História, Política

Ora pro nobis

Imagem copiada de: http://nodeoito.com/povos-indigenas-massacre/. Acesso em: 21 de fev. 2022.

Lá pelos anos de 1500, quando o império português começou a mandar gente (dizem que da pior qualidade) para terras brazilis, os bravos representantes da Coroa não encontraram uma terra abandonada ou deserta. Mas isso pouco interessou. A expansão ultramarina estava em pleno curso e a todo vapor. Aqui chegaram, aqui invadiram, aqui se estabeleceram e aqui se tornaram proprietários. Aos habitantes locais, que foram chamados genericamente de índios, ofereceram o benefício de trabalhar para os novos donos em troca de algum lugar pra dormir, quando possível, e algum resto de comida, quando sobrasse. Os tais índios, na maioria, não aceitaram muito bem isso, e em consequência começaram a ser assassinados, dizimados. Depois, El Rey entendeu por bem mandar os padres pra civilizar aquelas espécies. Saber orar é fundamental. De qualquer sorte, precisando de mais força pra trabalhar, trouxeram gente da África, em condições iguais ou piores que os selvagens aborígenes. Essa é, resumidamente, a história de como o Brasil virou um grande Portugal antes mesmo que virasse Brasil.

O velho Pedro Segundo, incensando como uma das mais brilhantes e visionárias mentes da história política brasileira, conhecia bem a história da queda dos impérios europeus, e já tinha se precavido há algumas décadas desse risco, instituindo um negócio chamado de laudêmio, que ficou conhecido como taxa do príncipe, pelo que a família real, incluindo todos os seus integrantes ad aeternum, teria (como tem) direito a um percentual sobre todas as negociações imobiliárias realizadas nas adjacências da tal Fazenda do Córrego Seco, que hoje corresponde à área nobre da chamada cidade imperial, Petrópolis. Isso, e algumas outras benesses, garantem aos herdeiros da Casa de Bragança o direito de nunca precisar derramar uma gota de suor em trabalho pela terra que tanto amam.

No final do século 19, os marechais resolveram acabar com a festa da Corte e numa quartelada acabaram com o regime imperial. Estava nascendo a república, do latim, res publica, ou coisa pública. A família imperial teve sorte diferente dos antigos donos da terra. Por um breve período de tempo, a lei do banimento manteve Pedro Segundo e sua turma fora do país, uma saída honrosa, como se poderia dizer. Mas, na prática, isso foi logo resolvido, os herdeiros voltaram ao país, e na consolidação do novo regime, os imperiais mantiveram o pleno gozo dos direitos adquiridos em tempos de fartura – eufemismo para vagabundagem.

Pois vejam agora a magnanimidade desses homens de sangue azul. Ante a tragédia que destruiu a sua cidade e a vida daquelas pessoas que regiamente garantem a subsistência dos príncipes, ofereceram… suas orações. Vale transcrever o trecho final da carta assinada pelo Príncipe Imperial do Brasil, que, em nome de seu irmão, o nó da família imperial, Príncipe Dom Luiz de Orleans e Bragança, oferece a solidariedade “à boa gente petropolitana”: “A Família Imperial, tão estreitamente ligada à Petrópolis, encontra-se sempre disposta a servir ao seu povo, oferecendo ainda as nossas orações e solidariedade a todos que vêm sofrendo. Rogo a Deus Nosso Senhor, por intercessão do Padroeiro São Pedro de Alcântara, que proteja e dê alento à boa gente petropolitana nesta hora de aflição.” Assina Dom Bertrand de Orleans e Bragança.

Alguém precisa dizer ao nobre imperial que oração é bom e importante, mas não bota comida na mesa e nem reconstrói casa derrubada. Mas, acima de tudo, alguém precisa acabar com os privilégios das elites sanguessugas, que parasitam o Brasil desde que a frota cabralina atracou aqui. Infelizmente esses absurdos só aparecem nos piores momentos, mas que pelo menos eles sirvam pra ver que as coisas precisam mudar no país e que a primeira mudança possível é a organização dos de baixo, até para influenciar fortemente nas urnas. Eleger governantes e, sobretudo, parlamentares comprometidos com os interesses do povo e não com a manutenção de privilégios históricos e a construção de novos, é fundamental.

Imagem copiada de: https://revistaforum.com.br/brasil/2022/2/18/petropolis-taxa-imoral-paga-familia-imperial-numa-cidade-enterrada-na-lama-110378.html. Acesso em: 21 de fev. 2022.

Depois de votar e eleger, é preciso acompanhar, fiscalizar e cobrar. Uma dica para o momento: o projeto de lei que acaba com essa farra do boi, ou melhor, com essa farra do príncipe, pode ser consultado aqui: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2238509

*Imagem de destaque copiada de: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/brasil/2022/02/laudemio-entenda-o-que-e-a-taxa-paga-a-familia-real-em-petropolis.html. Acesso em: 21 de fev. 2022.

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Política

A panela, o prato e a hipocrisia programada – parte 1

O Brasil (BraZil?) é um país estranho. Recentemente a panela virou instrumento político. Ou dito de outra maneira, ideológico. Uma bateção de panelas sem nenhum ritmo foi a forma de manifestação encontrada pela classe média brasileira, essa entidade tão esquisita quanto o próprio país, para derrubar uma Presidenta da República. A Presidenta Dilma Rousseff, legitimamente eleita para o seu segundo mandato, o quarto do Partido dos Trabalhadores, era a representante de um processo de implementação de políticas sociais no governo federal. Isso é fato inconteste que as elites – as genuínas e as que sonham em ser – teimam em contestar. Para maiores informações, sugiro a leitura do livro “Dez anos que abalaram o Brasil. E o futuro?: Os resultados, as dificuldades e os desafios dos governos de Lula e Dilma”, do Economista e Professor João Sicsú, lançado em 2013.

Percebam que eu não estou qualificando os governos petistas como Socialistas ou Comunistas, mas sim governos que implementaram políticas sociais importantes, o que é bem diferente. Tais políticas sociais deslocaram uma expressiva parcela da população do contexto da iminência da morte por fome para uma condição um pouco mais digna. Nova condição que estava ainda longe da ideal, por óbvio, mas ao menos um pouco mais distante da miséria absoluta e da total falta de perspectiva. Por conta disso, na época dos panelaços criou-se uma figura interessante: as pessoas pobres não poderiam bater as panelas, porque pela primeira vez nas suas vidas elas estavam cheias.

Pois bem, a orquestra de panelas, que, repito, não tinha nenhum ritmo, foi viabilizada por um movimento que aconteceu algum tempo antes, que surgiu de forma legítima, mas que pela falta de uma consciência política mais refinada, foi absorvido por quem andava há alguns anos sem rumo. A juventude que foi às ruas no outono/inverno de 2013, pautando políticas importantes, como a redução das tarifas de transporte público, rechaçou o apoio de partidos políticos e qualquer entidade similar. Infelizmente o que poderia ter sido um grande movimento, talvez de características Anarquistas (sem deuses nem mestres), acabou por se transformar no mecanismo de apropriação dos discursos reivindicatórios por parte daquela elite que já estava há algum tempo vagando solitária, à procura de um caminho. Ao levantar a bandeira do antipartidarismo, aquela gente jovem que mostrava coragem suficiente para sair às ruas e fazer o enfrentamento com as forças que seriam naquele entendimento de opressão e repressão, não percebeu que eram justamente as verdadeiras forças opressivas e repressivas que acabariam por encampar os seus protestos. Porém essa apropriação do discurso não tinha o objetivo de colaborar e reforçar a luta, mas de assumir o protagonismo, com vistas a incluir na ordem do dia a retórica burguesa da luta contra a corrupção e da busca por melhores equipamentos de segurança pública, principalmente. À narrativa urdida nos gabinetes políticos e salas empresariais, que já vinha, num recorte curto, desde o processo do “mensalão do PT” – e aqui cabe lembrar que o mensalão tucano nunca saiu do papel -, juntou-se a insatisfação de boa parte da juventude, com suas pautas legítimas. Estava anexado o componente fundamental, sem o que não se faz qualquer movimento de mudança: o apoio popular.

É importante estabelecer essa relação com a ação da população jovem, porque, sendo da natureza da juventude a rebeldia e a contestação, ela andava já há alguns anos sem causa. Ao longo a história do Brasil, como no mundo todo, a juventude sempre andou do “lado de lá”, na oposição aos regimes. Acontece que naquele momento, o regime havia deixado de ser autoritário e conservador, como sempre fora, e o governo tinha tendências socializantes. Jovens agora não tinham mais as bandeiras da Esquerda, que sempre foram as causas que moviam as ações e movimentos para contrapor o poder, pois, em tese – e friso a observação: em tese – ali o poder era da Esquerda.

Retornando para o “caso das panelas”. A cada pronunciamento da Presidenta Dilma, a elite ia às janelas para bater panela. Por certo eram panelas compradas especificamente para isso em lojas populares, porque não se valeriam dos seus jogos “Le Creuset, para esse fim. E, mais, a compra dessas panelas de alumínio baratas evidentemente ficou a cargo das domésticas, porque as patroas, mulheres belas, recatadas e do lar, não se dignariam a ir ao comércio inferior adquirir a preços módicos os equipamentos adequados para que pudessem externar a sua revolta. E era preciso que assim fosse, porque para recolocar as coisas em ordem (e progresso) era necessário que essas pessoas, as empregadas, compreendessem o seu lugar no espaço social, que não era o dos aeroportos e dos hotéis turísticos em Paris. (Lembram da revolta de uma certa socialite ao dizer que não achava mais graça de viajar à França, pois sempre corria o risco de encontrar o porteiro do prédio no aeroporto? Aqui: https://www.brasil247.com/cultura/danuza-lamenta-que-todos-possam-ir-a-paris-ou-ny , consultado em 2/9/2020.)

O que aconteceu e vem acontecendo nesse tempo que vai dos protestos de 2013 aos dias de hoje é sabido por todes. A resistência ainda tentou se apropriar do já icônico instrumento das elites, a panela, que voltou a algumas janelas quando dos pronunciamentos do atual presidente. Mas essa capacidade de incorporar elementos e armas de outros exércitos não é o nosso forte e o “panelaço da Esquerda” não vingou. Talvez porque a população mais pobre naquele momento já nem tivesse mais panelas, furadas que deveriam estar de tanto serem raspadas para tentar buscar restos e enganar a fome.

Sobreveio, porém, a pandemia, que mudou tudo. Tudo mesmo. Ou quase. A necessidade de isolamento tirou as pessoas da rua e sem o povo na rua a gente já sabe que as coisas não mudam. Os protestos e manifestações passaram a ser virtuais. Só que quem têm acesso às plataformas digitais não são as pessoas das panelas vazias e furadas, então o movimento fica muito restrito e quase sem efeito. A cada notícia de crime ou patrolada do presidente e seu séquito em cima do povo, chovem manifestos, notas de repúdios, cartas abertas etc., que não têm nenhum efeito que não seja talvez uma demarcação de terreno das entidades, algo do tipo: “Estamos atentos!”. Mas esse estado de alerta permanente por si só não muda nada, o povo não está nas ruas e a marcha fascista segue livre, leve e solta. (Continua)

*Imagem de destaque copiada do site https://www.dw.com/pt-br/antipartidarismo-%C3%A9-perigoso-para-a-democracia-alertam-especialistas/a-16910048, consultado em 2/9/2020.

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Política

Hora de derrubar mitos

Não foi ontem que as pessoas progressistas e amantes das liberdades e da democracia descobriram que as coisas no Brasil vão de mal a pior. Nem foi no golpe engendrado para tirar do governo uma presidenta legitimamente eleita. Presidenta, aliás, que soube que não levaria a cabo o segundo mandato no exato instante em que o TSE proclamou a sua reeleição, em 2014. Naquele momento, o candidato derrotado anunciou que as forças conservadoras tornariam o país ingovernável. E cumpriu o prometido. Só que também não foi naquela ocasião que passamos a entender o que estava acontecendo. A gênese de tudo está no aeroporto, quando a socialite começou a encontrar o porteiro do prédio em Paris, e na Universidade, quando o filho preto da empregada pobre começou a dividir a sala de aula com a filha do patrão. (Sobre isso, recomendo “Que horas ela volta?”, filme brasileiro de 2015, dirigido por Anna Muylaert e magnificamente estrelado por Regina Casé.) “A Casa-Grande pira quando a Senzala vira médica”, foi o que disse a estudante Bruna Sena, ao ser aprovada em primeiro lugar para Medicina na USP, vestibular mais concorrido do país. E num país de elite historicamente escravocrata, como é o  nosso, quando a Casa-Grande pira, as consequências podem ser trágicas.

A eleição de um projeto autoritário e com matizes notadamente fascistas, porém, não é fruto somente de uma insatisfação das elites. Acreditar nisso é seguir trilhando o caminho de um erro que já provocou um resultado devastador. É preciso ir além, é preciso olhar para o nosso interior e detectar precisamente o ponto em que começamos a nos equivocar. A avaliação mais precisa do contexto político que se estabeleceu nas eleições deste ano não foi feita por um cientista político e nem por um jornalista, mas pelo rapper Mano Brown. E aconteceu durante um evento do próprio Partido dos Trabalhadores. Ao dizer que o PT deveria voltar a dialogar com as bases, Mano Brown não fez mais do que a crítica que o próprio partido deveria ter feito internamente há muito tempo e que vinha sendo feita, a bem da verdade, por alguns quadros históricos, como Olívio Dutra. Mas da mesma maneira que a dura reprimenda feita corajosamente por Mano Brown às vésperas do pleito não significou que ele estivesse “passando para o outro lado”, ou “dando um tiro no pé”, como tentaram dizer algumas figuras petistas de expressão, também as reflexões de Olívio não o afastaram das lutas democráticas. Pelo contrário, Olívio, do alto de seus mais de 70 anos, esteve engajado de corpo e alma na campanha pró-Haddad e Manuela, e no último sábado esteve de casa em casa em alguns bairros populares de Porto Alegre, fazendo a luta pela “virada”. E as palavras de Mano Brown, que certamente foram extremamente incômodas a quem sempre fechou os olhos para os erros cometidos pelo PT, estimularam a militância a seguir firme na busca por votos possíveis de inversão. Como depoimento pessoal, posso dizer que conquistei alguns votos para a chapa Haddad/Manuela a partir do discurso dele, pois algo que sempre incomodou e irritou os antipetistas é a incapacidade do partido em assumir os seus próprios erros. Quando o partido reconhece que não foi perfeito, as barreiras e restrições começam a ser relativizadas.

Todavia, a coisa toda não se explica somente por essas constatações. Há que se analisar também o caso do antipetismo, que teria levado milhões de brasileiros e brasileiras a eleger Bolsonaro e sua plataforma antidemocrática pela via da exclusão e da rejeição. Essa é uma meia verdade. Fosse a intenção do eleitorado bolsonarista tão somente barrar o PT, havia outras possibilidades, à direita e ao centro, ainda no primeiro turno. Alckmin, Marina, Amoedo e o próprio Ciro eram candidaturas viáveis a combater a ascensão petista, mas foram preteridas em favor de um discurso extremado, que agradou, sim, ao povo ávido por vingança. Eu escrevi vingança. O que pode agradar mais a chamada classe média do que a promessa de poder se vingar de quem lhe ameaça a segurança? E nesse caso, pouco importa se quem promete nada fez pela segurança pública nas últimas trés décadas, mesmo ocupando um cargo político importante. O cidadão mediano, que vive com medo de ser assaltado na rua, é seduzido pelo canto da sereia que representa a possibilidade poder usar uma arma de fogo para se defender. E empolgado com essa ideia, certamente não vai buscar informações sobre o que realmente está por trás dessa conversa, sobre que interesses serão contemplados com isso. Sequer essa pessoa vai se informar sobre o que acontece em países cuja posse e porte de arma de fogo é facilitada, como os EUA. A ele basta sonhar que vai poder dar um tiro na cara do assaltante, afinal, bandido bom é bandido morto. As causas que levaram esse bandido ao mundo da criminalidade também pouco lhe interessam, pois é suficiente que ele esteja morto. Se morrer um inocente, paciência, o próprio Messias já aliviou essa culpa. Ou seja, se há um componente de antipetismo na eleição do capitão, há muito mais do lado Mr. Hyde que habita o interior de cada “cidadão de bem”, que clama por justiça, mas quer ter o mórbido prazer de executá-la com as próprias mãos. Esse é o pensamento de quem reduz a luta pelos direitos humanos a uma defesa da bandidagem e é o pensamento que elegeu um projeto que afirma abertamente legitimar o justiçamento.

Conforme muito bem observou um amigo, Marcelo Cougo, o eleitor e a eleitora de Bolsonaro são as únicas pessoas que acreditam que ele não vai fazer o que prometeu. Isso leva a uma situação surreal, em que o voto é dado pela certeza do não cumprimento das promessas de campanha. Pessoas minimamente politizadas e conscientes votam em candidatos/as na esperança de que cumpram com o que se comprometeram, caso sejam eleitos/as. Algumas até mesmo deixam de votar em qualquer candidatura por entenderem que nenhum/a agente político é capaz ou tem interesse em cumprir as suas promessas. Mas votar num candidato porque ele não vai cumprir o que prometeu parece ser um caso singular na história democrática do Brasil e talvez do mundo. Ao longo da campanha, circularam inúmeros vídeos que mostram Bolsonaro afirmando com convicção as suas ideias de defesa da tortura e de admiração por torturadores, por exemplo. E não foram falas descontextualizadas. Estão aí disponíveis no Youtube. Também é da própria boca do presidente eleito que se ouviu a exortação à expulsão dos adversários políticos do país, assim como a defesa da tese de que o voto não pode mudar nada, que é preciso um golpe e que se for necessário matar alguns inocentes, não tem problema. Não vou me dar ao trabalho de incluir aqui os links para essas declarações, porque é só jogar no Google. O bolsonarianismo, porém, insiste em dizer que não é bem assim, que ele não disse o que disse, embora esteja tudo gravado e registrado, ou que ele disse isso em contexto diferente, ou ainda pior, que ele estava só brincando. Se alguém se dispõe a brincar de elogiar o maior facínora e mais sádico torturador da história do Brasil no momento mais crítico da história política recente do país (o voto no processo de impeachment da Presidenta Dilma), a coisa é ainda muito mais grave.

Com isso quero dizer que o processo que levou Bolsonaro ao cargo político máximo da República não se explica pela ideia simplista do antipetismo, e também afirmo que o próprio antipetismo não se explica pelas próprias mazelas do Partido dos Trabalhadores. Todos esses elementos estão presentes, por óbvio, na eleição de Bolsonaro, mas o que está na origem de tudo é o desejo de vingança, o ódio que o “cidadão de bem” passou a nutrir por tudo aquilo que ele não pode explicar racionalmente, seja por incapacidade mesmo ou por preguiça intelectual. Ao fugir da análise dos fatos geradores das desigualdades sociais e optar por trilhar o caminho fácil da eliminação da “bandidagem”, o eleitorado bolsonarista escancarou a sua face fascista, gostem ou não os meus amigos e as minhas amigas que votaram no B17. A prova de que a luta não é anticorrupção é o elemento que se tornou simbólico dessa cruzada moralista: a camisa da CBF, uma entidade mergulhada na roubalheira e na corrupção. E a prova de que a questão central nunca foi a segurança é a falta (ou omissão) de conhecimento de que o presidente eleito não apresentou sequer um projeto na área da segurança pública em quase 30 anos de atividade parlamentar.

De um lado, então, cabe à esquerda e as forças do campo democrático uma reflexão séria sobre os próprios equívocos, e a união em torno de um projeto de resistência e reconquista do terreno perdido nas áreas sociais, a fim de que o projeto fascista representado pela eleição de Bolsonaro não consiga se consolidar. E ao eleitorado bolosonarista não assumidamente fascista (porque fascismo não se discute, se combate) cumpre fazer uma reanálise acerca do discurso de ódio que motivou a votação em massa na plataforma autoritária de um candidato que, agora eleito, tem sim as condições de cumprir tudo aquilo que prometeu durante a campanha e ao longo da sua trajetória na vida pública. É preciso, em resumo, derrubar alguns mitos para que possamos recolocar o país no rumo de crescimento em que estava há pouco tempo. A minha esperança é que isso não seja um problema muito difícil de resolver, porque, como ouvi muito durante esses últimos tempos, se ficar ruim a gente tira…

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Política, Republicados

“Olha o velhinho” por LFV*

Um fenômeno novo na realidade brasileira é o ódio político, o espírito golpista dos ricos contra os pobres. O pacto nacional MARX LUTA DE CLASSESpopular articulado pelo PT desmoronou no governo Dilma e a burguesia voltou a se unificar. Economistas liberais recomeçaram a pregar abertura comercial absoluta e a dizer que os empresários brasileiros são incompetentes e superprotegidos, quando a verdade é que têm uma desvantagem competitiva enorme. O país precisa de um novo pacto, reunindo empresários, trabalhadores e setores da baixa classe média contra os rentistas, o setor financeiro e interesses estrangeiros. Surgiu um fenômeno nunca antes visto no Brasil, um ódio coletivo da classe alta, dos ricos a um partido e a um presidente. Não é preocupação ou medo.

É ódio. Decorre do fato de se ter, pela primeira vez, um governo de centro-esquerda que se conservou de esquerda, que fez compromissos, mas não se entregou. Continuou defendendo os pobres contra os ricos. O governo revelou uma preferência forte e clara pelos trabalhadores e pelos pobres. Não deu à classe rica, aos rentistas. Nos dois últimos anos da Dilma, a luta de classes voltou com força. Não por parte dos trabalhadores, mas por parte da burguesia insatisfeita. Dilma chamou o Joaquim Levy por uma questão de sobrevivência. Ela tinha perdido o apoio na sociedade, formada por quem tem o poder. A divisão que ocorreu nos últimos dois anos foi violenta. Quando os liberais e os ricos perderam a eleição, não aceitaram isso e, antidemocraticamente, continuaram de armas em punho. E, de repente, voltamos ao udenismo e ao golpismo.

Nada do que está escrito no parágrafo aí em cima foi dito por um petista renitente ou por um radical de esquerda. São trechos de uma entrevista dada à Folha de S. Paulo pelo economista Luiz Carlos Bresser Pereira, que, a não ser que tenha levado uma vida secreta todos esses anos, não é exatamente um carbonário. Para quem não se lembra, Bresser Pereira foi ministro do Sarney e do Fernando Henrique. A entrevista à Folha foi dada por ocasião do lançamento do seu novo livro A Construção Política do Brasil, e suas opiniões, mesmo partindo de um tucano, não chegam a surpreender: ele foi sempre um desenvolvimentista neokeynesiano. Mas confesso que até eu, que, como o Antônio Prata, sou meio intelectual, meio de esquerda, me senti, lendo o que ele disse sobre a luta de classes mal-abafada que se trava no Brasil e o ódio ao PT que impele o golpismo, um pouco como se visse meu avô dançando seminu no meio do salão (“Olha o velhinho!”) e de terna admiração. Às vezes, as melhores definições de onde nós estamos e do que está acontecendo vêm de onde menos se espera.

Outro trecho da entrevista: “Os brasileiros se revelam incapazes de formular uma visão de desenvolvimento crítica do imperialismo, crítica do processo de entrega de boa parte do nosso excedente a estrangeiros. tudo vai para o consumo. é o paraíso da não nação”.

Texto escrito por Luís Fernando Veríssimo, publicado na página 3 da edição de abril de 2015 do Jornal Extra Classe.

LFV EXTRA CLASSE 04.2015

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 7/5/2015.

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Ideologia, Imprensa, Mídia

Cidadania não é censura*

Na página 12 da zero hora de 15/07 está o editorial, intitulado por uma pergunta: “Democratização da mídia?” Atenção especial merece o aspecto semântico e o conteúdo subliminar deste aparentemente inofensivo ponto de interrogação, adicionado a algo que de certa forma anda funcionando como palavra de ordem de grupos bem articulados e verdadeiramente preocupados em mudar para melhor o país.  A partir do momento em que se transforma algo afirmativo em uma interrogação, naturalmente se está relativizando a importância e o conteúdo das palavras. Se fosse acrescentado um “será?” ao final, o sentido não se alteraria, pelo contrário, ficaria mais explícito (Democratização da mídia? Será?). Acontece que clarear as coisas, principalmente as intenções, não é o forte desse tipo de mídia.

A democracia é sempre uma obra inacabada. Até por isso tem que ser protegida da ação de pessoas comprometidas com ideologias autoritárias, que se fingem de vanguardistas para sufocar a liberdade de expressão.”

Pergunta 1: quem são as pessoas comprometidas com ideologias autoritárias, que se fingem de vanguardistas e ameaçam a democracia?

A resposta vem logo:

“Embora não seja uma demanda do país, mas sim de grupos minoritários movidos por ideologias fundamentadas no radicalismo, a chamada “democratização da mídia” tem aparecido secundariamente na pauta das manifestações que mobilizaram os brasileiros nas últimas semanas. Por conta de palavras de ordem plantadas por pseudolideranças avessas ao pluralismo de ideias e opiniões, alguns profissionais e veículos de comunicação, mais especialmente aqueles que têm liderança de mercado, têm sido inclusive hostilizados por manifestantes mais exaltados. Já se registraram em diferentes regiões do país casos de jornalistas agredidos, veículos incendiados e instalações vandalizadas _ atos que certamente não recomendam o modelo de “democratização” desejado pelos defensores da campanha.”

Aí vem todo aquele papo cansativo sobre liberdade de expressão – que certamente era a tônica no regime político que pariu a globo e suas sucursais – jornalismo responsável (hein?), e tudo mais, ou seja, aquele discurso pseudo-libertário, que comove os corações e trabalha as mentes dos leitores desavisados e, por que não dizer, daqueles que têm preguiça de procurar informação fora da mídia corporativa. Apresenta também números, querendo mostrar com eles que a distribuição dos espaços midiáticos e jornalísticos no Brasil é equilibrada e que não são poucos os grupos – ou famílias – que detêm o monopólio da imprensa. De tão ridículos, esses argumentos chegam a ser pueris e sequer é necessário muito aprofundamento para combatê-los, o que seria perda de tempo neste momento.

A questão aqui é outra: é preciso saber o que está por trás desse discurso, que mistura, como sempre, manipulação da informação, distorção dos fatos, acrescentada aqui de um visível temor por conta do que vem se tornando uma discussão séria no país, isto é, o controle social da mídia. É possível encontrar bons caminhos para uma resposta no artigo de Ranaud Lambert, publicado na edição de número 65 (12/2012) do Le Monde Diplomatique Brasil, sugestivamente intitulado “Abalos em uma passagem dominada por grupos privados – Na América Latina, governos enfrentam os barões da mídia”. O autor lembra que “Alguns meses antes de deixar o Palácio do Planalto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresentou um projeto de lei destinado a regular os meios de comunicação no Brasil. O texto propunha medidas de regulamentação de conteúdo, como a proibição da apologia ao racismo e à discriminação sexual, mas também de redução da concentração da propriedade no âmbito da comunicação, em um país onde catorze famílias possuem 90% desse mercado.” (Grifo meu.) A julgar pelo que reza o editorial do tabloide ora discutido, o jornalista que assina este artigo está mentindo, ou então há que se considerar essas quatorze famílias como representantes legítimas de todo o pluralismo jornalístico brasileiro. Não creio que um jornalista fosse escrever mentiras num órgão conceituado, como é o Le Monde, e muito menos que este órgão aceitaria publicar conteúdo inverídico. Também não acho que num país de 200 milhões de habitantes o número 14, por mais numerosas e ramificadas que possam ser essas famílias, seja muito expressivo.

Claro que Os meios privados protestaram contra um dispositivo considerado “autoritário” e suscetível a colocar a informação “sob controle político”.” E iam deixar barato? A consequência é que “Em janeiro de 2011, o projeto já estava enterrado. Mas Lula não deixou de ressaltar a questão que há anos ronda os governos da região: a liberdade de expressão pode existir sem um marco regulatório e decisões políticas que a afiancem?” 

E aí surge a pergunta 2: quem tem medo desse marco regulatório?

Quem responde, não por psicografia, é o finado Dr. Roberto Civita e a Dra. Judith Brito: “Há uma relação de interdependência indissolúvel entre democracia, meios de comunicação e livre mercado”, pondera Roberto Civita, diretor da revista Veja, a mais lida da América Latina (27 jun. 2012). Em resumo, defender a liberdade de expressão seria proteger a liberdade das empresas, a começar pela liberdade das empresas de comunicação. Mas o que aconteceria se o programa de governo que conduz um dirigente político ao cargo almejado ameaça os interesses do setor privado ou dos proprietários de meios de comunicação? Desde a chegada ao poder de dirigentes decididos a (tentar) virar a página do neoliberalismo e com o enfraquecimento dos partidos que tradicionalmente defendem as elites, os meios de comunicação latino-americanos parecem ter adotado uma missão que Judith Brito, diretora do jornal conservador Folha de S.Paulo, define nestes termos: “Já que a oposição está profundamente fragilizada, são os meios que, de fato, estão desempenhando esse papel” (O Globo, 18 mar. 2010). Com, às vezes, pouca criatividade.”

Pergunta 3: como se pode falar em imprensa livre quando a diretora de um dos maiores jornais do país diz abertamente que à imprensa cabe o papel de fazer uma oposição ao governo, porque, segundo ela, essa está muito enfraquecida?

A relação entre política e imprensa (leia-se mídia corporativa) fica escancarada pela informação trazida pelo autor, assim como desmontada resta a ideia da não existência de um monopólio nos meios de comunicação, defendida pela rbs: “No Brasil, onde os barões da mídia ocupam uma cadeira em cada dez na Câmara dos Deputados e uma em cada três no Senado, o grupo Globo detinha, em 2006, “61,5% dos canais de televisão” e “40,7% da difusão total dos jornais”. Com mais de 120 canais no mundo, a rede de televisão do magnata Roberto Marinho (cujo falecimento fez Lula decretar três dias de luto nacional em 2003) chega a mais de 120 milhões de pessoas por dia.”

O artigo traz ainda uma síntese da situação na América Latina, que pode ser melhor entendida a partir da compreensão da peleia do governo argentino com o grupo clarín, a globo dos hermanos. (Sobre isso, a propósito, cabe mais uma vez o alerta para que não nos deixemos cair na teia armada pela mídia podre. Procuremos os canais realmente interessados em informar, que estão invariavelmente na mídia alternativa.) Mais importante, contudo, é o alerta dado aos grupos que pretendem lutar por essa regulamentação e, consequentemente, pela efetiva democratização dos meios de comunicação, uma utilização e exploração verdadeiramente equilibrada dos espaços, e não essa ficção que o grupo da família (sempre uma família – máfia?…) sirotsky quer empurrar a fórceps:

“Esses esforços, contudo, ainda não deram os resultados esperados. Primeiro, em termos de pluralismo, porque esses novos organismos de imprensa [mídia alternativa] às vezes não resistem à tentação de compensar os desvios dos meios privados reproduzindo alguns deles de forma especular. Ken Knabb, pesquisador norte-americano desse fenômeno, observa que os militantes de esquerda “pensam, geralmente, que é preciso muita simplificação, exageração e repetição para contrabalancear a propaganda que sustenta a ordem dominante. Analogicamente, isso quer dizer que um boxeador zonzo porque tomou um gancho de direita recuperaria o equilíbrio graças a outro soco, de esquerda. 

Em segundo lugar, em termos de audiência. Um estudo recente do Centre for Economic Policy Research (CEPR) mostra que, entre janeiro de 2000 e setembro de 2010, a audiência dos canais públicos venezuelanos passou de 2,04% para 5,4%. Audaciosa, a reforma da Lei Geral dos Bancos de 2010 – inspirada em uma disposição similar da Constituição equatoriana de 2008 que proíbe os acionários de entidades financeiras de possuir meios de comunicação – sem dúvida não será suficiente para corrigir uma situação como essa.

Por outro lado, “já que supostamente nossa sociedade avança em direção ao socialismo”, questiona-se Aharonian, a Venezuela não deveria acabar com a atribuição de frequências e licenças de exploração do espectro eletromagnético aos interesses privados? “Não deveríamos imaginar, em vez disso, um único e grande espaço público […] regulamentado de forma a garantir sua utilização democrática?”

O artigo completo pode ser acessado em http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1309.

Bueno, como sempre há argumento pra tudo, alguém poderá dizer que o artigo é velho, ainda que tenha pouco mais de seis meses. Vejamos, então, o que se disse no último dia 16 (ontem!), durante a “Conferência Nacional  2003-2013: uma nova política externa”. O ex-Ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (2009-10) e ex-Secretário- Geral do Itamaraty (2003-09), Samuel Pinheiro Guimarães, foi direto ao olho do furacão: “Democratização da mídia é prioritária para a defesa dasoberania.”, para depois explicar: “O controle dos meios de comunicação é essencial para o domínio da classe hegemônica mundial. Como esses meios são formuladores ideológicos, servem para a elaboração de conceitos, para levar sua posição e visão de mundo. Daí a razão da democratização da mídia ser uma questão prioritária”

Indo além, mais uma vez as palavras do diplomata contradizem absolutamente o editorial de zh: “O embaixador também condenou o fato de que um mesmo grupo possa deter emissoras de rádio e televisão, jornais e revistas – a chamada propriedade cruzada. Conforme Samuel, esta concentração acaba concedendo um poder completamente desmedido para alguns poucos divulgarem as suas opiniões como verdade absoluta. “Quando estados como a Argentina, o Equador e a Venezuela aprovam leis para democratizar a comunicação, a mídia responde com uma campanha extraordinária, como se isso fosse censura à imprensa”, lembrou.”

E aqui se toca num ponto nevrálgico: censura. Como disse o palestrante, a primeira argumentação de que lança mão a mídia corporativa quando se fala em controle social, é que se estará reativando a odiosa censura. Censura é uma palavra pesada. Quem viveu os anos de chumbo sabe bem do que se trata, e as novas gerações recebem, em geral, informações muito negativas, com razão, sobre a tal censura. E quando a palavra é associada à imprensa a coisa toma ares de tragédia. Lembram da grita geral quando da criação do Conselho Estadual de Comunicação Social no Rio Grande? Aqui mesmo já falei sobre o tema: https://oximarraoalucinogeno.wordpress.com/2012/08/14/conselho-de-comunicacao/  .

Pois um sistema que possibilite à sociedade – que se frise isto: à sociedade – exercer o controle sobre aquilo que circula nos meios de comunicação só pode ser considerado censura na visão dos grandes grupos, que certamente têm muito a perder com isso. Afinal, a quem se destina a comunicação social? Se a resposta é à sociedade, como o nome permite antever, não se sustenta o argumento da censura.

Nas palavras do palestrante, um conteúdo absolutamente em voga: Em função dos interesses da classe dominante, alertou o embaixador, a mídia hegemônica pode, sem qualquer conexão com a realidade, “demonstrar que um regime político da maioria é uma ditadura e realizar campanhas sistemáticas que permitam uma intervenção externa, com o argumento que determinado governo oprime os direitos humanos”. “Podem inclusive se aproveitar de manifestações pacíficas para infiltrar agentes provocadores que estimulem o confronto”, alertou.” Mas não é a descrição do quadro visto hoje no Brasil?

Acesso ao texto completo: http://www.cut.org.br/destaques/23490/samuel-pinheiro-guimaraes-democratizacao-da-midia-e-prioritaria-para-a-defesa-da-soberania.

Poderia trazer toneladas de escritos que mostram a importância fundamental de que se estabeleça uma política de controle da mídia no Brasil, mas não julgo necessário. Com o que se apresentou aqui já é possível, creio, estabelecer o contraponto entre os interesses e  as artimanhas da mídia corporativa, muito bem exemplificados no editorial de zh que abriu o texto, e o interesse social, que não pode mais esperar pela democratização da mídia. Não se trata de censura, apenas de cidadania.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 17/7/2013.

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Cultura, Republicados, Televisão

Iconoclastia, que bicho é esse? – Ou: A hipocrisia da alta cultura nacional*

Houve um tempo, logo no início, lá no canal do Sílvio Santos, que o programa do Jô Soares era transmitido ao vivo. Depois, quando ele foi pra rede bobo, os caras, que não são burros, devem ter percebido que se mantivessem assim logo logo a “intelectualidade superior” do Gordo seria desmascarada. Editando o programa antes de ir ao ar fica mais fácil. A título de curiosidade, o funcionamento do programa hoje é mais ou menos assim: 1- a produção escolhe o entrevistado e o tema e submete ao Jô; 2- ele prepara as perguntas de acordo com o que permita que ele venda o cachorro da sua “grande” inteligência e cultura; 3- a produção envia o roteiro para o entrevistado, que, se aceitar, se compromete, informalmente, por óbvio, com o roteiro; 4- a entrevista é gravada e passa primeiro pela edição da produção e depois pela revisão do Jô, pra que fique bem determinado o que vai ou não ao ar.

Bueno, eu gostava dos personagens e dos programas humorísticos do Jô, embora o Chico sempre tenha sido muito mais inteligente. Quando o Gordo virou entrevistador, nos primeiros momentos tinha coisas legais, mas logo em seguida a coisa degringolou e eu passei a ver cada vez menos, culminando com o abandono total de hoje. A gota d’água foi uma entrevista que ele fez, já no plim-plim, com um “produtor cultural” que trazia ao Brasil um espetáculo de pigmeus. Já me invoquei com a natureza do show, que apresentava os pigmeus como uma coisa exótica, tipo atração de circo. A coisa toda girava toda em torno das danças e das músicas típicas deles, tidas como primitivas (Mãe, perdoa-os…). Pois o cretino do Gordo disse tanta bobagem, vomitando uma erudição que nem de almanaque pode ser chamada, que eu peguei nojo dele e do programa.

Sempre gostei de algumas coisas “esquisitas” na música e os sons africanos e orientais sempre me encantaram. Não conhecia quase nada da cultura dos pigmeus, mas já tinha lido, e só lido, porque na época não tinha internet, alguma coisa sobre a música dos povos africanos, asiáticos etc. E tinha bastante vontade de conhecer mais. O pouco que eu já sabia, porém, me permitiu reconhecer o festival de asneiras que o Gordo estava dizendo e a sacanagem do tal produtor, que queria só ganhar uma grana em cima da curiosidade que aquele grupo de SERES HUMANOS certamente despertaria nas audiências imbecilizadas pela grande mídia cultural, que em todos os tempos sempre impediu o acesso amplo, geral e irrestrito ao conhecimento, reservando este às castas superiores, por sua vez determinadas por interesses nada transparentes.

A partir desse episódio, comecei a questionar muito a “intelectualidade” do Jô e isso sempre provoca arrepios na “classe”, porque mexer com certos ídolos, como já falei outras vezes é muito arriscado. No mínimo tu vai ser chamado de invejoso, inculto, ignorante etc., etc., etc.

Eu quero retomar um assunto que já abordei por aqui, que é a maldita deusificação de certas figurinhas carimbadas da cultura nacional, tipo… o Gordo. É moeda corrente que o Jô Soares é praticamente um gênio (morou na Suíça, fala várias línguas, escreve, dirige teatro, toca trompete – há controvérsias – entende de vinhos etc. etc. etc.). Claro que ele tem seus méritos, e eu não quero contestá-los. Mas esses méritos estão longe de ser os que a maioria identifica. O problema é que pouca gente quer assumir o risco de falar mal de um cara desses. Mas quando alguém tem essa coragem… Vejam isto (está emhttp://e-proinfo.mec.gov.br/eproinfo/blog/preconceito/a-ideia-absurda-de-linguas-primitivas-i.html ): O linguista Sírio Possenti relata, por exemplo, numa de suas crônicas, um episódio ocorrido no programa de entrevistas de Jô Soares na televisão: Um dia desses, os entrevistados eram Martinho da Vila e o presidente de uma associação de magistrados. […] A conversa com Martinho ia bem, até que Jô perguntou sobre seu conhecimento de línguas africanas, já que de alguns dos discos de Martinho participam músicos angolanos cantando músicas nativas. Martinho disse o óbvio: que, tendo estado na África várias vezes, mesmo em temporadas curtas, aprendeu um pouco. Não conhece as línguas, mas se vira (e acrescentou que o mesmo ocorre com relação ao francês, o que mostra que ele é normal). Mas Jô o interrompeu para comentar que se pode aprender as línguas africanas, mesmo em pequenas temporadas, porque elas têm poucas palavras. E botou para funcionar suas leituras de almanaque. Informou que em suaíli as palavras querem dizer muitas coisas. E deu como exemplo certa palavra que pode ser empregada em várias situações. Decidi dormir, perdi a entrevista com o magistrado. Achei que não suportaria uma lição de direito constitucional do mesmo nível. Disse que Jô acionou suas leituras de almanaque, mas a coisa é mais grave do que isso: trata-se de grosseiro preconceito linguístico e cultural. Se a gente abre um dicionário […], a coisa mais interessante que se pode descobrir é que todas as palavras têm muitos sentidos, que todas as línguas são como o suaíli, ou o suaíli é como todas as línguas.”

Mas tem mais coisa. No livro “Raul Seixas por ele mesmo” (Coleção “O autor por ele mesmo”, editora Martin Claret), na página 171 (sugestivo, não?!) o Marcelo Nova responde assim a uma pergunta dentro do contexto de rebeldia rock’n’roll, aceitação na mídia, politicamente correto etc.: “Eu e o Raulzito estávamos absolutamente desiludidos com este país. Por exemplo, nós fomos fazer uma entrevista no Jô Soares Onze e Meia fui censurado pelo sr. Jô Soares porque citei nomes de pessoas da Rede Globo que queriam acabar com o Camisa de Vênus. Hoje o Camisa de Vênus é uma banda extinta [a entrevista é do começo dos anos 90], mas naquela época, a gente estava dando um ponta-pé na canela de um esquema que não estava habituado a levar sequer um beliscão. E a gente quem era? Cinco baianos que foram de ônibus da Viação São Geraldo para São Paulo e comiam sanduíche no almoço! Eu falei na entrevista que o Camisa de Vênus era um nome proibido, que foi proposta a mudança do nome da banda, que o sr. Heleno de Oliveira e o sr. João Araújo decidiram tirar o nosso disco de catálogo e nos mandaram embora, e o sr. Jô Soares me censurou. Essa parte não foi para a edição final. Então, eu pergunto: como é que um cara que faz esse papel de liberal vem me censurar? Este é um país assim, em que a pessoas posam de liberais, mas censuram.”

Então, como diria o Raulzito, falta cultura pra cuspir na estrutura.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 2/5/2013.

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Cultura, Língua Portuguesa, Linguística, Republicados

Preconceito linguístico: existe mesmo? Faça uma REVISTA nos seus (pre)conceitos e VEJA com seus próprios olhos

Em outro texto, falei sobre o livrinho (ão) “Língua e liberdade”, do professor Celso Pedro Luft. Hoje vou falar sobre outro livro, que pelo tamanho é um livrinho, mas pelo conteúdo é um LIVRÃO (ÃO, ÃO, ÃO…). Trata-se do “Preconceito linguístico: o que é, como se faz”, do pesquisador, cientista, linguista, escritor, poeta… ufa!, enfim, do PROFESSOR Margos Bagno. A minha edição é a 21ª, de 2003, da editora Loyola.

O livro do Professor Luft e este têm muita coisa em comum, a começar pela escolha muito feliz dos títulos. Em “Língua e liberdade”, é demonstrada de maneira muito simples e direta, em linguagem acessível a todos, inclusive, e talvez principalmente, a leigos – se é que existem brasileiros leigos em relação ao português – como a língua, tomada em sentido amplo, pode ser ao mesmo tempo um poderoso instrumento de opressão e um artefato libertador, pelo qual qualquer pessoa, desde uma criança de 3 ou 4 anos até um idoso que nunca aprendeu a ler ou escrever, manifesta-se, comunica-se e expõe os seus pensamentos, desejos, anseios, posições, ideologias etc. Neste “Preconceito linguístico”, o Professor Marcos Bagno apresenta, escancara, desmascara, desmitifica e propõe formas para erradicar este que é um dos mais odiosos preconceitos sociais, que é usado de forma muito consciente pela elites dominantes, mas que, infelizmente, é disseminado de forma ingênua por milhões de brasileiros, que são convencidos de forma nefasta que não sabem o português, sua língua materna, com a qual se comunicam perfeitamente desde a mais tenra infância. 

Decidi adotar o mesmo sistema do texto referido anteriormente, citando trechos do livro e fazendo alguns comentários quando achar necessário. Os grifos estão no original, exceto quando indicado. As minhas intervenções aparecem em negrito. A grafia foi mantida como no original.

Não sendo linguista, sem formação na área, mas tendo muita preocupação com os preconceitos generalizados que a nossa sociedade propaga, especificamente este, valho-me da técnica de reproduzir o pensamento de estudiosos para tentar apresentar os fatos e fazer com que as pessoas tomem consciência e, se acharem por bem (e devem achar), engajem-se na luta contra as discriminações, que representam entraves para a construção de uma sociedade mais justa e que se constituem no arsenal das elites para a manutenção do estado atual das coisas. Muitos já disseram que a grande revolução não está em somente seguir as palavras dos grande líderes, mas que começa dentro de cada um de nós. Disse certa vez o meu Mestre: “Antes de escrever o livro que o guru lhe deu você precisa escrever o seu.” Sendo assim, 

À REVOLUÇÃO!

Capítulo I – A mitologia do preconceito lingüístico

Mito nº 1 – “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”

Este mito é muito prejudicial à educação porque, ao não reconhecer a verdadeira diversidade do português falado no Brasil, a escola tenta impor a sua norma lingüística como se ela fosse, de fato, a língua comum a todos os 160 milhões de brasileiros, independentemente de sua idade, de sua origem geográfica, de sua situação socioeconômica, de seu grau de escolarização etc. (p. 15)

Mito nº 2 – “Brasileiro não sabe português/Só em Portugal se fala bem português”

O brasileiro sabe português, sim. O que acontece é que nosso português é diferente do português falado em Portugal. Quando dizemos que no Brasil se fala português, usamos esse nome simplesmente por comodidade e por uma razão histórica, justamente a de termos sido uma colônica de Portugal. Do ponto de vista lingüístico, porém, a língua falada no Brasil já tem uma gramática – isto é, tem regras de funcionamento – que cada vez mais se diferencia da gramática da língua falada em Portugal. Por isso os lingüistas (os cientistas da linguagem) preferem usar o termo português brasileiro, por ser mais claro e marcar bem essa diferença. (p. 24)

Mito nº 3 – “Português é muito difícil”

Está provado e comprovado que uma criança entre os 3 e 4 anos de idade já domina perfeitamente as regras gramaticais de sua língua! O que ela não conhece são sutilezas, sofisticações e irregularidades no uso dessas regras, coisas que só a leitura e o estudo podem lhe dar. Mas nenhuma criança brasileira dessa idade vai dizer, por exemplo: “Uma meninos chegou aqui amanhã”. (p.35)

Por quê? Porque toda e qualquer língua é “fácil” para quem nasceu e cresceu rodeado por ela! (p. 36)

Se tanta gente continua a repetir que “português é difícil” é porque o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português. (p. 36)

O professor pode mandar o aluno copiar quinhentas mil vezes a frase: “Assisti ao filme”. Quando esse mesmo aluno puser o pé fora da sala de aula, ele vai dizer ao colega: “Ainda não assisti filme do Zorro!” (…)

(…) aquelas mesmas pessoas que, por causa da pressão policialesca da escola e da gramática tradicional, usam a preposição a depois do verbo assistir, também dizem que “o jogo foi assistido por vinte mil pessoas”. Ora, se o verbo assistir pede um preposição é porque ele não é transitivo direto, e só os verbos transitivos diretos podem, segundo as gramáticas assumir a voz passiva. Desse modo, quem diz “assisti ao jogo” não poderia, teoricamente, dizer “o jogo foi assistido”. (pp. 36 e 37)

No fundo, a idéia de que “português é muito difícil” serve como mais um dos instrumentos de manutenção do status quo das classes sociais privilegiadas.  (p. 39) (Grifos meus.)

Mito nº 4 – “As pessoas sem instrução falam tudo errado”

(…) do mesmo modo como existe o preconceito contra a fala de determinadas classes sociais, também existe o preconceito contra a fala característica de certas regiões. É um verdadeiro acinte aos direitos humanos, por exemplo, o modo como a fala nordestina é retratada nas novelas de televisão, principalmente da Rede Globo. Todo personagem de origem nordestina é, sem exceção, um tipo grotesco, rústico, atrasado, criado para provocar o riso, o escárnio e o deboche dos demais personagens e do espectador. No plano lingüístico, atores não-nordestinos expressam-se num arremedo de língua que não é falada em nenhum lugar do Brasil, muito menos no Nordeste. Costumo dizer que aquela deve ser a língua do Nordeste de Marte! Mas nós sabemos muito bem que essa atitude representa uma forma de marginalização e exclusão.(pp. 43 e 44) (Grifo meu.)

Abro um parêntese para acrescentar que esse artifício de exclusão utilizado de forma muito consciente pela Rede Globo vai muito além do preconceito linguístico. Até pouco tempo, aos atores negros eram sempre reservados os papéis de empregados, motoristas, ladrões etc. Esse panorama mudou. Hoje negros ocupam papéis de protagonismo. Contudo, examinemos um pouco melhor essa “mudança”. Na última novela das sete, um dos personagens principais era interpretado pela negra Thaís Araújo. Em outro folhetim, coube ao ator negro Lázaro Ramos o protagonismo. O que têm em comum esses dois atores, além do fato de serem negros e marido e mulher? Ambos são exemplos típicos da beleza padronizada pelo mundo ocidental, têm rostos e corpos bonitos, dentes perfeitos, cabelos perfeitamente ajustadosAtores negros, cuja beleza não possa ser facilmente reconhecida pelo senso comum, continuam a desempenhar papéis secundários ou que representem elementos negativos em relação ao caráter, conduta social etc. Caso alguém tenha algum exemplo em contrário, um único, por favor me aponte. Um negro “feio” que seja o mocinho da novela. Uma negra “gorda” a quem não seja destinado o papel da cozinheira. Não que ser cozinheira desmereça qualquer mulher, branca, negra, vermelha, mas a forma estereotipada com que é apresentado o papel faz com que o imaginário popular solidifique a ideia distorcida de que essas profissões são menos importantes e, portanto, possíveis a pessoas a quem faltem “maiores qualificações”, entre elas um “melhor trato com a língua”.  

Mito nº 5 – “O lugar onde melhor se fala o português no Brasil é no Maranhão”

Convém salientar que a determinação das normas culta e não-culta é uma questão de grau de freqüência das variantes (o que os normativistas consideram erros ou acertos). Por exemplo, coisas como “os menino tudo” ou “houveram fatos” podem aparecer na fala de brasileiros cultos.

É preciso abandonar essa ânsia de tentar atribuir a um único local ou a uma única comunidade de falantes o “melhor” ou o “pior” português e passar a respeitar igualmente todas as variedades da língua, que constituem um tesouro precioso de nossa cultura. Todas elas têm o seu valor, são veículos plenos e perfeitos de comunicação e de relação entre as pessoas que as falam. Se tivermos de incentivar o uso de uma norma culta, não podemos fazê-lo de modo absoluto, fonte do preconceito. Temos de levar em consideração a presença de regras variáveis em todas as variedades, a culta inclusive. (p. 51)

Mito nº 6 – “O certo é falar assim porque se escreve assim”

O que acontece é que em toda língua do mundo existe um fenômeno chamado variação, isto é, nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares, assim como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico. (p. 52)

É claro que é preciso ensinar a escrever de acordo com a ortografia oficial, mas não se pode fazer isso tentando criar uma língua falada “artificial” e reprovando como “erradas” as pronúncias que são resultado natural das forças internas que governam o idioma. Seria mais justo e democrático dizer ao aluno que ele pode dizer BUnito ou BOnito, mas que só pode escrever BONITO, porque é necessária uma ortografia única para toda a língua, para que todos possam ler e compreender o que está escrito, mas é preciso lembrar que ela funciona como a partitura de uma música: cada instrumentista vai interpretá-la de um modo todo seu, particular! (pp. 52 e 53) (Grifo meu.)

Com esta afirmação e esta orientação, o professor Bagno destrói o argumento raso dos conservadores e reacionários “defensores” da “Ultima Flor do Lácio”, que sempre dizem que os linguistas estão propondo uma deturpação total da língua portuguesa, que busca incutir na cabeça das pessoas a ideia de que vale tudo na língua. Não! O que se propõe é que a língua seja analisada e estudada como um organismo vivo e, como tal, em constante modificação, sem que se criem visões anacrônicas e preconceituosas de que a única forma correta de utilizar a língua é aquela de que se valem os detentores do conhecimento da gramática normativa. Mesmo porque esse suposto domínio total das regras gramaticais é impossível, mesmo aos gramáticos prescritivos e dicionaristas.

A língua escrita, por seu lado, é totalmente artificial, exige treinamento, memorização, exercício, e obedece a regras fixas, de tendência conservadora, além de ser uma representação não exaustiva da língua falada.

Faça você mesmo o teste: pegue uma palavra bem simples – fogo, por exemplo – e pronuncie-a com todas as inflexões e tons de voz que conseguir: espanto, medo, alegria, tristeza, saudade, ira, remorso, horror, felicidade, histeria, pavor… Depois tente reproduzir por escrito essas mesmas inflexões e tons de voz. É impossível. O máximo que a língua escrita oferece são os sinais de exclamação e de interrogação! A mera forma escrita não é capaz de traduzir as inflexões e as intenções pretendidas pelo falante. Por isso, os autores de textos teatrais indicam, entre parênteses, a emoção, sensação ou sentimento que o ator deve expressar numa dada fala. (p. 55)

A espécie humana tem, pelo menos, um milhão de anos. Ora, as primeiras formas de escrita, conforme a classificação tradicional dos historiadores, surgiram há apenas nove mil anos. A humanidade, portanto, passou 990.000 anos apenas falando! (p. 56)

Mito nº 7 – “É preciso saber gramática para falar e escrever bem”

É muito comum, também, os pais de alunos cobrarem dos professores o ensino dos “pontos” de gramática tais como eles próprios os aprenderam em seu tempo de escola. E não faltam casos de pais que protestaram veementemente contra professores e escolas que, tentando adotar uma prática de ensino da língua menos conservadora,não seguem rigorosamente “o que está nas gramáticas”. Conheço gente que triou seus filhos de uma escola porque o livro didático ali adotado não ensinava coisas “indispensáveis” como “antônimos”, “coletivos” e “análise sintática”…” (p. 62)

Acrescento às palavras do autor a observação que, em geral, nem os pais aprenderam de fato os “pontos” de gramática na escola. No máximo eles decoraram algumas regras arbitrárias, que, no mais das vezes, servem para muito pouca coisa além de demonstrar uma suposta erudição e… excluir os que não “dominam” essas regras.  

O que aconteceu, ao longo do tempo, foi uma inversão da realidade histórica. As gramáticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como “regras” e “padrões” as manifestações lingüísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração, modelos a ser imitados. Ou seja, a gramática normativa é decorrência da língua, é subordinada a ela, dependente dela. Como a gramática, porém, passou a ser um instrumento de poder e de controle, surgiu essa concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam da gramática, como se ela fosse uma espécie de fonte mística invisível da qual emana a língua “bonita”, “correta” e “pura”. (p. 64) (Grifo no original e meu.)

As plantas só existem porque os livros de botânica as descrevem? É claro que não. Os continentes só passaram a existir depois que os primeiros cartógrafos desenharam seus mapas? Difícil acreditar. A Terra só passou a ser esférica depois que as primeiras fotografias tiradas do espaço mostraram-na assim? Não. Sem os livros de receita não haveria culinária? (p. 66)

Mito nº 8 – “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social”

Ora, se o domínio da norma culta fosse realmente um instrumento de ascensão na sociedade, os professores de português ocupariam o topo da pirâmide social, econômica e política do país, não é mesmo? (p. 69)

(…) um grande fazendeiro que tenha apenas alguns poucos anos de estudo primário, mas que seja dono de milhares de cabeças de gado, de indústrias agrícolas e detentor de uma grande influência política em sua região vai poder falar à vontade sua língua de “caipira”, com todas as formas sintáticas consideradas “erradas” pela gramática tradicional, porque ninguém vai se atrever a corrigir seu modo de falar. 

O que estou tentando dizer é que o domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha todos os dentes, que não tenha casa decente para morar, água encanada, luz elétrica e rede de esgoto. O domínio da norma culta de nada vai servir a uma pessoa que não tenha acesso às tecnologias modernas, aos avanços  da medicina, aos empregos bem remunerados, à participação ativa e consciente nas decisões políticas que afetam sua vida e a de seus concidadãos. O domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha seus direitos de cidadão reconhecidos plenamente, a uma pessoa que viva numa zona rural onde um punhado de senhores feudais controlam extensões gigantescas de terra fértil, enquanto milhões de famílias de lavradores sem-terra não têm o que comer. (p. 70) (Grifos meus.)

Capítulo II – O círculo vicioso do preconceito lingüístico

1. Os três elementos que são quatro

(…) o sujeito que usa um termo em inglês no lugar do equivalente em português é, na minha opinião, um idiota. (p. 78) [Referência à afirmação de Pasquale Cipro Neto em uma entrevista concedida à revista Veja, edição de 10/09/1997.]

2. Sob o império de Napoleão

Os delinqüentes da língua portuguesa fazem do princípio histórico “quem faz a língua é o povo” verdadeiro moto para justificar o desprezo de seu estudo, de sua gramática, de seu vocabulário, esquecidos de que a falta de escola é que ocasiona a transformação, a deterioração, o apodrecimento de uma língua. Cozinheiras,babás,engraxates, trombadinhas, vagabundos, criminosos é que devem figurar, segundo esses derrotistas, como verdadeiros mestres da nossa sintaxe e legítimos defensores do nosso vocabulário. (p. 79) [Referência ao verbete “VERNÁCULO”, no “Dicionário de questões vernáculas”, de Napoleão Mendes de Almeida (2ª ed.: 1994. São Paulo, LCTE)]

Napoleão Mendes de Almeida, um dos expoentes da “língua pura” mais cultuados pelos que acreditam e defendem essa monstruosidade, considerado por eles um verdadeiro repositório do saber contido nas raízes latinas do idioma oficial do Brasil, oferece uma prova substancial de que o preconceito linguístico não anda sozinho. Vejam que ele associa cozinheiras, babás e engraxates a  trombadinhas, vagabundos e criminosos, todos responsáveis pelo “apodrecimento” da língua portuguesa. Um sujeito desses ainda hoje é (muito) citado como referencial de amor à língua e cultivo das formas mais elevadas de utilização do português. Ao perceber isso, tenho que me socorrer do calendário para me certificar que estamos em 2012 e não na Idade Média…

3. Um festival de asneiras

(…) tenta ensinar coisas perfeitamente inúteis, como a pronúncia “correta” do nome inglês do modelo de um carro que, por sinal, já deixou de ser fabricado (Monza Classic SE) e também das siglas FNM e DKW (igualmente extintas), a grafia “correta” do apelido da apresentadora de televisão Xuxa (que, segundo ele, deveria se escrever Chucha), ou a conjugação apropinquar-se, que ninguém em sã consciência usa no Brasil, a menos que queira provocar risos ou passar por pedante… (p. 83) [Referência ao livro “Não erre mais!”, de Luiz Antônio Sacconi (23ª ed.: 1998. São Paulo, Atual)

Julgo importante reproduzir na íntegra um texto da lavra de Dad Squarisi, famosa colunista que fornece dicas de português em conceituadas publicações do país. Segundo o autor, a coluna foi publicada no “Correio Braziliense”, de 22/06/1996, e no “Diário de Pernambuco”, em 15/11/1998. Vamos, então, a algumas dicas da professora Squarisi:

Português ou caipirês?
 
Dad Squarisi
 
 
     Fiat lux. E a luz se fez. Clareou este mundão cheinho de jecas-tatus. À direita, à esquerda, à frente, atrás, só se vê uma paisagem. Caipiras, caipiras e mais caipiras. Alguns deslumbrados, outros desconfiados. Um – só um – iluminado. Pobre peixinho fora d’água! Tão longe da Europa, mas tão perto de paulistas, cariocas, baianos e maranhenses.
 
     Antes tarde do que nunca. A definição do caráter tupiniquim lançou luz sobre um quebra-cabeça que atormenta este país capiau desde o século passado. Que língua falamos? A resposta veio das terras lusitanas.
 
     Falamos o caipirês. Sem nenhum compromisso com a gramática portuguesa. Vale tudo: eu era, tu era, nós era, eles era. Por isso não fazemos concordância em frases como “Não se ataca as causas” ou “Vende-se carros”.
 
     Na língua de Camões, o verbo está enquadrado na lei da concordância. Sujeito no plural? O verbo vai atrás. Sem choro nem vela. Os sujeitos causas e carros estão no plural. O verbo, vaquinha de presépio, deveria acompanhá-los. Mas se faz de morto. O matuto, ingênuo, passa batido. Sabe por quê?
 
     O sujeito pode ser ativo ou passivo. Ativo, pratica a ação expressa pelo verbo: Os caipiras (sujeito) desconhecem (ação) o outro lado. Passivo, sofre a ação: O outro lado (sujeito) é desconhecido (ação) pelos caipiras. Reparou? O sujeito – o outro lado – não pratica a ação.
 
      Há duas formas de construir a voz passiva:
 
     a. com o verbo ser (passiva analítica): A cultura caipira é estudada por ensaístas. Os carros são vendidos pela concessionária.
 
     b. com o pronome se (passiva sintética): estuda-se a cultura caipira. Vendem-se carros. No caso, não aparece o agente. Mas o sujeito está lá. Passivo,mas firme.
 
     Dica: use o truque dos tabaréus cuidadosos: troque a passiva sintética pela analítica. E faça a concordância com o sujeito. Vende-se casas ou vendem-se casas? Casas são vendidas (logo: Vendem-se casas). Não se ataca ou não se atacam as causas? As causas não são atacadas (não se atacam as causas). Fez-se ou fizeram-se a luz? A luz foi feita (fez-se a luz). Firmou-se ou firmaram-se acordos? Acordos foram firmados (firmaram-se acordos). 
 
     Na dúvida, não bobeie. Recorra ao truque. Só assim você chega lá e ganha o passaporte para o mundo. Adeus, Caipirolândia. (pp. 95 e 96)
Na sequência da reprodução do texto, além de discorrer sobre o preconceito explícito que escorre como veneno das palavras da colunista, o autor explica detalhadamente porque as dicas gramaticais não funcionam sob nenhum aspecto, mesmo à luz da gramática normativa. Como o meu objetivo é chamar a atenção para as formas preconceituosas com que se utiliza a língua, vou me abster de transcrever as lições do Professor Bagno, limitando-me a reproduzir um trecho do conto “O contador de pronomes”, de Monteiro Lobato,publicado em 1924. Neste conto, o professor Aldrovando Cantagalo, gramático normativista ortodoxo, depara-se com uma placa com os dizeres “Ferra-se cavalos” e tenta explicar ao ferreiro que o verbo deveria estar no plural, porque o sujeito da frase está no plural. Ao que o ferreiro respondeu:
 
– V. Sa. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele SE da tabuleta refere-se cá a este seu criado. (p. 104)  
     
Capítulo III – A desconstrução do preconceito lingüístico
 
1. Reconhecimento da crise
 
Uma coisa não podemos deixar de reconhecer: existe atualmente uma crise no ensino da língua portuguesa. (p. 105)
Não é difícil perceber que a norma culta – por diversas razões de ordem política, econômica, social, cultural – é algo reservado a poucas pessoas no Brasil. (p. 105)
 
A norma culta, como vimos, está tradicionalmente muito vinculada à norma literária, à língua escrita. Com tantos analfabetos, lamentar a “decadência” ou a “corrupção” da norma culta no Brasil é, no mínimo, uma atitude cínica. (p. 107)
2. Mudança de atitude
Enquanto essa gramática [gramática da norma culta brasileira] não chega, temos de combater o preconceito lingüístico com as armas de que dispomos. E a primeira campanha a ser feita, por todos na sociedade, é a favor da mudança de atitude. Cada um de nós, professor ou não, precisa elevar o grau da própria auto-estima lingüística: recusar com veemência os velhos argumentos que visem menosprezar o saber lingüístico individual de cada um de nós. Temos de nos impor como falantes competentes de nossa língua materna. Parar de acreditar que “brasileiro não sabe português”, que português é muito difícil”, que os habitantes da zona rural ou das classes sociais mais baixas “falam tudo errado”. Acionar nosso senso crítico toda vez que nos depararmos com um comando paragramatical [nome que o autor dá aos consultórios gramaticais, colunas de auxílio gramatical em jornais e revistas, programas de correção gramatical na televisão etc.] e saber filtrar as informações realmente úteis, deixando de lado (e denunciando, de preferência) as afirmações preconceituosas, autoritárias e intolerantes. (p. 115)
Se milhões de brasileiros de norte a sul, de leste a oeste, em todas as regiões e em todas as classes sociais falam e escrevem Aluga-se salas ou se há flutuação no uso de onde e aonde, o problema, evidentemente, não está nesses milhões de pessoas, mas na explicação insuficiente (errada, até, nesses casos) dada a esses fenômenos pela gramática tradicional. (p. 116)
3. O que é ensinar português?
Esforçar-se para que o aluno conheça de cor o nome de todas as classes de palavras, saiba identificar os termos da oração, classifique as orações segundo seus tipos, decore as definições tradicionais de sujeito, objeto, verbo, conjunção etc. – nada disso é garantia de que esse aluno se tornará um usuário competente da língua culta.
 
Quando alguém se matricula numa auto-escola, espera que o instrutor lhe ensine tudo o que for necessário para se tornar um bom motorista, não é? Imagine, porém, se o instrutor passar onze anos abrindo a tampa do motor e explicando o nome de cada peça, de cada parafuso (…) Esse aluno tem alguma chance de se tornar um bom motorista? Quando muito, estará se candidatando a um emprego de mecânico de automóveis… Mas quantas pessoas existem por aí, dirigindo tranqüilamente seus carros, tirando o máximo proveito deles, sem ter a menor idéia do que acontece dentro do motor? (…) 
 
(…) E então? O que pretendemos formar com nosso ensino: motoristas da língua ou mecânicos da gramática? (pp. 119 e 120)
Quando digo coisas assim em público, algumas pessoas levantam a objeção de que o ensino da nomenclatura tradicional, das definições, das classificações, da análise sintática é necessário porque são essas coisas que serão cobradas ao aluno no momento de fazer um concurso ou de prestar o vestibular. Se é assim, cabe a nós, professores, pressionar pelos meios de que dispomos – associações profissionais, sindicatos, cartas à imprensa – para que as provas de concursos sejam elaboradas de outra maneira, trocando as velhas concepções de língua por novas. Não temos de nos conformar passivamente com uma situação absurda e prosseguir na reprodução dos velhos vícios gramatiqueiros simplesmente porque haverá uma cobrança futura ao aluno. (p. 121)
Nunca consegui entender por que uma pessoa que quer estudar Direito precisa fazer prova de física, química, biologia e matemática, se o que ela prendeu dessas matérias já foi avaliado na conclusão do 2º grau.
 
Com o fim do vestibular, desaparecerá também – assim esperamos ardentemente – toda a indústria que se formou em torno dele: os nefandos “cursinhos” onde ninguém aprende nada, onde não há nenhuma produção de conhecimento mas apenas reprodução de informações desconexas, onde centenas de alunos se apinham numa sala, onde tudo o que se faz é entupir a cabeça do aluno com “truques” e “macetes” que em nada contribuem para a sua verdadeira formação intelectual e humanística. (pp. 122 e 123)
4. O que é erro?
 
(…) uma elevada porcentagem do que se rotula de “erro de português” é, na verdade,mero desvio da ortografia oficial. (p. 122)
(…) em cartazes e placas não aparecem “erros de português” e, sim, “erros” de ortografia. Escrever, digamos, LOGINHA DE ARTEZANATO onde a lei obriga a escrever LOJINHA DE ARTESANATO em nada vai prejudicar a intenção do autor da placa: informar que ali se vende objetos de artesanato. (p. 123)
No início do século XX o “certo” era escrever: EM NICHTEROY ELLE POUDE ESTUDAR SCIENCIAS NATURAES, CHIMICA E PHYSICA. Se hoje o “certo” é escrever: EM NITERÓI ELE PÔDE ESTUDAR CIÊNCIAS NATURAIS, QUÍMICA E FÍSICA, isso não altera a sintaxe nem a semântica do enunciado: o que mudou foi só a ortografia. (p. 123)
Todo falante nativo de uma língua é um falante plenamente competente dessa língua, capaz de discernir intuitivamente a gramaticalidade ou agramaticalidade de um enunciado, isto é, se um enunciado obedece ou não às regras de funcionamento da língua.
 
Ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna, assim como ninguém comete erros ao andar ou ao respirar. (p. 124) (Grifo meu.)
 
(…) podemos até dizer que existem “erros de português”, só que nenhum falante nativo da língua os comete! Por exemplo, seriam “errados” os enunciados abaixo (o asterisco indica construção agramatical)
 
(1) *Aquela garoto me xingou
(2) *Eu nos vimos ontem na escola
(3) *Júlia chegou semana que vem
(4) *Não duvido que ele não queira não vir aqui
(5) *Que o livro que a moça que Luís que trabalha comigo me apresentou escreveu é bom não nego
 
Esses enunciados, precisamente por serem agramaticais, isto é, por não respeitarem as regras de funcionamento da nossa língua, não aparecem na fala espontânea e natural de falantes nativos do português do Brasil, mesmo que sejam crianças pequenas que ainda não freqüentam escola ou adultos totalmente iletrados. (p. 125)
 
5. Então vale tudo?
 
Algumas pessoas me dizem que a eliminação da noção de erro dará a entender que, em termos de língua, vale tudo. Não é bem assim. Na verdade, em termos de língua, tudo vale alguma coisa, mas esse valor vai depender de uma série de fatores. Falar gíria vale? Claro que vale: no lugar certo, no contexto adequado, com as pessoas certas. E usar palavrão? A mesma coisa.
 
Uma das principais tarefas do professor de língua é conscientizar seu aluno de que a língua é como um grande guarda-roupa, onde é possível encontrar todo tipo de vestimenta. Ninguém vai só de maiô fazer compras num shopping-center, nem vai entrar na praia, num dia de sol quente, usando terno de lã, chapéu de feltro e luvas… (p. 130)
 
6. A paranóia ortográfica
 
Essa Gramática [“Gramática da língua portuguesa”, de Pasquale Cipro Neto & Ulisses Infante] filia-se à tradição que atribui ao domínio da escrita um elemento de distinção social, que é na verdade um elemento de dominação por parte dos letrados sobre os iletrados. 
Existe um mito ingênuo de que a linguagem humana tem a finalidade de “comunicar”, de “transmitir idéias” – mito que as modernas correntes da lingüística vêm tratando de demolir, provando que a linguagem é muitas vezes um poderoso instrumento de ocultação da verdade, de manipulação do outro, de controle, de intimidação, de opressão, de emudecimento. (p. 133)  (Grifo meu.) 
 
O aprendizado da ortografia se faz pelo contato íntimo e freqüente com textos bem escritos, e não com regras mal elaboradas ou com exercícios pouco esclarecedores. (p. 138)
7. Subvertendo o preconceito lingüístico
 
(…) talvez tenhamos de continuar ensinando aquelas coisas que nos são cobradas pela sociedade, pela direção das escolas, pelos pais dos nossos alunos. Mas podemos ensinar essas coisas criticando-as ao mesmo tempo e deixando bem claro que aquilo ali não é tudo o que se pode saber a respeito da língua, que há um milhão de outras coisas muito mais interessantes e gostosas para descobrir no universo da linguagem. (p. 141)
Capítulo IV – O preconceito contra a lingüísitca e os lingüistas
 
1. Uma “religião” mais velha que o cristianismo
 
A Gramática Tradicional permanece viva e forte porque, ao longo da história, ela deixou de ser apenas uma tentativa de explicação filosófica para os fenômenos da linguagem humana e foi transformada em mais um dos muitos elementos de dominação de uma parcela da sociedade sobre as demais(p. 149) (Grifo meu.)
 
Querer cobrar, hoje em dia, a observância dos mesmos padrões lingüísticos do passado é querer preservar, ao mesmo tempo, idéias, mentalidades e estruturas sociais do passado. (p. 150)
Ora, o novo assusta, o novo subverte as certezas, compromete as estruturas de poder e dominação há muito vigentes. (150)
(…) grupos de pessoas que dizem promover ridículos “movimentos de defesa da língua portuguesa”, como se fosse necessário defender a língua de seus próprios falantes nativos, a quem ela pertence de fato e de direito. (p. 151)
(…) o simples fato de pertencer à Academia Brasileira de Letras é exemplo de sua filiação a um ideário conservador e elitista – ele já declarou, por exemplo, que a função da escola é levar os alunos a falar “melhor e com os melhores” (…) (p. 158) [Referindo-se a Evanildo Bechara.] 
No mesmo momento em que eu escrevo, ou transcrevo, leio a frase para a Patrícia, minha esposa, e ela me faz a  pergunta, um tanto quanto retórica, mas que inevitavelmente salta à mente de quem tenha uma mínima capacidade de reflexão: “Quem são os melhores?” Eu respondo simplesmente, numa respeitosa “homenagem” ao professor Evanildo: “Os que sabem falar…”
4. A quem interessa calar os lingüistas?
(…) se um deputado sem formação em medicina inventasse um projeto de lei que tivesse relação com a prática cirúrgica e se todos os médicos do país se manifestassem contra o projeto, será que ele conseguiria ser aprovado? Por que toda e qualquer pessoa se acha no direito de dar palpites infundados e preconceituosos sobre as questões que dizem respeito à língua? (p. 164) [Referindo-se ao projeto do então deputado federal Aldo Rebelo, atual Ministro dos Esportes, de 1999, sobre “a promoção , a proteção, a defesa e o uso da língua portuguesa”.]
 
O autor lembra que o então deputado se refere à Napoleão Mendes de Almeida (aquele mesmo que comparou babás e engraxates com trombadinhas e criminosos) como um dos nossos maiores linguistas, sendo que na visão deste mesmo Napoleão, os linguistas são responsáveis, ao lado das babás, engraxates e criminosos, pelo apodrecimento da língua portuguesa.
 
Que ameaça ao tipo de sociedade em que vivemos representa a democratização do saber lingüístico, a divulgação ampla das descobertas deste campo científico, a liberação da voz de tantos milhões de pessoas condenadas ao silêncio por “não saber português” ou por “falar tudo errado”? A quem interessa defender o “português ortodoxo” de uns pouquíssimos “melhores” contra a suposta “heresia gramatical” de muitos milhões de outros? (p. 165) 

Na parte final de “Preconceito linguístico”, o autor transcreve uma carta que enviou ao editor da Veja, em resposta a uma matéria publicada na edição de número 1.725 (novembro de 2001), intitulada “Falar e escrever bem, eis a questão”, na qual o jornalista João Gabriel de Lima destila o mesmo veneno preconceituoso examinado ao longo do livro. Da extensa missiva, destaco dois trechos que de certa forma sintetizam tudo o que eu pretendi dizer com este texto e as transcrições nele feitas:

Segundo a reportagem, as críticas que o Sr. Pasquale Cipro Neto recebe dessa “corrente relativista”deixam-no “irritado”. Ora, o que parece realmente irritar o Sr. Pasquale é o fato de que, apesar de obter tanto sucesso entre os leigos, nada do que ele diz ou escreve é levado a sério nos centros de pesquisa científica sobre a linguagem, sediados nas mais importantes universidades do Brasil – centros de pesquisa lingüística, diga-se de passagem, reconhecidos internacionalmente como entre alguns dos melhores do mundo. Muito pelo contrário, se o nome do Sr. Pasquale é mencionado nas nossas universidades, é sempre como exemplo de uma atitude anticientífica dogmática e até obscurantista no que diz respeito à língua e seu ensino (em vários de seus artigos em jornais e revistas ele já chamou os lingüistas de “idiotas”, “ociosos”, “defensores do vale-tudo” e “deslumbrados”). (p. 170)

Se existe, porém, uma grande resistência contra o redimensionamento do lugar do ensino da gramática na escola é porque todos sabemos que, ao longo do tempo, o conhecimento mecânico da doutrina gramatical se transformou num instrumento de discriminação e de exclusão social. “Saber português”, na verdade, sempre significou “saber gramática”, isto é, ser capaz de identificar – por meio de uma terminologia falha e incoerente – o “sujeito’ e o “predicado” de uma frase, pouco importante o que essa frase queria dizer, os efeitos de sentido que podia provocar etc. Transformada num saber esotérico, reservado a uns poucos “iluminados”, a “gramática” passou a ser reverenciada como algo misterioso e inacessível – daí surgiu a necessidade de “mestres” e “guias”, capazes de levar o “ignorante” a atravessar o abismo que separa os que sabem dos que não sabem português…” (p. 182)

Infelizmente o livro não informa se a carta foi ou não publicada, por isso deixo a pergunta: 

será que Veja publicou a carta do professor Marcos Bagno ou deixou que as distorções da matéria sobre a língua adquirissem ares de verdade (nazismo?? – sei lá…)? 

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 14/11/2012.

 

Padrão
Cultura, Educação, Língua Portuguesa, Linguística, Política, Republicados

Língua e (é) liberdade*

As observações, afirmações e comentários que seguem são de um livrinho (ele mesmo chama assim, mas na verdade é um LIVRÃO) do saudoso professor Celso Pedro Luft, que recebeu o mais que apropriado nome de “Língua e liberdade”. A edição que eu tenho é a 8ª (5ª impressão), de 2002, da editora Ática. Na transcrição foi mantida a grafia original, anterior à norma vigente. Os grifos constam no original, salvo aqueles referidos expressamente. 

Leiam, pois, divirtam-se, pensem, reflitam, falem, escrevam, publiquem.

Capítulo 1 – Subversão lingüística?


1.1 O importante é comunicar


Qualquer ato de comunicação só é possível mediante a aplicação de todas as regras nele envolvidas. Mas, todas elas, regras naturais, da 
gramática natural, interior, dos falantes; na sua imensa maioria, regras que não são conscientes, não se explicitaram ou verbalizaram, nem se poderiam ter presentes ao falar ou escrever. (p. 16)

A língua toda: semântica, léxico, morfologia, fonologia e fonética – tudo é questão de USO. Vale o que a comunidade dos falantes tacitamente (raro explicitamente) determina que vale. A língua é autodeterminada pelos seus usuários. (p. 17)

O estudo da Gramática é indispensável para dominar a língua? Não;indispensável é aprender a língua, que contém a gramática. Indispensável é aprender a dominar o meio de comunicação. (p. 18)

1.2 Gramática e comunicação

Raros os grandes escritores familiarizados com regras de Gramática; e raros os familiarizados com a Gramática que sejam escritores.
(p. 19)

A boa comunicação verbal nada tem a ver com a memorização de regras de linguagem nem com a disciplina escolar que trata dessas regras, e que geralmente, em nossas escolas, toma o lugar do que deveriam ser as aulas de Português: leitura, comentário, análise e interpretação de bons textos, e tentativa constante de produzir, pessoalmente, textos bons – enfim, vivência criativa com o idioma. (p. 19)

Nada mais errôneo do que imaginar que “grandes escritores” escrevam “difícil”. (p. 20)

A Gramática disciplina ou livro, código normativo, está à margem dessas operações de talento. Não passa de um discurso assistemático e extremamente lacunoso a respeito das operações comuns. Discurso lacunoso? Sim: incontáveis regras, aplicadas na mais comum das linguagens, nunca foram sequer lembradas pelos gramáticos.” (p. 20)

Um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais, incute insegurança na linguagem, gera aversão ao estudo do idioma, medo à expressão livre e autêntica de si mesmo. (p. 21)

Vejam a estranha linha de “progresso” no nosso ensino de língua materna. Geralmente, nos começos de sua vida estudantil, a criança é levada a lidar com a língua, a ler e contar histórias, oralmente ou por escrito. Mas lá adiante, à medida que suas folhas se enchem de correções do professor, e ela é censurada na sua linguagem, submetida a normas puristas, à observância da Gramática, a criança perde a espontaneidade, e parte importante de sua personalidade se encolhe, fica tolhida, murcha. (p. 21)

Só línguas mortas são retratáveis num 
corpus fechado de regras. Portanto, o livro-gramática deveria estar sempre sendo revisto e atualizado, como todo bom dicionário. (p.22)

1.4 Escritores e Gramática

(…) é possível ser ótimo em português e ao mesmo tempo péssimo em aulas de Português. 
(p. 23)

Minha experiência de professor me ensinou que os alunos mais talentosos em linguagem, futuros escritores, são os mais avessos a aulas de Gramática. (p. 24)

Essa relação Escritores-Gramática me trouxe à mente a observação de Lins do Rego a propósito de Lima Barreto: “Os grandes escritores têm a sua língua; os medíocres, a sua gramática”. (p. 25)

1.7 O estudante de Português

(…) língua e gramática hão de ser muito mais do que aborrecimento em sala de aula, com muita regra e pouco texto, muita decoreba e pouca compreensão, muito susto e pouco prazer. 
(p. 30)

(…) o sistema de regras intuitivamente internalizado desde a infância, aperfeiçoado à medida que o indivíduo cresce intelectualmente, e compartilhado, também intuitivamente, pelos membros da comunidade, mesmo os que não vão à escola e nunca aprenderam a ler(p. 30) (Grifo meu.)

Em matérias de aulas de linguagem, infelizmente, a escola continua rotineira e bitolada: acúmulo de definições, regras e exceções, classificação de palavras, listagem de anomalias e irregularidades, conjugações inusitadas, análises, muita análise sintática. E, naturalmente, crase, a cada semestre mais crase, para saber cada vez menos (ou não é exatamente isso que a experiência mostra?)… (p. 31) (Grifo meu.)

1.8 Vida e artifício: gramática e Gramática

Infelizmente é muito expandida (mesmo entre pessoas cultas) uma noção ingênua de gramática como conjunto de regras que gramáticos, professores, academias ou outra autoridade não-identificada impõem, regras que devem ser observadas por todo aquele que queira falar ou escrever certo. 
(p. 31)

A essa afirmação, faço uma observação. Em alguns casos, como na maioria dos professores de Português de ensino básico, esse normativismo é de fato ingênuo. Entretanto, a história nos apresenta a língua como um dos mais eficazes instrumentos de segregação e manutenção de poder. Quando se convence uma pessoa que ela não sabe se expressar “corretamente” na sua língua materna, isso faz com que ela se sinta insegura frente a outras que supostamente detêm esse conhecimento. É muito comum, por exemplo, que os cidadãos mais humildes, cultural e economicamente falando, votem em candidatos que falam “difícil”, por julgar que esses são cultos e letrados o suficiente para desempenhar bem o papel que lhes cabe como representantes do povo. A história recente do Brasil nos mostra que isso é uma premissa falsa, porque, ideologias e posições políticas à parte, um dos maiores presidentes que o país já teve, conserva muito pouco dessa “cultura superior”, e mesmo os seus detratores só conseguem usar as suas supostas limitações linguísticas de forma acessória nas críticas que lhe são feitas. Mais adiante se verá que essa ideia do uso da língua como fator de dominação social é compartilhada pelo Professor Luft. 

Capítulo 2 – A teoria da linguagem

2.2 Essa gramática verdadeira


1. Esse sistema de regras que os falantes internalizam na infância é que constitui a 
verdadeira gramática da língua, a legítima, a autêntica, da qual todas as demais (livros, teorias de gramáticas, filólogos e lingüistas, etc.) não passam de reproduções. E não há como não acrescentar: por maiores e melhores que sejam, tais reproduções são inevitavelmente incompletas e defeituosas.

2. A 
gramática (saber lingüístico internalizado) dos falantes é sempre completa: sistema de todas as regras necessárias para se poder falar. Mesmo a criança de cinco ou seis anos que já fala com desembaraço, e o mais humilde dos analfabetos, necessariamente dominam a gramática completa que preside seus atos de fala. Do contrário, não haveria como falar. (p. 36) (Grifo meu.)

             4. Em que consiste essa construção de uma teoria lingüística por parte da criança? É um lançamento e verificação de hipóteses (…) (p. 37)

Pode-se depreende, na evolução da linguagem infantil, o caminho e efeito parcial ou provisório dessas hipóteses. Há estágios verdadeiramente clássicos. A chamada 
regularização, por exemplo, mostra a criança aplicando rigorosamente, também a formas sujeitas a casos especiais, as regras gerais que á internalizou. Assim, *fazi ou *trazi, pela aplicação das regras que geram as formas regulares como bati, comi, etc.; *abrido, *cobrido, *fazido, *escrevido, pelos modelos regulares dormido, comido, batido, etc.; *eu pego tu; *não empurra eu; *mais grande, *mais bom, como mais alto, mais fraco; etc. Idiossincrasias da morfologia e da sintaxe precisam ocorrer e repetir-se nos dados (falas, frases) para que a criança-teorista levante novas hipóteses até depreender e fixar também as regras especiais. (p. 38)

5. (…) A criança e o falante não escolarizado sabem tudo aquilo que precisam para falar em seu nível de comunicação. Apenas não conhecem os termos técnicos, os nomes daquilo que sabem. (p. 38)

É ilusão grosseira imaginar que se sabe a língua porque se estudou a Gramática¹. Já sabemos que esta (disciplina, livro) não recobre o sistema completo da gramática natural e, no que recobre, mostra incoerências, assistemacidade, lacunas.

Estarei exagerando? Então façam um estrangeiro aprender português estudando gramáticas, decorando regras e vocabulários, sem conviver com falantes da língua…


¹ “Nunca é demais repetir que aprender português unicamente pela gramática é tão absurdo como aprender a dançar por correspondência. Aprende-se a escrever lendo, da mesma  forma que se aprende a dançar bailando.” (Mário Quintana. 
Da preguiça como método de trabalho. Rio de aneiro, globo, 1987. p. 29) (p. 39)

              “(…) a verdadeira língua é a fala. (p. 39) (Grifo meu.)

Letras e outros sinais servem apenas para representar o que alguém falou, o que vai ou poderia falar. (p. 39)

2.5 Passos de um ensino equivocado

(…) o aluno faz redação – não para se expandir lingüísticamente e esgrimir idéias e argumentos, nem para aprender a estruturar e disciplinar o seu pensamento por escrito -, 
o aluno faz redação para o professor corrigir. (p. 46)

2.7 Consequências maléficas do ensino gramaticalista

E se convence o falante nativo de que ele não sabe a língua que fala, nem a saberá nunca, pois saber gramática (dominar regras intuídas, internalizadas) passou a confundir-se com saber Gramática (conhecer regras explícitas, em geral mal explicitadas).


Parece explicado por que a gramática, na versão escolar de aulas de Português, é tão desamada, detestada mesmo, pela maioria dos jovens. Não só é difícil amá-la; é preciso defender-se dela para resguardar o direito de se expressar natural e livremente. 
(p.49)

Capítulo 3 – Nascemos programados para falar

Lingüistas contemporâneos nos alertam para um axioma que diz exatamente o inverso do ingênuo pressuposto tradicional:

TODA PESSOA SABE A LÍNGUA QUE FALA. (p. 51)

3.1 Propensão inata para a linguagem

 

O falante, exposto a modelos de um ou outro nível, um ou outro dialeto, um ou outro conjunto de variantes, exercita-se e cresce linguisticamente, ao natural, sem necessidade alguma de enunciar ou decorar regras que apenas o confundem e tornam esse processo ineficaz, frustrante. (p. 53)

 

3.3 Aprender a língua é evolução natural, como crescer

 

(…) aprender uma língua não é complicado, como faz crer o ensino tradicional. É uma fato natural, ou seja, é da natureza do ser lingüístico que é o homem: um processo por assim dizer automático, até inevitável. (p. 56)

 

3.8 Utilidade de uma visão lingüística da gramática

 

Uma das principais causas de um ensino de língua materna mal orientado, na escola tradicional, é o pressuposto ingênuo que o aluno NÃO sabe a língua. (p.65)

 

Ora, um mínimo de noções de Lingüística moderna sobre a capacidade inata de linguagem, língua e gramática, evidencia o pressuposto inverso:

 

os alunos, como todos os falantes nativos, SABEM sua língua materna.

 

Sobre essa base é que o professor atualizado construirá o edifício de uma prática (não “ensino”) de língua realista, útil, produtiva. (p. 65)

 

3.10 Problemas técnicos das variantes de linguagem no ensino

 

Todas as variantes da língua são valores positivos. Não será negando-as, perseguindo-as, humilhando quem as usa, que se fará um trabalho produtivo no ensino. (p. 69)

 

Capítulo 4- Teoria gramatical: implícita e explícita

 

4.4 Características da teoria gramatical explícita

 

Em linguagem, somos todos autodidatas antes de mais nada. Com pleno êxito, aliás: problemas e fracassos podem vir depois, quando querem nos ensinar de fora para dentro a língua que já é nossa. (p. 81)

 

Mantida pela classe social dominante, a escola impõe no ensino obviamente a variedade idiomática culta, relegando  e desprestigiando as outras variedades, numa natural discriminação sociolingüística.

 

A teorização gramatical escolar se faz dentro de uma longa tradição normativa, essencialmente conservadora, quando não reacionária(p. 81) (Grifos meus.) 

 

Faço uma nova observação ao texto do autor. O que o professor Luft chama de norma culta, eu chamaria de norma cultuada, eis que idealizada, porém inviável. Valho-me de dois significados para o termo “culto”, extraídos do Dicionário Hoauiss (1ª edição, 2001, p. 887). Entre diversos outros significados, o dicionário define culto como que segue o padrão formal, erudito <o português c. e a língua informal>”, e ainda como próprio de pessoas cultas, escolarizadas <língua c. formal>”

 

As próprias definições do dicionário expõem a contradição de considerar um padrão de linguagem como sendo culto. Por seguir o padrão formal, estabelecido de forma arbitrária e em total desconformidade com a realidade da língua falada e usada por milhões de pessoas, a língua dita culta condena, por exemplo, a frase “Vocês foram lá?”, pois o “correto”, de acordo com esta norma “culta”, é “Vós fostes lá?”. Quem, por mais erudito e culto que seja, usa esta última forma? E ainda, ao definir como culta a pessoa escolarizada, o dicionário exclui os milhões de brasileiros que não frequentam as escolas e que, portanto, não poderiam dominar a língua “culta”. Esses brasileiros, que muitas vezes passam a vida sem sentar num banco escolar, por acaso passam a vida, também, sem se comunicar com outras pessoas? Ora, numa análise um tanto quanto simplificada não se pode dizer que a comunicação é a finalidade última da língua? Então, como se pode dizer que essas pessoas, por não dominarem as regras da norma “culta”, que, como vimos no exemplo vocês/vós, não é dominada nem pelo mais erudito gramático, não “sabem falar português”? (Ao fazer a observação sobre a língua como elemento primordial de comunicação, estou passando ao largo, evidentemente, de outras questões históricas, culturais e, principalmente, sociais, as quais são em algum momento abordadas neste texto, e faço isso apenas para facilitar a compreensão da ideia a ser transmitida neste momento específico. Todavia, não posso cometer a imprudência de deixar de assinalar que o entendimento restrito da língua como ferramenta de comunicação é altamente equivocado e muito perigoso.)

 

Por isso entendo que o reconhecimento da existência de uma norma cultuada e não culta, de forma a não eliminar por “erradas” todas as outras, contribuirá muito mais para uma verdadeira compreensão do que é a língua (ou as línguas) falada pelo povo brasileiro.

 

Ninguém conseguiria aprender qualquer língua com base em livros e aulas que a teorizam ou explicam – simplesmente porque nenhuma explicação ou teoria explícita é capaz de expor/desvendar integralmente a gramática de uma língua. (p. 82)

 

4.5 Conclusão

 

Diante de tudo isso, impõe-se a pergunta: Por que e para que ensinar/estudar teoria gramatical no primeiro e segundo grau? Difícil uma resposta.

 

Quem sabe, o único objetivo da toeira gramatical na escola talvez seja simplesmente cumprir programas, manter uma tradição multissecular. Afinal, não é assim que sempre se fez?

 

E o professor, se não tivesse sintaxes e concordâncias, regências e colocações de pronome, morfologias e fonéticas, regras e exceções a ensinar – o que faria o professor na sala de aula?

 

Tivesse a escola objetivos vitais, culturais, sociais ou político-educacionais bem definidos, certamente haveria maior clareza e funcionalidade nos programas e métodos de ensino da língua materna.

 

E não se apelaria tão rotineiramente para a superstição do teorismo gramatical ou do ensino gramaticalista.

 

Não parece minimamente razoável ensinar teoria gramatical de modo costumeiro a indivíduos que nem conseguiriam falar se não dominassem previamente a gramática da língua.

 

Praticar a gramática é o que falta na escola. Ler (ler e ler), debater, escrever (escrever e escrever). tudo isso é gramaticar – o melhor método de ampliar, reforçar e agilizar a gramática, a de todos e a de cada um em particular. (p. 84)

 

Adendo – O saber dos falantes e o saber dos lingüistas

 

É próprio do pensamento tradicional ingênuo supor que a gramática da língua está nos livros, e que os falantes, em maior ou menor grau, estropiam a língua, provocando afirmações de que “todo mundo fala errado”, como se, primeiro, os gramáticos inventassem as regras, para depois os falantes obedecerem a elas e poderem falar.

 

O inverso é que é verdadeiro: a gramática está na mente dos falantes, só ali existe em plenitude; as gramáticas (livros), em maior ou menor grau, mutilam a língua, e são, todas elas, lacunosas, falhas. (p. 85) (Grifos meus.)

 

Capítulo 5 – Sobre a inutilidade e nocividade do ensino gramaticalista da língua materna

 

5.4 A Gramática mal ensinada incute servilismo (Grifo meu)

 

Outro fruto nocivo do ensino da língua materna orientado pelo teorismo gramatical é a postura servil que incute nos estudantes diante de pretensas autoridades, dos que ditam a Gramática e comandam as regras, como se estas não fossem imanentes à língua, anteriores e superiores a qualquer gramático, ou como se os gramáticos fosse os donos da língua. Gramático (verdadeiro) é cada falante, e donos da língua somos todos nós(p. 93) (Grifos meus.)

 

Chegamos assim ao que constitui  o mais grave dano causado por um ensino de língua fundado na teorização gramatical: a relação negativa do falante com a sua própria língua. A convicção que se vai infiltrando de “não saber a língua”, e com isso o bloqueio da criatividade, a inibição da linguagem, sensação de incapacidade e insegurança. Já ouvi o absurdo de dizerem: “Em Portugal, sim, qualquer criança ou lavadeira fala bem o português; no Brasil, até o doutor fala errado”. (E era um professor… de Lógica.) (Grifo meu.)

 

De tanto ouvir definições e conceitos confusos e incoerentes, classificações e subclassificações, regras e exceções;de tanto enfrentar análises herméticas;de tanto ser obrigado a decorar coisas que não entende ou que são estranhas ao seu uso e até ao uso das pessoas mais cultas – o aluno vai sendo lingüisticamente arruinado. Conclui que sua língua é um universo esotérico, só acessível a iniciados. (Grifo meu.)

 

Daí os conceitos bizarros tão difundidos entre nós, e que já comentei acima: falamos errado, a língua está em decadência, etc. Por trás de tudo, a perigosa idéia: somos um povo inferior, cidadãos incapazes… até na língua do país. (p. 94) (Grifo meu.)

 

Entrando na escola, a criança fala com desembaraço e naturalidade, e em breve poderia escrever da mesma maneira, se bem orientada. mas, aí, o ensino vai lhe insinuando que não sabe a língua, que fala e escreve pior. (p.95)

 

(…) milhares de redações levam nota zero no concurso vestibular. Culpa dos alunos? Culpa do péssimo ensino da língua materna. Oito anos de Português no 1º Grau, três anos no 2º Grau, além do “cursinho” – e centenas, milhares de jovens conseguem tirar zero em redação na sua própria língua. Existe fracasso maior? (p. 95)

 

Este subtítulo, “A Gramática mal ensinada incute servilismo” é, para mim, talvez o mais emblemático do livro, pois de certa maneira sintetiza tudo o que eu quero expressar fazendo essas transcrições e alguns breves comentários. 

 

Como eu disse anteriormente, o professor Luft viria a concordar comigo (quanta pretensão! – obviamente quem concorda com ele sou eu…) na ideia de que a língua é um poderoso instrumento de dominação. As pessoas convencidas, de forma nefasta, de que não sabem o Português acabam se autoexcluindo da participação social e política mais efetiva. Quem não tem notícia de alguém que se recusa a conversar com um desembargador ou mesmo com um advogado por não se sentir à altura da linguagem deles? Ou quem não conhece alguém que diz que não lê autores clássicos porque não entende a sua linguagem? Esse é um tipo de segregação patrocinado pela forma como a língua materna, que TODOS os brasileiros dominam desde a primeira infância, é ensinada, como muito bem observa o professor Luft.

 

O preconceito linguístico, e disso trataremos especificamente em outro momento, é dos mais cruéis e eficazes que se pode ter notícia, pois é (nem sempre) sutil e aparece sub-repticiamente e até inconscientemente das formas mais diversas, como na ideia ingênua dos professores de Português, que despejando teorias e mais teorias acreditam que estão contribuindo para a educação dos alunos, e, principalmente, dos pais, que vão às escolas cobrar dos professores um ensino tradicional, sempre que estes ousam investir num ensino voltado à prática do idioma, pois, segundo ideias pré-concebidas, os filhos não estão “aprendendo” língua portuguesa. 


Na frase citada pelo autor: “Em Portugal, sim, qualquer criança ou lavadeira fala bem o português; no Brasil, até o doutor fala errado”, fica evidenciado o caráter preconceituoso de quem fez a afirmação. Ao dizer que em Portugal qualquer criança ou lavadeira fala bem, ele está dizendo de forma subjetiva que mesmo uma lavadeira, pertencente a uma classe social inferior, segundo o que fica implícito, sabe a língua. E quando diz que no Brasil até o doutor fala errado, poderia dizer, de outra forma, que mesmo o doutor, pertencente a uma elite, desconhece a sua própria língua. Está aí um caso claro de preconceito pela língua.     

Tanto quanto os preconceitos de natureza racial (étnica), sexual, econômica e todos os outros, o preconceito linguístico deve ser combatido, mas isso só será possível na medida em que o aceitarmos e procurarmos entender o seu funcionamento.

 

Capítulo 6 – Língua e liberdade

 

Uma língua viva está em constante evolução: dialetos, gírias, neologismos, estrangeirismos, tudo faz parte dela, dessa ebulição que a mantém animada. (p. 98)

 

Nada se presta melhor para instrumento de repressão e opressão do que a língua materna, cerne do nosso eu pensante, através da qual existimos enquanto seres racionais. (p. 99) (Grifos meus.)

 

Importante é ter bem claro que o aluno não precisa “aprender” a língua; precisa, sim, reforçar sua gramática implícita, internalizada na primeira e segunda infância, ampliá-la com os elementos do modelo culto padrão. (p. 99)

 

Não tem importância trazer de cor regras explícitas: não creio que todos os nossos bons escritores fossem aprovados num teste de Português à maneira tradicional;e no entanto, são eles os senhores da língua. (pp. 99 e 100)

 

Apêndice – Por um ensino natural da Gramática

 

Uma perseguição neurótica de erros só gera insegurança e desamor ao trato com a língua. Acaba convencendo o aluno, sub-repticiamente, de que não sabe sua língua e que o conhecimento dela (e da Gramática) é algo esotérico, reservado a professores, especialistas, gramáticos. (p. 107)

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 8/11/2012.

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