Dia desses, conversava com duas gurias, mães de dois coleguinhas de escolinha da Alexandra, minha filha mais nova, e elas perguntavam sobre o colégio das minhas filhas mais velhas, Vitória e Paula. A Vitória, inclusive, participava da conversa. Lá pelas tantas, a pergunta que não quer calar: como é o colégio na preparação para o vestibular? Notei uma certa dificuldade da Vitória para elaborar uma resposta que satisfizesse à questão. Recorte no tempo, anos 70 e 80, minha época de colégio: o importante era estudar muito para poder… passar no vestibular.
Ali pelos anos 70, creio eu, não tenho informações precisas, começaram a surgir os cursinhos preparatórios para o vestibular. Por motivos, dentre os quais o principal não era passar no vestibular, em 1992 eu fiz um ano no Unificado. Pra rir um pouco serviu. Os professores eram engraçados, em geral. Até o grande Luiz Roberto Lopes fazia palhaçada na aula. Na prática, salas com mais de 100 alunos, fórmulas mágicas pra aprender a marcar o x no lugar certo, ditados enfadonhos do professor Cláudio Moreno (não sei se naquela época ele já era doutor), e no mais, festa e festa. Produção ou estímulo ao conhecimento, que é o que se espera de um ambiente estudantil: ZERO!
Na época em que as pessoas viviam até os 60 e poucos anos, 70 com sorte e pouca saúde, cunhou-se a máxima que a vida começa aos 40. Pois a conversa que eu referi no início me levou a repensar essa ideia. A vida, na verdade, começa no vestibular. Tudo o que se faz antes dele não é mais do que uma grande gestação à espera do grande momento, o nascimento para o mundo. O vestibular é o grande obstetra, aquele de cuja perícia e habilidade depende o ingresso da pessoa, geralmente pouco mais do que uma criança, no mundo real. Toda as experiências de vida anteriores serviram única e exclusivamente para o preparo necessário ao seu enfrentamento. O Colégio Militar ainda hoje é visto como um dos que tem o melhor ensino, afinal, seus alunos invariavelmente vão muito bem… no vestibular.
No mesmo ambiente da conversa que eu falei no início, outra guria dizia estar muito descontente com a escolinha, porque a filha de 4 anos não sabia contar até trinta. Mas qual é a importância para uma criaturinha linda e fofa de 4 anos, cuja preocupação central da vida deve ser brincar, de saber contar até trinta? Ah, claro, isso vai facilitar as coisas… no vestibular.
Olha, antes de seguir em frente, quero dizer que essas mães que eu falo aí são excelentes, como mães e como pessoas, e digo isso sem conhecê-las com mais intimidade, mas não é muito difícil reconhecer as pessoas “do bem”. O problema, portanto, não é com elas, é com quase todas as pessoas que têm filhos e que pensam, com certa razão, na formação superior como uma garantia de vida melhor para eles. O problema, indo mais a fundo, é com o sistema de ensino, e, ainda mais na raiz, com o sistema – não queria cair nessa discussão, mas é inevitável – capitalista.
A produção e a disseminação do conhecimento tem, no modelo instituído da sociedade ocidental, uma importância secundária, desde que o sujeito seja capaz de ter sucesso na vida. E o que é ter sucesso na vida? Ter um carrão importado, muitas vezes antes mesmo de uma casa, frequentar os lugares da moda, usar roupas descoladas e por aí vai. Na busca frenética desse objetivo, a faculdade, e hoje todas as pós que vêm depois da graduação, tem um papel decisivo. E qual é a porta de entrada para esse “mundo de Malboro”? Ninguém menos do que o doutor vestibular, o nosso obstetra de plantão.
No sistema moderno de educação básica, quando um jovem atinge os 16 ou 17 anos, ele passou no mínimo 12 desses preciosos anos nos bancos escolares. Isso sem contar o tempo de escolinha infantil. Depois desse tempo todo, transcorrido nas fases mais importantes do desenvolvimento psíquico e social de uma criatura, se ela for capaz de marcar os xises no lugar certo, será considerada uma vencedora. Se não der, bom, tenta ano que vem, quem sabe faz um cursinho… Ou seja, se a pessoinha chegar nessa fase da vida sem saber escrever duas linhas com coerência (os TCCs que se vê – se veem, diriam os gramáticos de plantão – por aí…), mas entendendo que a fórmula de báscara e a conjugação do verbo vir em todos os tempos e modos vai lhe abrir as maravilhosas portas da felicidade (com a devida licença ao senhor Senor Abravanel), está tudo ok. O nosso jovem estudante, candidato a uma vaga na faculdade, não precisa saber que o Darwin não disse exatamente que o homem descende do macaco, desde que ele saiba calcular com precisão a velocidade e o tempo que levarão para se chocar os vetores que vêm em sentido contrário, num movimento retilíneo uniforme. Não estou desmerecendo os conhecimentos de Física, nem de Matemática. Queria eu saber essas coisas. Só que eu acho que o mais importante é que um jovem que está apenas na sua segunda década de vida entenda o porquê de saber essas coisas todas e se elas são realmente necessárias. Ninguém vai conseguir me convencer que um carinha que quer fazer Direito tenha a obrigação de saber fazer cálculos de geometria espacial. Ah, mas e o vestibular? Pois é…
Uma das maiores crueldades que se pode fazer com uma pessoa é obrigá-la, aos 17 ou 18 anos, a fazer uma opção que pode comprometer-lhe a vida. Há casos de guris e gurias que terminam o segundo grau, opa, o Ensino Médio, sabendo exatamente que querem ser médicos, dentistas, advogados, engenheiros etc. (Por que tão poucos pensam em ser professores?…) A maioria, porém, como é de se esperar, não tem muita certeza do que quer ser na vida, profissionalmente falando. Conheci uma senhora, cuja filha estava se formando em medicina aos 25 ou 26 anos. Antes disso, ele cursou até o último semestre de odonto. Acontece o seguinte: ela terminou o colégio com 15 ou 16 anos e queria medicina, mas não passou no… vestibular, e no mesmo ano, por pressão do pai (ah, esses pais…) fez pra odonto e passou. Lá em Passo Fundo. No último semestre, ela largou e foi fazer medicina, sendo que nesse segundo (ou terceiro) vestibular ela já tinha na bagagem a maturidade de ter passado alguns anos na universidade, o que certamente ajudou na prova. Perguntei, ingenuamente, porque ela não tinha terminado a odonto, assim poderia ter duas faculdades. A resposta era óbvia: ela não queria odonto, mas caso se formasse, a pressão seria muito forte para ela montar consultório e levar a carreira em frente, com a frustração de não ter perseguido o seu sonho. Não deve se desconsiderar o fato de que ela é de família com boas condições, então não teve maiores dificuldades em protelar por algum tempo a entrada no mercado de trabalho. Mas o que interessa no caso é que ela teve coragem de romper com um estrutura pré-estabelecida, que fez com que entrasse num curso que não queria, no auge da juventude, apenas para agradar o pai. Quantas histórias dessas há por aí? E quantas têm um prosseguimento diferente, porque nem todas as famílias (aliás, poucas) têm condições de manter um filho na faculdade esse tempo todo. E o pensamento que vige é mais ou menos este: “se chegou até aqui, segue esse caminho.” Geralmente quando o cara erra na escolha, coisa mais fácil do mundo aos 17 anos, mas vai em frente, está fadado a se revelar no futuro uma pessoa frustrada, amarga, que não gosta e, portanto, não executa bem a sua atividade profissional, ou, mesmo que execute, não tem nenhum prazer nisso, mas que, por inúmeras circunstâncias, se vê incapaz de virar o jogo.
Submeter uma pessoa que recém está saindo dos cueros (oigalê!) à tortura de ter que competir com outros milhares de jovens por uma vaga na faculdade, que hoje pouca garantia pode dar de um futuro melhor, é desumano. Quanto mais se pensarmos que o aluno em questão pode saber muito de todos os conhecimentos que lhe serão exigidos, mas pode ter problemas de tensão (o famoso branco) ou pode estar num dia menos inspirado, ou, enfim, pode sofrer qualquer coisa que lhe impossibilite, às vezes por um único xisinho marcado no lugar errado, de realizar naquele momento o sonho, que geralmente é mais dos pais do que dele próprio. Vai daí mais um ano de preparação para… o vestibular. Isso se o carinha não jogar tudo pro alto ou resolver optar por um curso mais fácil de entrar. Nem falei ainda do fato de que os inefáveis cursinhos ensinam, também, algumas técnicas infalíveis para chutar certo, o que é o reconhecimento da ineficácia e da falência desse sistema nefasto, pelo qual alguém que simplesmente tenha mais sorte pode, num sublime ato de quase fraude, ser bafejado pela fortuna.
Meus amigos, eu defendo uma mudança radical nos conceitos (alguns preconceitos) que temos acerca do ensino. Precisamos entender que uma pessoa está aprendendo a pensar desde que sai da barriga da mãe, pelas mãos do obstetra (o de verdade, não o vestiba) ou da parteira. Assim, se ela for estimulada e pensar de verdade, não tenho nenhuma dúvida de que vai tirar o vestibular de letra. (Se bem que espero que daqui há alguns anos esse troço de vestibular desapareça.) Do contrário, se ela tiver o seu desenvolvimento voltado fundamentalmente para disputar uma prova, as coisas podem se complicar.
Urge que estimulemos as nossas crianças e jovens a ver o mundo para além de uma grade de respostas. Ao procurarmos um colégio para os nosso filhos, fora as condições materiais implicadas, que muitas vezes restrigem a escolha, afinal, por aqui ensino de qualidade é quase sempre sinônimo de mensalidades exorbitantes, é preciso que nos desapeguemos (como é difícil a prática do desapego…) da ideia fixa de que os professores devem prepará-los para o sucesso no vestibular. Vamos pensar que o nosso bebê (é quase isso que eles são quando entram no colégio) vai passar vários anos da sua vida atrás de uma classe e nesse tempo todo é muito importante que ele aprenda algo a mais do que o vestibular vai lhe exigir. É preciso que ele aprenda a se expressar, se comunicar, é preciso que ele aprenda a respeitar as diferenças entre as pessoas, é preciso que ele aprenda que um gari exerce uma profissão digna (né, seu Casoy?) e que o fato dele, o gari, não ter cursado uma faculdade (embora possa tê-lo feito, por que não?) não o transforma numa pessoa inferior, é preciso, falando de uma questão mais prática, que ele, o (ex) bebê, chegue no final dos doze anos de estudo conseguindo escrever um texto capaz de transmitir com clareza o que ele pensa (alguns “erros” de português nesse caso são perdoáveis…) e, de preferência, que o que ele pensa reflita o desejo de construir uma sociedade melhor para todos, mesmo para aqueles que não conseguiram passar… no vestibular.
*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 2/12/2012.