Política, Republicados

A Arena que não é pro futebol*

Nos últimos tempos, sempre que se fala em Arena neste Continente de São Pedro, a primeira ideia que vem à cabeça é a praça de esportes que está sendo erguida no Humaitá, que, paixões clubísticas à parte, parece ser uma obra muito bem construída. Entretanto, a minha preocupação atual é com outra ARENA, que se costuma grafar com letras maiúsculas.

Acho que todos devem saber, ou pelo menos deveriam, que a Aliança Renovadora Nacional – ARENA, congregou as forças “revolucionárias”, que a partir de 1964 implantaram no Brasil um sistema de trevas, conhecido como ditadura militar, anos de chumbo, regime de exceção etc. Pois esta ARENA era o partido o oficial do regime, que sufocou todas as outras manifestações ideológicas em qualquer nível. A saída para os contrários ao sistema linha dura era trabalhar na clandestinidade ou militar no partido de oposição autorizado pelo comando central da caserna, o MDB – Movimento Democrático Brasileiro. A partir do fim do regime autoritário, a ARENA dissolveu-se e gerou vários partidos, PDS, PFL, PP, DEM etc. O pluripartidarismo vigente no país permite (e até incentiva, em nome de certos interesses) o surgimento de partidos de programa e ideologia confusos, que geram alianças e apoios no mínimo esquisitos (Ana Amélia – PP, apoiando Manuela – PC do B). Essa confusão ideológica faz com que a divisão entre esquerda e direita soe um tanto quanto anacrônica aos meus ouvidos, embora ainda seja necessária, principalmente quando se pretende contextualizar as coisas.

De qualquer forma, no aspecto histórico, temos um partido, ARENA, que sustentou o regime repressivo, e que deu origem a diversas agremiações, dentro daquilo que o Brizola costumava chamar de “filhotes da ditadura”. Pois é esse partido que a jovem Cibele Bumbel Baginski, estudante de Direito da Universidade de Caxias quer reconstruir.

Quando ouvi as primeiras notícias sobre isso, não dei bola. Achei que era coisa de grupos neo-nazistas, neo-fascistas ou outros neos que andam por aí, que são perigosos, evidentemente, e precisam ser combatidos, mas que acabam não tendo o potencial necessário para um ato dessa monta. Todavia, a edição de 13 de novembro de 2102 do Diário Oficial da União, traz nas páginas 202 e 203 da Seção 3, a publicação do Estatuto da ARENA, que é um ato prévio ao recolhimento de assinaturas para a fundação de um partido. É isso mesmo, a guria publicou o estatuto do partido. Está lá, disponível para quem quiser conferir:

http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?data=13/11/2012&jornal=3&pagina=202&totalArquivos=240

Trabalhei durante um tempo na Biblioteca da Procuradoria Regional do Trabalho (cabe uma referência à excelente Bibliotecária, Sachi, para quem pedi auxílio para encontrar a publicação oficial) e sei que a publicação de uma matéria na imprensa oficial não é algo que se possa considerar muito barato. Há notícias que a Cibele levantou o dinheiro através de campanhas nas redes sociais. Isso mostra a força do projeto e aponta de forma inequívoca para o sucesso da empreitada.

Examinei o estatuto e destaquei alguns pontos sobre os quais acho interessante fazer algumas observações.

O artigo 1º define o partido e é, de certa forma, uma síntese de toda a proposta. O parágrafo 2º diz: “A ARENA possui como ideologia o conservadorismo, nacionalismo e tecno-progressivismo, tendo para todos os efeitos a posição de direita no espectro político, devendo as correntes e tendências ideológicas ser aprovadas pelo Conselho Ideológico (CI), visando a coerência com as diretrizes partidárias.”

A minha amiga Karen Pereira, jovem estudante, que eu conheço apenas pelo mundo virtual, me mandou um mail com um link para um texto de um professor de Relações Internacionais, Leonardo Dutra, publicado no clicrbs (http://wp.clicrbs.com.br/doleitor/2012/11/22/artigo-arena/?topo=13,1,1,,,13), que, entre outras coisas, diz o seguinte: “Apesar de despertar a repulsa de diversas camadas da atual sociedade brasileira acostumada à preponderância de ideias de centro-esquerda, a necessidade de representação do pensamento conservador é tão importante quanto a defesa da mudança na sociedade. É tão danoso para um país um governo de direita onde a esquerda é reprimida quanto um governo de esquerda, onde a direita não existe.”  E ainda: Como explicitado nos últimos pleitos, especialmente nas últimas eleições presidenciais, a inexistência de uma direita com representação política no país deixa sem voz uma parcela significativa da população, partidária da defesa da liberdade entre os cidadãos brasileiros, e pouco simpática ao atual esforço político no poder, que elegeu a igualdade como bandeira principal de seus programas políticos.”

Olha, embora não saiba em que instituição o professor leciona, creio que ele seja uma pessoa esclarecida e com condições de exercer o magistério. Entretanto, parece faltar-lhe uma visão mais acurada do panorama político brasileiro. Como ele pode dizer que o conservadorismo não está representado no país? Ali em cima eu falei apenas de alguns partidos de tendência reacionária. Examinando a composição das casas legislativas pelo Brasil afora, veremos que esses partidos representam uma parte muito significativa delas. O Rio Grande do Sul é representado no Senado por um parlamentar identificado com a esquerda (Paulo Paim), um com histórico de lutas sociais, mas que pertence a um partido que, não sendo o único, é hoje um verdadeiro balaio de gatos (Pedro Simon) e uma senadora direitista até a medula (Ana Amélia Lemos), defensora dos interesses da classe ruralista, que se elegeu graças ao poder do grupo jornalístico em que trabalhou a vida inteira, que não é outro senão a sucursal gaúcha daquele grande conglomerado que ajudou a sustentar o regime “revolucionário” de 1º de abril. Ou seja, um terço da bancada gaúcha do senado é de direita, o outro terço é indefinível e apenas um terço é claramente identificado com políticas marxistas. Fora isso, um dos parlamentares que mais tem espaço na mídia gaúcha é o senhor Onyz Lorenzoni, um dos caciques do DEM. E falo apenas do Rio Grande porque é a realidade que mais domino, mas no Brasil não é diferente, haja vista as pressões da turma do campo acerca do Código Florestal. Falta representatividade à direita? Por favor, professor… As palavras finais do trecho citado metem uma dúvida na cabeça: afinal, o professor acha mesmo bom a existência de um partido que represente os grupos pouco simpáticos “ao atual esforço político no poder, que elegeu a igualdade como bandeira principal de seus programas políticos.” Ora, a igualdade não é a aspiração máxima da sociedade? A quem, interessa, então, barrar um projeto que tem como finalidade aquilo que todos os brasileiros desejam e que é, inclusive, um dos primados da Constituição Federal?

Seguindo adiante no estatuto, vemos que o parágrafo 3º do artigo 1º prevê que “A ARENA, em respeito a convicções ideológicas de Direita,não coligará com partidos que declaram em seu programa e estatuto a defesa do comunismo, bem como as vertentes marxistas (…).” Até aí nenhum problema, a definição é plenamente coerente com os ideais do partido. O problema é o artigo 2º, que no item IV diz que a ARENA tem por objetivos “incentivar o desenvolvimento da cidadania, opinião crítica e social, a formação da personalidade dos jovens (…)” Tudo bem que não coligue com comunista, mas para estimular a opinião crítica e social é necessário que se apresentem de forma clara e isenta as correntes contrárias ao pensamento do partido, e qualquer um que ler com atenção o citado § 3º vai entender que ali está, nas entrelinhas, que o comunismo, o marxismo, a esquerda, enfim, não presta. Coerência: 0!

O item VI do mesmo artigo diz: “Resguardar a soberania nacional, o regime democrático e o pluralismo político de toda a forma de unanimidade de pensamento ou hegemonia política.” Desconfio que a moça e seus seguidores desconhecem o que aconteceu no Brasil entre 64 e 85. Como pode alguém pregar o pluralismo de ideias justamente tentando recriar um partido que elegeu o pensamento único como um de seus mais eficientes mecanismos de manutenção no poder? Tem algo errado aí…

Já na parte do Programa Nacional de Atuação, no item referente aos Direitos Humanos (?), o estatuto diz que o partido vai buscar a “Abolição de quaisquer cotas raciais, de gênero, ou condições ‘especiais’” Bueno, primeiro, falta esclarecer o que são condições “especiais” (está entre aspas no original). Há quem defenda (eu!) e há quem seja contra as cotas. Sem problema. Fica engraçado é quando uma pessoa é contra os programas sociais, propõe a (re)criação de um partido que tem entre seus objetos extingui-los, mas está na universidade por intermédio do PROUNI. Sim, meus amigos, a guria é beneficiária do PROUNI e acha que não tem nenhuma contradição nisso. Eu é que não entendo nada de nada mesmo…

Logo em seguida, o partido defende a maioridade penal aos 16 anos, outro tema polêmico, que não vou abordar agora, e abre um campo para falar de Educação e Cultura. Aí eles querem o “Retorno ao currículo escolar das disciplinas de Educação Moral e Cívica e Latim.” Eu e muitos dos que vão ler este meu escrito, frequentamos o colégio na época da ditadura. Na faculdade, ainda como resquício do governo dos milicos, estudei Realidade Brasileira, que era o nome novo de Estudos de Problemas Brasileiros. Sobre o que eu vi na faculdade, desnecessário falar, porque na época eu já tinha melhores condições de discernimento. Mas na Moral e Cívica eu “aprendi” que o amor à pátria é um “sentimento” imposto e obrigatório, não uma manifestação espontânea; “aprendi”, também, que a família é a célula nuclear da sociedade. Será que a nova Moral e Cívica vai aceitar as uniões homoafetivas como famíliase, portanto, células nucleares da sociedade?

Sobre o Latim, vejam o que disse um dos comentadores do texto do professor, citado ali em cima: “Exceto pela aula de latim (base para entender não só o português corretamente mas também o italiano, francês, espanhol e quiçá o inglês), de resto é puro nonsense.” Gostaria que essa pessoa explicasse um pouquinho melhor o que é entender corretamente o português e no que o latim pode ajudar nessa tarefa. Salvo se o cara pretende ler o Camões ou as coisas escritas antes dele, o latim vai ajudar muito pouco a entender a(s) língua(s) portuguesa(s) falada hoje no Brasil. Ressalvados, é claro, os interesses científicos, como os dos linguistas, mas isso é outra conversa. Talvez para entender este “quicá”, que só ele ainda deve usar, talvez para isso o latim também deva servir. De resto, para estudar inglês, olha, o latim está para o inglês moderno (acho que é esse que interessa, né?!) assim como o bacalhau está para o vatapá. Aliás, essa me lembrou uma que o Doutor Cláudio Moreno me disse em resposta a uma crítica que fiz a uma das suas colunas, há alguns anos: “Essa foi de fazer chorar bacalhau em porta de venda!”)

Por fim, na parte destinada à Soberania Nacional, a “nova” ARENA entende que é necessário “reaparelhar as Forças Armadas, tirando-a do seu sucateamento e pouco efetivo.” A moçoila acha que a caserna está mal equipada e com pouca gente? Fico com medo do que ela dirá se um dia entrar num posto de saúde do SUS…

Bueno, já falei demais. Vou deixar que vocês reflitam sobre essa coisa toda. Antes de encerrar, porém, quero dizer que tive a oportunidade de ler, há alguns dias, o relatório da CPI que apurou a morte do sargento do Exército Manoel Raymundo Soares, que, em 1966, apareceu boiando perto da ponte do Guaíba, com as mãos amarradas pra trás, o que fez com que o episódio ficasse conhecido como “O caso das mãos amarradas”. É considerado o primeiro crime cometido pela ditadura oficialmente reconhecido (não pelos homens da farda, claro, porque eles nunca cometeram nenhum crime). O documento é impressionante, e eu posso falar mais em outra ocasião, mas quero destacar apenas um pequeno trecho, que diz muito sobre o partido que dona Cibele quer trazer de volta. Na época da CPI, que aconteceu antes da instituição do AI-5, logicamente, uma comissão do Instituto dos Advogados do Brasil foi examinar algumas instalações do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e a Ilha do Presídio, onde o sargento Manoel passou mais ou menos cinco meses, e de onde o seu corpo foi arremessado nas águas do Jacuí. O relatório do IAB, enviado à Procuradoria Geral do Estado, atesta, entre outras coisas, que “Nos campos de concentração da Alemanha nazista matava-se com mais humanidade os judeus que eram remetidos às Câmaras de Gás de que o infeliz sargento que foi jogado às águas encapeladas e frias do Rio Guaíba, do sombrio agôsto [grafia original]. A êste [idem] foi primeiro ministrado o ‘tratamento prévio’ que durou de março, data da prisão, a agôsto, data de sua morte.” (Série “Memórias do Parlamento”, agosto de 2011.)

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 27/11/2012.

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Educação, Legislação, Política, Racismo, Republicados

Universidade: universalismo de fato*

Tema de extrema relevância, com grande repercussão social, apaixonante, capaz de provocar debates e discussões acaloradas, que nem sempre primam pela racionalidade dos argumentos, isso tudo e muito mais é a política de reserva de vagas para negros nas universidades públicas brasileiras, popularmente chamada de sistema das cotas raciais, uma das chamadas Políticas de Ação Afirmativa, que, ao contrário do que se pensa comumente, deita suas raízes na Índia, em sua luta pela libertação do jugo britânico, e não nos Estados Unidos da América.

Há negros que são contrários, há brancos que as defendem; há quem diga que isso é coisa de “gente de esquerda”, na forma mais pejorativa aplicável à expressão, e os que apontam para uma omissão do Estado em problemas maiores, dizendo que ele usa as cotas apenas para dar uma satisfação à sociedade. Enfim, opiniões e posições há para todos os lados e é natural que cada um tenha a sua, ou as suas. O que me preocupa é quando as manifestações surgem de pessoas que exercem certo poder no contexto social e aqui me refiro especificamente aos jornalistas e comunicadores, que têm largos espaços nos órgãos de imprensa e não raro confundem liberdade de imprensa, tão cara ao regime democrático, com um certo tipo de libertinagem, que lhes permite emitir opiniões e sentenças peremptórias sobre os mais diversos assuntos, muitas vezes sem ter nenhum embasamento para isso. Para não me alongar muito, apenas cito como exemplos o Rogério Mendelski, cujas manifestações preconceituosas e sectárias não devem provocar surpresa em mais ninguém, e o pretenso intelectual David Coimbra, para quem tudo se resolveria com um sistema de cotas para as escolas públicas (está lá no blog dele, em 18 de maio).

Esse tipo de manifestação me levou a escrever sobre o assunto, que me interessa há muito tempo e sobre o qual procuro ler tudo o que me chega às mãos. Pretendo falar brevemente sobre um dos tantos argumentos usados pelos que são contrários ao sistema de cotas e que me causa um pouco de perturbação, que é a ideia que as cotas raciais deveriam ser simplesmente substituídas pelas cotas sociais, privilegiando o aspecto econômico, que, segundo alguns, nivela brancos e negros na pobreza. Na minha ótica, como se verá adiante, não é assim que a coisa funciona.

Começo por examinar o termo “universidade”, cujo primeiro significado no dicionário Hoauiss é “qualidade ou condição do que é universal”, página 2.807, da 1ª edição, de 2001. A segunda definição faz referência à ideia de instituição de ensino. Ou seja, a universidade, como instituição de ensino, deve, na medida do possível, como denota a origem da sua denominação, fazer uma reprodução do universo social, e esse inclui brancos, negros, amarelos, vermelhos, etc. Todavia, não é preciso muita pesquisa de campo para se verificar que não é essa a realidade da UFRGS, que é a que nos interessa no momento por ser a mais próxima de nós. Cursei alguns semestres de Letras e me lembro de pouquíssimos colegas negros. A bem da verdade, apenas de uma. Pobres, ou pessoas com condições econômicas desfavoráveis, havia em número considerável, se bem que longe do que talvez seja o ideal. Por outro lado, quando a minha esposa estava na faculdade de Odontologia, nunca vi um negro que fosse seu colega. E ela própria pode servir como representação de alguém que veio de uma classe social pouco ou quase nada privilegiada e chegou à universidade. De novo se observa que pobres há, ainda que poucos, mas negros inexistem. Conheci, em diversas áreas, inclusive na Faculdade de Letras, professores e profissionais que vieram de famílias pobres. Não me lembro de nenhum negro. Isto é, ainda que longe do que se espera, as classes economicamente desfavorecidas têm alguma representação na universalidade da universidade, com o perdão da redundância. Os negros não têm nenhuma. Pelo menos não que se possa considerar como tal.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal pôs fim a uma discussão sobre a constitucionalidade do sistema de cotas. Era o julgamento de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo DEM – Democratas – partido sucedâneo da ARENA –Aliança Renovadora Nacional -, de saudosa memória para alguns, que tem um programa extremamente conservador e que congrega em seus quadros políticos e militantes que defendem a pena de morte, a esterilização em massa, etc. Ideologias à parte, para quem tiver interesse, sugiro a leitura dos votos dos ministros, que está disponível no site http://www.stf.jus.br, e, no caso de desejarem um aprofundamento, há textos bastante esclarecedores,  com ótimas remissões, disponíveis em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa.

O professor Hélio Santos, doutor em Economia e Administração, e negro, tem uma frase muito significativa e sugestiva: “O problema foi o dia 14.” De fato, se pensarmos no dia 13 de maio como um marco da disseminação da luta contra o preconceito racial, tudo fica muito bonito. Mas e o dia 14? O que aconteceu a partir daí? Negros libertos? Sim! Trabalho, terras, bens, dignidade, condições mínimas para uma vida decente? NÃO!! E observem que não foi por questão estilística que optei por usar o termo libertos quando poderia dizer livres. Há uma sutil distinção entre libertos e livres. Os negros, ex-escravos, estavam, pós-abolição, fisicamente livres, mas na prática apenas deixaram de morrer pelo açoite para morrer de fome, pois não lhe foram dadas as mínimas condições para que pudessem levar uma vida que se pudesse dizer humana. Os que sobreviveram deram origem aos guetos e favelas que existem e se proliferam ainda nos nossos dias, em nossa sociedade “livre do preconceito racial”. E hoje estamos distantes apenas 124 da Lei Áurea, o que significa dizer que há entre nós descendentes diretos de escravos. Bisnetos, netos, até mesmo filhos. Eu, que não tenho ascendentes negros, senão que talvez remotamente, posso saber com exatidão das dificuldades que sente um desses, cuja origem escrava está logo ali, há pouco mais de um século? Obviamente não. Por outro lado, posso me considerar exatamente igual, no sentido de ter as mesmas condições de vida, como preconiza a Constituição Federal (“Todos são iguais perante a lei.”) a um negro com esse histórico? Também não. Diante dessa simples constatação, cai por terra o mito da igualdade racial no Brasil.

Vejamos o que diz o psicanalista Contardo Calligaris:

 

“Em meus primeiros contatos com a cultura brasileira, acreditei inevitavelmente ter encontrado o paraíso de uma democracia racial. (…) Mas essa sensação inicial não demorou muito tempo, pois logo tive a oportunidade, ao me estabelecer no Brasil, de analisar alguns pacientes negros. Bastou para descobrir imediatamente que minha impressão de uma paradisíaca democracia racial devia ser perfeitamente unilateral. (…) O mito da democracia racial é fundado em uma sensação unilateral e branca de conforto nas relações inter-raciais. Esse conforto não é uma invenção. Ele existe de fato: é o efeito de uma posição dominante incontestada. (…) Sonhar com a continuação da pretensa ‘democracia racial brasileira’ é aqui a expressão da nostalgia do que foi descrito antes, ou seja, de uma estrutura social que assegura a tal ponto o conforto de uma posição branca dominante, que o branco – e só ele – pode se dar ao luxo de afirmar que a raça não importa.” (CALLIGARIS, Contardo. “Notas sobre o desafio para o Brasil.” In: Anais do Seminário Internacional “Multiculturalismo e racismo: o papel da Ação Afirmativa nos estados democráticos contemporâneos.” Brasília: Ministério da Justiça/Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 1997. p. 243-245.)

Em 2004, a UFRGS convidou o então presidente da República Popular de Moçambique, Joaquim Alberto Chissano, um homem com um grande currículo de lutas pela emancipação dos países africanos, para ministrar uma Aula Magna, com o tema Cooperação África e Brasil no âmbito da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD). E vejam  o que ele disse:

“(…) E quero destacar um ponto que até pode ser polêmico mas eu sempre gostei de dizer coisas chocantes, inclusive para os meus colegas brasileiros presidentes da República e ministros das Relações Exteriores. Dessa forma, tenho ouvido que o Brasil é um país multirracial, um país onde não há racismo, um país de igualdade, onde cada habitante se sente com sangue brasileiro. Porém, muitas vezes me senti incomodado com essas expressões pois me pareciam não corresponder à realidade. A primeira vez que aqui estive, fui a Bahia e lá vi muito negro na rua, vi muito negro no mercado e Salvador me pareceu uma parte da África. Depois, tive encontros, reuniões de ‘business’ e senti-me, de novo, na Europa. Lá não vi nenhum negro, não senti a igualdade, o sangue brasileiro estava camuflado.” (“Cooperação África e Brasil no âmbito da nova parceria para o desenvolvimento da África (NEPAD): aula magna UFRGS 2004/ Joaquim Alberto Chissano”. – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.)

            As palavras do mandatário moçambicano, pessoa insuspeita para tratar do assunto, escancaram a realidade brasileira, que muitos tentam mascarar. Nas ruas, nos locais públicos, onde seria impossível evitar a convivência, os negros estão por todas as partes. Nos locais restritos, porém, palcos das discussões políticas e econômicas, que decidem como vai ser a vida da população, eles estão alijados da participação. Que “democracia racial” é essa que só se exerce onde é impossível evitar a sua prática? Mesmo lá, nos locais em que os negros estão, é pouco provável que os “democratas raciais” estejam à vontade dividindo seus espaços com essa “subclasse de cidadãos”.

Sobre o que diz o David Coimbra, referido antes, que a solução está na oferta de vagas reservadas para estudantes oriundos de escolas públicas, basta que se faça um pequeno resgate histórico de alguns anos, nos tempos em que o nível da escola pública era considerado bom, para que observemos que naquela época os negros não tinham acesso ao ensino proporcionado pelo Estado, pois não podiam dividir o espaço com os brancos. E isso não faz muito tempo. Expandindo a questão, há que se dizer que uma coisa são as cotas sociais e outras são as de recorte racial. Elas têm base em problemas diferentes e, consequentemente, visam à correção de distorções distintas. Se o problema fosse meramente econômico, me parece que seria razoável que o “Dr.” Coimbra defendesse também a reserva de vagas em concursos públicos não para portadores de deficiência e mulheres, mas apenas para portadores de deficiência pobres e mulheres pobres. Observe-se que temos aqui quatro tipos diferentes de discriminação: contra portadores de deficiência, contra mulheres, contra pobres e contra negros. Cada tipo com as suas particularidades, o que enseja a adoção de iniciativas próprias para combater cada um deles.

No início do ano, quando se discutia a adoção de reserva de vagas para negros nos concursos públicos estaduais no Rio Grande do Sul, a Procuradoria-Geral do Estado emitiu extenso parecer, do qual resgatei o trecho a seguir:

 “Diga-se, ainda, que as cotas raciais, se por um lado não são incompatíveis com as denominadas cotas sociais, por outro lado não as substituem nem por elas podem ser substituídas, sendo possível, isto sim, associação de critérios entre estas e aquelas. Mas há que se advertir que as cotas étnico-raciais, especificamente as dirigidas às pessoas negras, se justificam mesmo diante da possibilidade de adoção do critério de cotas sociais. Pois como demonstram os dados estatísticos e demais estudos sociológicos aqui trazidos ou referidos, há na realidade da exclusão e de desigualdades sociais uma perversa tônica em desfavor das pessoas negras. Mesmo dentro das margens de maiores desigualdades em que também pessoas brancas são abarcadas, as pessoas negras são as mais inferiorizadas, as mais discriminadas e as que estão submetidas às maiores desigualdades.

Por outro lado, as cotas raciais não têm objetivo único de atacar as desigualdades sofridas por negros e negras em seu viés econômico, senão que para além disso, buscam também sanar os aspectos culturais mórbidos de discriminação fundados no preconceito de cor, que é onde residem muitas das determinantes da própria desigualdade social e econômica.”  (Carlos César D’Elia, Procurador do Estado, Coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Parecer nº 15.703/PGE, 16/03/2012. www.pge.rs.gov.br/upload/estudosdireito1[1]cotasraciais.pdf.)

                Ou seja, um estudo abalizado, feito por uma entidade da estatura da PGE/RS, aponta que a discriminação racial vai além da questão econômica. Brancos pobres são segregados, mas negros pobres são mais ainda. Brancos ricos têm situação favorável na sociedade, negros ricos, porém, por maior destaque que obtenham, não escaparão dos olhares desconfiados. Alguém se lembra daquele caso, ocorrido há alguns anos, em que dois jovens negros que corriam para evitar o atraso para o vestibular da UFRGS foram abordados por brigadianos e acabaram de fato perdendo a prova? Eles eram filhos de um engenheiro, portanto a sua situação social certamente não era das piores. O que fez com que os policiais desconfiassem deles? Fossem brancos, o fato teria ocorrido? Foi a triste consumação daquela piada que diz: “branco correndo está atrasado, negro correndo está fugindo da polícia.” Diante dessa realidade, cotas sociais resolveriam o problema?

                Quando se diz que um aluno cotista está tirando a vaga de outro que apresentou melhor desempenho e por isso o sistema é injusto, apenas se está buscando uma simplificação do problema. Como bem observou o Ministro Marco Aurélio Mello, no seu voto por ocasião da ADPF citada:

“A meritocracia sem ‘igualdade de pontos de partida’ é apenas uma forma velada de aristocracia”. 

Ou seja, não basta apenas criar uma situação fictícia de igualdade, pela qual negros e brancos concorreriam nas mesmas condições. É preciso que essa igualdade seja alcançada lá nos pontos de partida e as cotas podem representar um instrumento muito eficaz para que se logre êxito nesse objetivo. A conta de mais negros nas universidades emana seus reflexos na sociedade, com mais negros com maior nível de esclarecimento em suas comunidades, que serão capazes de transmitir valores mais elevados aos seus pares. Em algum tempo teremos mais professores negros, mais médicos negros, mais dentistas negros (a propósito, alguém conhece algum?), enfim, mais negros ocupando posições de destaque e prestígio social e, como consequência disso, as práticas de preconceito e segregação tenderão a ser enfraquecidas.

                No mesmo sentido da argumentação do Ministro Marco Aurélio, está o posicionamento do renomado jurista Dalmo de Abreu Dallari:

 

“O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os primeiros em situação de privilégio, mesmo que sejam socialmente inúteis ou negativos.” (DALLARI, Dalmo de Abreu. “Elementos da Teoria Geral do Estado.” 25ª ed. São Paulo: Saraiva. P. 309. In voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186, em 25/04/2012.)

                Defendendo a adoção de medidas que, embora aparentemente contrárias ao princípio constitucional da igualdade formal, que é fictício e precário diante da realidade social, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos diz:

 

“(…) temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.” (SANTOS, Boaventura de Sousa. “Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural.” Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P.56. in voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186, em 25/04/2012.)

                      Não basta que sejamos iguais perante a lei. É preciso que sejamos iguais perante a sociedade, visto que não há um fator genético de diferenciação entre negros e brancos, segundo o qual estes supostamente teriam maiores aptidões ao desenvolvimento intelectual. É o que diz o representante da Fundação Ford, Jean Dassin:

 

“Em nove anos de funcionamento, o IPF comprovou definitivamente que talento intelectual e compromisso social abundam nas comunidades marginalizadas de todo o mundo em desenvolvimento e que o acesso à educação superior pode ser ampliado sem prejuízo dos padrões acadêmicos.” (DASSIN, Jean. “Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação da Fundação Ford.” In: “Acesso aos direitos sociais: infância, saúde, educação, trabalho.” São Paulo: Fundação Ford/Fundação Carlos Chagas. 2010.)

                Assim, a ideia que defendo, cuja validade pretendi certificar com a argumentação feita, é que as cotas sociais e raciais não são excludentes. Pelo contrário, elas se complementam e devem ser adotadas até o momento em que as discriminações sociais de toda a ordem tenham sido erradicadas, no caso particular do preconceito pela cor, que a democracia racial deixe de ser uma ficção jurídica e passe a ser uma realidade.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça Pra Baixo, em 26/6/2012.

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