Ideologia, Política de Cotas, Políticas Afirmativas, Políticas Sociais, Republicados

A consciência negra, a (in)consciência branca, as cotas raciais e a lei do boi*

Um fato comentado pela minha filha hoje quando eu a levava pro colégio me deixou impressionado e assustado. Ela disse, na sua inocência como se fosse algo positivo, que a professora de geografia (6ª série) falou que a instituição de um dia para chamar a atenção para a consciência negra é uma forma de preconceito. Tenho vontade de conversar com a professora para saber em que ela baseia essa sua ideia. Deve ser nos mesmos argumentos de quem é contrário às cotas raciais na universidade.

Bueno, em primeiro lugar, acho importante lembrar um fato que é esquecido ou deliberadamente desconsiderado por muitas pessoas, que se dizem progressistas e liberais. O Brasil foi o último, isso mesmo, o último país das Américas a abolir o sistema escravista. E isso aconteceu há pouco mais de 100 anos. Teorias criacionistas à parte, a ciência estima que o surgimento de algo parecido com o Homem no nosso planeta se deu há alguns milhões de anos. Alguns milhões de anos!! Antes do patrício Cabral, havia homens andando pelo nosso Brazil. A historiografia oficial diz que o Brasil foi encontrado em 1.500. (Eu aprendi no colégio que o Pedro queria ir pras Índias, buscar pimenta e canela, e uma ventania fez com que ele desse as caras na terra de Santa Cruz. E aprendi também que os portuga eram tudo gente fina, que mandaram os padrecos pra cá pra civilizar os índios, que andavam peladões por aí. Essas cositas a gente aprendia nos idos dos 70’s…) Mas, voltando à vaca fria, diante desses dados, o que são cento e poucos anos? Nada! Pois o tempo em que os negros são “livres” no país da miscigenação e da democracia racial é mais ou menos este: cento e poucos anos. Por pouco não temos entre nós pessoas que viveram na senzala. Mas netos dessa gente têm bastante e certamente até alguns filhos.

Talvez eu não tenha conseguido ser tão claro quanto pretendia no parágrafo anterior, então vou melhorar o que eu disse:

num país de 500 anos, que se insere num contexto em que o homem apareceu há alguns milhões de anos, cento e poucos anos de abolição da escravatura é nada, nada, NADA!

Se considerarmos que “libertação” dos escravos ocorreu de maneira que eles estavam “livres” de um dia para o outro, mas sem trabalho, sem casa, sem vida social, sem nada, dá pra reduzir ainda mais esses 100 anos. Disseram assim pra negrada: “Ó, gente, a partir de amanhã vocês são livres. Vão à luta!” E se considerarmos que a Lei Afonso Arinos, que é a primeira no país que trata da discriminação racial, é de 1951, ou seja, tem pouco mais de meio século, vamos ver que esses 100 anos são, na verdade, cinquenta e poucos. E se pensarmos que ainda hoje é necessário que se crie uma política de cotas para que os pretos possam estudar na universidade, chegaremos à conclusão que a escravidão não acabou.

Quem acha um absurdo que seja instituída oficialmente uma semana da consciência negra e que seja designado um dia específico para esta celebração, casualmente o dia de hoje (isso tem algo a ver com o Zumbi…), certamente não se deu ao trabalho de examinar as condições que levaram à criação dessa efeméride. Dizer que isso é uma forma de preconceito é, no mínimo, uma demonstração inequívoca de preguiça de pensar, para não dizer coisa pior.

Os processos de conscientização dos negros (que não se restringem aos negros, mas a todos aqueles que conseguem enxergar um palmo á frente do nariz) se inserem num quadro muito maior de lutas dos movimentos negros, que buscam o reconhecimento das pessoas de cor preta como cidadãos  efetivos, que têm os mesmo direitos que todos os outros, brancos, amarelos, vermelhos. Nesta semana da consciência negra, estão sendo realizados eventos alusivos ao tema por toda a cidade, desde palestras, debates, passeios pelos quilombos urbanos de Porto Alegre (sim, existem!), shows, festivais etc. Quem tiver interesse em aprofundar um pouco a visão sobre o assunto, pode escolher algum desses eventos, que são na maioria gratuitos. Basta um pouquinho de vontade. Vão descobrir coisas muito legais, como por exemplo o antigo apelido da esquina da Rua da Praia com a Borges, que antes de virar Esquina Democrática era a Esquina do Zaire.

Pergunto aos que se posicionam contra as cotas raciais na universidade e defendem apaixonadamente as suas razões, dizendo que se trata de racismo, protecionismo, assistencialismo e outros ismos, se eles se manifestaram com a mesma veemência durante o tempo de vigência da “Lei do Boi” (bota lá no google), que destinava cotas, é, cotas, para que os filhos dos fazendeiros pudessem entrar na universidade? Olha, procurei bastante pela internet a fim de encontrar alguém que se posicione contrariamente às cotas raciais e que tenha sido coerente, criticando as cotas ruralistas. Não encontrei um, sequer um! E o seu Onyx Lorenzoni já fazia política nessa época. Por que ele(s) não disseram nada? Será por que não existem e nunca existiram fazendeiros negros ou filhos negros de ruralistas que não sejam “bastardos” (lembrando que a Constituição Cidadã baniu esse termo)?

Sei lá, vai entender a lógica dessa gente…

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 20/11/2012.

Padrão
Educação, Legislação, Política, Racismo, Republicados

Universidade: universalismo de fato*

Tema de extrema relevância, com grande repercussão social, apaixonante, capaz de provocar debates e discussões acaloradas, que nem sempre primam pela racionalidade dos argumentos, isso tudo e muito mais é a política de reserva de vagas para negros nas universidades públicas brasileiras, popularmente chamada de sistema das cotas raciais, uma das chamadas Políticas de Ação Afirmativa, que, ao contrário do que se pensa comumente, deita suas raízes na Índia, em sua luta pela libertação do jugo britânico, e não nos Estados Unidos da América.

Há negros que são contrários, há brancos que as defendem; há quem diga que isso é coisa de “gente de esquerda”, na forma mais pejorativa aplicável à expressão, e os que apontam para uma omissão do Estado em problemas maiores, dizendo que ele usa as cotas apenas para dar uma satisfação à sociedade. Enfim, opiniões e posições há para todos os lados e é natural que cada um tenha a sua, ou as suas. O que me preocupa é quando as manifestações surgem de pessoas que exercem certo poder no contexto social e aqui me refiro especificamente aos jornalistas e comunicadores, que têm largos espaços nos órgãos de imprensa e não raro confundem liberdade de imprensa, tão cara ao regime democrático, com um certo tipo de libertinagem, que lhes permite emitir opiniões e sentenças peremptórias sobre os mais diversos assuntos, muitas vezes sem ter nenhum embasamento para isso. Para não me alongar muito, apenas cito como exemplos o Rogério Mendelski, cujas manifestações preconceituosas e sectárias não devem provocar surpresa em mais ninguém, e o pretenso intelectual David Coimbra, para quem tudo se resolveria com um sistema de cotas para as escolas públicas (está lá no blog dele, em 18 de maio).

Esse tipo de manifestação me levou a escrever sobre o assunto, que me interessa há muito tempo e sobre o qual procuro ler tudo o que me chega às mãos. Pretendo falar brevemente sobre um dos tantos argumentos usados pelos que são contrários ao sistema de cotas e que me causa um pouco de perturbação, que é a ideia que as cotas raciais deveriam ser simplesmente substituídas pelas cotas sociais, privilegiando o aspecto econômico, que, segundo alguns, nivela brancos e negros na pobreza. Na minha ótica, como se verá adiante, não é assim que a coisa funciona.

Começo por examinar o termo “universidade”, cujo primeiro significado no dicionário Hoauiss é “qualidade ou condição do que é universal”, página 2.807, da 1ª edição, de 2001. A segunda definição faz referência à ideia de instituição de ensino. Ou seja, a universidade, como instituição de ensino, deve, na medida do possível, como denota a origem da sua denominação, fazer uma reprodução do universo social, e esse inclui brancos, negros, amarelos, vermelhos, etc. Todavia, não é preciso muita pesquisa de campo para se verificar que não é essa a realidade da UFRGS, que é a que nos interessa no momento por ser a mais próxima de nós. Cursei alguns semestres de Letras e me lembro de pouquíssimos colegas negros. A bem da verdade, apenas de uma. Pobres, ou pessoas com condições econômicas desfavoráveis, havia em número considerável, se bem que longe do que talvez seja o ideal. Por outro lado, quando a minha esposa estava na faculdade de Odontologia, nunca vi um negro que fosse seu colega. E ela própria pode servir como representação de alguém que veio de uma classe social pouco ou quase nada privilegiada e chegou à universidade. De novo se observa que pobres há, ainda que poucos, mas negros inexistem. Conheci, em diversas áreas, inclusive na Faculdade de Letras, professores e profissionais que vieram de famílias pobres. Não me lembro de nenhum negro. Isto é, ainda que longe do que se espera, as classes economicamente desfavorecidas têm alguma representação na universalidade da universidade, com o perdão da redundância. Os negros não têm nenhuma. Pelo menos não que se possa considerar como tal.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal pôs fim a uma discussão sobre a constitucionalidade do sistema de cotas. Era o julgamento de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo DEM – Democratas – partido sucedâneo da ARENA –Aliança Renovadora Nacional -, de saudosa memória para alguns, que tem um programa extremamente conservador e que congrega em seus quadros políticos e militantes que defendem a pena de morte, a esterilização em massa, etc. Ideologias à parte, para quem tiver interesse, sugiro a leitura dos votos dos ministros, que está disponível no site http://www.stf.jus.br, e, no caso de desejarem um aprofundamento, há textos bastante esclarecedores,  com ótimas remissões, disponíveis em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa.

O professor Hélio Santos, doutor em Economia e Administração, e negro, tem uma frase muito significativa e sugestiva: “O problema foi o dia 14.” De fato, se pensarmos no dia 13 de maio como um marco da disseminação da luta contra o preconceito racial, tudo fica muito bonito. Mas e o dia 14? O que aconteceu a partir daí? Negros libertos? Sim! Trabalho, terras, bens, dignidade, condições mínimas para uma vida decente? NÃO!! E observem que não foi por questão estilística que optei por usar o termo libertos quando poderia dizer livres. Há uma sutil distinção entre libertos e livres. Os negros, ex-escravos, estavam, pós-abolição, fisicamente livres, mas na prática apenas deixaram de morrer pelo açoite para morrer de fome, pois não lhe foram dadas as mínimas condições para que pudessem levar uma vida que se pudesse dizer humana. Os que sobreviveram deram origem aos guetos e favelas que existem e se proliferam ainda nos nossos dias, em nossa sociedade “livre do preconceito racial”. E hoje estamos distantes apenas 124 da Lei Áurea, o que significa dizer que há entre nós descendentes diretos de escravos. Bisnetos, netos, até mesmo filhos. Eu, que não tenho ascendentes negros, senão que talvez remotamente, posso saber com exatidão das dificuldades que sente um desses, cuja origem escrava está logo ali, há pouco mais de um século? Obviamente não. Por outro lado, posso me considerar exatamente igual, no sentido de ter as mesmas condições de vida, como preconiza a Constituição Federal (“Todos são iguais perante a lei.”) a um negro com esse histórico? Também não. Diante dessa simples constatação, cai por terra o mito da igualdade racial no Brasil.

Vejamos o que diz o psicanalista Contardo Calligaris:

 

“Em meus primeiros contatos com a cultura brasileira, acreditei inevitavelmente ter encontrado o paraíso de uma democracia racial. (…) Mas essa sensação inicial não demorou muito tempo, pois logo tive a oportunidade, ao me estabelecer no Brasil, de analisar alguns pacientes negros. Bastou para descobrir imediatamente que minha impressão de uma paradisíaca democracia racial devia ser perfeitamente unilateral. (…) O mito da democracia racial é fundado em uma sensação unilateral e branca de conforto nas relações inter-raciais. Esse conforto não é uma invenção. Ele existe de fato: é o efeito de uma posição dominante incontestada. (…) Sonhar com a continuação da pretensa ‘democracia racial brasileira’ é aqui a expressão da nostalgia do que foi descrito antes, ou seja, de uma estrutura social que assegura a tal ponto o conforto de uma posição branca dominante, que o branco – e só ele – pode se dar ao luxo de afirmar que a raça não importa.” (CALLIGARIS, Contardo. “Notas sobre o desafio para o Brasil.” In: Anais do Seminário Internacional “Multiculturalismo e racismo: o papel da Ação Afirmativa nos estados democráticos contemporâneos.” Brasília: Ministério da Justiça/Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 1997. p. 243-245.)

Em 2004, a UFRGS convidou o então presidente da República Popular de Moçambique, Joaquim Alberto Chissano, um homem com um grande currículo de lutas pela emancipação dos países africanos, para ministrar uma Aula Magna, com o tema Cooperação África e Brasil no âmbito da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD). E vejam  o que ele disse:

“(…) E quero destacar um ponto que até pode ser polêmico mas eu sempre gostei de dizer coisas chocantes, inclusive para os meus colegas brasileiros presidentes da República e ministros das Relações Exteriores. Dessa forma, tenho ouvido que o Brasil é um país multirracial, um país onde não há racismo, um país de igualdade, onde cada habitante se sente com sangue brasileiro. Porém, muitas vezes me senti incomodado com essas expressões pois me pareciam não corresponder à realidade. A primeira vez que aqui estive, fui a Bahia e lá vi muito negro na rua, vi muito negro no mercado e Salvador me pareceu uma parte da África. Depois, tive encontros, reuniões de ‘business’ e senti-me, de novo, na Europa. Lá não vi nenhum negro, não senti a igualdade, o sangue brasileiro estava camuflado.” (“Cooperação África e Brasil no âmbito da nova parceria para o desenvolvimento da África (NEPAD): aula magna UFRGS 2004/ Joaquim Alberto Chissano”. – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.)

            As palavras do mandatário moçambicano, pessoa insuspeita para tratar do assunto, escancaram a realidade brasileira, que muitos tentam mascarar. Nas ruas, nos locais públicos, onde seria impossível evitar a convivência, os negros estão por todas as partes. Nos locais restritos, porém, palcos das discussões políticas e econômicas, que decidem como vai ser a vida da população, eles estão alijados da participação. Que “democracia racial” é essa que só se exerce onde é impossível evitar a sua prática? Mesmo lá, nos locais em que os negros estão, é pouco provável que os “democratas raciais” estejam à vontade dividindo seus espaços com essa “subclasse de cidadãos”.

Sobre o que diz o David Coimbra, referido antes, que a solução está na oferta de vagas reservadas para estudantes oriundos de escolas públicas, basta que se faça um pequeno resgate histórico de alguns anos, nos tempos em que o nível da escola pública era considerado bom, para que observemos que naquela época os negros não tinham acesso ao ensino proporcionado pelo Estado, pois não podiam dividir o espaço com os brancos. E isso não faz muito tempo. Expandindo a questão, há que se dizer que uma coisa são as cotas sociais e outras são as de recorte racial. Elas têm base em problemas diferentes e, consequentemente, visam à correção de distorções distintas. Se o problema fosse meramente econômico, me parece que seria razoável que o “Dr.” Coimbra defendesse também a reserva de vagas em concursos públicos não para portadores de deficiência e mulheres, mas apenas para portadores de deficiência pobres e mulheres pobres. Observe-se que temos aqui quatro tipos diferentes de discriminação: contra portadores de deficiência, contra mulheres, contra pobres e contra negros. Cada tipo com as suas particularidades, o que enseja a adoção de iniciativas próprias para combater cada um deles.

No início do ano, quando se discutia a adoção de reserva de vagas para negros nos concursos públicos estaduais no Rio Grande do Sul, a Procuradoria-Geral do Estado emitiu extenso parecer, do qual resgatei o trecho a seguir:

 “Diga-se, ainda, que as cotas raciais, se por um lado não são incompatíveis com as denominadas cotas sociais, por outro lado não as substituem nem por elas podem ser substituídas, sendo possível, isto sim, associação de critérios entre estas e aquelas. Mas há que se advertir que as cotas étnico-raciais, especificamente as dirigidas às pessoas negras, se justificam mesmo diante da possibilidade de adoção do critério de cotas sociais. Pois como demonstram os dados estatísticos e demais estudos sociológicos aqui trazidos ou referidos, há na realidade da exclusão e de desigualdades sociais uma perversa tônica em desfavor das pessoas negras. Mesmo dentro das margens de maiores desigualdades em que também pessoas brancas são abarcadas, as pessoas negras são as mais inferiorizadas, as mais discriminadas e as que estão submetidas às maiores desigualdades.

Por outro lado, as cotas raciais não têm objetivo único de atacar as desigualdades sofridas por negros e negras em seu viés econômico, senão que para além disso, buscam também sanar os aspectos culturais mórbidos de discriminação fundados no preconceito de cor, que é onde residem muitas das determinantes da própria desigualdade social e econômica.”  (Carlos César D’Elia, Procurador do Estado, Coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Parecer nº 15.703/PGE, 16/03/2012. www.pge.rs.gov.br/upload/estudosdireito1[1]cotasraciais.pdf.)

                Ou seja, um estudo abalizado, feito por uma entidade da estatura da PGE/RS, aponta que a discriminação racial vai além da questão econômica. Brancos pobres são segregados, mas negros pobres são mais ainda. Brancos ricos têm situação favorável na sociedade, negros ricos, porém, por maior destaque que obtenham, não escaparão dos olhares desconfiados. Alguém se lembra daquele caso, ocorrido há alguns anos, em que dois jovens negros que corriam para evitar o atraso para o vestibular da UFRGS foram abordados por brigadianos e acabaram de fato perdendo a prova? Eles eram filhos de um engenheiro, portanto a sua situação social certamente não era das piores. O que fez com que os policiais desconfiassem deles? Fossem brancos, o fato teria ocorrido? Foi a triste consumação daquela piada que diz: “branco correndo está atrasado, negro correndo está fugindo da polícia.” Diante dessa realidade, cotas sociais resolveriam o problema?

                Quando se diz que um aluno cotista está tirando a vaga de outro que apresentou melhor desempenho e por isso o sistema é injusto, apenas se está buscando uma simplificação do problema. Como bem observou o Ministro Marco Aurélio Mello, no seu voto por ocasião da ADPF citada:

“A meritocracia sem ‘igualdade de pontos de partida’ é apenas uma forma velada de aristocracia”. 

Ou seja, não basta apenas criar uma situação fictícia de igualdade, pela qual negros e brancos concorreriam nas mesmas condições. É preciso que essa igualdade seja alcançada lá nos pontos de partida e as cotas podem representar um instrumento muito eficaz para que se logre êxito nesse objetivo. A conta de mais negros nas universidades emana seus reflexos na sociedade, com mais negros com maior nível de esclarecimento em suas comunidades, que serão capazes de transmitir valores mais elevados aos seus pares. Em algum tempo teremos mais professores negros, mais médicos negros, mais dentistas negros (a propósito, alguém conhece algum?), enfim, mais negros ocupando posições de destaque e prestígio social e, como consequência disso, as práticas de preconceito e segregação tenderão a ser enfraquecidas.

                No mesmo sentido da argumentação do Ministro Marco Aurélio, está o posicionamento do renomado jurista Dalmo de Abreu Dallari:

 

“O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os primeiros em situação de privilégio, mesmo que sejam socialmente inúteis ou negativos.” (DALLARI, Dalmo de Abreu. “Elementos da Teoria Geral do Estado.” 25ª ed. São Paulo: Saraiva. P. 309. In voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186, em 25/04/2012.)

                Defendendo a adoção de medidas que, embora aparentemente contrárias ao princípio constitucional da igualdade formal, que é fictício e precário diante da realidade social, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos diz:

 

“(…) temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.” (SANTOS, Boaventura de Sousa. “Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural.” Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P.56. in voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186, em 25/04/2012.)

                      Não basta que sejamos iguais perante a lei. É preciso que sejamos iguais perante a sociedade, visto que não há um fator genético de diferenciação entre negros e brancos, segundo o qual estes supostamente teriam maiores aptidões ao desenvolvimento intelectual. É o que diz o representante da Fundação Ford, Jean Dassin:

 

“Em nove anos de funcionamento, o IPF comprovou definitivamente que talento intelectual e compromisso social abundam nas comunidades marginalizadas de todo o mundo em desenvolvimento e que o acesso à educação superior pode ser ampliado sem prejuízo dos padrões acadêmicos.” (DASSIN, Jean. “Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação da Fundação Ford.” In: “Acesso aos direitos sociais: infância, saúde, educação, trabalho.” São Paulo: Fundação Ford/Fundação Carlos Chagas. 2010.)

                Assim, a ideia que defendo, cuja validade pretendi certificar com a argumentação feita, é que as cotas sociais e raciais não são excludentes. Pelo contrário, elas se complementam e devem ser adotadas até o momento em que as discriminações sociais de toda a ordem tenham sido erradicadas, no caso particular do preconceito pela cor, que a democracia racial deixe de ser uma ficção jurídica e passe a ser uma realidade.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça Pra Baixo, em 26/6/2012.

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