bolsonarismo, Política

Sei até que parece sério…

Vou me permitir começar a conversa de hoje contando rapidamente uma história pessoal. Em 1999 encaminhei um Compact Disc, vulgo CD, com a música para a minha formatura: “Pastor João e a Igreja Invisível”. Esqueci (será?) que mesmo que o velho Romeu tivesse levado muitos dos seus princípios educacionais junto com ele pro caixão, a Ritter dos Reis ainda era propriedade de uma família adventista. (Sim, no braZil, a Educação tem proprietários.) A música foi vetada. Escolhi outra parceria do Raul e do Marcelo Nova: “Muita estrela e pouca constelação”. A exemplo dos seus homólogos da linha dura, os censores universitários não primavam pela inteligência e não entenderam qual o sentido de “Sei até que parece sério, mas é tudo armação, o problema é muita estrela pra pouca constelação” numa formatura de Direito.

Hoje a gente vê o inqualificável Roberto Jefferson sendo preso com direito a espetáculo midiático, bem ao gosto das nossas instituições. Este sujeito já foi apresentador de programa policial sensacionalista, defensor de primeira hora do caçador de marajás, se abraçou com o PT e depois deu início ao processo do mensalão (o petista, porque o tucano anda esquecido faz tempo), defendeu pautas polêmicas, como o desarmamento e até o casamento homoafetivo, antes de conhecer o Messias, claro. Enfim, é uma figura contraditória, patética e ridícula, como tantas desta república braZileira.

Não vou questionar a prisão do Bobjeff a não ser pela temporalidade. Ele deveria estar guardado há muito tempo. Ou melhor, deveria PERMANECER guardado desde muito tempo. Importa agora é examinar as razões por que ele foi encarcerado de novo.

Quem mandou o bolsonarista Jefferson para a cadeia foi o Ministro Alexandre de Moraes, que quando eu estava na faculdade, nos anos 90, já vinha se consolidando como um grande constitucionalista. Depois disseram que ele andou plagiando outros autores, mas isso também não vem ao caso agora. Moraes tem fortes ligações com o PSDB, o que motivou duras críticas à sua indicação para o STF, feita por Michel Temer. Ninguém imaginaria naquela época que ele seria um dos grandes algozes do bolsonarismo na Corte. Aliás, naquele tempo pouca gente imaginava o próprio bolsonarismo.

Imagem copiada de: https://pt.org.br/alexandre-de-moraes-passado-controverso-e-repleto-polemicas/. Acesso em: 17 de ago. 2021.

Voltando ao caso, nos fundamentos da prisão do petebista, Moraes diz que ele está no núcleo político de uma organização criminosa que provoca a desestabilização das instituições republicanas, que está sendo chamada de “milícia digital”. Esta rede atua nas mídias, principalmente as alternativas, pregando a ruptura institucional, que, como se sabe, é o nome bonito usado para dizer golpe. Desde a decisão forte e pesada do Ministro Alexandre, uma pergunta se tornou recorrente na minha cabeça: o que tem os bolsonaros que o Jefferson e o Daniel não têm? Como é difícil dar conta de tanta coisa, dada a produção frenética de fatos escabrosos no braZil, lembro que o deputado Daniel Silveira foi preso por determinação do mesmo Alexandre de Moraes, por ter feito ataques ao Supremo e aos seus integrantes, ou seja, a mesma motivação que levou o presidente do Partido Trabalhista Brasileiro à cadeia agora.

Já li que a prisão de Roberto Jefferson é um recado aos bolsonaros. Será que não há uma inversão aí? Rauzito também disse, sem o Marceleza, que “tem gente que passa a vida inteira travando a inútil luta com os galhos, sem saber que é lá no tronco que tá o curinga do baralho”. Mandar prender figurante parece o mesmo que cortar galho pra matar a árvore (diversionismo?…). Sei que prender um presidente da república não é o mesmo que prender um coadjuvante, mas a essência dos fatos não muda. Bolsonaro, o presidente, também ataca as instituições e os ministros do Supremo diariamente, e ameaça com golpe com uma frequência nunca vista, assim como faz a familícia. Só que Jefferson e o Daniel não têm o aparelho institucional sempre a postos para sua defesa, o que comprova que são coadjuvantes. De luxo, mas coadjuvantes. Não fosse, certamente o PGR teria saído em sua defesa, ou o presidente do Congresso, como fazem essas duas figuras sempre que o nome Bolsonaro aparece na linha de tiro.

Então, aceitando por mero efeito de argumentação, que ainda não haja elementos suficientes para a prisão do Bolsonaro Messias, talvez seja o momento de perguntar porque os bolsonaros filhos ainda estão livres? E os generais do staff bolsonarista, por que ainda andam livres, leves (alguns nem tanto) e soltos? Talvez uma pequena lista ajude neste momento:


–  “Uma afronta à autoridade máxima do Poder Executivo e uma interferência de outro poder na privacidade do presidente da República e na segurança institucional do país […] poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” (General Heleno, maio de 2020);¹

– “Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta, ela pode ser via um novo AI-5” (Eduardo Bolsonaro, outubro de 2019);

– “Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos” (Carlos Bolsonaro, setembro de 2019).

O que essa gente toda tem, então, que falta a Jefferson e Daniel? Um Aras ou um Lira? Sim, mas talvez haja pedra nesse feijão. Enquanto se manda prender no segundo escalão, a boiada vai passando e os direitos trabalhistas, por exemplo, vão acabando. Não esqueçamos das ligações do ministro com o liberalismo tucano, enfim. E aí começa a fazer sentido de novo o refrão: “sei até que parece sério, mas é tudo armação…”

¹ O que os celulares da famiglia teriam de tão poderoso para abalar as estruturas da república?

*Imagem de destaque copiada de https://passandonahoradf.com.br/2021/04/18/tudo-pronto-pra-ffaa-agir-bolsonaro-da-sinal-david-salomao-e-roberto-jefferson-convocam-exercito/. Acesso em: 17 de ago. 2021.

Padrão
Política

Hora de derrubar mitos

Não foi ontem que as pessoas progressistas e amantes das liberdades e da democracia descobriram que as coisas no Brasil vão de mal a pior. Nem foi no golpe engendrado para tirar do governo uma presidenta legitimamente eleita. Presidenta, aliás, que soube que não levaria a cabo o segundo mandato no exato instante em que o TSE proclamou a sua reeleição, em 2014. Naquele momento, o candidato derrotado anunciou que as forças conservadoras tornariam o país ingovernável. E cumpriu o prometido. Só que também não foi naquela ocasião que passamos a entender o que estava acontecendo. A gênese de tudo está no aeroporto, quando a socialite começou a encontrar o porteiro do prédio em Paris, e na Universidade, quando o filho preto da empregada pobre começou a dividir a sala de aula com a filha do patrão. (Sobre isso, recomendo “Que horas ela volta?”, filme brasileiro de 2015, dirigido por Anna Muylaert e magnificamente estrelado por Regina Casé.) “A Casa-Grande pira quando a Senzala vira médica”, foi o que disse a estudante Bruna Sena, ao ser aprovada em primeiro lugar para Medicina na USP, vestibular mais concorrido do país. E num país de elite historicamente escravocrata, como é o  nosso, quando a Casa-Grande pira, as consequências podem ser trágicas.

A eleição de um projeto autoritário e com matizes notadamente fascistas, porém, não é fruto somente de uma insatisfação das elites. Acreditar nisso é seguir trilhando o caminho de um erro que já provocou um resultado devastador. É preciso ir além, é preciso olhar para o nosso interior e detectar precisamente o ponto em que começamos a nos equivocar. A avaliação mais precisa do contexto político que se estabeleceu nas eleições deste ano não foi feita por um cientista político e nem por um jornalista, mas pelo rapper Mano Brown. E aconteceu durante um evento do próprio Partido dos Trabalhadores. Ao dizer que o PT deveria voltar a dialogar com as bases, Mano Brown não fez mais do que a crítica que o próprio partido deveria ter feito internamente há muito tempo e que vinha sendo feita, a bem da verdade, por alguns quadros históricos, como Olívio Dutra. Mas da mesma maneira que a dura reprimenda feita corajosamente por Mano Brown às vésperas do pleito não significou que ele estivesse “passando para o outro lado”, ou “dando um tiro no pé”, como tentaram dizer algumas figuras petistas de expressão, também as reflexões de Olívio não o afastaram das lutas democráticas. Pelo contrário, Olívio, do alto de seus mais de 70 anos, esteve engajado de corpo e alma na campanha pró-Haddad e Manuela, e no último sábado esteve de casa em casa em alguns bairros populares de Porto Alegre, fazendo a luta pela “virada”. E as palavras de Mano Brown, que certamente foram extremamente incômodas a quem sempre fechou os olhos para os erros cometidos pelo PT, estimularam a militância a seguir firme na busca por votos possíveis de inversão. Como depoimento pessoal, posso dizer que conquistei alguns votos para a chapa Haddad/Manuela a partir do discurso dele, pois algo que sempre incomodou e irritou os antipetistas é a incapacidade do partido em assumir os seus próprios erros. Quando o partido reconhece que não foi perfeito, as barreiras e restrições começam a ser relativizadas.

Todavia, a coisa toda não se explica somente por essas constatações. Há que se analisar também o caso do antipetismo, que teria levado milhões de brasileiros e brasileiras a eleger Bolsonaro e sua plataforma antidemocrática pela via da exclusão e da rejeição. Essa é uma meia verdade. Fosse a intenção do eleitorado bolsonarista tão somente barrar o PT, havia outras possibilidades, à direita e ao centro, ainda no primeiro turno. Alckmin, Marina, Amoedo e o próprio Ciro eram candidaturas viáveis a combater a ascensão petista, mas foram preteridas em favor de um discurso extremado, que agradou, sim, ao povo ávido por vingança. Eu escrevi vingança. O que pode agradar mais a chamada classe média do que a promessa de poder se vingar de quem lhe ameaça a segurança? E nesse caso, pouco importa se quem promete nada fez pela segurança pública nas últimas trés décadas, mesmo ocupando um cargo político importante. O cidadão mediano, que vive com medo de ser assaltado na rua, é seduzido pelo canto da sereia que representa a possibilidade poder usar uma arma de fogo para se defender. E empolgado com essa ideia, certamente não vai buscar informações sobre o que realmente está por trás dessa conversa, sobre que interesses serão contemplados com isso. Sequer essa pessoa vai se informar sobre o que acontece em países cuja posse e porte de arma de fogo é facilitada, como os EUA. A ele basta sonhar que vai poder dar um tiro na cara do assaltante, afinal, bandido bom é bandido morto. As causas que levaram esse bandido ao mundo da criminalidade também pouco lhe interessam, pois é suficiente que ele esteja morto. Se morrer um inocente, paciência, o próprio Messias já aliviou essa culpa. Ou seja, se há um componente de antipetismo na eleição do capitão, há muito mais do lado Mr. Hyde que habita o interior de cada “cidadão de bem”, que clama por justiça, mas quer ter o mórbido prazer de executá-la com as próprias mãos. Esse é o pensamento de quem reduz a luta pelos direitos humanos a uma defesa da bandidagem e é o pensamento que elegeu um projeto que afirma abertamente legitimar o justiçamento.

Conforme muito bem observou um amigo, Marcelo Cougo, o eleitor e a eleitora de Bolsonaro são as únicas pessoas que acreditam que ele não vai fazer o que prometeu. Isso leva a uma situação surreal, em que o voto é dado pela certeza do não cumprimento das promessas de campanha. Pessoas minimamente politizadas e conscientes votam em candidatos/as na esperança de que cumpram com o que se comprometeram, caso sejam eleitos/as. Algumas até mesmo deixam de votar em qualquer candidatura por entenderem que nenhum/a agente político é capaz ou tem interesse em cumprir as suas promessas. Mas votar num candidato porque ele não vai cumprir o que prometeu parece ser um caso singular na história democrática do Brasil e talvez do mundo. Ao longo da campanha, circularam inúmeros vídeos que mostram Bolsonaro afirmando com convicção as suas ideias de defesa da tortura e de admiração por torturadores, por exemplo. E não foram falas descontextualizadas. Estão aí disponíveis no Youtube. Também é da própria boca do presidente eleito que se ouviu a exortação à expulsão dos adversários políticos do país, assim como a defesa da tese de que o voto não pode mudar nada, que é preciso um golpe e que se for necessário matar alguns inocentes, não tem problema. Não vou me dar ao trabalho de incluir aqui os links para essas declarações, porque é só jogar no Google. O bolsonarianismo, porém, insiste em dizer que não é bem assim, que ele não disse o que disse, embora esteja tudo gravado e registrado, ou que ele disse isso em contexto diferente, ou ainda pior, que ele estava só brincando. Se alguém se dispõe a brincar de elogiar o maior facínora e mais sádico torturador da história do Brasil no momento mais crítico da história política recente do país (o voto no processo de impeachment da Presidenta Dilma), a coisa é ainda muito mais grave.

Com isso quero dizer que o processo que levou Bolsonaro ao cargo político máximo da República não se explica pela ideia simplista do antipetismo, e também afirmo que o próprio antipetismo não se explica pelas próprias mazelas do Partido dos Trabalhadores. Todos esses elementos estão presentes, por óbvio, na eleição de Bolsonaro, mas o que está na origem de tudo é o desejo de vingança, o ódio que o “cidadão de bem” passou a nutrir por tudo aquilo que ele não pode explicar racionalmente, seja por incapacidade mesmo ou por preguiça intelectual. Ao fugir da análise dos fatos geradores das desigualdades sociais e optar por trilhar o caminho fácil da eliminação da “bandidagem”, o eleitorado bolsonarista escancarou a sua face fascista, gostem ou não os meus amigos e as minhas amigas que votaram no B17. A prova de que a luta não é anticorrupção é o elemento que se tornou simbólico dessa cruzada moralista: a camisa da CBF, uma entidade mergulhada na roubalheira e na corrupção. E a prova de que a questão central nunca foi a segurança é a falta (ou omissão) de conhecimento de que o presidente eleito não apresentou sequer um projeto na área da segurança pública em quase 30 anos de atividade parlamentar.

De um lado, então, cabe à esquerda e as forças do campo democrático uma reflexão séria sobre os próprios equívocos, e a união em torno de um projeto de resistência e reconquista do terreno perdido nas áreas sociais, a fim de que o projeto fascista representado pela eleição de Bolsonaro não consiga se consolidar. E ao eleitorado bolosonarista não assumidamente fascista (porque fascismo não se discute, se combate) cumpre fazer uma reanálise acerca do discurso de ódio que motivou a votação em massa na plataforma autoritária de um candidato que, agora eleito, tem sim as condições de cumprir tudo aquilo que prometeu durante a campanha e ao longo da sua trajetória na vida pública. É preciso, em resumo, derrubar alguns mitos para que possamos recolocar o país no rumo de crescimento em que estava há pouco tempo. A minha esperança é que isso não seja um problema muito difícil de resolver, porque, como ouvi muito durante esses últimos tempos, se ficar ruim a gente tira…

Padrão