bolsonarismo, Direito, Política

O que(m) diz o direito?

No mundo do direito penal, nada é a priori. Melhor dizendo, nada é simplesmente por ser. Qualquer coisa que seja, apenas passa a ser, no ordenamento jurídico, após uma atribuição. Não quero escrever um tratado de ontologia, ou melhor, quero, só que por razões evidentes não vou fazer isso, mas o que parece ser um conceito complexo, cheio de abstrações filosóficas, como linha geral é bastante simples e até óbvio, estando expresso no princípio que diz que não existe crime sem lei que previamente o defina.

Um grande amigo, Diego, me apresentou uma nova teoria do direito penal, mais especificamente sobre a questão dos delitos, que trata de coisas como que tipo de conduta é considerada crime, quando se pode exigir a aplicação da pena, quando se trata de dolo e quando é culpa, enfim. Essa teoria, desenvolvida por um sujeito chamado Vives Antón, e defendida no Brasil principalmente pelo procurador de justiça e professor no Paraná Paulo César Busato, atribui importância decisiva à linguagem nas conceituações de delito. Não vou entrar em maiores detalhes, inclusive porque não os tenho, já que recém tive o primeiro contato com a tese, que pretendo aprofundar. Entretanto, o pouco que vi fornece chaves importantes para entender algumas coisas que acontecem no braZil de Bolsonaro.

A mais superficial das análises vai mostrar que Daniel Silveira foi condenado por atos que foram, são e serão iguais em gravidade ou até menos graves do que os que os bolsonaros praticam há muito tempo. E esses atos, ou melhor, essas práticas, estão definidas como crime, tipificadas, para usar o jargão jurídico. Por que, então, o deputado marombado recebeu punição e os membros da família não? Claro que uma das explicações passa pela advocacia privada que o clã tem na PGR. Mas não é só isso. Há uma adequação da norma a cada caso, mesmo que esta seja pré-definida. Isso é típico da aplicação do direito e de fato assim deve ser, pois do contrário a administração da justiça se daria de forma autogestionada, bastando a existência da regra. A prerrogativa de interpretação da norma jurídica pelo órgão julgador, porém, enseja distorções gritantes. Eduardo Bolsonaro pode dizer que para fechar o STF não precisa de jipe nem de oficiais, mas Daniel Silveira não pode defender o fechamento do mesmo tribunal; Jair Bolsonaro pode subir em palanque, fazer ameaças e dizer que não vai cumprir as decisões da Corte, mas Daniel Silveira não pode deixar de carregar a bateria da tornozeleira eletrônica. Há uma clara flexibilização do princípio que diz que todos são iguais perante a lei. Tudo passa, então, pela interpretação das normas, que varia de acordo com quem as interpreta e, fundamentalmente, com o sujeito a quem elas serão aplicadas. Nos exemplos dados, é evidente que o neocomunista Alexandre de Moraes, consagrado constitucionalista, portanto conhecedor dos princípios do direito, sabe bem que uma coisa é condenar um inexpressivo deputado, usado como boi de piranha pelo sistema, e outra bem diferente é sentenciar o presidente da república ou um membro da família real (para evitar incômodos: a expressão família real contém ironia).

Para trazer outro exemplo, vamos lembrar o impeachment da presidenta Dilma, que teve como base a tal pedalada fiscal, que ninguém sabe direito explicar o que é, mas que todos/as, ou pelo menos quase todos/as que ocupam as chefias dos executivos, nas três esferas administrativas, usam e reusam. Por que Dilma foi impedida e outros/as não? Interpretações diferenciadas da norma. E, para evitar problemas, tão logo a presidenta foi afastada do cargo pelo golpe jurídico-parlamentar, a lei que trata das pedaladas fiscais, e consequentemente a sua interpretação, foi alterada.

Em outra situação, recentemente, a CPI(zza) elencou uma série de crimes de responsabilidade praticados por Jair Bolsonaro, alguns dos quais são reconhecidos até por organismos internacionais. Entretanto, o presidente da Câmara, a quem cabe abrir ou não um processo de impeachment, dá uma interpretação muito peculiar a cada um dos mais de cem pedidos de abertura de processo, muitos deles anteriores aos trabalhos do Senado, conferindo um destino único a todos eles: gaveta. Do mesmo modo, o Procurador-Geral da República, que tem a função institucional de autorizar procedimentos investigatórios contra o presidente, tem uma interpretação única sobre todas as notícias que chegam às suas mãos contra Bolsonaro, mesmo as que vêm diretamente do Supremo: Jair é inocente, arquive-se.

Outro caso marcante é o que envolve o ex-juiz, ex-ministro e ex-presidenciável, Sérgio Moro, cujos esquemas de interpretação da lei são tão particulares que permitiram que ele, apesar de magistrado, comandasse, segundo suas próprias palavras, uma operação judiciária que tinha o objetivo de suprir uma falha das forças políticas, aniquilando um partido e impedindo um candidato de concorrer à presidência da república. Hoje já foram lançadas luzes sobre a farsa judiciária chamada Lava Jato, mas as consequências funestas dela ainda estão surtindo os seus efeitos no governo protofascista que ela ajudou a levar ao Planalto. O mesmo Sérgio Moro, que abandonou a magistratura para se dedicar à política, disse, já como ministro do (des)governo cuja eleição foi por ele garantida, que, em alguns casos, basta o arrependimento para que se tenha o perdão. E assim o súper ministro Onyx Lorenzoni está legitimado a se lançar ao governo do Rio Grande do Sul, mesmo depois de ter confessado, em meio a um choro compungido, que fazia caixa 2. Para ilustrar essa flexibilidade interpretativa do comandante da Lava Jato, é interessante lembrar o que ele disse em 2017, na Universidade de Harvard: “Temos que falar a verdade, caixa 2 nas eleições é trapaça, é um crime contra a democracia. Corrupção em financiamento de campanha é pior que desvio de recursos para o enriquecimento ilícito”. (Fonte: https://sul21.com.br/ultimas-noticiaspolitica/2018/11/moro-sobre-caixa-2-de-onyx-lorenzoni-ele-ja-admitiu-e-pediu-desculpas/)

Os fatos aqui trazidos como exemplo, por sua notoriedade e grande repercussão, servem para comprovar as razões da Teoria da Ação Significativa, que citei no início do texto. Todavia, uma pesquisa rápida nas decisões judiciais cotidianas em matéria criminal vai mostrar que embora todos sejam iguais perante a lei, alguns são mais iguais que os outros. E assim, no país do bolsonarismo, vamos vivendo em absurda insegurança jurídica, sabendo que a aplicação do direito não obedece a critérios sólidos, em que pese a pré-definição das normas. Cada vez importa menos o que diz o direito e mais quem diz o direito.

Imagem de destaque copiada de: https://www.poder360.com.br/governo/aras-e-favoravel-a-bolsonaro-prestar-depoimento-sobre-interferencia-na-pf/. Acesso em: 5 de maio 2022.

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bolsonarismo, Eleições, Política, Rede Globo

O bolsonarismo com Bolsonaro. Ou: a terceira via era a primeira

Sérgio Moro cumpriu um papel fundamental na história recente da política nacional. A sua escolha para comandar a farsa judiciária criada para acabar com o PT (segundo ele próprio) e com a economia nacional (segundo os fatos) não foi aleatória. Alguns nomes para jogar no Google e entender melhor esse processo: Foreign Corrupt Practices Act (FCPA); Clifford Sobel; Karine Moreno-Taxman; DOJ (Departamento de Justiça estadunidense); e, obviamente, os velhos conhecidos FBI, CIA e NSA (National Security Agency). Moro foi treinado nesse sistema e recebeu preciosas lições sobre como destruir a autonomia de um país desarticulando setores estratégicos da economia nacional. Essa atuação o credenciou como figura política importante. Do Judiciário para o Executivo, subvertendo a clássica tripartição dos poderes republicanos, sua nomeação para o Ministério da Justiça seria tratada como escândalo em qualquer país minimamente sério, mas por aqui foi saudada como uma vitória da cruzada anticorrupção. Frustrado o sonho do STF, Moro rompeu com Bolsonaro (não com o bolsonarismo) e tratou de pavimentar o caminho para suceder o presidente que ele próprio ajudou a eleger, com o aval da grande rede. O que a Globo e os think tanks parceiros não contavam é que a inépcia política e a absoluta falta de carisma do comandante da Lava Jato colocariam em risco a arquitetada terceira via.

Imagem copiada de: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-10-23/vaza-jato-a-investigacao-que-obrigou-a-imprensa-brasileira-se-olhar-no-espelho.html. Acesso em: 4 de abr. 2022.

Ao longo dos últimos anos, Bonner e sua turma trabalharam com Luciano Huck, que preferiu não arriscar uma rentável carreira de sucesso na TV em nome de um projeto não muito seguro de poder, e depois jogaram algumas fichas em João Dória e Eduardo Leite, mas tucano é animal de bico grande e por isso não beija outro da mesma família. O autocentrismo do engomadinho paulista e o narcisismo do agora ex-governador gay que não se quer gay ex-governador acabaram com qualquer chance de algum arranjo envolvendo seus nomes. Talvez por isso, para ter uma carta na manga em caso de situação de desespero, o anúncio da pré-candidatura de um obscuro Felipe D’Ávila pelo ultraliberal Partido Novo tenha sido agraciado com generosos minutos no horário nobre do JN do último sábado. Só uma hipótese. Corre por fora a medebista Simone Tebet, mas, como a história mostra, o partido é pouco afeito a disputar o poder na linha de frente, preferindo sempre a via golpista. Não se descarta, então, uma composição com algum nome de peso na cabeça e a filha de Ramez à espreita da possibilidade de ser a próxima vice a ganhar a cadeira no Planalto sem fazer grande esforço.

Por seu turno, a via da oposição a Bolsonaro recebeu uma chamada de alerta de Randolfe Rodrigues, que, não sem uma boa dose de razão, defendeu uma união das forças (por vezes nem tão) democráticas em torno do nome de Lula. Nessa proposição, não são descartados nem mesmo os nomes de Leite, Dória e até de Simone Tebet. Ciro Gomes, obviamente, integra a lista dos apoios requisitados pelo senador, que, com a sua declaração, escancara a real possibilidade – e sobretudo o medo – da reeleição de Bolsonaro. E é justamente aqui que aparece uma peça que por enquanto não se encaixa, mas que pode ser a chave para compreensão do complexo jogo de articulações e manipulações da Globo.

Desde que elegeu e deselegeu Fernando Collor, sabe-se que a Globo não entra na guerra de disputa de poder com exército fraco. Nenhum presidente ou presidenta do período pós-redemocratização chegou ao Planalto sem a subscrição da rede. O ponto de inflexão pode ter sido a reeleição de Dilma, contra a qual se contrapunha o então considerado eleito Aécio Neves. É preciso considerar que Lula e a própria Dilma já tinham mostrado que os governos do PT estavam longe de representar uma ameaça vermelha (José Alencar, Henrique Meirelles, Joaquim Levy são nomes que atuaram no primeiro escalão dos governos petistas), mas mesmo assim a derrota de Aécio no apagar das luzes foi um golpe forte. Tão forte que no mesmo momento já se anunciou um golpe de verdade, com Supremo, com tudo, levado a cabo pela campanha pesada da grande mídia.

Tudo isso leva necessariamente a uma pergunta: como a Globo reage à real possibilidade da reeleição de Bolsonaro? Esse é, talvez, o questionamento a que devemos nos atentar nas próximas semanas. No país das bombas de fumaça, talvez a Globo esteja se mostando muita mais mestra nessa arte do que somos capazes de imaginar. Considerando que a artilharia pesada desferida contra Bolsonaro nos últimos tempos não teve resultado nenhum para além das cartas abertas e notas de repúdio absolutamente inúteis das instituições, alguém tem convicção para afirmar que não pode ser ele mesmo o candidato global? Sei que neste momento pode parecer uma grande teoria conspiratória, mas é seguro descartar a possibilidade da Globo ter desviado a atenção durante todo esse tempo e, com os seus ataques a Bolsonaro, propositalmente ter fortalecido o seu nome, pelo recrudescimento da militância reativa às críticas da rede? Nesse sentido, a demora da entrada de Lula na pré (?) campanha pode ter sido um erro de avaliação. Se for, ainda há tempo de corrigir o rumo, mas é preciso, antes de mais nada, tentar entender o complexo jogo da casa dos marinhos, que passa por não deixar qualquer possibilidade, por mais absurda que pareça, sem atenção. Sem isso, parece que o bolsonarismo vai triunfar. E de novo com o prório Bolsonaro à frente.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.mtdefato.com.br/politica/governo-bolsonaro-aumenta-verba-da-globo-e-diminui-a-de-tvs-religiosas/107062. Acesso em: 4 de abr. 2022.

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Direitos Humanos, Língua Portuguesa, Mulheres, Política

Saudades da Presidenta

Em abril de 2012, quando o Brasil era presidido por Dilma Rousseff, foi publicada, no dia 3 daquele mês, uma lei daquelas que acabam passando batidas pela população de uma forma geral, dada a pouca importância que se dá a ela. A ementa desta lei diz o seguinte:

Determina o emprego obrigatório da flexão de gênero para nomear profissão ou grau em diplomas. (Lei 12.605)

Para quem não está muito acostumado com as nomenclaturas da gramática – e a maneira como a língua portuguesa é abordada nas nossas escolas faz com que a imensa maioria da população de brasileiros e brasileiras não esteja acostumada mesmo com isso -, explico o que a lei determina: a partir da sua vigência, as mulheres ganharam o direito de se apresentarem como mestras, caso obtenham o título de mestrado, ou doutoras, no caso do doutoramento. Mais do que isso, uma cirurgiã-dentista pode escrever a plaquinha do consultório dessa forma e não mais “Joana… Cirurgião-Dentista”.

Na prática, qual a implicação dessa mudança? Pouca, porque há muito as mulheres já se valiam desse direito natural, e, em face de outro preconceito, o social, não eram contestadas, já que beiraria o ridículo alguém advertir uma profissional de nível superior que ela deveria utilizar a designação na forma masculina. Há uma hierarquização no machismo, como há em todas as formas de discriminação social. Mas, oficialmente, elas estavam fora da lei.

Isso diz muito mais do que a simples prática linguística, fala com o machismo que está na estrutura da formação do Brasil como uma nação autônoma. Se pensarmos que até poucas décadas as mulheres não tinham direito de votar e que a legítima defesa da honra, quando o homem é “traído” pela mulher, não raro ainda é aceita como excludente em casos de feminicídio, vemos que cada conquista, por menos importante que pareça, deve ser muito comemorada.

A propósito de legislação, o Código Penal Militar, uma das leis mais obsoletas que ainda existem no ordenamento jurídico brasileiro, que, pouca gente sabe, ainda prevê caso de aplicação da pena de morte, traz no seu artigo 407 a seguinte redação:

Art. 407. Raptar mulher honesta, mediante violência ou grave ameaça, para fim libidinoso, em lugar de efetivas operações militares: (…). O grifo é meu.

Tudo isso mostra que vivemos em um país machista, patriarcal, misógino, e que nada adianta o mise èn scnene da grande mídia e das instituições (bem pouco) republicanas em repudiar o escrotismo do Mamãe Falei enquanto quase nada fazem para combater a estrutura que ainda permite discriminações salariais de mulheres, que naturaliza a violência doméstica sob a máxima “em briga de marido e mulher estranho não mete a colher”, que admite que meninas e mulheres pobres não possam sair de casa porque não têm dinheiro para comprar absorventes e, sobretudo, aceita a manutenção no poder de um homem que diz que a filha nasceu de uma fraquejada, diz que certas mulheres não merecem o estupro por serem feias, mantém como ministra da mulher alguém que afirma que meninos vestem azul e meninas vestem rosa e que a culpa pelos estupros de vulneráveis é o não uso de calcinhas.

É evidente que, diante desse circo de horrores, uma lei que autoriza a flexão feminina na designação das profissões pode parecer de pouca relevância. Entretanto, contrariando o velho Aristóteles, que definiu… o homem (e a mulher, onde fica?) como um animal político, o filósofo Ernst Cassirer disse que o… homem (e a mulher, onde fica?) é um animal simbólico. Os símbolos nos constituem, Jung e os linguistas clássicos já provaram isso. Então, vamos passar a dar maior importância aos símbolos dos preconceitos e das opressões, porque de referencial inconsciente à prática, o caminho é bem curto.

E, sim, viva o Dia 8 de Março como Dia da Mulher!!

Imagem de destaque copiada de: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/area-imprensa/ultimas_noticias/2013/03/08-03-pronunciamento-da-presidenta-dilma-rousseff-sobre-o-dia-internacional-da-mulher. Acesso em: 8 de mar. 2022.

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bolsonarismo, Mídia, Política

Jovens conservadores e o amor que diz pouca coisa: os paradoxos da política braZileira

“Dormia a nossa pátria, mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações”. Quando Chico Buarque escreveu esse verso, não foi para Bolsonaro. Bolsonaro não existia.

“Se um só traidor tem mais poder que um povo, que esse povo não esqueça facilmente”. Quando Raul Ellwanger verteu essa estrofe para o português, não pensava em Bolsonaro. Também não pensava em Bolsonaro León Gieco, quando escreveu o verso original: “Si un traidor puede más que unos cuantos, que esos cuantos no lo olviden fácilmente”. Existiam Jorge Videla, Augusto Pinochet, Ernesto Geisel e João Figueiredo, mas Bolsonaro não existia.

A gente sabe de trás pra frente o que acontecia nos países da América Latina na época em que essas canções foram escritas. Por que, então, temos que passar por coisas desse tipo de novo? Estaria certa a definição de Marx sobre a história e sua repetição? Os novos generais seriam apenas versões renovadas ou farsantes, como os napoleões de Marx revivendo o Brumário? (Em verdade, muitos deles nem são tão novos e já andavam por aí na época daqueles outros, mas chamemos de novos em termos de protagonismo.)

Dia desses revi o documentário “Intervenção – Amor não quer dizer grande coisa”, de Tales Ab’Sáber, Rubens Rewald e Gustavo Aranda (disponível aqui: https://vimeo.com/264475519). O filme abre com um jovem Kim Kataguiri anunciando uma fala de Reinaldo Azevedo, que trata sobre o chamado controle social da mídia. (Guardem esta palavra: jovem.) Vou reproduzir aqui algumas palavras do jornalista, ditas a mais ou menos 1min45seg do filme: “Que país curioso! Eu debatia a liberdade de expressão num clube militar e num órgão civil de defesa de uma categoria, uma outra súcia defendia censura.” Súcia era uma referência a um grupo que participava de uma reunião concomitante, que ocorria no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, onde, segundo ele, se projetavam mecanismos de implementação de censura. Grifei a construção “outra súcia”, na fala de Reinaldo. Por que ele fala em “outra” súcia? A “súcia” que defendia mecanismos de controle da mídia pela sociedade que protestava no clube militar era a mesma, obviamente, que participava da reunião no sindicato. Eu vejo aqui uma espécie de ato falho. No fundo, Reinaldo sabe que a plateia da sua palestra no clube militar era, esta sim, a verdadeira súcia, e por isso ele usou “outra súcia”. Acerca de atos falhos, Reinaldo Azevedo, o primeiro que chamou petistas de PeTralhas em grande escala, é o mesmo que observou a trapalhada de Sérgio Moro sobre a Lava Jato e seus verdadeiros objetivos, quando disse, em entrevista recente, que a operação combateu o PT. Os princípios constitucionais da administração pública, que se aplicam ao Judiciário (legalidade, moralidade, impessoalidade etc.), assim como as regras mais básicas do direito criminal, como se vê, foram solenemente ignoradas pela força tarefa lavajatiana, que incluiu inclusive, e principalmente, o próprio julgador.

Já que falamos em Sérgio Moro, ele é a tentativa frustrada da Globo de encontrar a terceira via. E essa tentativa só é frustrada porque ele mesmo, o paladino da justiça, bravo guerreiro da cruzada anticorrupção, não se ajuda, seja pela total falta de carisma ou por ser idiota ao ponto de escancarar em uma frase a farsa da Lava Jato, cavalo de batalha da Globo cujo objetivo era derrubar o PT e quebrar setores fundamentais para a autonomia do país, liberando ao aluguel, como Raulzito já dissera em 1980.

Neste ponto, preciso dizer que considero que comete um grave equívoco boa parte das pessoas de Esquerda que afirmam não ver o Jornal Nacional e a programação jornalística da Rede Globo. Tudo o que o editorialismo da casa dos marinhos – e os que mandam nele – querem é que pessoas com capacidade crítica não vejam os seus jornais. Pelo contrário, é preciso, sim, assisti-los, principalmente o JN, de alcance fenomenal, para que se possa entender um pouco melhor como funcionam as coisas na política do braZil. Simplesmente bater no peito e se dizer contra a Globo é deixar o campo livre para as articulações da imprensa golpista que a rede capitaneia. Talvez graças aos espíritos críticos que assistem o JN é que Moro, em que pese ser ele próprio um tiro no pé, não tenha conseguido se consolidar como alternativa viável ao golpismo global – ou globista.

Voltemos uma vez mais aos conceitos históricos marxistas. A Globo apoiou o regime militar desde o primeiro momento. Melhor dizendo, foi nele que a Globo nasceu e se consolidou. Mas, assim como o pré-candidato ao governo do estado do RS, Onyx Lorenzoni, se arrependeu do caixa 2 e foi perdoado pelo próprio Sérgio Moro, também a Globo se mostrou arrependida e reconheceu o erro. Mas, vejam que interessante, esse mea culpa foi anunciado em 2013, algumas semanas depois do auge da onda de protestos que viria a desencadear o golpe de 2016. É bom lembrar que naquelas manifestações a Globo foi um dos alvos da massa descontente. Aqui em Porto Alegre, a esquina da Avenida Ipiranga com a Érico Veríssimo, onde funciona a Globo RS, foi isolada em várias quadras no entorno, protegida por um esquema de segurança digno dos maiores eventos ocorridos na cidade. A alegação do governo do estado para ter designado um aparato tão pesado para fazer a defesa de uma entidade privada (sim, as organizações Globo são privadas), passou, entre outras desculpas bem questionáveis, pela proximidade do prédio da RBS com o da Polícia Federal, que poderia ser alvo de ataques. Antes que algum crítico de plantão aponte, não estou esquecendo que o governador do RS era Tarso Genro, do PT. E isso diz muita coisa, claro que diz. Senão vejamos.

As Jornadas de 2013 tinham como bandeira o apartidarismo e mesmo o antipartidarismo. E para o maior partido do país não era interessante que ganhasse corpo um movimento que se dizia autônomo e prescindia da organização feita pelas instituições partidárias. Só que a estratégia utilizada para neutralizar a ação, que passou pela tentativa de desqualificar e tirar a legitimidade dos pleitos, se mostrou absolutamente equivocada e resultou no golpe que três anos depois derrubaria o próprio PT do governo central.

Ao contrário da Esquerda, que não soube na época avaliar com clareza o poder daqueles atos, a Direita, que desde a ascensão dos governos do PT estava na inusitada condição de oposição, faturou. No ano seguinte, Kim Kataguiri, Fernando Holiday e outros e outras JOVENS, fundaram o MBL. Daí para o aparecimento de tantos grupos de jovens… conservadores foi um pulinho. O filme que citei antes, que, tecnicamente falando, é apenas uma colagem de imagens e vídeos esparsos, retrata bem o papel dessa juventude conservadora na virada à direita que o país deu a partir de 2013. E quem deu a maior força a essa retomada da “conscientização” da juventude brasileira? Plim Plim! A resposta é… Rede Globo!

E, pra não fugir da tese marxista da repetição dos fatos históricos, vamos um pouquinho mais pra trás. Quem era Fernando Collor antes de ser presidente da república? Na res publica não era ninguém. Na vida privada, era diretor de um jornal ligado às organizações Globo. Caçou marajás – menos os seus – e ganhou da Globo um presentinho: a cadeira do Planalto. Com o tempo se mostrou perigosamente autônomo, disposto a voos solo, e teve as asinhas cortadas. (Mas foi só um tempinho de reciclagem. A Globo não desperdiça seus quadros.) Quem exerceu protagonismo na queda de Collor foi uma multidão de jovens, que a Globo, apelidou de “caras-pintadas”. A Globo e a juventude na linha de frente não é, portanto, nenhuma novidade.

Neste momento é interessante retomar uma ideia que já andou sendo pensada aqui na coluna: Bolsonaro está no fim, o bolsonarismo não. E o bolsonarismo é um sistema velho com uma cara jovem. A própria imagem do demente que governa o país passa uma ideia de jovialidade. Mas quando precisa, ele tira (ou põe) a máscara e mostra a própria decrepitude, que chega ao coração das pessoas na figura de um homem saudável que se tornou doente pelo atentado que sofreu por defender o país da ameaça vermelha. Um mártir, um mito que um dia está na praia de jetsky e no outro, hospital, sonda e cara de doente terminal.

Essa dicotomia, milimetricamente desenhada, é reproduzida nas entrelinhas do documentário que embasa a reflexão de hoje. Observem, no filme, as sutis diferenças entre os discursos das pessoas de mais idade e daquelas que estão da casa dos 40 anos para baixo, que, em política, podem ser chamadas de jovens. Enquanto a gente mais antiga propõe uma retórica baseada na experiência de quem viveu tempos melhores, interrompidos pela “trágica experiência comunista dos anos petistas”, e que sofreu as duras penas dessa inflexão histórica, a ala jovem vem com um discurso pesado, que não economiza incitação a ações violentas. Ora, é próprio da juventude um espírito mais aguerrido, que muitas vezes confunde agressividade com violência física. Essa é uma das misturas da receita básica do bolsonarismo: mesclar a suposta sabedoria advinda da experiência de quem já sobreviveu ao “comunismo”, com o temperamento incendiário da massa jovem, que quer tirar os “corruptos vermelhos” do poder nem que seja a pau. Os treinamentos paramilitares promovidos nos templos evangélicos, que aparecem ao longo de todo o filme, mostram que a lavagem cerebral que cria a inconciliável imagem do/a jovem reacionário/a, está em pleno curso.

O paradoxo político brasileiro está posto neste ano eleitoral. De um lado, a incompetência absoluta de Bolsonaro e sua família põe em risco a manutenção do projeto ultraliberal protofascista; de outro, essa mesma incompetência está sendo tratada nos círculos que determinam o poder como a reação contrarrevolucionária para frear a reestruturação das forças de Esquerda. Não é de graça que ao mesmo tempo em que Bonner e Renata, que, a propósito, ostentam imagens e linguagem bastante joviais, desciam a lenha em Bolsonaro na mídia televisiva, preferida do público bolsonarista, o jornalismo escrito, que chega em público diferente, em tese mais politizado, atacava Lula com a mesma virulência. No meio dessa briga, fomentada por ela mesmo, a Globo ganha tempo pra achar a terceira via.

Spoiler: Michel Temer anda sumido e Eduardo Leite foi retirado da linha de frente. Recuos estratégicos de um plano já arquitetado? Temer é culto, se veste impecavelmente, tem uma esposa bela, recatada e do lar, é bom de voto, principalmente em São Paulo, e Leite é o jovem conservador (como é difícil aceitar essa imagem!) adequado ao padrão. É certo que a Globo tem estimulado a polarização em dois lados com muitos e evidentes problemas, Lulismo e Bolsonarismo, que são explorados na mesma medida. Enquanto isso, vendo o barco do ex-juiz e ex-ministro, atualmente consultor para a recuperação de empresas que ajudou a quebrar, naufragar antes mesmo de deixar o porto, nada melhor do que resguardar possíveis candidatos, retirando-os da exposição massiva e mantendo a carta na manga para a hora certa, quando o eleitorado já estiver cansado e desesperançado e assim pronto para aceitar qualquer coisa que se lhe apresente como alternativa. Mesmo que sejam as mesmas velhas raposas velhas, acompanhadas por novas raposas velhas.

Que a Esquerda não seja como a pátria mãe, tão distraída…

*Imagem de destaque copiada de: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2015/03/em-culto-da-universal-jovens-gladiadores-se-dizem-prontos-para-a-batalha-4710883.html.&gt; Acesso em: 10 de jan. 2022.

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América Latina, Política

11 de setembro – 19 de dezembro: 3 meses ou meio século?

Antes que os americanos da parte norte do continente pudessem legitimar definitivamente a caça às bruxas terroristas do mundo islâmico, houve outro 11 de setembro. Em 1973, o primeiro 11barra9 instalou uma das ditaduras mais sanguinárias da história recente da (des)humanidade. Ao dizer isso, é importante observar que os mais cruéis regimes desde a segunda metade do século 20 têm em comum o fato de se localizarem na América – aquela que os americanos do norte insistem em desconhecer como tal -, e contaram com o apoio em todas as instâncias da América – a autodeclarada como legítima.

Após duas décadas e meia de regimes comandados por generais treinados e orientados pela CIA, teve início um período que apontava para uma virada, a partir dos processos de redemocratização iniciados nos anos finais do 1900, cujo fato mais significativo talvez possa ser a primeira eleição de Lula à presidência, já no novo milênio. Porém, não muito depois, o Brasil (ou braZil), viveu uma espécie de revirada, com o golpe de 2016. Na verdade, a defenestração de Dilma Rousseff foi o contrapiso de uma base autoritária e com tendências ao fascismo que se construiu no continente, cuja camada de cimento e acabamento se deu com a chegada ao poder dos bolsonaros, dois anos depois. Mas o que parecia ser o plano perfeito da extrema direita talvez não previsse a incompetência da família. Essa incompetência, aliada à arrogância e à autossuficiência de quem não se aceita como mero peão no tabuleiro de xadrez operado por quem realmente tem o poder, colocaram em cheque o projeto ultraliberal que se urdia no país já desde os anos da privataria tucana. Isso permitiu um esboço de rearticulação das forças de resistência ligadas aos campos democráticos, que conseguiram mobilizar o povo nas ruas por mudanças. Se esses movimentos não tiveram a força suficiente para derrubar o desgoverno genocida, há que se considerar as restrições impostas pela pandemia, que acabaram por cair como uma luva para a sustentação do bolsonarismo, o que explica, em parte, o boicote às medidas de segurança na área da saúde.

Voltando um pouco no tempo, se pensarmos na origem recente dessa escalada nazifascista, pode e deve ser questionado o fato dos governos petistas deixarem aberto flancos importantes para ação das elites, que deram suporte para o golpe jurídico-parlamentar que tirou do poder uma presidenta sem nenhuma comprovação de crime (marcas do machismo estrutural?). As articulações políticas, a necessidade de formar uma base de sustentação para a eleição e no segundo momento para a governabilidade, fizeram com que os governos do PT cometessem erros cruciais para a sua própria desintegração. Erros que parecem não ter sido suficientes para ensinar ao partido que o a força está na retomada dos seus processos históricos de constituição e na retorno às bases, como preconizam lideranças históricas, como Olívio Dutra, e militantes do peso de Mano Brown. Pensar em aliança Lula e Alckimin é considerar a possibilidade de novamente vender a alma e algo a ser muito debatido nas organizações das forças de Esquerda.

Imagem copiada de: <https://pt.org.br/nossa-historia/.&gt; Acesso em: 6 de jan. 2022.

Contudo, em que pesem os equívocos petistas e a aparente falta de coesão do campo democrático, há pouco menos de um ano da eleição, os prognósticos indicam a queda do império messiânico bolsonarista. Muito ainda há que se analisar, pensar, articular para que isso se torne realidade, principalmente sobre como se dará essa transição do modelo protofascista para algo mais próximo do começo do restabelecimento da democracia. Uma boa prática certamente é dar atenção ao vento da mudança que começa a soprar a partir da Cordilheira.

Na primeira metade do ano, o povo chileno já anunciava ao mundo o desejo de romper definitivamente com a história macabra iniciada em La Moneda naquele 11 de setembro. A escolha de Elisa Loncón, professora, mulher, Mapuche, para presidir a assembleia constituinte, emitia um claro sinal que a era pinochet, estava chegando mesmo ao fim. E quando se fala em período de terror, ditadura Pinochet, esses termos terríveis, enfim, não podemos esquecer que a desgraça chilena, que acabou com a autonomia de uma das economias mais sólidas do mundo e levou milhões de pessoas à ruína, inclusive com ondas de suicídio entre pessoas aposentadas, foi escorada nas políticas econômicas da escola Chicago Boy, com a orientação do superministro braZileiro Paulo Guedes.

Se o povo chileno começou a sair do estado de letargia a partir da eleição da assembleia constituinte, essa retomada de rumos está se confirmando com a eleição presidencial ocorrida no último fim de semana. Mas a ferrugem não dorme e o inimigo está sempre à espreita. O que parecia ser um processo relativamente tranquilo de consolidação de uma contraofensiva democrática, durante o primeiro turno da eleição que se encerrou no último domingo trouxe grande apreensão. A extrema direita, que parecia ter sido enterrada, mostrou que não está pra brincadeira, e o bolsonaro chileno, José Antônio Kast, chegou vivo e forte no segundo turno. A possibilidade de eleição do ultraconservador punha em risco o próprio processo de elaboração da nova Constituição, já que, por óbvio, ele era contrário. E continua sendo, afinal a sua derrota eleitoral não significa o fim da ideologia e das pretensões políticas dos grupos que representa.

Ainda assim, não obstante algumas previsões pessimistas e os receios de um contra-ataque fulminante da direita, a vitória de Gabriel Boric foi obtida até com uma margem segura diante do quadro que se temia: 55,8 por cento contra 44,1 do projeto fascista. Mas, por óbvio, não são números que possam inspirar tranquilidade ao campo democrático. Pelo contrário, se em termos práticos, diante das dificuldades que se apresentavam, a vantagem nos números eleitorais foi comemorada, há que se considerar que quase a metade da população votante parece ter optado pela manutenção e o recrudescimento da nefasta política pinochetiana. A relativização que considero ao dizer que essa apenas PARECE ter sido a vontade de quem votou em Kast, se deve menos a uma demonstração efetiva de força da extrema direita do que a uma certa desconfiança com as plataformas e práticas dos governos mais à Esquerda. E isso é muito preocupante, porque aponta para as dificuldades que tem o campo democrático de vender o seu peixe. É mais ou menos como algumas análises que atribuem a vitória de Bolsonaro em 2018 ao antipetismo, ideia da qual eu tenho sérias discordâncias, mas que em alguns pontos tem sentido. De qualquer forma, tanto os percalços no sepultamento do pinochetismo, quanto o fato da família bolsonaro ainda não ter sido apeada do poder, mesmo com elementos mais do que suficientes para isso, mostram que a luta pela redemocratização efetiva no continente latino é árdua e jamais pode ser considerada páreo corrido.

A mudança de ares nas políticas latino-americanas podem se expressar em um frase de Gabriel Boric, após a confirmação da vitória: “Hoje a esperança venceu o medo!” Não sei quem faz o papel de Regina Duarte no Chile, mas tenho muita esperança que os ventos da cordilheira inspirem a vassourada necessária por aqui e que os bolsonaros, os paulo guedes, os… sérgios moros e outros tantos a partir de 2023 sejam apenas personagens de livros de história. Como disse León Gieco:

“Solo le pido a Dios,

Que el engaño no me sea indiferente,

Si un traidor puede más que unos cuantos,

Que esos cuantos no lo olviden fácilmente”

Imagem copiada de: <https://www.youtube.com/watch?v=Gvyl_zdji2k&ab_channel=Mat%C3%ADasJim%C3%A9nez.&gt; Acesso em: 6 de jan. 2022.

*Imagem de destaque copiada de: <https://oglobo.globo.com/fotogalerias/povo-chileno-festeja-vitoria-da-esquerda-na-eleicao-para-presidente-veja-fotos-25326400.&gt; Acesso em: 6 de jan. 2022.

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Eleições, Política

Um tucano na sala

No livro “Dez anos que abalaram o Brasil”, o professor e economista João Sicsú faz uma análise dos governos Lula e Dilma até 2013. O subtítulo aponta a crença do autor num quarto mandato, no mínimo, o que acabou se realizando, mas apenas pela metade: “E o futuro?”.

O futuro ali projetado não antevia o golpe de 2016. O título ecoa o “Dez dias que abalaram o mundo”, mas as semelhanças começam e terminam no trocadilho com o nome. O livro de John Reed, que trata da Revolução Russa, é uma das mais impactantes experiências da literatura jornalística, e que na minha prateleira está o lado dos melhores momentos de Gabriel García Marquez e de Joe Sacco. O livro de Sicsú pode facilmente ter uma crítica distorcida e ser chamado de panfletário. Essa não é a minha opinião. Vejo como um trabalho importante para começar a desmistificar algumas coisas da política brasileira pós-linha dura. Traz dados consistentes que mostram os grandes avanços sociais que o Brasil viveu nos governos petistas. Paradoxalmente, quem ler com atenção vai encontrar pistas para derrubar a ideia de que o Partido dos Trabalhadores fez governos comunistas. Sequer propriamente socialistas foram os anos de PT à frente do Executivo nacional. Não se pode entender isso sem pensar na equivocada ideia que o socialismo é uma forma branda de comunismo. Nas bases ortodoxas do marxismo/engelismo, o socialismo é a fase de transição, revolucionária e inevitavelmente violenta, portanto, de enfrentamento e ruptura com uma estrutura vigente. O comunismo é a chegada a um regime ideal, em que o sistema de opressões já tenha sido superado.

Desfeita essa confusão conceitual, pensemos na hipótese do primeiro mandato de Lula como governo de Esquerda puro. Não é preciso ir além da figura do vice-presidente, José Alencar, para mostrar o erro dessa concepção. Se estivermos anda pensando em termos marxistas, o vice de Lula é o grande representante do Capital no governo. Mas há muita gente que não sabe, por exemplo, quem foi Aureliano Chaves (talvez seja melhor dizer que há pouca gente que sabe) e, portanto, não dá a mínima importância para o vice, cargo que foi chamado de vaquinha de presépio por um dos personagens de Jô Soares nos anos 80. Para essas pessoas, podemos dar um argumento mais forte para relativizar o esquerdismo do governo Lula: Henrique Meirelles. Nessa linha, poderíamos ainda analisar ano a ano os governos do PT e encontraríamos a escalada dos lucros dos bancos, a imagem de Jorge Gerdau Johannpetter sempre presente como conselheiro, veríamos Joaquim Levy como ministro da fazenda, e chegaríamos, por fim, novamente ao vice, e desta vez de forma que não se pode esquecer, porque foi o artíficie do golpe. Quando da construção da chapa que viria a se eleger, por mais que se possa reduzir ao mínimo a importância do vice, que tipo de caráter socialista ou comunista Michel Temer poderia dar ao programa?

Ainda como sugestão de literatura política, “A privataria tucana”, de Amaury Ribeiro Júnior, e, sobretudo, “O príncipe da privataria”, este de Palmério Dória, mostram a consolidação do modelo neoliberal no braZil tucano. Avançando na investigação da ideologia da social-democracia à moda brazilis, temos que necessariamente passar pelo discurso de Aécio Neves, em sua primeira manifestação no plenário do senado pós derrota eleitoral, quando disse que seria o líder de uma oposição incansável ao governo Dilma. Para além do jogo político travado dentros das regras, que é o que talvez Aécio tenha referido (ou não), “Máfia da Merenda”, “Máfia dos Trens”, “Mensalão Tucano”, “Helicoca” e outras expressões, se jogadas no Google, vão abrir informações interessantíssimas sobre as práticas e políticas do PSDB e sua turma, turma essa que inclui o MDB. Pois um dos nomes que vai aparecer aqui e ali nessas pesquisas, mesmo que sejam feitas bem superficialmente, será o de Geraldo Alckmin, preferência de Lula para a construção de uma chapa para “vencer a eleição presidencial de 2022”.

“Eu tive uma extraordinária relação com o Serra, eu tive uma extraordinária relação com a Yeda Crusius [ver Operação Rodin], eu tive uma extraordinária relação com o Rigotto, porque eu não faço diferença na minha relação com os entes federados, eu não queria saber de que partido que era a pessoa, então com o Alckimin, eu tive uma extraordinária relação. O Alckimin foi um governador responsável aqui em São Paulo. […] Vamos ver se a hora que eu decidir ser candidato ou não, se é possível a gente construir uma aliança política, é preciso primeiro eu saber qual é o partido que o Alckmin vai entrar”. Isso, talvez com uma palavra a mais outra a menos, foi dito pelo Lula em entrevista à Rádio Gaúcha na semana passada. Lula é, na minha opinião, o político de linha de frente mais habilidoso da história do Brasil, só comparável a Brizola e Getúlio. Essa capacidade de articulação retórica faria ele se sair com facilidade de uma possível saia justa caso fosse perguntado se não seria uma contradição dizer que não olhava para partidos quando era presidente, mas que agora depende do partido a que Alckmin vai se filiar para ver se é uma boa decisão compor chapa com o (ex?) tucano. Também tiraria de letra, por certo, se alguém perguntasse se uma associação com um político liberal até a medula não implicaria repetir um programa de favorecimento ao mercado e facilitação aos banqueiros e grandes empresários, que marcou uma parte dos governos petistas. (A marca da outra parte foi a implementação de políticas sociais que tiraram milhões de pessoas da linha da pobreza absoluta.) Provavelmente, se isso for em frente, Lula vai desenvolver de forma extraordinariamente convincente o argumento das alianças pragmáticas e das questões de governabilidade para justificar a composição com um sujeito envolvido pessoal e partidariamente em suspeitas muito fundadas de corrupção, e participante ativo do processo de transformação do Brasil em braZil, a partir da sanha privatista de FHC e seus correligionários. Afinal, não são dessa ordem os argumentos utilizados para a defesa da presença de Temer como vice de Dilma? Na origem ele teria aderido à plataforma do PT, o que é uma resposta de tão óbvia quase pueril.

Quanto ao Partido dos Trabalhadores, na reta final da campanha de Haddad e Manuela em 2018, Mano Brown disse para um público petista que “Se somos o Partido dos Trabalhadores, tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar entender.” (Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/cultura/em-comicio-de-haddad-mano-brown-critica-pt-e-e-defendido-por-chico-e-caetano-3kmes3df2xhu24fk1i2aw7ho4/). Olívio Dutra, fundador do PT e uma das figuras mais sérias do cenário político nacional, há tempos faz críticas a algumas posturas do partido. Paulo Paim, que também dispensa apresentações, já andou dizendo que não pretende mais se candidatar a cargos eletivos. Seriam sinais de esgotamento do maior partido de Esquerda do Brasil, expressos no cansaço de lideranças históricas? Ao declarar que tem conversas entabuladas com um político com trajetória e plataforma política diametralmente oposta à essência de um partido que se quer situar no campo político da Esquerda, Lula não estaria de certa forma traindo a sua própria origem e a do partido? Ou estaria apenas assumindo um risco calculado, em nome de uma estratégia de retomada do poder e de reimplementação das políticas sociais que inegavelmente avançaram nos governos petistas como em nenhum momento anterior da história do país? Os fins justificariam os meios?

A experiência de alianças espúrias já mostrou que pode ter consequências desastrosas. Não seria o caso, então, de desta feita apostar numa associação com forças políticas de mesma linha? Não seria melhor tentar superar as diferenças pontuais dos programas dos vários partidos que compõem de fato o campo democrático, a fim de construir uma verdadeira frente de Esquerda para disputar o governo? Ou os fatores que impedem esses acertos estão mais ligados a uma vaidade e uma necessidade de protagonismo que suplanta os anseios do povo? A política é uma arte. E é uma arte complexa. Mas estamos diante de um momento em que a repetição de erros e a sustentação de um discurso arrogante e incapaz da humildade e da grandeza de ceder espaço a quem está mais próximo no campo das ideias pode ser a causa da consolidação do modelo fascista que se instalou no Planalto. Não podemos esquecer que do outro lado teremos o próprio Bolsonaro novamente e o seu ex-comandante em chefe, Sérgio Moro, em outra frente. Com essas (e talvez outras) opções fortes, a simples presença de Alckmin na chapa teria o poder de atrair votos do eleitorado de centro-direita? Como se não bastasse, há que se considerar o retumbante fracasso do tucano em 2018.

Lula será o fiel dessa balança e o PT terá de decidir entre o respaldo a uma articulação com fortes tendências suicidas – Lula/Alckmin – e uma volta às bases, como pediu Mano Brown. Ainda penso que isso tudo seja apenas mais uma jogada estratégica do grande ex-presidente. Aquela história de botar o bode na sala, neste caso, o tucano. E espero que as pessoas envolvidas percebam que este é o momento do PT resgatar a sua essência, mostrar que confia na sua própria história e, mais do que isso, que confia no seu povo. A alternativa é arriscar vender a alma ao diabo de novo. E o sete-pele já provou que não deixa uma fatura sem cobrança

*Imagem de destaque copiada de: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/12/alckmin-e-pressionado-por-aliados-a-desistir-da-vice-de-lula-e-disputar-governo-de-sp.shtml.&gt; Acesso em: 27 de dez. 2021.

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Arte, Cultura, Ideologia, Música, Política, Racismo

A panela, o prato e a hipocrisia programada – parte 2

Com a marcha fascista em pleno curso, é preciso se ater a certos detalhes pra compreender a lógica do esquema. As panelas baratas que soavam sem ritmo nenhum pra derrubar umA PresidentA não lograram êxito pra derrubar UM presidentE. Entretanto, um prato, usado com ritmo perfeito e altamente refinado, escancara a hipocrisia e a falta de cultura da gente batedora de panelas.

Caetano Veloso fez a sua live, junto com os filhos. Quem já teve oportunidade de ver ao vivo Caetano e os Filhos sabe que essa é uma experiência inesquecível. Pois um sujeito lá, que eu não sei quem é, achou que o prato e faca que Moreno usou de forma magistral, na melhor tradição dos sambas dos bambas, era algo inusitado e cômico e tratou o caso como uma improvisação pela falta de instrumentos. O texto da infeliz e ignorante observação é:

“um dos momentos mais inusitados e cômicos aconteceu em ‘Pardo’, quando Moreno Veloso, na falta de instrumentos, usou um prato e um talher para fazer o som. Quem sabe faz ao vivo, não é?”.

O sujeito que escreveu isso ainda se valeu de uma referência ao “glorioso” Fausto Silva, que quando quer puxar o saco de algum/a artista que se apresenta no programa solta esta bobagem: “quem sabe faz ao vivo”.

Caetano desvelou a imbecilidade do comentário, que tratou como ignorância inacreditável: https://www.blogdoarcanjo.com/2020/08/12/ignorancia-inacreditavel-diz-caetano-de-artigo-da-rolling-stone-sobre-sua-live/. Foi elegante, porque ignorância é desconhecimento e o que está por trás disso vai além de desconhecimento, embora também o seja.

A Rolling Stone, que é uma das mais conceituadas revistas de música do mundo, se retratou: https://rollingstone.uol.com.br/noticia/6-melhores-momentos-da-live-de-caetano-veloso-bronca-nos-filhos-tributo-moraes-moreira-e-mais/

Mas o que está nas entrelinhas do comentário qualificado pelo Caetano como de inaceitável ignorância e qual a relação disso com as panelas?

O próprio Caetano tratou de contextualizar as coisas e trazer um pouco de conhecimento ao comentador engraçadinho e espirituoso, mostrando que prato e faca é um instrumento ligado às raízes da música brasileira. Neste documentário https://www.youtube.com/watch?v=ZXJEMg5vT40 é possível ver, entre outras maravilhas, o grande João da Baiana, tocando prato e faca, acompanhado por um violonista, um certo Baden Powell. Se alguém ver comédia nisso, o caso não tem mais solução…

A música brasileira tem raízes fincadas no lado de lá do Atlântico, em terras africanas, e tendo isso em mente começa a se tornar um pouco mais clara a relação entre o comentário da Rolling Stone e a história racista que acompanha a formação e a evolução do nosso país, particularmente no que diz respeito à involução dos últimos anos. Vamos esmiuçar um pouco mais essa coisa, esse racismo brasileiro, que por ser estrutural é absorvido e normalizado, fazendo com que se torne velado.

O Chico César, grande compositor, cantor, ativista, de forma genial criou um samba, cheio de sutilezas:

nasceu pra lavar prato e está tocando prato na tv
edite o prato

o prato não pode aparecer
nunca no sentido estrito
menos ainda no sentido lato
isso é coisa do brasil mulato
que a gente quer esconder
edite o prato
o prato não pode aparecer
o prato batucando vazio
é a metáfora do brasil
da incessante fome e o cio
que bota tudo a perder
edite o prato
o prato não pode aparecer

Reparem na diferença: o Chico César faz um trocadilho com a Dona Edith do Prato, conterrânea de Caetano, que gravou com ele no experimental (e fenomenal) Araçá Azul, de 1973, já dividiu o palco do Teatro Castro Alves com o próprio Caetano, Chico Buarque, MPB4, e era uma monumental tocadora de prato e faca. (Aqui a maravilhosa Mariene de Castro fala nela e explica a técnica que ela usava pra preparar o INSTRUMENTO prato e faca: https://www.youtube.com/watch?v=d1F2RPoAC3c.) E o cara da Rolling Stone citou… o Faustão. É, Raulzito, falta cultura pra cuspir na estrutura…

Mas por que o prato tem que ser “editado”? Simples, porque ele representa o Brasil Mulato. E o que é esse Brasil Mulato? Será que o Chico César não sabe que o termo mulato é pejorativo, que tenta associar um determinado ser humano a um animal híbrido, resultado do cruzamento “artificial” do asno com a égua? Garanto que sabe. E justamente por saber é que ele falou em Brasil Mulato e não em Brasil Negro. Por que o Brasil Negro é um país que se quer apagar (ou branquear), que não pega bem lá fora, então fica melhor dizer mulato, que tem a ver com a democracia racial, com a convivência pacífica, harmoniosa e amorosa das raças que formaram este Brasil brasileiro, mulato inzoneiro. O que o Chico usou de forma irônica e como uma sutil figura de linguagem escancara um recurso ideológico que sustenta desde os primórdios do século 20 o racismo que estrutura a nossa sociedade. Ora, se a gente diz que o Brasil é um país mulato e a gente sabe que a mula é a cruza de dois bichos diferentes, de raça pura, mas capazes de se misturar a ponto de gerar um outro ser, isso mostra que o povo brasileiro também é a cruza de “bichos” diferentes, mas que se amam, se cruzam e geram um outro “bicho”, que não é puro, mas que simboliza a união das raças, que, no fim das contas, não tem raça nenhuma (raça humana, lembram?). Não é isso que nós queremos? Mostrar que no Brasil não há discriminação de cor nem de raça? Que somos formados por essa mistura linda de gentes diferentes? Então este é um país mulato. E o Chico César, negro que é, conhece essa retórica, claro que conhece. E sabe que ela é mentirosa. E com a sua genialidade transformou isso num “sambinha despretensioso”, tocado provavelmente no quintal de casa, sem camisa, entre pessoas amigas: https://www.facebook.com/marcelodalcom/videos/10223435963995742

Está posto, então, o paradoxo brasileiro. Ou melhor, um deles. O mesmo país que usa panelas pra derrubar uma Presidenta, mulher, e que é incapaz de fazer o mesmo com um Presidente, homem, afirma publicamente que um cara toca prato e garfo em rede mundial pra criar um efeito cômico na live (ou porque a produção não providenciou instrumentos adequados). E antes que alguém diga que um infeliz comentário de uma única pessoa não pode representar o pensamento de uma nação, lembro que a hipocrisia se programa e é programada.

*Imagem de destaque copiada do site http://pitayacultural.com.br/musica/o-prato-a-faca-e-os-ingredientes-desconhecidos/, consultado em 3/9/2020.

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Política

A panela, o prato e a hipocrisia programada – parte 1

O Brasil (BraZil?) é um país estranho. Recentemente a panela virou instrumento político. Ou dito de outra maneira, ideológico. Uma bateção de panelas sem nenhum ritmo foi a forma de manifestação encontrada pela classe média brasileira, essa entidade tão esquisita quanto o próprio país, para derrubar uma Presidenta da República. A Presidenta Dilma Rousseff, legitimamente eleita para o seu segundo mandato, o quarto do Partido dos Trabalhadores, era a representante de um processo de implementação de políticas sociais no governo federal. Isso é fato inconteste que as elites – as genuínas e as que sonham em ser – teimam em contestar. Para maiores informações, sugiro a leitura do livro “Dez anos que abalaram o Brasil. E o futuro?: Os resultados, as dificuldades e os desafios dos governos de Lula e Dilma”, do Economista e Professor João Sicsú, lançado em 2013.

Percebam que eu não estou qualificando os governos petistas como Socialistas ou Comunistas, mas sim governos que implementaram políticas sociais importantes, o que é bem diferente. Tais políticas sociais deslocaram uma expressiva parcela da população do contexto da iminência da morte por fome para uma condição um pouco mais digna. Nova condição que estava ainda longe da ideal, por óbvio, mas ao menos um pouco mais distante da miséria absoluta e da total falta de perspectiva. Por conta disso, na época dos panelaços criou-se uma figura interessante: as pessoas pobres não poderiam bater as panelas, porque pela primeira vez nas suas vidas elas estavam cheias.

Pois bem, a orquestra de panelas, que, repito, não tinha nenhum ritmo, foi viabilizada por um movimento que aconteceu algum tempo antes, que surgiu de forma legítima, mas que pela falta de uma consciência política mais refinada, foi absorvido por quem andava há alguns anos sem rumo. A juventude que foi às ruas no outono/inverno de 2013, pautando políticas importantes, como a redução das tarifas de transporte público, rechaçou o apoio de partidos políticos e qualquer entidade similar. Infelizmente o que poderia ter sido um grande movimento, talvez de características Anarquistas (sem deuses nem mestres), acabou por se transformar no mecanismo de apropriação dos discursos reivindicatórios por parte daquela elite que já estava há algum tempo vagando solitária, à procura de um caminho. Ao levantar a bandeira do antipartidarismo, aquela gente jovem que mostrava coragem suficiente para sair às ruas e fazer o enfrentamento com as forças que seriam naquele entendimento de opressão e repressão, não percebeu que eram justamente as verdadeiras forças opressivas e repressivas que acabariam por encampar os seus protestos. Porém essa apropriação do discurso não tinha o objetivo de colaborar e reforçar a luta, mas de assumir o protagonismo, com vistas a incluir na ordem do dia a retórica burguesa da luta contra a corrupção e da busca por melhores equipamentos de segurança pública, principalmente. À narrativa urdida nos gabinetes políticos e salas empresariais, que já vinha, num recorte curto, desde o processo do “mensalão do PT” – e aqui cabe lembrar que o mensalão tucano nunca saiu do papel -, juntou-se a insatisfação de boa parte da juventude, com suas pautas legítimas. Estava anexado o componente fundamental, sem o que não se faz qualquer movimento de mudança: o apoio popular.

É importante estabelecer essa relação com a ação da população jovem, porque, sendo da natureza da juventude a rebeldia e a contestação, ela andava já há alguns anos sem causa. Ao longo a história do Brasil, como no mundo todo, a juventude sempre andou do “lado de lá”, na oposição aos regimes. Acontece que naquele momento, o regime havia deixado de ser autoritário e conservador, como sempre fora, e o governo tinha tendências socializantes. Jovens agora não tinham mais as bandeiras da Esquerda, que sempre foram as causas que moviam as ações e movimentos para contrapor o poder, pois, em tese – e friso a observação: em tese – ali o poder era da Esquerda.

Retornando para o “caso das panelas”. A cada pronunciamento da Presidenta Dilma, a elite ia às janelas para bater panela. Por certo eram panelas compradas especificamente para isso em lojas populares, porque não se valeriam dos seus jogos “Le Creuset, para esse fim. E, mais, a compra dessas panelas de alumínio baratas evidentemente ficou a cargo das domésticas, porque as patroas, mulheres belas, recatadas e do lar, não se dignariam a ir ao comércio inferior adquirir a preços módicos os equipamentos adequados para que pudessem externar a sua revolta. E era preciso que assim fosse, porque para recolocar as coisas em ordem (e progresso) era necessário que essas pessoas, as empregadas, compreendessem o seu lugar no espaço social, que não era o dos aeroportos e dos hotéis turísticos em Paris. (Lembram da revolta de uma certa socialite ao dizer que não achava mais graça de viajar à França, pois sempre corria o risco de encontrar o porteiro do prédio no aeroporto? Aqui: https://www.brasil247.com/cultura/danuza-lamenta-que-todos-possam-ir-a-paris-ou-ny , consultado em 2/9/2020.)

O que aconteceu e vem acontecendo nesse tempo que vai dos protestos de 2013 aos dias de hoje é sabido por todes. A resistência ainda tentou se apropriar do já icônico instrumento das elites, a panela, que voltou a algumas janelas quando dos pronunciamentos do atual presidente. Mas essa capacidade de incorporar elementos e armas de outros exércitos não é o nosso forte e o “panelaço da Esquerda” não vingou. Talvez porque a população mais pobre naquele momento já nem tivesse mais panelas, furadas que deveriam estar de tanto serem raspadas para tentar buscar restos e enganar a fome.

Sobreveio, porém, a pandemia, que mudou tudo. Tudo mesmo. Ou quase. A necessidade de isolamento tirou as pessoas da rua e sem o povo na rua a gente já sabe que as coisas não mudam. Os protestos e manifestações passaram a ser virtuais. Só que quem têm acesso às plataformas digitais não são as pessoas das panelas vazias e furadas, então o movimento fica muito restrito e quase sem efeito. A cada notícia de crime ou patrolada do presidente e seu séquito em cima do povo, chovem manifestos, notas de repúdios, cartas abertas etc., que não têm nenhum efeito que não seja talvez uma demarcação de terreno das entidades, algo do tipo: “Estamos atentos!”. Mas esse estado de alerta permanente por si só não muda nada, o povo não está nas ruas e a marcha fascista segue livre, leve e solta. (Continua)

*Imagem de destaque copiada do site https://www.dw.com/pt-br/antipartidarismo-%C3%A9-perigoso-para-a-democracia-alertam-especialistas/a-16910048, consultado em 2/9/2020.

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Política

Hora de derrubar mitos

Não foi ontem que as pessoas progressistas e amantes das liberdades e da democracia descobriram que as coisas no Brasil vão de mal a pior. Nem foi no golpe engendrado para tirar do governo uma presidenta legitimamente eleita. Presidenta, aliás, que soube que não levaria a cabo o segundo mandato no exato instante em que o TSE proclamou a sua reeleição, em 2014. Naquele momento, o candidato derrotado anunciou que as forças conservadoras tornariam o país ingovernável. E cumpriu o prometido. Só que também não foi naquela ocasião que passamos a entender o que estava acontecendo. A gênese de tudo está no aeroporto, quando a socialite começou a encontrar o porteiro do prédio em Paris, e na Universidade, quando o filho preto da empregada pobre começou a dividir a sala de aula com a filha do patrão. (Sobre isso, recomendo “Que horas ela volta?”, filme brasileiro de 2015, dirigido por Anna Muylaert e magnificamente estrelado por Regina Casé.) “A Casa-Grande pira quando a Senzala vira médica”, foi o que disse a estudante Bruna Sena, ao ser aprovada em primeiro lugar para Medicina na USP, vestibular mais concorrido do país. E num país de elite historicamente escravocrata, como é o  nosso, quando a Casa-Grande pira, as consequências podem ser trágicas.

A eleição de um projeto autoritário e com matizes notadamente fascistas, porém, não é fruto somente de uma insatisfação das elites. Acreditar nisso é seguir trilhando o caminho de um erro que já provocou um resultado devastador. É preciso ir além, é preciso olhar para o nosso interior e detectar precisamente o ponto em que começamos a nos equivocar. A avaliação mais precisa do contexto político que se estabeleceu nas eleições deste ano não foi feita por um cientista político e nem por um jornalista, mas pelo rapper Mano Brown. E aconteceu durante um evento do próprio Partido dos Trabalhadores. Ao dizer que o PT deveria voltar a dialogar com as bases, Mano Brown não fez mais do que a crítica que o próprio partido deveria ter feito internamente há muito tempo e que vinha sendo feita, a bem da verdade, por alguns quadros históricos, como Olívio Dutra. Mas da mesma maneira que a dura reprimenda feita corajosamente por Mano Brown às vésperas do pleito não significou que ele estivesse “passando para o outro lado”, ou “dando um tiro no pé”, como tentaram dizer algumas figuras petistas de expressão, também as reflexões de Olívio não o afastaram das lutas democráticas. Pelo contrário, Olívio, do alto de seus mais de 70 anos, esteve engajado de corpo e alma na campanha pró-Haddad e Manuela, e no último sábado esteve de casa em casa em alguns bairros populares de Porto Alegre, fazendo a luta pela “virada”. E as palavras de Mano Brown, que certamente foram extremamente incômodas a quem sempre fechou os olhos para os erros cometidos pelo PT, estimularam a militância a seguir firme na busca por votos possíveis de inversão. Como depoimento pessoal, posso dizer que conquistei alguns votos para a chapa Haddad/Manuela a partir do discurso dele, pois algo que sempre incomodou e irritou os antipetistas é a incapacidade do partido em assumir os seus próprios erros. Quando o partido reconhece que não foi perfeito, as barreiras e restrições começam a ser relativizadas.

Todavia, a coisa toda não se explica somente por essas constatações. Há que se analisar também o caso do antipetismo, que teria levado milhões de brasileiros e brasileiras a eleger Bolsonaro e sua plataforma antidemocrática pela via da exclusão e da rejeição. Essa é uma meia verdade. Fosse a intenção do eleitorado bolsonarista tão somente barrar o PT, havia outras possibilidades, à direita e ao centro, ainda no primeiro turno. Alckmin, Marina, Amoedo e o próprio Ciro eram candidaturas viáveis a combater a ascensão petista, mas foram preteridas em favor de um discurso extremado, que agradou, sim, ao povo ávido por vingança. Eu escrevi vingança. O que pode agradar mais a chamada classe média do que a promessa de poder se vingar de quem lhe ameaça a segurança? E nesse caso, pouco importa se quem promete nada fez pela segurança pública nas últimas trés décadas, mesmo ocupando um cargo político importante. O cidadão mediano, que vive com medo de ser assaltado na rua, é seduzido pelo canto da sereia que representa a possibilidade poder usar uma arma de fogo para se defender. E empolgado com essa ideia, certamente não vai buscar informações sobre o que realmente está por trás dessa conversa, sobre que interesses serão contemplados com isso. Sequer essa pessoa vai se informar sobre o que acontece em países cuja posse e porte de arma de fogo é facilitada, como os EUA. A ele basta sonhar que vai poder dar um tiro na cara do assaltante, afinal, bandido bom é bandido morto. As causas que levaram esse bandido ao mundo da criminalidade também pouco lhe interessam, pois é suficiente que ele esteja morto. Se morrer um inocente, paciência, o próprio Messias já aliviou essa culpa. Ou seja, se há um componente de antipetismo na eleição do capitão, há muito mais do lado Mr. Hyde que habita o interior de cada “cidadão de bem”, que clama por justiça, mas quer ter o mórbido prazer de executá-la com as próprias mãos. Esse é o pensamento de quem reduz a luta pelos direitos humanos a uma defesa da bandidagem e é o pensamento que elegeu um projeto que afirma abertamente legitimar o justiçamento.

Conforme muito bem observou um amigo, Marcelo Cougo, o eleitor e a eleitora de Bolsonaro são as únicas pessoas que acreditam que ele não vai fazer o que prometeu. Isso leva a uma situação surreal, em que o voto é dado pela certeza do não cumprimento das promessas de campanha. Pessoas minimamente politizadas e conscientes votam em candidatos/as na esperança de que cumpram com o que se comprometeram, caso sejam eleitos/as. Algumas até mesmo deixam de votar em qualquer candidatura por entenderem que nenhum/a agente político é capaz ou tem interesse em cumprir as suas promessas. Mas votar num candidato porque ele não vai cumprir o que prometeu parece ser um caso singular na história democrática do Brasil e talvez do mundo. Ao longo da campanha, circularam inúmeros vídeos que mostram Bolsonaro afirmando com convicção as suas ideias de defesa da tortura e de admiração por torturadores, por exemplo. E não foram falas descontextualizadas. Estão aí disponíveis no Youtube. Também é da própria boca do presidente eleito que se ouviu a exortação à expulsão dos adversários políticos do país, assim como a defesa da tese de que o voto não pode mudar nada, que é preciso um golpe e que se for necessário matar alguns inocentes, não tem problema. Não vou me dar ao trabalho de incluir aqui os links para essas declarações, porque é só jogar no Google. O bolsonarianismo, porém, insiste em dizer que não é bem assim, que ele não disse o que disse, embora esteja tudo gravado e registrado, ou que ele disse isso em contexto diferente, ou ainda pior, que ele estava só brincando. Se alguém se dispõe a brincar de elogiar o maior facínora e mais sádico torturador da história do Brasil no momento mais crítico da história política recente do país (o voto no processo de impeachment da Presidenta Dilma), a coisa é ainda muito mais grave.

Com isso quero dizer que o processo que levou Bolsonaro ao cargo político máximo da República não se explica pela ideia simplista do antipetismo, e também afirmo que o próprio antipetismo não se explica pelas próprias mazelas do Partido dos Trabalhadores. Todos esses elementos estão presentes, por óbvio, na eleição de Bolsonaro, mas o que está na origem de tudo é o desejo de vingança, o ódio que o “cidadão de bem” passou a nutrir por tudo aquilo que ele não pode explicar racionalmente, seja por incapacidade mesmo ou por preguiça intelectual. Ao fugir da análise dos fatos geradores das desigualdades sociais e optar por trilhar o caminho fácil da eliminação da “bandidagem”, o eleitorado bolsonarista escancarou a sua face fascista, gostem ou não os meus amigos e as minhas amigas que votaram no B17. A prova de que a luta não é anticorrupção é o elemento que se tornou simbólico dessa cruzada moralista: a camisa da CBF, uma entidade mergulhada na roubalheira e na corrupção. E a prova de que a questão central nunca foi a segurança é a falta (ou omissão) de conhecimento de que o presidente eleito não apresentou sequer um projeto na área da segurança pública em quase 30 anos de atividade parlamentar.

De um lado, então, cabe à esquerda e as forças do campo democrático uma reflexão séria sobre os próprios equívocos, e a união em torno de um projeto de resistência e reconquista do terreno perdido nas áreas sociais, a fim de que o projeto fascista representado pela eleição de Bolsonaro não consiga se consolidar. E ao eleitorado bolosonarista não assumidamente fascista (porque fascismo não se discute, se combate) cumpre fazer uma reanálise acerca do discurso de ódio que motivou a votação em massa na plataforma autoritária de um candidato que, agora eleito, tem sim as condições de cumprir tudo aquilo que prometeu durante a campanha e ao longo da sua trajetória na vida pública. É preciso, em resumo, derrubar alguns mitos para que possamos recolocar o país no rumo de crescimento em que estava há pouco tempo. A minha esperança é que isso não seja um problema muito difícil de resolver, porque, como ouvi muito durante esses últimos tempos, se ficar ruim a gente tira…

Padrão
Ideologia, Política, Republicados, Servidor/a Público/a

Como se constrói um pensamento hipócrita*

No último quarto de século da minha vida, boa parte da discussões que travei foram no sentido de desconstruir um mito que se constituiu há muito tempo no imaginário popular, que é a famigerada ideia que todo/a servidor/a público/a (chamarei de SP a partir daqui) é vagabundo/a. Olha que não é fácil explicar pra quem não quer entender que SP tem aposentadoria integral porque a sua contribuição previdenciária ao longo de todo o tempo de serviço é calculada sobre a integralidade dos seus vencimentos, ao contrário dos/as trabalhadores/as celetistas, cujo desconto nunca ultrapassa um teto pré-definido, não importando o valor do seu salário. Justificar a estabilidade, então, é quase uma heresia, mesmo que se mostre que ela tem fundamento na inexistência de um fundo que garanta o/a SP em caso de perda do cargo, como existe o FGTS na iniciativa privada. Enfim, o/a SP foi eleito, já há bastante tempo, como vilão/ã do país, responsável por todas as mazelas sociais que vivemos, desde a “quebra” da previdência, até a falência do próprio serviço público.

O que está por trás disso, porém, é algo muito mais grave e que a maioria dos/as cidadãos/as que reproduz essas críticas e acusações sem nenhuma reflexão prévia não se interessa por saber. A quem interessa o estado mínimo ou até mesmo a ausência do estado? Quem se beneficia quando o estado deixa de atender os setores estratégicos da soberania nacional? Não vou entrar na discussão do pré-sal, porque é longa e desvirtuaria o propósito imediato deste escrito, mas há setores de suma importância para que um país possa se estabelecer entre os grandes e que devem ser controlados pelo estado. Acontece que isso fere justamente os interesses – ou interÉsses como diria um grande político já falecido – de quem comanda as estruturas do sistema e, por essa mesma razão, faz com que essas ideias sejam marteladas em tempo integral na cabeça das pessoas, que as reproduzem sem nem saber do que estão falando. A velha e surrada, porém muito eficaz, técnica de propaganda do 3º Reich, de dizer mentiras de forma sistemática, até que elas acabem se consolidando como verdades.

Então, é absolutamente surpreendente o que se viu nos últimos dias, principalmente pelas redes sociais. Pessoas dos mais diversos setores sociais caindo tal qual carcarás famintos em cima do Lula por uma declaração que supostamente teria ofendido a categoria dos/as SPs. A falta de coerência e a cara de pau, para usar um português “menos castiço”, grassam em postagens que dizem que isso é um absurdo, que o Lula nunca trabalhou na vida, que não pode criticar os/as honrados/as SPs; em notas de repúdio publicadas por sindicatos que se podem chamar sem nenhum remorso de pelegos; em manifestações de gente que minutos antes do Lula ter dito isso aplaudia como macaca de auditório os ataques do presidente golpista e seu séquito ao serviço público. Mas como assim? Todo mundo pode falar malar de “barnabé”, menos o Lula? E aqui já faço o link para o próximo ponto da abordagem: o que teria dito o Lula de tão grave, que maculou de forma tão cruel a imagem dos/as SPs?

Eu não consigo ver inverdade na afirmação que a briga pelos cargos político-eletivos expõe candidatos e candidatas a um processo de seleção que faz com que tenham que mostrar lisura, honestidade, decência e todas aquelas características que deveriam estar presentes em qualquer indivíduo. O que há de errado nisso? Se o eleitorado não dá bola pra isso, se vota em qualquer um/a ou nem vota, se não lembra em quem votou, se elege ladrões, ladras, corruptas e corruptos, é outra questão, mas a essência da democracia, levada ao cabo no processo eletivo, não pode ser desconsiderada para atacar de forma pontual aquele que foi colocado na condição de ladrão número 1 da república (seria algo tipo Robin Hood?…).

Por outro lado, é um equívoco dizer que servidor/a público/a, aprovado/a em concurso, deixa de ter de prestar prova dessas características, ficando imune aos métodos de controle? Sim, é RELATIVAMENTE equivocada essa afirmação, e notem que estou dando uma interpretação para além do que realmente foi dito, apenas para puder sustentar melhor a minha argumentação. A estabilidade na carreira não prescinde da avaliação feita ao longo dos três anos do estágio probatório, durante os quais o/a SP é observado/a a partir de uma série de critérios, que visam a atestar as suas habilidades para o desempenho do cargo e também a sua conduta e postura, inclusive a partir da perspectiva ética. Passado esse tempo, adquire estabilidade, pelas razões já superficialmente colocadas neste texto, mas ainda assim não está “livre para voar”, ou seja, a implementação do estágio probatório e a garantia da estabilidade não lhe conferem uma espécie de salvo-conduto para fazer o que bem entender. Cada vez mais os mecanismos de controle estão sendo aperfeiçoados. E há um lado negativo nisso, porque paralelamente aos sistemas de controle legítimos, há uma série de fatores subjetivos, que podem transformar a vida do/a SP num verdadeiro inferno, mas isso também é assunto para outro momento. O que interessa aqui é dizer que o grande erro do Lula foi a generalização. Entretanto, quem tem acompanhado os fatos que compõem a história recentíssima do país, deve, sob pena de assinar declaração de mau-caratismo, pelo menos tentar compreender o verdadeiro sentido das palavras do Lula. Negar que ele é vítima de uma perseguição cruel e quase implacável, cujos objetivos nada têm a ver com a luta anti-corrupção, é, no mínimo, preguiça mental e falta de interesse em limpar o vidro para enxergar um pouquinho além do capô do carro.

Eu, como a grande massa da população do Brasil, quero que qualquer pessoa que esteja envolvida em qualquer ato ilícito, agente político/a ou não, seja punida nos rigores da lei e a punição nos rigores da lei exige PROVAS e não meras convicções. Se o Lula roubou, que seja preso quando isso restar provado. O que é lamentável é o senso de justiça seletivo, que leva as pessoas ao êxtase quando um verdadeiro circo é armado pelos comandantes do picadeiro, a saber, os “heróis” da República de Curitiba, para levar o Lula a prestar depoimento, mas que impede essas mesmas pessoas de bradarem as suas espadas justiceiras, quando o “presidente” daquela república deixa de citar a senhora Cunha por não saber o seu endereço… O que não pode é a comoção nacional em torno da decisão pelo impedimento de uma presidenta legitimamente eleita, sobre a qual não há sequer acusação formal, e o silêncio diante meia tonelada de cocaína achada no helicóptero de gente ligada a… vocês sabem quem. Não pode um ministro da mais alta corte postergar o processo de cassação do presidente da Câmara por ser ele o único que poderia conduzir com segurança o processo de impeachment. Tudo isso aconteceu e não há como negar.

Voltando especificamente ao tema, li uma postagem muito interessante no facebook, atribuída à Cristine Amaral Bertolino, que sintetiza quase tudo o que eu quero dizer aqui: “Você começa a acreditar que servidores públicos são pouco politizados quando eles se ofendem mais com uma frase do Lula do que com o Temer querendo tirar todos os seus direitos, inclusive sua estabilidade de emprego!” É exatamente isso. No órgão em que trabalho, o Ministério Público da União, boa parte dos/as servidores/as tem mostrado uma revolta absoluta contra os governos PT. Revolta até certo ponto justificada, pois a nossa categoria especificamente tem sido bastante bastante prejudicada pela política governamental. Mas eu não poderia ter defendido a queda de um governos porque ele não me deu aumento, certo? Incrivelmente, vejo pouquíssima movimentação entre colegas, e aqui incluo o Judiciário da União, contra o que está sendo urdido nos porões da administração golpista. Por que o nosso sindicato, o SINASEMPU – Sindicato Nacional dos Servidores do Ministério Público da União, assim como os outros que representam as categorias do serviço público, não se integra aos movimentos que lutam contra a política obscurantista que está sendo levada à execução pelo gabinete golpista? Acham eles que o alvo é mesmo o Lula e suas declarações (que podem ser até consideradas infelizes, mas que não tem uma ínfima fração do potencial destrutivo que a política governamental golpista)? É preciso que se repense as estratégias com urgência, porque essa pirotecnia, que cria uma cortina de fumaça que desvia os olhos do que realmente interessa pode ser a responsável pela abertura do caminho rumo a um período de trevas.

Encerro dizendo que o emburrecimento, em muitos casos, é provocado por fatores externos, mas a hipocrisia, esta não, esta é muito consciente e racional.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 19/9/2016.

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