido um nível mínimo de rearticulação em cima de um governo absolutamente antipopular de Temer e da farsa (mais uma) da Lava Jato. E a agenda fascista capitaneada por Bolsonaro não estava garantida, porque do outro lado, Ciro Gomes à parte, a Esquerda parecia ter alcançado um bom conjunto, unindo Haddad, que supria o requisitos de cultura e formação acadêmica, além de ter um histórico de boas administrações em São Paulo e no Ministério da Educação, e Manuela, mulher, jovem, mas com uma estrada política respeitável, associada a lutas sociais importantes, como a emancipação feminina e as causas LGBTQIA+. Do outro lado, Bolsonaro tinha o antipetismo e um discurso que agradava às classes médias que se acham altas, principalmente no que diz respeito à segurança e à luta anticorrupção. Mas depois de 3 governos e meio, o risco de consolidação de uma plataforma política voltada para as questões sociais era muito alto e tudo deveria ser feito para romper essa trajetória do país. A possibilidade da eleição se encerrar no primeiro turno era bastante remota, Ciro Gomes à parte. E o risco de Bolsonaro botar tudo a perder em um único debate no segundo turno era muito grande. Por isso, nunca um câncer foi tão celebrado. A necessidade de uma intervenção cirúrgica caiu como uma luva para a articulação da farsa, que contou com a ajudinha de um gênio do mal, Steve Bannon, e sua versão braZileira, Olavo de Carvalho. O que aconteceu a partir daí está explicado, sem economia de detalhes sórdidos, no documentário. O que posso dizer para finalizar por ora é: ASSISTAM!

O índice abaixo tem a intenção de facilitar o acesso aos pontos que consideramos mais claros, mas é importante que o documentário seja assistido integralmente e com muita atenção, preferencialmente mais de uma vez:

00h02m58s – Gustavo Bebbiano fala no programa Roda Viva sobre a ausência do chefe de segurança e a presença de Carlos Bolsonaro no carro de Jair Bolsonaro até Juiz de Fora, e dos alertas sobre os riscos do não uso do colete à prova de balas

00h05m36s – Apresentação de “seguranças voluntários” no local da primeira visita de Bolsonaro, um hospital de combate ao câncer mantido por mulheres, incluído no roteiro para melhorar a imagem dele com o público feminino. Bolsonaro já recebia proteção da Polícia Federal (PF) por ser candidato

00h09m08s – Opção voluntária de não usar colete à prova de balas e uso de camiseta especialmente preparada para o evento

00h10m10s – Imagens do almoço no hotel Trade encontradas no celular de Adélio Bispo

00h12m13s – Ataques ao PSOL e PCdoB já na primeira entrevista coletiva de Bolsonaro

00h13m32s – Culto evangélico em que Bolsonaro recebe benção para proteger de doença no estômago e relato de problemas semelhantes acontecidos anteriormente

00h14m39s – Presença do médico Paulo Gonçalves, da Santa Casa, que atenderia Bolsonaro após a facada, no discurso que ele faz aos apoiadores na sede do hotel. Bolsonaro não fica no hotel para almoçar

00h18m49s – Adélio anda em atitude suspeita, vestindo uma jaqueta preta mesmo com o calor que fazia no dia, atrás do carro onde Bolsonaro discursava, portando um jornal em que supostamente estava enrolada a faca, sem ser importunado pelos seguranças, e Carlos evita o contato com ele. Em entrevista à Leda Nagle, Carlos descreve a cena e diz que Adélio esteve com ele no Clube de Tiro .38, em Florianópolis. Aqui é interessante observar que o documentarista diz que a imagem é rara, então como é que Carlos Bolsonaro a viu e descreveu os fatos na entrevista?

00h22m14s – Pensão em que Adélio se hospedou em Juiz de Fora, cuja dona morreu algum tempo depois do fato. Adélio pagou a estada adiantado e em dinheiro e tinha registrado em seu celular o roteiro de Bolsonaro na cidade, inclusive a visita a uma Fundação que não constava do programa da visita

00h25m16s – Tentativa frustrada de Adélio contra Bolsonaro. Bolsonaro toca a mão de um homem na multidão e este faz uma espécie de contagem regressiva, após o que Adélio investe ostensivamente contra Bolsonaro, em frente aos seguranças, que nada fazem para impedi-lo

00h27m30s – Adélio interage com os seguranças após a tentativa frustrada e logo em seguida há uma troca de sinais entre Bolsonaro e um dos seguranças. Um homem adverte Adélio dizendo para que tenha paciência e dizendo “calma, cara, agora não dá”

00h28m58s – Diretor da Associação Comercial, Guilherme Duarte, retira o presidente da Associação da cena onde ocorreria logo em seguida a suposta facada. Duarte, que organizou o evento juntamente com Marcelo Álvaro Antônio, diz que vai conversar com a reportagem, mas depois recua da decisão e não fala mais.

00h30m26s – Equipe do documentário é ameaçada pela polícia

00h32m18s – Fotógrafo Felipe Couri, que registrava toda a movimentação, foi distraído nos instantes cruciais e não conseguiu tirar as fotos do momento da “facada”

00h34m51s – Em vez de conter Adélio, os seguranças fazem a sua proteção para que não seja linchado pela multidão

00h36m19s – Bolsonaro é levado para uma pastelaria para receber atendimento, mas não estava inconsciente e nem aparentava qualquer tido de sofrimento, de acordo com um funcionário da pastelaria, que ainda diz não ter restado nenhum resquício de sangue no local

00h36m59s – Sem esperar por uma ambulância, Bolsonaro é levado sem o menor cuidado para o carro que o levaria à Santa Casa

00h37m27s – Um segurança da confiança de Bolsonaro faz uma espécie de sinal quando ele é levado para o carro

00h41m01s – Hospital Albert Einstein se recusa a apresentar o prontuário médico à PF; AE atendeu Queiroz, que pagou pelos procedimentos em dinheiro vivo; Antônio Macedo, ONCOLOGISTA que realizou a cirurgia em Bolsonaro, rompeu com o AE e passou a atender no hospital que Bolsonaro frequenta atualmente

00h43m20s – Cicatriz da “facada” aparece em local diferente

00h47m07s – A faca é encontrada por um policial, Renato, e entregue a um vendedor de frutas, que se recusa a falar sobre o assunto

00h50m45s – Entrevista de Renato, segurança que achou a faca

00h55m20s – Momento da suposta facada: Adélio não está em posição possível para introduzir 15cm da faca no corpo de Bolsonaro

00h56m28s – Entrevista com esposa de Marcelo Bormevet, policial que organizou a segurança privada

00h57m25s – Esposa de Hugo, segurança que imobilizou Adélio e posteriormente morreu de infarto, diz que não fala mais

00h58m55s – Participação de Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro

01h00m01s – Entrevista com Zanone Manuel de Oliveira Júnior, que foi o primeiro advogado de Adélio e atualmente é seu curador; manobras da defesa de Adélio para favorecer Bolsonaro

01h05m38s – Entrevista com a irmã de Adélio, que sequer sabe se ele está vivo

01h14m21s – Adélio fez curso no clube de tiro .38, mas a porta-voz do clube nega

01h19m08s – Publicação do facebook do clube de tiro .38 no dia da suposta facada

01h19m15s – Promoções dos seguranças de Bolsonaro, apesar das falhas no dia da “facada”

01h21m55s – Bebbiano fala no Roda Viva sobre a influência de Carlos Bolsonaro

01h24m51s – Facebook de Adélio é desativado apesar dele estar preso

01h29m19s – Postagem de Carlos Bolsonaro no facebook sobre atentado contra Donald Trump antes da eleição estadunidense de 2016

01h32m12s – Militância de Adélio na Direita

01h34m21s – Narrativas criadas para ligar Adélio à Esquerda

01h35m04s – Paulo Marinho fala de visita que fez a Bolsonaro no Albert Einstein

01h36m27s – Steve Bannon antecipa que Bolsonaro sofrerá um atentado e Joice Hasselmann diz que o próprio Bolsonaro falou em levar uma facada

01h37m24s – Camiseta usada por Bolsonaro desapareceu

*Imagem de destaque copiada de: <https://brasilagora.net.br/bolsonaro-gargalha-ao-saber-que-kassio-nunes-vai-analisar-pedido-de-impeachment-de-alexandre-de-moraes-veja-video/&gt;. Acesso em: 21 de set. 2021.

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Militarismo, Política

Entre mosquitos e comunistas, fi-lo porque qui-lo: ou a gestação de um golpe

Temperary Pres. Pasqual Ranieri Mazzilli, during crisis following forced step down of Brazilian Pres Joao Goulart. (Photo by John Loengard//Time Life Pictures/Getty Images)Imagem copiada de: https://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/especial-veja-ranieri-mazzilli-o-presidente-de-plantao/. Acesso em: 31/8/2021.

Em 1992, Jânio Quadros levou para o túmulo a informação sobre as forças ocultas que determinaram a sua renúncia, fato que está na gênese do Golpe de Primeiro de Abril. A ideia mais consolidada é que ela mesma tenha sido uma tentativa de golpe, versão que de alguma maneira sempre ficou bem delineada nas entrelinhas do próprio discurso de Jânio. Sabedor que era da rejeição enfrentada pelo “comunista” João Goulart, seu vice, eleito por outra chapa, numa daquelas loucuras típicas da democracia brasileira, JQ lançou mão da tática do “bode na sala”. Jango era tão ruim que o povo (e a caserna) não o aceitariam e trariam Jânio de volta em poucas horas e com honras. O momento da renúncia não foi obra do acaso. Em 25 de agosto de 1961 Jango estava na China, designado pelo próprio presidente, e nessa época a China era comunista. Não teria dia melhor para dar início ao golpe. Nunca se saberá, também, se Jânio era ingênuo o suficiente para confiar em militares, mas o fato é que, fiéis à sua trajetória golpista, assumiram eles mesmos o poder, não sem destacar um boi de piranha para fazer a linha de frente por alguns dias, enquanto tratavam de tentar impedir a posse de Jango. A laranjada brasileira não é coisa moderna, portanto. O que veio depois disso é Legalidade, democracia fantasiada de parlamentarismo e a conclusão do golpe, sem Jânio Quadros, três anos mais tarde, e essa história está bem registrada em artigos e livros.

Hegel disse que a história se repete pelo menos duas vezes e Marx acrescentou que na primeira como tragédia e na segunda como farsa. No caso do braZil talvez seja mais correto dizer que ela se repete muito mais de duas vezes e sempre como farsa trágica. Em 1961, como já ocorrera tantas outras vezes desde 1500, os militares estavam por trás de todas as articulações que determinariam os rumos da política brasileira pelos próximos anos (e décadas). Um dos elementos pouco lembrados, porque pouco falados, da história de 1961 é a “Operação Mosquito”, que em 2013 foi relatada em detalhes à Comissão Nacional da Verdade por Roberto Baere, tenente que se recusou a cumprir as ordens de preparar o atentado que deveria resultar na derrubada do avião que levaria Jango a Brasília para tomar posse. Em 1964, com o Golpe de Primeiro de Abril consumado, Baere foi expulso da Aeronáutica.

Imagem copiada de: https://mobile.twitter.com/almeidaemprosa/status/905053390845218816?lang=ar. Acesso em: 31/8/2021.

Transportando a história para os nossos dias, não seria descabido pensar em Lula como uma espécie de Jango, guardadas todas as diferenças entre um e outro e entre os contextos. A imagem de Lula como um comunista empedernido é tão falsa quanto o vermelhismo absoluto de Jango. Nem um presidente que se alia a José de Alencar (desta vez na mesma chapa) e nomeia Henrique Meirelles para o Banco Central, e muito menos outro que é herdeiro político de Getúlio Vargas, do Plano Cohen, podem ser vistos com seriedade como comunistas. Políticas sociais, existentes nas plataformas políticas tanto de um como de outro, não os levam à condição de articuladores no Brasil da política revolucionária de 1917. Longe disso. Entretanto, suas figuras representam tudo o que aqueles que nunca vestirão uma camisa vermelha sonham para manipular mentes, distorcer fatos e levar em frente a reação “redentora” e “heroica” das forças anticomunistas.

Assim, como a Campanha da Legalidade apenas protelou o Golpe do Primeiro de Abril – e há quem sustente a ideia de que ela foi consentida pela caserna justamente para legitimar a quartelada que viria em 64 -, há sinais claros, e emitidos diariamente, que o bolso-militarismo não vai aceitar ficar fora da festa em 2022. É preciso manter atenção redobrada ao Sete de Setembro próximo, que talvez seja mais um dos balões de ensaio lançados para testar a simpatia do povo a um novo regime de exceção mascarado de causa democrática. Essa história que os militares não querem assumir o poder não está me convencendo. Por ora eles estão tranquilos, já que ocupam quase todos os cargos importantes do governo, mas será que a vaidade da farda se contentará em governar à sombra? E, mais, será que ficarão democraticamente tranquilos diante da ameaça da volta “comunista” de Lula ao governo? Perguntas que não posso responder com convicção agora, mas desconfio que já seja tempo de Lula evitar tanto quanto possível viajar de avião. Há mosquitos tão ou mais perigosos que o da dengue…

Imagem copiada de: https://blogdolindenberg.com.br/bolsonaro-tentou-dar-um-golpe-militar-em-maio-segundo-revista/. Acesso em: 31/8/2021.

*Imagem de destaque copiada de https://vermelho.org.br/2020/05/18/o-golpe-nao-esta-distante-da-hora-presente/. Acesso em 31/8/2021.

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Política

Quem avisa, amigo (não) é

Os serviços e as pessoas que trabalham na prevenção ao suicídio têm como certo que quem pretende abreviar a própria vida não faz isso sem antes ter dado vários sinais. Muitas vezes esses avisos são explícitos, porém às vezes aparecem como mensagens cifradas. Fechar os olhos é uma estratégia perigosa. Claro que é natural que ninguém acredite que isso possa acontecer com uma pessoa da família ou das amizades e a negação acaba muitas vezes sendo uma estratégia interna e inconsciente de defesa. Até que um dia acontece, e aí o sentimento de culpa é inevitável. Então, para se evitar o remorso, e principalmente para se evitar o desfecho trágico da perda de uma vida, é preciso ter sempre atenção aos sinais.

Sinais são o que mais temos visto no Brasil nos últimos tempos. Mas se olharmos com um pouquinho mais de atenção, veremos que eles estão sendo emitidos há bastante tempo. E de forma clara e direta. Ao usar a tribuna do Congresso para prestar homenagem a um dos maiores criminosos já nascidos no Brasil, num dos momentos mais graves da nossa história, Bolsonaro escancarou ao mundo o que algumas pessoas mais atentas e interessadas no debate político já sabiam acerca da sua personalidade. Ali foi talvez o mais contundente recado até então, eis que transmitido para uma audiência gigantesca, espalhada pelo mundo. Antes disso, como se sabe, Bolsonaro era um parlamentar apagado, que de vez em quando ganhava algum holofote de passagem, exatamente por dizer alguma atrocidade com algum potencial de polêmica. Naquele dia, porém, a frequência do sinal foi muito bem captada pelas antenas de quem desejava a todo custo frear o avanço progressista no país e já não admitia mais a possibilidade de queimar cartucho com Aécios e outros quetais. A partir de então, foi relativamente fácil o trabalho de criar uma caixa de ressonância para esse discurso virulento, que clama por segurança e conclama à reação, que não pode vir por outra forma que não seja materializada na mais pesada violência, tão ao agrado da classe média brasileira, esta que a Marilena Chauí tanto critica.

Nesse contexto, é um equívoco dizer que o antipetismo elegeu Bolsonaro. A repulsa ao PT e a tudo o que ele representa na história recente do país foi um componente importante, sem dúvida. Muito menos pela necessidade de exterminar as práticas de corrupção, conforme a narrativa habilmente construída pelas elites, do que pelo perigoso empoderamento que os segmentos desfavorecidos da população vinham ganhando nos governos de plataforma com inclinações socializantes. Mas fundamentalmente o que elegeu Bolsonaro, na verdade, foi o ódio, já que havia uma espécie de “caminho do meio”, com outras candidaturas à direita, que foram preteridas em favor do extremismo nazi-fascista. (Mais sobre o assunto aqui.*).

Para evidenciar o cumprimento da plataforma apresentada pelos Bolsonaros desde antes da campanha eleitoral à presidência, seria desnecessário listar os momentos em que o presidente e seu pequeno (mas barulhento) exército de filhos raivosos ameaçou a frágil estabilidade democrática do país. Hoje se vê que é preciso um pouco mais do que um cabo e um soldado para derrubar a Corte Suprema, mas o recado já havia sido dado e o generalato está aí para dar força à tropa. E esta é justamente a novidade recente. A retórica bolsonarista começou a ser empregada também abertamente por aqueles que são realmente os que podem sustentar um golpe. A recente manifestação do General Heleno no caso do celular presidencial foi um recado direto e em letras de manchete. Ainda não se sabe muito bem se foi uma voz isolada na caserna ou se a sua resposta foi trabalhada e concebida pelo grupo militar que está cada vez mais presente no governo. Não se pode ter dúvida, porém, que não foi uma manifestação intempestiva, precipitada e/ou promovida por desinformação do militar acerca dos procedimentos judiciais. Não, ninguém chega ao posto máximo do Exército e assume o mais importante cargo da república na área da segurança sendo desinformado. O Chefe do Gabinete de Segurança Institucional sabia muito o que estava fazendo e a forma como a mensagem seria compreendida pelos destinatários.

Por outro lado, alguns recados não são tão diretos quanto a nota emitida pelo GSI ou a manifestação do filho zero dois quando fala da relação entre “se” e “quando”. Podem simplesmente ser colocados estrategicamente em meio a uma conversa de tom aparentemente menos agressivo. Bolsonaro falou numa live sobre a possibilidade de “desaparecimento” de um terceiro ministro do STF ainda durante o seu mandato. Dois sairão pela compulsória, mas teoricamente os/as nove restantes sobreviverão à gestão bolsonaro. Todavia, para acomodar o homem mais poderoso da república neste momento, o presidente se sente autorizado a sugerir o surgimento de uma terceira vaga na Corte ainda durante a sua gestão, o que possibilitaria a nomeação do atual Procurador-Geral da República ao cargo vitalício de Ministro. Este recado certamente foi muito bem compreendido pelo Chefe do Ministério Público e agora ele, que tem nas mãos a possibilidade de apertar de forma muito grave o cerco em torno da família presidencial e seu séquito, vislumbra com nitidez a possibilidade de ser presentado com um cargo no Supremo, caso algum ministro (ou ministra) “desapareça” nos próximos dois anos. É claro que nessa conversa sinistra e nada republicana, não se pode desconsiderar a possibilidade de uma manobra bolsonarista para não comprometer o plano de neutralizar a ação do PGR, tornando pública a sua intenção antes do tempo. Isso porque talvez nem seja preciso abrir uma vaga imprevista para que o seu potencial algoz seja “promovido” na carreira. O escolhido original para a primeira vaga, cabo eleitoral de primeira hora, virou desafeto, logo, saiu da disputa. Será verdade que ainda sobram três possibilidades de nomes na disputa pelas duas vagas já prestes a abrir, como Bolsonaro falou? Ou uma dessas vagas já foi destinada ao PGR e a conversa da live foi apenas uma forma de tentar mascarar e desviar a atenção dessa tenebrosa negociação, cuja contrapartida por parte do chefe do MP é bastante evidente?

Os próximos movimentos do Procurador-Geral darão algumas pistas do que pode acontecer, mas o certo é que os sinais estão sendo emitidos, uns mais claros, outros mais velados, e, diante da quase inércia das instituições (notas e manifestos têm pouquíssimo efeito neste momento), é urgente que o povo assuma a frente do combate e entre com força na guerra, que já está posta e vai muito além do maniqueísmo retórico de disputa entre Esquerda e Direita. Se as manifestações de rua não são recomendadas no momento, não obstante já tenham começado a acontecer, é preciso que a população encontre formas de pressionar de maneira contundente e efetiva quem tem o poder de, apenas fazendo cumprir a Constituição Federal, barrar a cavalgada fascista, que mais cedo ou mais tarde pode dar (e dará) um passo decisivo, armando um “golpe por dentro”. Os avisos estão sendo dados a todo momento e, neste caso, quem avisa não é amigo.

*https://oximarraoalucinogeno.com/2018/10/29/hora-de-derrubar-mitos/

Imagem ilustrativa copiada de https://istoe.com.br/stf-investigara-ato-pro-intervencao-militar-do-qual-bolsonaro-participou/, em 1º/6/2020

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Política, Povos Índigenas, Republicados

Programa de (ou anti?) índio*

Entrevista com o Secretário-Geral do Conselho Indigenista Missionário, Cléber Buzatto ao Jornal Extra Classe (Número 194, junho de 2015, p. 16-17)

EC- Desde que a constituição de 1988 reconheceu os direitos indígenas, quais os avanços mais importantes?

CB- Houve passos importantes. algumas terras foram reconhecidas. A política de atenção à saúde avançou – pelo menos no papel, embora haja um passivo ainda muito grande. O problema é que mesmo esses passos incipientes ficam seriamente ameaçados com a perspectiva de derrubada do texto constitucional que reconheceu aos povos esses direitos.

EC- O que preocupa é somente a iniciativa do Legislativo com a PEC 215 e outros projetos?

CB- Não. Há decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF), avançando em uma interpretação extremamente restritiva da Constituição, que entende que a terra não pode ser reivindicada por povos que não estavam sobre ela em 1988, na promulgação da Carta, mesmo que eles tenham sido expulsos. Isso foi aplicado inclusive em casos de demarcações já concluídas, como o caso dos Terenas na terra Limão Verde, no Mato Grosso do Sul. É uma perspectiva fundamentalista que retira direitos, o que é preocupante e pode potencializar conflitos que já haviam sido superados.

EC- E o Executivo, os indígenas têm cobrado a presidente Dilma?

CB- Há uma frustração bastante grande, um desapontamento já com Lula que se aprofunda com Dilma, uma vez que a perspectiva adotada desde o seu primeiro mandato é de explicitamente favorecer setores historicamente inimigos. Há inúmeras decisões administrativas que paralisaram demarcações no país, por exemplo.

EC- É um momento histórico especialmente ruim para os povos indígenas. O senhor vê alguma razão para isso?

CB- Está em curso uma articulação de setores da economia que têm interesses comuns, que atua em diferentes frentes e na mesma direção. São os representantes das commodities agrícolas e minerais, que se favorecem  de um modelo de desenvolvimento fortemente dependente do setor primário. Uma mostra disso é que o peso da exportação de matérias-primas no PIB passou de 40% para 60% nos últimos anos.

EC- De que modo essa articulação funciona?

CB- Está presente nos diferentes poderes do Estado brasileiro. Temos situações de lobby junto ao STF, um “frentão” instalado no Executivo, a atuação intensa junto ao Legislativo, financiando dossiês e campanhas parlamentares. Inclusive, na sociedade essa articulação aparece quando se propagam discursos preconceituosos e propaganda anti-indígena para legitimar ataques. O resultado disso é um aumento vertiginoso da violência contra lideranças.

EC- A imprensa contribui para essa propagação do discurso de ódio?

CB- Há setores da imprensa que são instrumentos desse processo, a TV Bandeirantes, por exemplo. Majoritariamente os grandes veículos de comunicação participam dessa estratégia porque têm interesses comerciais. As mesmas grandes empresas que financiam parlamentares que lideram os processos de restrição dos direitos indígenas são as campeãs de propagandas na TV. Um exemplo é o frigorífico JBS.

EC- E como se organizam os indígenas para contrapor essa articulação?

CB- Os povos têm demonstrado uma percepção da realidade bastante apurada e se manifestam permanentemente perante essa situação desde o 2º semestre de 2011. Há uma mobilização tanto nas regiões onde cada povo vive e também em Brasília, nos diferentes poderes do Estado brasileiro. Este ano tivemos uma manifestação com mais de 500 lideranças, em abril, que chegaram a ocupar o plenário da Câmara dos Deputados para chamar atenção. Muitas comunidades também estão retomando seus territórios.

EC- Fazendo a chamada “autodemarcação”?

CB- Exatamente. Há várias situações no Mato Grosso do Sul, com grupos Guarani-Caiowá e Terena. São retomadas bastante fortes, com muitas famílias participando dessas ações além de uma presença permanente de lideranças.

EC- Por que não parlamentares indígenas em Brasília?

CB- No Brasil não há nenhum representante indígena federal ou estadual eleito. O que temos no Congresso Nacional é uma frente parlamentar de apoio aos povos indígenas. O sistema político eleitoral inviabiliza por completo a eleição de representação indígena, porque o perfil dos eleitos é de candidatos que conseguem financiamentos vultosos de empresas privadas que dificilmente se interessariam por financiar lideranças indígenas, especialmente se tiverem a perspectiva de lutar pelos povos indígenas. A dispersão territorial dos indígenas também ajuda. A maioria dos estados, salvo Roraima e talvez algum outro, o percentual de indígenas é bastante baixo em relação à população total.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 14/7/2015.

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Ideologia, Imprensa, Mídia, Republicados

O chefe mandou*

Estivesse almejando obter grau de doutor, minha tese não poderia ser sobre a imbecilidade do criador da Mulher do Centroavante, posto que já falharia no quesito da originalidade. Também não é a primeira vez que eu falo deste sujeito por aqui. Parei de falar quando parei de ler. Hoje, porém, ao ler de passagem uma manchete do tabloide para o qual o jornalista e “escritor” David Coimbra trabalha, despertou-se a minha atenção, fazendo com que lesse a crônica do distinto “intelectual”.

O título é interessante e já deixa antever o teor do escrito: “A tal da elite branca”. E já começa entrando por cima da bola, pra usar uma expressão no clima da Copa. Diz assim: “Agora inventaram essa história de elite branca. Por favor. Uma das poucas vantagens que o Brasil realmente tem em relação a TODOS os outros países do mundo é a miscigenação. No Brasil, as etnias de fato se misturam, e o fazem com naturalidade.”

Ao dizer que “essa história de elite branca” é criação moderna, o cara que se propôs a escrever a história do mundo desconsiderou completamente a história do próprio país. Ou será que ele pensa que desde os 1500 a elite que dominou o Brasil era negra ou indígena? Ou, ainda pior, imagina o nosso insigne escriba que não há uma elite que domina o país? Pela amostra do pano, já se percebe que o cara escreve exatamente o que o patrão gosta que se escreva.

De acordo com o que diz o David, podemos depreender que aquela velha conversa do paraíso da democracia racial é verdadeira: “No Brasil, todos, japoneses, negros, alemães, anões, cafuzos, mamelucos, índios, brancos, azuis, todos são brasileiros.” O estranho é que um certo candidato ao Senado, talvez não por acaso colega de empresa, disse há poucos dias que há muitos índios que conseguiram evoluir e hoje são trabalhadores respeitados. O seu David contradisse o seu candidato, porque para este o índio precisa deixar de ser índio para ascender socialmente, então não é bem assim essa coisa de que todos são brasileiros.

Logo em seguida, toda a genialidade do cronista aflora, quando ele diz que o verdadeiro problema do Brasil é a discriminação social. Entende-se essa declaração se vinda de alguém que não deveria ter, por obrigação profissional, o dever de saber que a esmagadora maioria de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza no nosso país definitivamente não é da etnia que se pode chamar de branca. E diz ele que o que falta, na verdade, é oportunidade igual para todos. Ora, seu David, o senhor mesmo já se manifestou contrariamente à adoção da política de reserva de cotas com recorte étnico-racial. Decida-se, por favor! Se não há oportunidades iguais para todos, como o senhor mesmo reconhece, algo há que ser feito, certo? E nesse caso as cotas não servem? Parece, seu David, que o senhor quer que as coisas continuem a ser como eram, antes do processo de equalização social que se verifica no Brasil nos últimos anos, que é lento mas eficaz.

Tal qual uma metralhadora giratória, o cronista leva a questão para o futebol, quando também aí vai ser escancarado todo o seu ranço elitista (e não custa lembrar que ele é branco). “O ingresso do futebol é muito caro para o pobre. Oh! O ingresso para ver o Chico Buarque não é barato, nem o do show da Madonna, nem a entrada do cinema. Pelé não ganhava um milhão por mês. Fred ganha. Assim, ver Fred é mais caro do que era ver Pelé.”

Este é o argumento preferido dos que defendem o processo de elitização do futebol, pelo qual os torcedores oriundos das classes sociais menos favorecidas são alijados do direito de ver seu time no estádio: times bons são caros e, portanto, o ingresso deve ser caro. Não quero entrar nessa discussão específica, há muito material que desconstrói impiedosamente essa ideia nas publicações do Povo do Clube. Apenas quero dizer ao seu David Coimbra que o Chico Buarque não costuma fazer shows em estádios para milhares de pessoas, mas em teatros, numa lógica completamente diferente. Ainda assim, já soube de muitas apresentações do Chico a preços módicos e outras tantas com entrada franca. Já a Madonna, que lota grandes estádios mundo afora, proporciona um espetáculo bem diferente e menos frequente do que um jogo de futebol, inclusive com custos de produção muitíssimo mais elevados. Comparação infeliz esta, hein, seu David?

“A elite branca xingou a presidente. Quem garante que pobres e pretos não o fariam? Essa elite branca é ‘branca’ de fato? Existem ‘brancos’ de fato no Brasil? Será que existe mesmo essa divisão, pobres e pretos a favor do governo, elite branca contra? Esse é um governo só para pretos e pobres? Como é que se faz para conseguir um governo para todos?” Bah, seu David, não queria ter de precisar lhe explicar que a expressão “elite branca” é uma figura de linguagem. O senhor sabe disso, por certo, mas o chefe não lhe permite expressar ideia diferente, né? Talvez a dona do Magazine Luiza, que não é preta e nem pobre possa lhe dizer como é que se consegue um governo para todos.

E o seu David considera uma babaquice chamar a presidentA de presidentA e ainda diz que quem não acha isso estranho é um taipa. Caso encontrasse com ele, perguntaria se ele, que escreveu a História do Mundo em tomos, sabe quando a mulher brasileira adquiriu o direito ao voto; e qual a proporção de homens e mulheres em cargos de chefias nas empresas brasileiras; e se para exercer cargos iguais na iniciativa privada as mulheres recebem o mesmo salário que os homens; y otras cositas mas. Fica absolutamente claro que o seu David não entende nada – ou não quer entender – dos processos históricos que formaram a sociedade brasileira, eminentemente patriarcal e branca.

O penúltimo parágrafo escrito na coluna do seu David é um primor de manipulação, que faz um raio-x da maneira como a mídia podre, da qual ele é um expoente, costuma agir. A campanha do TSE, muito legítima, a propósito, visa a estimular a maior participação feminina na política institucional. E ponto! Ver além disso é querer passar uma imagem distorcida para a sociedade.

Sei que o David Coimbra tem sérios problemas de saúde, inclusive está nos EE.UU. Tratando da sua saúde. Não desejo (muito) mal a ninguém, por pior que seja, mas gostaria muito que a doença fizesse este cara refletir se vale mesmo a pena passar a vida, que pode ser bem curta, fazendo as vontades do chefe.

 

 

http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4531321.xml&template=3916.dwt&edition=24583&section=70

 

http://www.opovodoclube.com/

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 20/6/2014.

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Língua Portuguesa, Linguística, Republicados

O cientista e o…*

Assuntos referentes à língua portuguesa constituem um dos temas recorrentes por aqui. Não tenho habilitação profissional pra falar disso de forma científica, mas quanta gente também não tem e fala mesmo assim? De qualquer sorte, sou um profundo conhecedor da língua falada no Brasil, ou melhor, de uma(s) das línguas faladas no Brasil. Alguns dirão que eu estou viajando, porque, afinal a língua falada no Brasil é uma só, o português (será mesmo?). Outros me acharão pretensioso e arrogante, além de contraditório, afinal eu disse ali em cima que não tenho habilitação pra falar e agora digo que conheço profundamente a língua. Corro, então, a clarear o que eu disse.

Assim como eu sou um profundo conhecedor da língua falada no Brasil (vou deixar assim pra não ficar chato, mas a observação já foi feita e continua valendo), a minha filha, Alexandra, de 4 anos, também é, e o carinha que “cuida” os carros na Getúlio com a Barbedo, igualmente, mesmo que ele já tenha me dito que não sabe ler nem escrever. Quem já leu algum outro texto sobre o assunto por aqui ou, ainda melhor, quem gosta do assunto e já leu alguma coisa escrita pelos grandes linguistas que temos no Brasil, não vai achar nada estranho isso que eu estou dizendo. Mas pra quem não está habituado com isso, dou mais uma clareadinha, dizendo que a diferença entre mim, a Alexandra e o negãozinho da casinha (é assim que ele gosta de ser chamado, porque sempre fica perto de uma casinha de chaveiro) é que eu certamente tenho um léxico um pouco mais amplo e estou mais acostumado a identificar que tipo de linguagem usar em cada ocasião da vida (mais informal entre amigos, mais técnica quando necessário, mais formal em determinadas circunstâncias).

O que eu quero (re)afirmar com este escrito é que a língua é um dos mais importantes e eficientes mecanismos de propagação do preconceito social, seja por conta da classe social, do lugar onde mora e outros fatores determinantes para a exclusão. E isso fica bem claro nos dois textos que eu transcrevo na íntegra a seguir, ambos publicados na (excelente) Revista Língua Portuguesa, da editora Segmento (edição nº 89, março de 2013, páginas 51 E 44-45, respectivamente). O segundo é de autoria de Sírio Possenti, que tem assim definida a sua qualificação no final do texto: Professor Titular do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Humor, Língua e Discurso (Contexto). O outro é do Jornalista e autor de Língua sem Vergonha (Civilização Brasileira, 2011), Josué Machado. Ao final da leitura dos dois textos, gostaria que fosse feita uma reflexão sobre quem tem habilitação e, portanto, fala com mais propriedade sobre a CIÊNCIA LINGUÍSTICA, não esquecendo que a revista, embora possa ser lida com prazer por qualquer pessoa, pode ser considerada uma publicação técnica, que trata da língua como um objeto científico, da mesma maneira que há revistas específicas sobre a Ciência do Direito, a Ciência da Medicina, a Ciência da Física etc.

Antes, porém, de passar aos textos, quero referir outra matéria surpreendente da revista, que mostra que uma pesquisa feita nos EE.UU. revela que o primeiro fator de atração a ser considerado por um homem quando tem interesse numa mulher é o estado geral dos dentes, e o segundo, pasmem, é o uso “correto” da língua. Dessa reportagem, destaco a fala de um tal Flávio Vianna, citado no texto, paulistano de 41 anos, que assim se manifestou: “Há pouco tempo, conheci uma garota bonita, com um corpo bonito, mas quando abriu a boca foi um desastre. (…) Realmente me incomoda, a ponto de eu sentir vergonha. Vai que um amigo escuta? Ter um relacionamento com alguém que não sabe falar direito é um retrocesso.” De minha parte, acho que o verdadeiro retrocesso é ainda acreditar que uma mulher brasileira, em idade apta a ter um relacionamento amoroso (pelo menos eu espero que tenha idade pra isso) e que, portanto, já precisou se comunicar usando a linguagem milhões de vezes na vida, não sabe falar direito. E retrocesso ainda maior é considerar esse “não falar direito” motivo de vergonha perante os amigos (todos súditos do Napoleão Mendes de Almeida e do Pasquale Cipro, decerto…).

Sem mais delongas, vamos aos textos.

“Aumentos sofrem (seção Dito & escrito). 

Por motivos misteriosos, o verbo ‘sofrer’ aparece em notícias sobre aumentos de preços e outros valores

Por Josué Machado

Em noticiário de rádio, a repórter revela que a milionária avenida Faria Lima ‘é aquela em que o metro quadrado dos edifícios comerciais mais sofreu aumento em São Paulo’. Na TV, a âncora do noticiário lembra que o auxílio-moradia concedido pela prefeitura às vítimas de enchentes ‘não sofre reajuste’ desde 2009. Pelo jornal, sabemos que o então presidente do Supremo, ministro Ayres Britto, enviou ao Congresso proposta de reajuste salarial para o Judiciário; desse modo, quando o reajuste for confirmado, ‘os salários de todos os servidores que recebem o teto salarial vão sofrer aumento‘.

Anunciava-se  mais ou menos na mesma época que o salário mínimo sofreria aumento, mas não se sabia ainda que aumento sofreriam os proventos dos aposentados. Na análise do índice de inflação, tomamos ciência de que o preço do tomate é o que sofreu o maior aumento por causa do excesso de chuvas. (Às vezes é pela falta de chuvas.) Somos lembrados também, por um mestre, de que ‘a língua sofre mudanças com o correr do tempo’.

Por que tanto sofrimento? Que razões levam um redator a estabelecer relação entre aumentos de preços ou salários e sofrimento? Talvez porque aumentos em geral resultem em sofrimento. Ou pagar mais sempre dói ou os aumentos de salários são insuficientes, o que resulta em dor pela impotência de não poder pagar o que é preciso.

Sofrimentos

Em todos os casos, ‘sofrer’ ganha o curioso significado aproximado de ‘ganhar’, ‘receber’. Ou, nas transformações da língua, transformar-se ou mudar passa a ser ‘sofrer’. Por que não usam simplesmente os verbos ‘aumentar’ e ‘reajustar’, ainda que no particípio? Assim: ‘A avenida Faria Lima é aquela em que mais aumentou o preço do metro quadrado dos edifícios comerciais em São Paulo.’

‘O auxílio-moradia concedido pela prefeitura às vítimas de enchentes não é reajustado desde 2009.’

Ou: ‘A prefeitura não reajusta o auxílio-moradia às vítimas de enchentes desde 2009.’

‘Os salários de todos os servidores que recebem o teto salarial serão aumentados.’

‘A língua muda com o correr do tempo’.

Enfim, por que tanto fazem sofrer o coitado do verbo ‘sofrer’?

*Grifos no original.

Bueno, em primeiro lugar, o cara é jornalista e se acha no direito de deitar regras sobre o uso da língua para os milhões de falantes dela. É bem provável (ou não) que ele fale um português castiço, que se usava (ou não também) lá no tempo de Camões. A propósito, essa patrulha gramatical adora citar o português de Camões, mas ou eles não leram sequer “Os Lusíadas” ou são muito cretinos mesmo (eu, particularmente, acho as duas coisas), porque lá no poema tão reverenciado por eles, aparecem como traíra de açude muitas palavras que eles condenam. O pior, nesse caso, é que o cara se contradiz no próprio texto. Ele mesmo sugere (com absoluta razão) que a língua é um organismo vivo, em constante transformação (“Ou, nas transformações da língua, transformar-se ou mudar passa a ser ‘sofrer.’”). Se ele refletisse por um segundo sobre essa própria observação, nem escreveria o texto. E dá como exemplo uma afirmação: “A língua muda com o correr do tempo”. (Grifo no original.)

Ora se a língua muda, o que é reconhecido pelo próprio autor, por que não aceitar a mudança que se verifica com o uso do verbo sofrer em outros sentidos além do original (ou mais comum)?

Então tá, vejamos o que diz o CIENTISTA DA LÍNGUA, Sírio Possenti mais ou menos sobre o mesmo assunto.

“A língua não é dos falantes

Analisar as novas formas linguísticas deveria fazer parte do dia a dia de alunos e professores

Por Sírio Possenti

Três questões devem reger o ensino de gramática. Ao lado delas, outras poderiam ser destacadas, como leitura e escrita. O conjunto formaria a ‘área’ de português, digamos:

a) A variação e a mudança da língua;

b) O desenvolvimentos da capacidade de análise;

c) O domínio da norma.

Começo pela última. Não faria sentido tratar da língua portuguesa na escola, em sociedades como a nossa, se um dos objetivos não fosse que os alunos tivessem, ao fim de anos de trabalho, razoável domínio da norma culta (até variavelmente, conforme seus usos reais). Ou seja: que soubessem escrever textos publicáveis, resumos adequados, cartas a autoridades ou a jornais, relatos / relatórios de viagem, etc.

A melhor maneira de aprender a fazer isso é fazendo, e não estudar gramática ou corrigir listas de erros. É claro que a escrita e a rescrita de textos implica consultar dicionários, gramáticas normativas e manuais de redação, para verificar quais as expectativas ‘sociais’, especialmente em caso de dúvida. Aliás, boas aulas ensinam a ter dúvidas na hora certa.

Variação

Em seguida, a questão da variação e da mudança da língua. Não faz sentido, numa era de domínio da ciência (quando se tenta explicar tudo), que os alunos não possam ter ideia razoável de por que as línguas variam conforme a região, a idade, a escolaridade, eventualmente, o sexo, etc. dos falantes.

Talvez a única verdade indiscutível em relação às línguas é que não são faladas uniformemente por todos. A heterogeneidade social implica, ao menos coocorre, na heterogeneidade linguística – em todas as sociedades! Seria simplificador supor (e impor) uma única variedade, tratando o restante das formas da língua simplesmente como erros. Mas o resultado mais interessante da consideração da variedade da língua é que ela pode ser tratada juntamente com sua mudança. 

Suponha um professor de história que parasse na queda do Muro de Berlim e considerasse que o que veio depois não é história (é erro!). Ou defendesse o correio a cavalo, pois assim D. Pedro I soube das pressões de Lisboa para sua volta a Portugal. Por que a invasão ao Iraque não seria história? E por que excluir o envio de dados pela internet? 

A história do português continuou após Machado ou Graciliano. Ou Camões (que, aliás, escreveu ‘que outro valor mais alto se alevanta’!) e Eça. Se o latim pigritia deu ‘preguiça’, por metátese, e isso não é um erro, nem por isso se deve aceitar que ‘estrupo’ é a forma correta, mas por que não se pode aceitar o processo de formação da palavra, em vez de (por falta de saber do que se trata!) rir dela? Principalmente, por que não se pode aceitar que regências mudaram (como as de ‘assistir’ e ‘preferir’)? Por que insistir nos pronomes ‘o’, ‘a’, ‘os’, ‘as’ como objetos diretos pronominais exclusivos (condenando ‘lhe’ (s) nessa função, se, para citar só um estudo, a tese de que ‘lhe’ substitui ‘o’, ‘a’, etc. foi proposta por Mattoso já em 1957? Mais fundamental: não é uma tese nascida da cabeça de Mattoso, mas dos dados do português do Brasil!

Aliás, o estudo é exemplar: não só atesta o desaparecimento do antigo pronome reto, mas o uso de ‘ele’, ‘ela’, etc. como objeto direto, sem propor que isso seja parte da norma, reconhecendo que é estigmatizado. A recusa em reconhecer os fatos, as novas formas da norma (visto que a forma aparece mesmo em textos de escritores profissionais) é equivalente a não reconhecer a internet, o rock, o DNA, as células, pois estes objetos não estão na história do século 19. 

Menos valorizadas

Ser capaz de analisar as formas novas (usadas por pessoas cultas ou não) deveria fazer parte da capacidade do aluno (ao menos, do professor). Aulas de história falam de globalização; as de física, de átomos. Por que as de português não podem falar de formas dialetais menos valorizadas, nem dar-se conta de que formas do século 16 deixaram de existir e as novas estão nos textos dos literatos, que as gramáticas dizem que são suas fontes? Como se pode dizer que ‘Tinha uma pedra’ (no meio do caminho) é erro de português, assim como ‘Joga-se os grãos’ (na água do alguidar), se tais formas estão em Drummond e Cabral – embora não sejam suas criações, mas amplamente usadas pelos que tomamos por cultos?

Em terceiro lugar, é importante aprender a analisar, a observar dados com alguma sofisticação. Aceitar – só porque alguém lhe disse – que ‘o’ e ‘orelhudo’ são adjuntos adnominais de ‘cão’ em ‘O cão orelhudo’, em vez de dizer que ‘orelhudo’ é um adjunto adnominal de ‘cão’ e ‘o’ é adjunto adnominal de ‘cão orelhudo’, é renunciar às capacidade de observação. (sic) 

Análise

Aceitar sem discutir que ‘Livro para mim ler’ é erro porque ‘mim’ não pode ser sujeito, sem dar-se conta que nunca se diz ‘mim vou/vai’ nem ‘lhe vai/vem’, etc., é só engolir ou decorar uma norma.

Deve haver explicação para o fato raro. Provavelmente, decorre de que o falante ‘analisa’ ‘Livro para mim’ e ‘Livro para mim ler’ como casos em que ‘eu’ está no escopo de ‘para’, preposição que rege objeto indireto. Por que, ao se tentar eliminar tal ‘vício’ (!), nunca se leva em conta construções parecidas, como ‘Tenha dó de mim’ e ‘Hoje é dia de eu pagar’? A forma ajudaria a compreender porque a norma espera ‘para eu sair’.

Aprender a analisar (tanto estruturas de acordo com a norma quanto as descriminadas) ajuda a entender porque umas não devem ser usadas em certos tipos de texto: não é que estão erradas (a história da língua mostra qual o seu lugar); é que não são bem avaliadas. E por isso, dependendo do tipo de texto, devem ser incluídas, como o fizeram e fazem os melhores escritores.”

(Grifos no original.)

Este último eu não vou comentar, porque fala por si próprio.

O que acham?   

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 26/3/2013.

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História, Ideologia, Política, Republicados

O Grande Irmão*

Anuncia-se para amanhã a começo de uma nova edição do programa cujo nome foi inspirado pelo grande George Orwell, que, ao saber disso, dizem ter se revirado na tumba. É impressionante a capacidade da televisão brasileira (leia-se Globo, Record, SBT etc.) de tentar promover o emburrecimento do povo. Nesse aspecto, a companhia dos Marinho é imbatível. A pouquinho tempo o país parou, em comoção nacional, pra saber quem tinha matado o Max. Agora todo mundo anda às voltas com turcos que falam mais  chiado que os nascidos e criados nas areais de Copacabana. Amanhã, depois de mais uma etapa da estereotipização e caricaturização de um país muito mais antigo que o nosso, pelo qual deveríamos no mínimo ter respeito, o queridíssimo e filosofal Pedro Bial dará as boas-vindas aos guerreiros, que é como ele chama as pessoas que se submetem ao verdadeiro circo de horrores que é esse BBB. E assim estará oficialmente definida a pauta das conversas para os próximos meses.

Pois bem, lá pelos idos de 2003, estudando Letras na UFRGS, fiz um texto para a Cadeira de Panorama Cultural da Literatura Brasileira, que era brilhantemente mininstrada pelo professor Ricardo Postal. Não me importaria nem um pouco que alguém lesse o meu texto hoje e o qualificasse como datado e anacrônico. Mas infelizmente ele mantém uma certa dose de atualidade em muitos aspectos, como se verá. É certo que em uma década a qualidade da tv brasileira mudou. Seria injusto e desonesto omitir isso. Hoje está muito pior…

A ditadura do BBB

Neste trabalho, pretendo abordar um tema contemporâneo, que ainda está muito presente na memória de todos os brasileiros e cujos efeitos parecem ainda não ter atingido os seus limites.  Falo da agitação social, política e mesmo cultural verificada no Brasil a partir da chamada “Abertura Política”, ocorrida no final dos anos 70, que marcou o início do processo de retomada da democracia, após um longo período de regime de exceção.

Por certo serão necessários alguns resgates históricos a fim de que a questão possa ser contextualizada. Não há como falar na redemocratização do país sem passar, mesmo de forma rápida, pelo período anterior, que deu origem a esse processo. O objetivo final, contudo, é provocar uma reflexão sobre esses acontecimentos da história recente do país e projetar a maneira como essas lembranças podem servir para a formação de uma consciência crítica sobre o momento atual da sociedade brasileira e o seu futuro.

A primeira idéia que lanço e que submeto às críticas daqueles que porventura venham a ler este texto e que tenham pensamentos diferentes, é a de que não deixamos de estar vivendo uma ditadura nos dias modernos. Essa afirmação pode parecer estranha e mesmo absurda se analisada à luz do conceito formal que temos de ditadura. Refiro-me a outro tipo de ditadura, porém. A ditadura por excelência, aquela em que as casas legislativas são fechadas, as liberdades individuais são tolhidas, entre outros absurdos, essa sim ficou para trás e talvez não volte nunca mais. No entanto, acredito que hoje vivemos sob o regime de uma ditadura velada, que utiliza outros meios muito mais sutis para manipular a sociedade. Isso representa uma evolução do pensamento autoritário do homem, que já não encontra meios de subjugar o seu semelhante pela força e acaba descobrindo maneiras de fazê-lo sem que isso seja percebido. Basta que vejamos a verdadeira lavagem cerebral provocada na cabeça das pessoas pelo famigerado BBB.  Ninguém vai dizer que desconhece o significado desta sigla, certo? Sobre siglas, aliás, cabe uma pergunta: qual seria a média de acerto se perguntássemos a cem pessoas, escolhidas aleatoriamente entre o povo, o significado da sigla PEC, da qual tanto se ouve falar atualmente? Baixíssima, com certeza. E essas mesmas pessoas saberiam o que quer dizer BBB? Provavelmente, sim. Uma outra pergunta: o que altera mais profundamente a vida dessas mesmas pessoas: um Projeto de Emenda Constitucional que praticamente arrasa o sistema previdenciário público do país e faz com que o cidadão morra e ainda fique devendo tempo para a aposentadoria, ou o vencedor do prêmio do Big Brother Brasil? Esses são apenas alguns reflexos da ditadura velada a que me referi anteriormente.

Vamos fazer uma rápida viagem no tempo, para chegar ao fim dos anos 70 e começo dos anos 80, quando termina o governo Geisel e começa o governo Figueiredo (aquele mesmo que disse que preferia o cheiro dos seus cavalos ao cheiro do povo, lembram?). Esse período marca o início do processo de abertura política. Exilados, agora anistiados, voltando para casa; eleições diretas para os governos estaduais (aqui foi vencedor o atual candidato a prefeito Jair Soares, que disputou a eleição com o atual senador Pedro Simon); manifestações de trabalhadores no ABC paulista; bombas na OAB e Riocentro; surgimento de um novo partido, comandado por trabalhadores; etc. Muitas figuras se destacam: algumas velhas raposas da política, como o onipresente Leonel de Moura Brizola; o senador Ulysses Guimarães, que seria conhecido mais tarde como o símbolo da Constituinte de 1988; outro senador, Teotônio Vilela, o menestrel da nova república; aquele que seria o legítimo “salvador da pátria”, mas que morreu (???) antes de comer o bolo da festa, Tancredo Neves; alguns outros, que eram debutantes na política, dentre eles o Sr. Luiz Inácio Lula da Silva, que ganharia o mundo sob a alcunha de Lula. Essas são apenas algumas das peças que compunham o intrincado jogo político-social que representava o quadro da sociedade política brasileira na época.

De toda essa história, sobre a qual não vou descer a minúcias, tendo em vista que este não é um texto historiográfico, o que é importante destacar é a gigantesca capacidade de mobilização do povo brasileiro, que saiu às ruas para protestar e exigir uma mudança radical nos rumos da política brasileira, após os longos “anos de chumbo”. No início de 1984, cerca de 500 mil pessoas foram a um comício na Candelária, no centro do Rio. Em São Paulo, cerca de 1,7 milhão foram ao vale do Anhangabaú, na maior manifestação política da história brasileira até então. Os comícios contavam com as presenças de artistas e lideranças políticas, como Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Lula, Teotônio Vilela, Barbosa Lima Sobrinho, Brizola, Fafá de Belém, Chico Buarque, entre outros. Em Porto Alegre, o palco principal das manifestações era o Largo Glênio Peres. Em 13 de abril de 1984, cerca de 150 mil pessoas (dados oficiais da Brigada Militar, o que significa que havia muito mais gente) ganharam as ruas entoando muitas palavras de ordem, cujas principais eram: “DIRETAS JÁ!”

A não aprovação da Emenda Dante de Oliveira, que pedia eleições diretas para presidente já em 1984, foi um banho de água fria nas pretensões populares. Principalmente pelo fato de que ela não foi aprovada por falta de quorum. Como se pudesse existir maior quorum do que a esmagadora maioria de uma população de mais de 150 mil pessoas…

Na eleição, que teve como palco o Congresso Nacional, a disputa entre Tancredo Neves e Paulo Maluf foi acirrada, e a vitória do candidato oposicionista reanimou a nação. Apesar de indireta, a eleição de Tancredo foi recebida com grande entusiasmo pela maioria dos brasileiros. No entanto, Tancredo não chegou a assumir a Presidência. Na véspera da posse foi internado no Hospital de Base, em Brasília, com “fortes dores abdominais”. José Sarney, que nessa época ainda era um simples mortal, assumiu seu lugar interinamente. Depois de sete cirurgias, Tancredo veio a falecer em 21 de Abril (que data interessante para um mineiro morrer, não é mesmo?!?), aos 75 anos de idade, vítima de infecção generalizada (?!?). Ocorreu uma verdadeira comoção nacional, tantas as esperanças que haviam sido depositadas em Tancredo. Em 22 de abril de 1985, Sarney foi investido oficialmente no cargo. Há quem sustente a idéia de que Sarney não poderia ter tomado posse como presidente porque não havia sido empossado no cargo de vice, em função da morte de Tancredo. O fato é que ele foi diplomado e governou até 1990, um ano a mais do que o previsto na carta-compromisso da Aliança Democrática, pela qual chegou ao poder. Um fato importante, que não pode ser esquecido: o responsável pela divulgação, em rede nacional, da morte de Tancredo, foi, ninguém mais ninguém menos do que o nosso velho conhecido Antônio Britto, que era o porta-voz da Presidência. Hoje, para quem não sabe, após tantas idas e vindas, o Sr. Britto é membro do Conselho Administrativo da empresa Azaléia (ou Azalea?!?), e não tenho certeza se ele não é o próprio presidente do grupo. Achar que há alguma relação com vantagens fiscais e de outras naturezas obtidas pela empresa quando da sua gestão no governo gaúcho é muita viagem, certo? Será?

Voltando à história do país, o que vem a seguir, todos já sabem. Quero retomar a proposta inicial e provar a minha tese de que vivemos uma ditadura velada. Primeiramente, cabe lembrar a maneira através da qual legisla um governo que fecha as casas legislativas, que são as que têm a função institucional de criar leis. Isso se dá por intermédio da edição de Decretos, ou mesmo de Atos Institucionais. O que é a atual Medida Provisória se não o ressurgimento do Decreto-Lei? A Medida Provisória foi criada pela Constituição de 1988 com o intuito de possibilitar ao Executivo a normatização de algum tema de urgência e relevância, tendo caráter provisório, devendo ser convalidada no prazo de trinta dias pelo Legislativo. Vejamos, porém, como é utilizado o sistema. O governo edita MP’s sobre qualquer assunto, em qualquer período e, se não passar no Congresso, reedita sob outro número. Um governo que legisla pelo Executivo é, na minha opinião, ditatorial, sim senhor!

Vamos adiante. Quando há risco de que alguma proposta governamental seja rejeitada pelo Congresso, o presidente literalmente compra os deputados e senadores, como fez muitas vezes Fernando Henrique. Não caracteriza uma ditadura?

Recentemente, no curso do processo de aprovação da PEC da Previdência, um grupo de servidores públicos federais foi impedido de entrar no Congresso para acompanhar a votação. Barrar a entrada de cidadãos na “casa do povo” é prática comum de um regime democrático?

As emissoras de rádio e televisão funcionam por intermédio de concessões do governo. Façam o exercício de observar quantas concessões são autorizadas em anos eleitorais pelo Brasil a fora, particularmente nos estados do nordeste. Ainda acham que vivemos numa democracia plena?

Quando tempo a Rede Globo levou para lançar a nova versão do BBB? Dado o sucesso do programa, não é curioso que tenha ficado tanto tempo fora do ar, sendo lançado justamente num momento em que o país passa por drásticas transformações, principalmente na área previdenciária? E o que dizer desses constantes “escândalos” televisivos que surgem de tempos em tempos (Casseta e Planeta afrontando o povo gaúcho, Gugu armando farsa contra outros jornalistas, etc.).

Talvez eu seja um tanto quanto paranóico, mas tudo isso me parece um grande quebra-cabeças, cujas peças são lançadas gradativamente a fim de entreter o povo. Enquanto isso, em Brasília, ocorre uma convocação extraordinária do Congresso. E quem paga a conta?

Tudo isso me leva a crer que a minha teoria está certa. Vivemos numa ditadura sem ditadores. Ou melhor, vivemos numa ditadura cujos ditadores se escondem atrás dos escândalos televisivos, dos próprios programas de televisão, dos grandes campeonatos esportivos, enfim, atrás de tudo o que possa servir para mascarar a manipulação a que está sendo submetido o povo, que está preocupado mais com a hora de ver o Pedro Bial do que com a hora de poder gozar os benefícios de toda uma vida de trabalho.

Creio que o povo deveria olhar só um pouquinho para a sua história recente e refletir sobre ela. Apesar da retomada de todas as liberdades individuais, da garantia de todos os direitos fundamentais do cidadão, de todo o status social da Constituição-cidadã, como é conhecida a Carta de 88, apesar de tudo isso ainda se morre de fome no Brasil. Ainda se vê crianças trabalhando nas olarias e minas de carvão; ainda se vê mulheres sendo espancadas pelos maridos; ainda se vê pais abandonando os filhos recém-nascidos em latas de lixo, ainda se vê… Ainda se vê gente assistindo ao Big Brother Brasil…

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 7/1/2013.

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Ideologia, Política de Cotas, Políticas Afirmativas, Políticas Sociais, Republicados

A consciência negra, a (in)consciência branca, as cotas raciais e a lei do boi*

Um fato comentado pela minha filha hoje quando eu a levava pro colégio me deixou impressionado e assustado. Ela disse, na sua inocência como se fosse algo positivo, que a professora de geografia (6ª série) falou que a instituição de um dia para chamar a atenção para a consciência negra é uma forma de preconceito. Tenho vontade de conversar com a professora para saber em que ela baseia essa sua ideia. Deve ser nos mesmos argumentos de quem é contrário às cotas raciais na universidade.

Bueno, em primeiro lugar, acho importante lembrar um fato que é esquecido ou deliberadamente desconsiderado por muitas pessoas, que se dizem progressistas e liberais. O Brasil foi o último, isso mesmo, o último país das Américas a abolir o sistema escravista. E isso aconteceu há pouco mais de 100 anos. Teorias criacionistas à parte, a ciência estima que o surgimento de algo parecido com o Homem no nosso planeta se deu há alguns milhões de anos. Alguns milhões de anos!! Antes do patrício Cabral, havia homens andando pelo nosso Brazil. A historiografia oficial diz que o Brasil foi encontrado em 1.500. (Eu aprendi no colégio que o Pedro queria ir pras Índias, buscar pimenta e canela, e uma ventania fez com que ele desse as caras na terra de Santa Cruz. E aprendi também que os portuga eram tudo gente fina, que mandaram os padrecos pra cá pra civilizar os índios, que andavam peladões por aí. Essas cositas a gente aprendia nos idos dos 70’s…) Mas, voltando à vaca fria, diante desses dados, o que são cento e poucos anos? Nada! Pois o tempo em que os negros são “livres” no país da miscigenação e da democracia racial é mais ou menos este: cento e poucos anos. Por pouco não temos entre nós pessoas que viveram na senzala. Mas netos dessa gente têm bastante e certamente até alguns filhos.

Talvez eu não tenha conseguido ser tão claro quanto pretendia no parágrafo anterior, então vou melhorar o que eu disse:

num país de 500 anos, que se insere num contexto em que o homem apareceu há alguns milhões de anos, cento e poucos anos de abolição da escravatura é nada, nada, NADA!

Se considerarmos que “libertação” dos escravos ocorreu de maneira que eles estavam “livres” de um dia para o outro, mas sem trabalho, sem casa, sem vida social, sem nada, dá pra reduzir ainda mais esses 100 anos. Disseram assim pra negrada: “Ó, gente, a partir de amanhã vocês são livres. Vão à luta!” E se considerarmos que a Lei Afonso Arinos, que é a primeira no país que trata da discriminação racial, é de 1951, ou seja, tem pouco mais de meio século, vamos ver que esses 100 anos são, na verdade, cinquenta e poucos. E se pensarmos que ainda hoje é necessário que se crie uma política de cotas para que os pretos possam estudar na universidade, chegaremos à conclusão que a escravidão não acabou.

Quem acha um absurdo que seja instituída oficialmente uma semana da consciência negra e que seja designado um dia específico para esta celebração, casualmente o dia de hoje (isso tem algo a ver com o Zumbi…), certamente não se deu ao trabalho de examinar as condições que levaram à criação dessa efeméride. Dizer que isso é uma forma de preconceito é, no mínimo, uma demonstração inequívoca de preguiça de pensar, para não dizer coisa pior.

Os processos de conscientização dos negros (que não se restringem aos negros, mas a todos aqueles que conseguem enxergar um palmo á frente do nariz) se inserem num quadro muito maior de lutas dos movimentos negros, que buscam o reconhecimento das pessoas de cor preta como cidadãos  efetivos, que têm os mesmo direitos que todos os outros, brancos, amarelos, vermelhos. Nesta semana da consciência negra, estão sendo realizados eventos alusivos ao tema por toda a cidade, desde palestras, debates, passeios pelos quilombos urbanos de Porto Alegre (sim, existem!), shows, festivais etc. Quem tiver interesse em aprofundar um pouco a visão sobre o assunto, pode escolher algum desses eventos, que são na maioria gratuitos. Basta um pouquinho de vontade. Vão descobrir coisas muito legais, como por exemplo o antigo apelido da esquina da Rua da Praia com a Borges, que antes de virar Esquina Democrática era a Esquina do Zaire.

Pergunto aos que se posicionam contra as cotas raciais na universidade e defendem apaixonadamente as suas razões, dizendo que se trata de racismo, protecionismo, assistencialismo e outros ismos, se eles se manifestaram com a mesma veemência durante o tempo de vigência da “Lei do Boi” (bota lá no google), que destinava cotas, é, cotas, para que os filhos dos fazendeiros pudessem entrar na universidade? Olha, procurei bastante pela internet a fim de encontrar alguém que se posicione contrariamente às cotas raciais e que tenha sido coerente, criticando as cotas ruralistas. Não encontrei um, sequer um! E o seu Onyx Lorenzoni já fazia política nessa época. Por que ele(s) não disseram nada? Será por que não existem e nunca existiram fazendeiros negros ou filhos negros de ruralistas que não sejam “bastardos” (lembrando que a Constituição Cidadã baniu esse termo)?

Sei lá, vai entender a lógica dessa gente…

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 20/11/2012.

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