Direitos Humanos, Ideologia, Mídia, Sociedade

Tá lá o corpo estendido no chão: ou a arte de morrer na contramão atrapalhando o tráfego

Quando Danuza Leão lamentou o risco de encontrar o porteiro do prédio no aeroporto de Paris (https://www.geledes.org.br/o-perigo-de-dar-de-cara-com-o-porteiro-do-proprio-predio-danuza-leao-pede-desculpas-a-porteiros-e-leitores/), não estava expressando uma frustração meramente pessoal por ver que os espaços privativos do high society estavam ameaçados. A lógica que pobre só frequenta a universidade quando está trabalhando na construção do prédio estava sendo subvertida e era preciso fazer uma espécie de manifesto dando conta da insatisfação coletiva de uma classe que não estava acostumada a dividir o seu espaço com gente estranha. Naquele momento, Danuza assumia o papel de porta-voz de uma elite que se importa antes em manter a distância da “turma de baixo” do que com os próprios prazeres que as melhores condições econômicas podem oferecer. Poderia impregnar a conversa de uma ortodoxia marxista e examinar se Danuza integra a classe que detém o capital e os meios de produção, ou se é a contragosto integrante de uma classe “especial”, que é explorada, mas se recusa a aceitar e se enxerga no topo da pirâmide econômica. Isso não interessa agora, porém.

Algum tempo antes, um raivoso jornalista vociferou num telejornal de Santa Catarina contra os malditos miseráveis que naqueles tempos podiam comprar carros. As palavras do inexpressivo apresentador são tão chocantes que vale a pena reproduzir uma parte:

Se um desgraçado destes é atrop… – e esta é a palavra – se um desgraçado destes é atropelado e feito sanduíche na pista, o que é que vão dizer? Este trânsito insano!! Insano é o cara que para o camarada [sic], para o carro, atravessa a BR pra ver o que aconteceu com outra pessoa. Então é isso: estultícia, falta de respeito, frustração, casais que não se toleram [!], popularização do automóvel, resultado deste governo espúrio [o ano era 2010], que popularizou pelo crédito fácil o carro para quem nunca tinha lido um livro. Com a arrogância típica de quem é dono da verdade, o encerramento foi com um: É isso! (O comentário completo pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=4tbOIuPU5Vs&ab_channel=CRSS3.) Não vou entrar em detalhes sobre os estudos que mostram que os acidentes automobilísticos mais violentos são provocados por máquinas com preços de 6 dígitos e até mais, que, obviamente, não são pilotadas pelos desgraçados miseráveis referidos pelo colunista. Também não vem ao caso.

Na última terça-feira, estava ouvindo o programa Sala de Redação, e na transição para o Gaúcha Mais, quando costumeiramente ocorre um bate-papo entre os integrantes dos dois programas, o apresentador Paulo Germano fez uma referência à nova orla do Guaíba. Querendo destacar a democratização das áreas públicas da cidade, ele disse que as classes mais altas vão frequentar a beira do rio por conta da excelência do local, do alto nível dos equipamentos de lazer que lá serão disponibilizados (quadras de esportes, pista de skate etc.), enfim, atraídas pelo que de melhor aquele espaço vai oferecer. As classes mais populares também vão estar lá, segundo o comunicador, mas por uma razão diferente: é de graça.

É interessante observar rapidamente os perfis das pessoas que fizeram os comentários aí de cima. Danuza Leão é uma típica figura da geração Bossa Nova, a alta sociedade da zona sul carioca que fez sucesso entre a segunda metade do século passado e o começo dos anos 2000; já Luís Carlos Prates é um jornalista anacrônico, do tipo que não atende mais os requisitos das editorias modernas, mas que ainda encontra espaço aqui e ali em programas sensacionalistas ou em veículos com fortes vinculações com os interesses e as ideologias das elites. São, portanto, duas pessoas com uma trajetória de vida mais longa, que atravessaram um período de transição da sociedade, com grandes mudanças nos comportamentos e nas tecnologias. Assim, de certa forma é possível contextualizar as posições que elas expressam, absolutamente injustificáveis, mas compreensíveis. Assustador mesmo é o caso do Paulo Germano.

PG, como é conhecido, tem a imagem requisitada para trabalhar no jornalismo “sério” contemporâneo: jovem, descolado, com uma bagagem cultural interessante, transita com desenvoltura por assuntos diversos, como políticas públicas, música e livros (o fato de dia desses ter associado Bukowski aos Beats é – ou não – irrelevante), e é interessado nos acontecimentos diários da cidade. Assim o portal da Famecos o descreve: “Espontâneo e carismático. Um jornalista humano que consegue exercer a empatia em tudo o que faz. Paulo Germano Moreira Boa Nova, nascido em 17 de dezembro de 1982, sonhava em ser um pop star de sucesso mundial, mas acabou encontrando no jornalismo o sentido que tanto desejava para a sua vida.” (http://portal.eusoufamecos.net/muito-mais-que-profissional-a-famecos-me-formou-como-gente/).

Deixando Danuza e Prates de lado, pelos motivos mais ou menos já referidos, me intriga saber o que leva um cara com o perfil de Paulo Germano a expressar uma ideia tão datada e tão preconceituosa como a de que rico procura qualidade e pobre procura preço baixo. Como Marilena Chauí e Brecht já nos ensinaram que tudo é política, não vou me furtar do “mimimi” de colocar essa desimportante fala do jornalista da RBS num contexto mais amplo, de sustentação dos padrões segregatórios da sociedade moderna, das discriminações de todas as ordens, do racismo estrutural, do sexismo, da violência de gênero, enfim, de tudo o que de mais podre tem na mente humana e que reverbera nas relações sociais. Pego carona em Tolstói pra pensar que ao descrever um fato da aldeia, Paulo Germano está se manifestando quanto à cultura universal. Porque o que está por trás de uma fala aparentemente inofensiva dessas é tudo que está aí a sustentar essa sociedade de exclusão em que vivemos. Pensar num espaço público que é frequentado por umas pessoas pela qualidade e por outras só por ser gratuito é naturalizar a existência de pessoas de categorias humanas diferentes. É o tipo de pensamento que faz estranhar a presença de uma pessoa preta e pobre em um museu de arte, mas permite passar batido pela ausência de pessoas pretas e pobres em meio às que frequentam o Cais Embarcadero a passeio; é o tipo de pensamento que acha bobagem a preocupação em eliminar termos e expressões racistas e sexistas da linguagem diária, sob o argumento que apenas refletem costumes arraigados; é o tipo de pensamento que permite ver que Paulo Germano, David Coimbra, Cristina Ranzolin, Daniela Ungaretti etc. etc. etc., dividem os espaços da linha frente dos veículos da maior rede de comunicação do Rio Grande do Sul com a Fernanda Carvalho, e só com ela de mulher negra, além de nenhuma PCD, e achar isso normal; é o tipo de pensamento que talvez imagine que não há mulheres trans nem homens assumidamente gays nas faculdades de jornalismo ou que essas pessoas não têm competência e qualificação profissional para estar na RBS; é o tipo de pensamento que acha normal que o Jornal do Almoço dê início à programação comemorativa dos 250 anos da capital da europa brasileira sem fazer referência às pessoas negras que construíram a grandeza da cidade e que, quando aparecem nas matérias, é apenas pelos aspectos pitorescos que são construídos, como histórias de superação e exceção, dignas de admiração por pena e não por respeito e reconhecimento aos seus valores; é o mesmo pensamento que não vai mostrar a luta das comunidades indígenas da zona sul da cidade para manter a posse das suas terras e a sua dignidade, e que vai naturalizar que mães e crianças guaranis sejam tratadas como pedintes no Brique da Redenção. Redenção, a propósito, que é um nome lindo e cheio de significados, mas não oficial, porque o que está nos registros da municipalidade homenageia os grandes heróis (e abigeatários) farrapos.

Enfim, queiram ou não, a frase aparentemente sem importância do Paulo Germano transporta essa pesadíssima carga de discriminações e violências, mesmo que talvez ele não seja, como provavelmente não é, conscientemente racista e elitista. E este é justamente o problema maior que enfrentamos: o racismo quase nunca é consciente, assim como quase nunca o são a homofobia, a misoginia e tudo mais. Raramente vamos ver alguém dizendo abertamente: “Eu sou racista!” ou “Eu sou homofóbico!” Mesmo Jair Bolsonaro, que disse preferir um filho morto a um filho gay e comparou quilombolas com bois, não se assume como racista e homofóbico e tem um exército de seguidores fanáticos sempre de prontidão para defendê-lo dessas – e de outras – acusações. Assim, fica cada vez mais evidente que enquanto não pararmos de “passar pano” para essas veladas manifestações de discriminação (refiro-me às do PG), naturalizando e dando pouca importância a elas, não avançaremos nos processos verdadeiramente civilizatórios (eu prefiro mesmo chamar de humanizatórios) que precisamos implementar.

Em um conversa recente sobre essas coisas, o meu amigo Douglas Ricalde me fez atentar para o artigo 7º da Lei 12.711, de 2012, que trata da política de cotas nas universidades. Este artigo determina que no prazo de 10 anos a partir da publicação da lei, o programa deve passar por revisão. Isso vai acontecer no ano que vem e há duas possibilidades: por ser ano eleitoral, talvez o Congresso se dobre às pressões que deverão ser feitas pelas pessoas e grupos interessados não só na manutenção do sistema quanto no seu aperfeiçoamento; por outro lado, dada a terrível configuração do parlamento, formado em grande parte por gente ligada a todo tipo de interesse espúrio, há forte chance da lei ser até revogada. No embate que certamente vai se travar, cabe à sociedade civil e ao campo progressista pensar a articulação desde agora para que esta não seja mais uma política de avanço social a ser aniquilada pelas forças nazifascistas que comandam o país.

*Imagem de destaque copiada de: <https://edisilva64.blogspot.com/2018/09/quando-o-pobre-adere-ao-discurso-do.html&gt;. Acesso em: 5 de set. 2021. (A imagem foi editada para que não apareçam os rostos das pessoas.)

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Ideologia, Imprensa, Mídia, Republicados

O chefe mandou*

Estivesse almejando obter grau de doutor, minha tese não poderia ser sobre a imbecilidade do criador da Mulher do Centroavante, posto que já falharia no quesito da originalidade. Também não é a primeira vez que eu falo deste sujeito por aqui. Parei de falar quando parei de ler. Hoje, porém, ao ler de passagem uma manchete do tabloide para o qual o jornalista e “escritor” David Coimbra trabalha, despertou-se a minha atenção, fazendo com que lesse a crônica do distinto “intelectual”.

O título é interessante e já deixa antever o teor do escrito: “A tal da elite branca”. E já começa entrando por cima da bola, pra usar uma expressão no clima da Copa. Diz assim: “Agora inventaram essa história de elite branca. Por favor. Uma das poucas vantagens que o Brasil realmente tem em relação a TODOS os outros países do mundo é a miscigenação. No Brasil, as etnias de fato se misturam, e o fazem com naturalidade.”

Ao dizer que “essa história de elite branca” é criação moderna, o cara que se propôs a escrever a história do mundo desconsiderou completamente a história do próprio país. Ou será que ele pensa que desde os 1500 a elite que dominou o Brasil era negra ou indígena? Ou, ainda pior, imagina o nosso insigne escriba que não há uma elite que domina o país? Pela amostra do pano, já se percebe que o cara escreve exatamente o que o patrão gosta que se escreva.

De acordo com o que diz o David, podemos depreender que aquela velha conversa do paraíso da democracia racial é verdadeira: “No Brasil, todos, japoneses, negros, alemães, anões, cafuzos, mamelucos, índios, brancos, azuis, todos são brasileiros.” O estranho é que um certo candidato ao Senado, talvez não por acaso colega de empresa, disse há poucos dias que há muitos índios que conseguiram evoluir e hoje são trabalhadores respeitados. O seu David contradisse o seu candidato, porque para este o índio precisa deixar de ser índio para ascender socialmente, então não é bem assim essa coisa de que todos são brasileiros.

Logo em seguida, toda a genialidade do cronista aflora, quando ele diz que o verdadeiro problema do Brasil é a discriminação social. Entende-se essa declaração se vinda de alguém que não deveria ter, por obrigação profissional, o dever de saber que a esmagadora maioria de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza no nosso país definitivamente não é da etnia que se pode chamar de branca. E diz ele que o que falta, na verdade, é oportunidade igual para todos. Ora, seu David, o senhor mesmo já se manifestou contrariamente à adoção da política de reserva de cotas com recorte étnico-racial. Decida-se, por favor! Se não há oportunidades iguais para todos, como o senhor mesmo reconhece, algo há que ser feito, certo? E nesse caso as cotas não servem? Parece, seu David, que o senhor quer que as coisas continuem a ser como eram, antes do processo de equalização social que se verifica no Brasil nos últimos anos, que é lento mas eficaz.

Tal qual uma metralhadora giratória, o cronista leva a questão para o futebol, quando também aí vai ser escancarado todo o seu ranço elitista (e não custa lembrar que ele é branco). “O ingresso do futebol é muito caro para o pobre. Oh! O ingresso para ver o Chico Buarque não é barato, nem o do show da Madonna, nem a entrada do cinema. Pelé não ganhava um milhão por mês. Fred ganha. Assim, ver Fred é mais caro do que era ver Pelé.”

Este é o argumento preferido dos que defendem o processo de elitização do futebol, pelo qual os torcedores oriundos das classes sociais menos favorecidas são alijados do direito de ver seu time no estádio: times bons são caros e, portanto, o ingresso deve ser caro. Não quero entrar nessa discussão específica, há muito material que desconstrói impiedosamente essa ideia nas publicações do Povo do Clube. Apenas quero dizer ao seu David Coimbra que o Chico Buarque não costuma fazer shows em estádios para milhares de pessoas, mas em teatros, numa lógica completamente diferente. Ainda assim, já soube de muitas apresentações do Chico a preços módicos e outras tantas com entrada franca. Já a Madonna, que lota grandes estádios mundo afora, proporciona um espetáculo bem diferente e menos frequente do que um jogo de futebol, inclusive com custos de produção muitíssimo mais elevados. Comparação infeliz esta, hein, seu David?

“A elite branca xingou a presidente. Quem garante que pobres e pretos não o fariam? Essa elite branca é ‘branca’ de fato? Existem ‘brancos’ de fato no Brasil? Será que existe mesmo essa divisão, pobres e pretos a favor do governo, elite branca contra? Esse é um governo só para pretos e pobres? Como é que se faz para conseguir um governo para todos?” Bah, seu David, não queria ter de precisar lhe explicar que a expressão “elite branca” é uma figura de linguagem. O senhor sabe disso, por certo, mas o chefe não lhe permite expressar ideia diferente, né? Talvez a dona do Magazine Luiza, que não é preta e nem pobre possa lhe dizer como é que se consegue um governo para todos.

E o seu David considera uma babaquice chamar a presidentA de presidentA e ainda diz que quem não acha isso estranho é um taipa. Caso encontrasse com ele, perguntaria se ele, que escreveu a História do Mundo em tomos, sabe quando a mulher brasileira adquiriu o direito ao voto; e qual a proporção de homens e mulheres em cargos de chefias nas empresas brasileiras; e se para exercer cargos iguais na iniciativa privada as mulheres recebem o mesmo salário que os homens; y otras cositas mas. Fica absolutamente claro que o seu David não entende nada – ou não quer entender – dos processos históricos que formaram a sociedade brasileira, eminentemente patriarcal e branca.

O penúltimo parágrafo escrito na coluna do seu David é um primor de manipulação, que faz um raio-x da maneira como a mídia podre, da qual ele é um expoente, costuma agir. A campanha do TSE, muito legítima, a propósito, visa a estimular a maior participação feminina na política institucional. E ponto! Ver além disso é querer passar uma imagem distorcida para a sociedade.

Sei que o David Coimbra tem sérios problemas de saúde, inclusive está nos EE.UU. Tratando da sua saúde. Não desejo (muito) mal a ninguém, por pior que seja, mas gostaria muito que a doença fizesse este cara refletir se vale mesmo a pena passar a vida, que pode ser bem curta, fazendo as vontades do chefe.

 

 

http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4531321.xml&template=3916.dwt&edition=24583&section=70

 

http://www.opovodoclube.com/

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 20/6/2014.

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Política, Republicados

A Arena que não é pro futebol*

Nos últimos tempos, sempre que se fala em Arena neste Continente de São Pedro, a primeira ideia que vem à cabeça é a praça de esportes que está sendo erguida no Humaitá, que, paixões clubísticas à parte, parece ser uma obra muito bem construída. Entretanto, a minha preocupação atual é com outra ARENA, que se costuma grafar com letras maiúsculas.

Acho que todos devem saber, ou pelo menos deveriam, que a Aliança Renovadora Nacional – ARENA, congregou as forças “revolucionárias”, que a partir de 1964 implantaram no Brasil um sistema de trevas, conhecido como ditadura militar, anos de chumbo, regime de exceção etc. Pois esta ARENA era o partido o oficial do regime, que sufocou todas as outras manifestações ideológicas em qualquer nível. A saída para os contrários ao sistema linha dura era trabalhar na clandestinidade ou militar no partido de oposição autorizado pelo comando central da caserna, o MDB – Movimento Democrático Brasileiro. A partir do fim do regime autoritário, a ARENA dissolveu-se e gerou vários partidos, PDS, PFL, PP, DEM etc. O pluripartidarismo vigente no país permite (e até incentiva, em nome de certos interesses) o surgimento de partidos de programa e ideologia confusos, que geram alianças e apoios no mínimo esquisitos (Ana Amélia – PP, apoiando Manuela – PC do B). Essa confusão ideológica faz com que a divisão entre esquerda e direita soe um tanto quanto anacrônica aos meus ouvidos, embora ainda seja necessária, principalmente quando se pretende contextualizar as coisas.

De qualquer forma, no aspecto histórico, temos um partido, ARENA, que sustentou o regime repressivo, e que deu origem a diversas agremiações, dentro daquilo que o Brizola costumava chamar de “filhotes da ditadura”. Pois é esse partido que a jovem Cibele Bumbel Baginski, estudante de Direito da Universidade de Caxias quer reconstruir.

Quando ouvi as primeiras notícias sobre isso, não dei bola. Achei que era coisa de grupos neo-nazistas, neo-fascistas ou outros neos que andam por aí, que são perigosos, evidentemente, e precisam ser combatidos, mas que acabam não tendo o potencial necessário para um ato dessa monta. Todavia, a edição de 13 de novembro de 2102 do Diário Oficial da União, traz nas páginas 202 e 203 da Seção 3, a publicação do Estatuto da ARENA, que é um ato prévio ao recolhimento de assinaturas para a fundação de um partido. É isso mesmo, a guria publicou o estatuto do partido. Está lá, disponível para quem quiser conferir:

http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?data=13/11/2012&jornal=3&pagina=202&totalArquivos=240

Trabalhei durante um tempo na Biblioteca da Procuradoria Regional do Trabalho (cabe uma referência à excelente Bibliotecária, Sachi, para quem pedi auxílio para encontrar a publicação oficial) e sei que a publicação de uma matéria na imprensa oficial não é algo que se possa considerar muito barato. Há notícias que a Cibele levantou o dinheiro através de campanhas nas redes sociais. Isso mostra a força do projeto e aponta de forma inequívoca para o sucesso da empreitada.

Examinei o estatuto e destaquei alguns pontos sobre os quais acho interessante fazer algumas observações.

O artigo 1º define o partido e é, de certa forma, uma síntese de toda a proposta. O parágrafo 2º diz: “A ARENA possui como ideologia o conservadorismo, nacionalismo e tecno-progressivismo, tendo para todos os efeitos a posição de direita no espectro político, devendo as correntes e tendências ideológicas ser aprovadas pelo Conselho Ideológico (CI), visando a coerência com as diretrizes partidárias.”

A minha amiga Karen Pereira, jovem estudante, que eu conheço apenas pelo mundo virtual, me mandou um mail com um link para um texto de um professor de Relações Internacionais, Leonardo Dutra, publicado no clicrbs (http://wp.clicrbs.com.br/doleitor/2012/11/22/artigo-arena/?topo=13,1,1,,,13), que, entre outras coisas, diz o seguinte: “Apesar de despertar a repulsa de diversas camadas da atual sociedade brasileira acostumada à preponderância de ideias de centro-esquerda, a necessidade de representação do pensamento conservador é tão importante quanto a defesa da mudança na sociedade. É tão danoso para um país um governo de direita onde a esquerda é reprimida quanto um governo de esquerda, onde a direita não existe.”  E ainda: Como explicitado nos últimos pleitos, especialmente nas últimas eleições presidenciais, a inexistência de uma direita com representação política no país deixa sem voz uma parcela significativa da população, partidária da defesa da liberdade entre os cidadãos brasileiros, e pouco simpática ao atual esforço político no poder, que elegeu a igualdade como bandeira principal de seus programas políticos.”

Olha, embora não saiba em que instituição o professor leciona, creio que ele seja uma pessoa esclarecida e com condições de exercer o magistério. Entretanto, parece faltar-lhe uma visão mais acurada do panorama político brasileiro. Como ele pode dizer que o conservadorismo não está representado no país? Ali em cima eu falei apenas de alguns partidos de tendência reacionária. Examinando a composição das casas legislativas pelo Brasil afora, veremos que esses partidos representam uma parte muito significativa delas. O Rio Grande do Sul é representado no Senado por um parlamentar identificado com a esquerda (Paulo Paim), um com histórico de lutas sociais, mas que pertence a um partido que, não sendo o único, é hoje um verdadeiro balaio de gatos (Pedro Simon) e uma senadora direitista até a medula (Ana Amélia Lemos), defensora dos interesses da classe ruralista, que se elegeu graças ao poder do grupo jornalístico em que trabalhou a vida inteira, que não é outro senão a sucursal gaúcha daquele grande conglomerado que ajudou a sustentar o regime “revolucionário” de 1º de abril. Ou seja, um terço da bancada gaúcha do senado é de direita, o outro terço é indefinível e apenas um terço é claramente identificado com políticas marxistas. Fora isso, um dos parlamentares que mais tem espaço na mídia gaúcha é o senhor Onyz Lorenzoni, um dos caciques do DEM. E falo apenas do Rio Grande porque é a realidade que mais domino, mas no Brasil não é diferente, haja vista as pressões da turma do campo acerca do Código Florestal. Falta representatividade à direita? Por favor, professor… As palavras finais do trecho citado metem uma dúvida na cabeça: afinal, o professor acha mesmo bom a existência de um partido que represente os grupos pouco simpáticos “ao atual esforço político no poder, que elegeu a igualdade como bandeira principal de seus programas políticos.” Ora, a igualdade não é a aspiração máxima da sociedade? A quem, interessa, então, barrar um projeto que tem como finalidade aquilo que todos os brasileiros desejam e que é, inclusive, um dos primados da Constituição Federal?

Seguindo adiante no estatuto, vemos que o parágrafo 3º do artigo 1º prevê que “A ARENA, em respeito a convicções ideológicas de Direita,não coligará com partidos que declaram em seu programa e estatuto a defesa do comunismo, bem como as vertentes marxistas (…).” Até aí nenhum problema, a definição é plenamente coerente com os ideais do partido. O problema é o artigo 2º, que no item IV diz que a ARENA tem por objetivos “incentivar o desenvolvimento da cidadania, opinião crítica e social, a formação da personalidade dos jovens (…)” Tudo bem que não coligue com comunista, mas para estimular a opinião crítica e social é necessário que se apresentem de forma clara e isenta as correntes contrárias ao pensamento do partido, e qualquer um que ler com atenção o citado § 3º vai entender que ali está, nas entrelinhas, que o comunismo, o marxismo, a esquerda, enfim, não presta. Coerência: 0!

O item VI do mesmo artigo diz: “Resguardar a soberania nacional, o regime democrático e o pluralismo político de toda a forma de unanimidade de pensamento ou hegemonia política.” Desconfio que a moça e seus seguidores desconhecem o que aconteceu no Brasil entre 64 e 85. Como pode alguém pregar o pluralismo de ideias justamente tentando recriar um partido que elegeu o pensamento único como um de seus mais eficientes mecanismos de manutenção no poder? Tem algo errado aí…

Já na parte do Programa Nacional de Atuação, no item referente aos Direitos Humanos (?), o estatuto diz que o partido vai buscar a “Abolição de quaisquer cotas raciais, de gênero, ou condições ‘especiais’” Bueno, primeiro, falta esclarecer o que são condições “especiais” (está entre aspas no original). Há quem defenda (eu!) e há quem seja contra as cotas. Sem problema. Fica engraçado é quando uma pessoa é contra os programas sociais, propõe a (re)criação de um partido que tem entre seus objetos extingui-los, mas está na universidade por intermédio do PROUNI. Sim, meus amigos, a guria é beneficiária do PROUNI e acha que não tem nenhuma contradição nisso. Eu é que não entendo nada de nada mesmo…

Logo em seguida, o partido defende a maioridade penal aos 16 anos, outro tema polêmico, que não vou abordar agora, e abre um campo para falar de Educação e Cultura. Aí eles querem o “Retorno ao currículo escolar das disciplinas de Educação Moral e Cívica e Latim.” Eu e muitos dos que vão ler este meu escrito, frequentamos o colégio na época da ditadura. Na faculdade, ainda como resquício do governo dos milicos, estudei Realidade Brasileira, que era o nome novo de Estudos de Problemas Brasileiros. Sobre o que eu vi na faculdade, desnecessário falar, porque na época eu já tinha melhores condições de discernimento. Mas na Moral e Cívica eu “aprendi” que o amor à pátria é um “sentimento” imposto e obrigatório, não uma manifestação espontânea; “aprendi”, também, que a família é a célula nuclear da sociedade. Será que a nova Moral e Cívica vai aceitar as uniões homoafetivas como famíliase, portanto, células nucleares da sociedade?

Sobre o Latim, vejam o que disse um dos comentadores do texto do professor, citado ali em cima: “Exceto pela aula de latim (base para entender não só o português corretamente mas também o italiano, francês, espanhol e quiçá o inglês), de resto é puro nonsense.” Gostaria que essa pessoa explicasse um pouquinho melhor o que é entender corretamente o português e no que o latim pode ajudar nessa tarefa. Salvo se o cara pretende ler o Camões ou as coisas escritas antes dele, o latim vai ajudar muito pouco a entender a(s) língua(s) portuguesa(s) falada hoje no Brasil. Ressalvados, é claro, os interesses científicos, como os dos linguistas, mas isso é outra conversa. Talvez para entender este “quicá”, que só ele ainda deve usar, talvez para isso o latim também deva servir. De resto, para estudar inglês, olha, o latim está para o inglês moderno (acho que é esse que interessa, né?!) assim como o bacalhau está para o vatapá. Aliás, essa me lembrou uma que o Doutor Cláudio Moreno me disse em resposta a uma crítica que fiz a uma das suas colunas, há alguns anos: “Essa foi de fazer chorar bacalhau em porta de venda!”)

Por fim, na parte destinada à Soberania Nacional, a “nova” ARENA entende que é necessário “reaparelhar as Forças Armadas, tirando-a do seu sucateamento e pouco efetivo.” A moçoila acha que a caserna está mal equipada e com pouca gente? Fico com medo do que ela dirá se um dia entrar num posto de saúde do SUS…

Bueno, já falei demais. Vou deixar que vocês reflitam sobre essa coisa toda. Antes de encerrar, porém, quero dizer que tive a oportunidade de ler, há alguns dias, o relatório da CPI que apurou a morte do sargento do Exército Manoel Raymundo Soares, que, em 1966, apareceu boiando perto da ponte do Guaíba, com as mãos amarradas pra trás, o que fez com que o episódio ficasse conhecido como “O caso das mãos amarradas”. É considerado o primeiro crime cometido pela ditadura oficialmente reconhecido (não pelos homens da farda, claro, porque eles nunca cometeram nenhum crime). O documento é impressionante, e eu posso falar mais em outra ocasião, mas quero destacar apenas um pequeno trecho, que diz muito sobre o partido que dona Cibele quer trazer de volta. Na época da CPI, que aconteceu antes da instituição do AI-5, logicamente, uma comissão do Instituto dos Advogados do Brasil foi examinar algumas instalações do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e a Ilha do Presídio, onde o sargento Manoel passou mais ou menos cinco meses, e de onde o seu corpo foi arremessado nas águas do Jacuí. O relatório do IAB, enviado à Procuradoria Geral do Estado, atesta, entre outras coisas, que “Nos campos de concentração da Alemanha nazista matava-se com mais humanidade os judeus que eram remetidos às Câmaras de Gás de que o infeliz sargento que foi jogado às águas encapeladas e frias do Rio Guaíba, do sombrio agôsto [grafia original]. A êste [idem] foi primeiro ministrado o ‘tratamento prévio’ que durou de março, data da prisão, a agôsto, data de sua morte.” (Série “Memórias do Parlamento”, agosto de 2011.)

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 27/11/2012.

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Ideologia, Política de Cotas, Políticas Afirmativas, Políticas Sociais, Republicados

A consciência negra, a (in)consciência branca, as cotas raciais e a lei do boi*

Um fato comentado pela minha filha hoje quando eu a levava pro colégio me deixou impressionado e assustado. Ela disse, na sua inocência como se fosse algo positivo, que a professora de geografia (6ª série) falou que a instituição de um dia para chamar a atenção para a consciência negra é uma forma de preconceito. Tenho vontade de conversar com a professora para saber em que ela baseia essa sua ideia. Deve ser nos mesmos argumentos de quem é contrário às cotas raciais na universidade.

Bueno, em primeiro lugar, acho importante lembrar um fato que é esquecido ou deliberadamente desconsiderado por muitas pessoas, que se dizem progressistas e liberais. O Brasil foi o último, isso mesmo, o último país das Américas a abolir o sistema escravista. E isso aconteceu há pouco mais de 100 anos. Teorias criacionistas à parte, a ciência estima que o surgimento de algo parecido com o Homem no nosso planeta se deu há alguns milhões de anos. Alguns milhões de anos!! Antes do patrício Cabral, havia homens andando pelo nosso Brazil. A historiografia oficial diz que o Brasil foi encontrado em 1.500. (Eu aprendi no colégio que o Pedro queria ir pras Índias, buscar pimenta e canela, e uma ventania fez com que ele desse as caras na terra de Santa Cruz. E aprendi também que os portuga eram tudo gente fina, que mandaram os padrecos pra cá pra civilizar os índios, que andavam peladões por aí. Essas cositas a gente aprendia nos idos dos 70’s…) Mas, voltando à vaca fria, diante desses dados, o que são cento e poucos anos? Nada! Pois o tempo em que os negros são “livres” no país da miscigenação e da democracia racial é mais ou menos este: cento e poucos anos. Por pouco não temos entre nós pessoas que viveram na senzala. Mas netos dessa gente têm bastante e certamente até alguns filhos.

Talvez eu não tenha conseguido ser tão claro quanto pretendia no parágrafo anterior, então vou melhorar o que eu disse:

num país de 500 anos, que se insere num contexto em que o homem apareceu há alguns milhões de anos, cento e poucos anos de abolição da escravatura é nada, nada, NADA!

Se considerarmos que “libertação” dos escravos ocorreu de maneira que eles estavam “livres” de um dia para o outro, mas sem trabalho, sem casa, sem vida social, sem nada, dá pra reduzir ainda mais esses 100 anos. Disseram assim pra negrada: “Ó, gente, a partir de amanhã vocês são livres. Vão à luta!” E se considerarmos que a Lei Afonso Arinos, que é a primeira no país que trata da discriminação racial, é de 1951, ou seja, tem pouco mais de meio século, vamos ver que esses 100 anos são, na verdade, cinquenta e poucos. E se pensarmos que ainda hoje é necessário que se crie uma política de cotas para que os pretos possam estudar na universidade, chegaremos à conclusão que a escravidão não acabou.

Quem acha um absurdo que seja instituída oficialmente uma semana da consciência negra e que seja designado um dia específico para esta celebração, casualmente o dia de hoje (isso tem algo a ver com o Zumbi…), certamente não se deu ao trabalho de examinar as condições que levaram à criação dessa efeméride. Dizer que isso é uma forma de preconceito é, no mínimo, uma demonstração inequívoca de preguiça de pensar, para não dizer coisa pior.

Os processos de conscientização dos negros (que não se restringem aos negros, mas a todos aqueles que conseguem enxergar um palmo á frente do nariz) se inserem num quadro muito maior de lutas dos movimentos negros, que buscam o reconhecimento das pessoas de cor preta como cidadãos  efetivos, que têm os mesmo direitos que todos os outros, brancos, amarelos, vermelhos. Nesta semana da consciência negra, estão sendo realizados eventos alusivos ao tema por toda a cidade, desde palestras, debates, passeios pelos quilombos urbanos de Porto Alegre (sim, existem!), shows, festivais etc. Quem tiver interesse em aprofundar um pouco a visão sobre o assunto, pode escolher algum desses eventos, que são na maioria gratuitos. Basta um pouquinho de vontade. Vão descobrir coisas muito legais, como por exemplo o antigo apelido da esquina da Rua da Praia com a Borges, que antes de virar Esquina Democrática era a Esquina do Zaire.

Pergunto aos que se posicionam contra as cotas raciais na universidade e defendem apaixonadamente as suas razões, dizendo que se trata de racismo, protecionismo, assistencialismo e outros ismos, se eles se manifestaram com a mesma veemência durante o tempo de vigência da “Lei do Boi” (bota lá no google), que destinava cotas, é, cotas, para que os filhos dos fazendeiros pudessem entrar na universidade? Olha, procurei bastante pela internet a fim de encontrar alguém que se posicione contrariamente às cotas raciais e que tenha sido coerente, criticando as cotas ruralistas. Não encontrei um, sequer um! E o seu Onyx Lorenzoni já fazia política nessa época. Por que ele(s) não disseram nada? Será por que não existem e nunca existiram fazendeiros negros ou filhos negros de ruralistas que não sejam “bastardos” (lembrando que a Constituição Cidadã baniu esse termo)?

Sei lá, vai entender a lógica dessa gente…

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 20/11/2012.

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Jornalismo, Linguística, Política, Republicados

Manual do preconceito*

David Coimbra é um respeitado jornalista da capital dos gaúchos e, numa sociedade cada vez mais globalizada, porque não dizer, do mundo. Além disso, ele é um consagrado escritor, autor de obras seminais da cultura brasileira, como a “A mulher do centroavante” e outras histórias. Por falar em história, o nosso erudito personagem mostra-se também um grande historiador. O primeiro tomo da sua “História do mundo” é um dos títulos mais vendidos da 58ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre. De acordo com os veículos de informação da… RBS, o livro do David (interessante trocadilho para um livro que se propõe contar a história do mundo) divide o topo das listas das obras mais procuradas, ao lado dos manuais de culinária, seleções de crônicas, manuais de auto-ajuda e outros essenciais volumes produzidos por escribas de escol, em geral funcionários ou colaboradores da… RBS.

Bueno, na última sexta-feira, o multifacetado Coimbra resolveu mostrar ao público alguns outros atributos que o distinguem no panorama da crônica sul-americana. Na página 2 da edição de 9 de novembro do jornal da… RBS, o espetacular David mostra que entende de sociologia, antropologia, ciência política, linguística… me perdoem se deixei escapar algo, mas é que tamanha erudição me confunde.

O fabuloso David entendeu por bem analisar a recente eleição norte-americana (tá bem, estadunidense, como quer a patrulha do politicamente correto, afinal o Canadá também fica na América do Norte – e o México?…). Com uma capacidade de síntese só possível aos gênios da raça, o extraordinário David comparou os “fenômenos” Lula e Obama. Já pelo título pode-se verificar que o elogio ao ex-presidente brasileiro é a tônica do escrito: “Lula é maior do que Obama”. Façamos uma análise dos elementos que sustentam, na visão do inatingível Coimbra, essa supremacia da pobreza tupiniquim.

“Olhe para esse Barack Obama. Observe como ele se movimenta, como pisa num palco com segurança e mira a plateia com serenidade, até com alguma superioridade. Ouça-o discursar, escandindo bem as sílabas e virando a cabeça para um lado e para outro, demonstrando domínio absoluto do ambiente. Esse homem elegante, reeleito presidente dos Estados Unidos, ele não está nesse cargo por condescendência. Ele não foi eleito e reeleito por ser negro. Não. ele foi eleito reeleito porque era o melhor candidato.”

Já aqui se observa que o maravilhoso David conhece a fundo a política dos ianques, a ponto de definir de forma peremptória que Obama era o melhor candidato. Domina também a mente do eleitorado norte-americano, pois sabe as razões pelas quais não só Obama foi reeleito, como também porque assumiu o primeiro mandato. Quisera que os nossos cientistas políticos tivessem esse poder de análise…

Adiante:

“Com sua políticas de ações afirmativas, com suas leis de equilíbrio social, os Estados Unidos deram condições a negros como Obama de estudar nas melhores escolas (…)”

Ôpa! Ações afirmativas são boas? Mas em “Do contra”, o progressista David diz: “Sou contra as cotas raciais nas universidades.” (http://wp.clicrbs.com.br/davidcoimbra/?s=cotas&topo=13%2C1%2C1%2C%2C%2C13) Na mesma crônica: “A cota racial é bemintencionada, mas gera ainda mais preconceito e discriminação.” Não entendi, DOUTOR Coimbra, cota racial é bom e permite que negros estudem nas melhores escolas, ou não é? Para não me deixar na mão, o ilustrado David explica tudo mais adiante:

“O Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, é um país miscigenado e de elástica tolerância racial.”

O inteligentíssimo David consegue contraditar as ideias de gente como o psicanalista Contardo Callligaris:

“Em meus primeiros contatos com a cultura brasileira, acreditei inevitavelmente ter encontrado o paraíso de uma democracia racial. (…) Mas essa sensação inicial não demorou muito tempo, pois logo tive a oportunidade, ao me estabelecer no Brasil, de analisar alguns pacientes negros. Bastou para descobrir imediatamente que minha impressão de uma paradisíaca democracia racial devia ser perfeitamente unilateral. (…) O mito da democracia racial é fundado em uma sensação unilateral e branca de conforto nas relações inter-raciais. Esse conforto não é uma invenção. Ele existe de fato: é o efeito de uma posição dominante incontestada. (…) Sonhar com a continuação da pretensa ‘democracia racial brasileira’ é aqui a expressão da nostalgia do que foi descrito antes, ou seja, de uma estrutura social que assegura a tal ponto o conforto de uma posição branca dominante, que o branco – e só ele – pode se dar ao luxo de afirmar que a raça não importa.” (CALLIGARIS, Contardo. “Notas sobre o desafio para o Brasil.” In: Anais do Seminário Internacional “Multiculturalismo e racismo: o papel da Ação Afirmativa nos estados democráticos contemporâneos.” Brasília: Ministério da Justiça/Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 1997. p. 243-245.)
E gente como o ex-presidente de Moçambique, Joaquim Alberto Chissano:

“(…) E quero destacar um ponto que até pode ser polêmico mas eu sempre gostei de dizer coisas chocantes, inclusive para os meus colegas brasileiros presidentes da República e ministros das Relações Exteriores. Dessa forma, tenho ouvido que o Brasil é um país multirracial, um país onde não há racismo, um país de igualdade, onde cada habitante se sente com sangue brasileiro. Porém, muitas vezes me senti incomodado com essas expressões pois me pareciam não corresponder à realidade. A primeira vez que aqui estive, fui a Bahia e lá vi muito negro na rua, vi muito negro no mercado e Salvador me pareceu uma parte da África. Depois, tive encontros, reuniões de ‘business’ e senti-me, de novo, na Europa. Lá não vi nenhum negro, não senti a igualdade, o sangue brasileiro estava camuflado.” (“Cooperação África e Brasil no âmbito da nova parceria para o desenvolvimento da África (NEPAD): aula magna UFRGS 2004/ Joaquim Alberto Chissano”. – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.)

Mesmo a Procuradoria-Geral do Estado do RS não deve ter nenhum findamento na sua análise:
“Mesmo dentro das margens de maiores desigualdades em que também pessoas brancas são abarcadas, as pessoas negras são as mais inferiorizadas, as mais discriminadas e as que estão submetidas às maiores desigualdades.” (Carlos César D’Elia, Procurador do Estado, Coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Parecer nº 15.703/PGE, 16/03/2012. www.pge.rs.gov.br/upload/estudosdireito1[1]cotasraciais.pdf.)
 
Mas, afinal, quem são esses reles mortais diante do luminar David?… A eles a resposta simples e direta, como convém aos gênios: “O Brasil (…) é um país miscigenado e de elástica tolerância racial.”
 
Ok, voltemos à vaca fria. Notem a consistência da análise sociológica proposta pelo incorrigível Coimbra:
“Há racismo no brasil, claro que há, em toda parte do mundo há racismo, mas o grande drama do brasileiro é a discriminação social.”  Espanta-me a profundidade…
Creio que para dizer isso com tanta segurança o impoluto David fez exaustivos estudos que mostraram que uma coisa não tem nada a ver com a outra, que um negro rico é tratado da mesma forma que um branco rico em qualquer situação e que um negro pobre tem as mesmas chances de ascensão social que um branco pobre. Ele também certamente visitou os bairros de classe média e alta e os de classe baixa de Porto Alegre e de inúmeras outras cidades brasileiras, atestando que na favela a quantidade de brancos é igual ou semelhante a de negros, o mesmo acontecendo nas zonas elitizadas e em relação à população carcerária. Realmente, me perdoem a redundância, mas este fenomenal David é mesmo um fenômeno, pois com todas as suas atribuições de jornalista, escritor, historiador, etc., etc., etc., ele ainda consegue fazer pesquisa de campo…
Agora vejam o primor de análise social que abençoado David faz nesse raio-x do ex-presidente:
“Por isso Lula é um herói. Porque Lula venceu, e continua vencendo, a discriminação. Lula foi torneiro mecânico, perdeu um dedo na prensa, fala errado, bebe cachaça. Lula é um pobre, sempre será um pobre, mesmo que esteja rico.”
 
Antes de qualquer reflexão sobre o que foi escrito, proponho-me a reescrever as afirmativas e desafio alguém a apontar alguma diferença semântica entre as duas:
Lula venceu a discriminação. Apesar disso, continuará sempre a ter uma alma de pobre, porque foi torneiro mecânico, não sabe falar e é um bêbado. Assim, por mais dinheiro que possa vir a ter, Lula não abandonará o estigma da pobreza.
E aí, são diferentes as duas afirmações?
Agora façamos o mesmo exercício a partir de uma generalização:
Todo pobre tem alma de pobre, não sabe falar e bebe cachaça, por isso, salvo se for um herói, não conseguirá ir além do trono mecânico.
Não me parece nenhum absurdo esta última interpretação, nem a primeira.
Agora vamos esmiuçar a declaração original:
“Lula venceu , e continua vencendo, a discriminação.”  A que discriminação, eminente David, te referes? Àquela que tu afirmas não existir, já que o Brasil possui “elástica tolerância racial”? Ou àquela que parece emanar das tuas palavras, ainda que de forma velada, quando sugeres, me parece de forma inequívoca, que pobre fala errado, bebe cachaça, não pode ser mais do que torneiro mecânico, salvo, é claro, se tiver poderes típicos de herói, como o ex-presidente?
Te pergunto, ilustre Coimbra, se Lula fosse um bebedor de tintos de boa data, como gostam de dizer os apreciadores da nobre bebida, dirias “Lula bebe vinho”? Se Lula não fosse eternamente UM pobre, e é importantíssima a conotação definitiva que este “um” confere à afirmação, verias algum problema no fato dele ser apreciador da bebida típica do Brasil, tanto quanto o champanha é da França? Se Lula operasse um torno mecânico por diletantismo, com a intenção, por exemplo, de criar peças para coleções de escultura, isso faria dele um herói?
Ilibado, David, achas mesmo que alguém que fala “errado”, portanto desconhece até mesmo os rudimentos de sua língua materna, conseguiria alcançar o posto de primeiro mandatário por duas vezes, igualzinho ao negro Obama, que referes no teu texto, quem, inclusive, chamou o eterno pobre, bêbado e iletrado Lula, de “o cara”?
A propósito, cientista David, poderias declinar, à luz da Linguística, que elementos te levam a afirmar que Lula fala “errado”? Acaso o povo brasileiro e as seletas audiências para quem o ex-presidente palestra mundo afora têm alguma dificuldade de entender o que ele diz? Considerando que a fala “errada” de Lula é igual ou muito semelhante a de milhões de brasileiros, que por ela se comunicam desde o nascimento e continuarão se comunicando até a morte, salvo algum acidente, não seria equivocado, creio eu, concluir que tu achas que esses milhões de CIDADÃOS, ricos ou pobres, que têm na língua portuguesa o seu maior patrimônio imaterial, falam “errado” e, portanto, não dominam a sua LÍNGUA MATERNA, certo, prócer Coimbra?
Senhor David Coimbra, todas as qualidades elencadas ao longo deste texto, a sua condição de patronável da Feira do Livro, o fato de ser o senhor um dos autores mais vendidos, ao lado, repito, de colegas seus de… RBS, não lhe outorgam o direito de fazer sugestões notadamente preconceituosas nas páginas de um jornal que, para meu desgosto, é um dos mais lidos do Rio Grande de São Pedro.
Senhor David Coimbra, sugiro que o senhor faça uma revisão acerca dos seus conceitos de preconceito, democracia racial, heroísmo, entre outros. Ou, caso não queira, que assuma definitivamente aquilo que salta aos olhos como uma manifestação típica de preconceito e sectarismo, que lhe permite achar, por dedução minha a partir do que o senhor escreveu, que todos os brasileiros pobres são e continuarão sempre a ser bêbados e iletrados, salvo se agraciados com algum poder heroico.Veja que eu não estou lhe acusando de preconceituoso e sectário, mas apenas dizendo que o senhor escreveu algo que me parece ter alto conteúdo de preconceito e sectarismo.

Saia do armário, senhor David. Tantos já o fizeram e continuam fazendo. É mais bonito (ou menos feio). Preconceito velado não lhe fica bem, a não ser que, além de tudo, o senhor considere todos os seus leitores um bando de imbecis, incapazes de interpretar as suas palavras…

 

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 10/11/2012.

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Educação, Legislação, Política, Racismo, Republicados

Universidade: universalismo de fato*

Tema de extrema relevância, com grande repercussão social, apaixonante, capaz de provocar debates e discussões acaloradas, que nem sempre primam pela racionalidade dos argumentos, isso tudo e muito mais é a política de reserva de vagas para negros nas universidades públicas brasileiras, popularmente chamada de sistema das cotas raciais, uma das chamadas Políticas de Ação Afirmativa, que, ao contrário do que se pensa comumente, deita suas raízes na Índia, em sua luta pela libertação do jugo britânico, e não nos Estados Unidos da América.

Há negros que são contrários, há brancos que as defendem; há quem diga que isso é coisa de “gente de esquerda”, na forma mais pejorativa aplicável à expressão, e os que apontam para uma omissão do Estado em problemas maiores, dizendo que ele usa as cotas apenas para dar uma satisfação à sociedade. Enfim, opiniões e posições há para todos os lados e é natural que cada um tenha a sua, ou as suas. O que me preocupa é quando as manifestações surgem de pessoas que exercem certo poder no contexto social e aqui me refiro especificamente aos jornalistas e comunicadores, que têm largos espaços nos órgãos de imprensa e não raro confundem liberdade de imprensa, tão cara ao regime democrático, com um certo tipo de libertinagem, que lhes permite emitir opiniões e sentenças peremptórias sobre os mais diversos assuntos, muitas vezes sem ter nenhum embasamento para isso. Para não me alongar muito, apenas cito como exemplos o Rogério Mendelski, cujas manifestações preconceituosas e sectárias não devem provocar surpresa em mais ninguém, e o pretenso intelectual David Coimbra, para quem tudo se resolveria com um sistema de cotas para as escolas públicas (está lá no blog dele, em 18 de maio).

Esse tipo de manifestação me levou a escrever sobre o assunto, que me interessa há muito tempo e sobre o qual procuro ler tudo o que me chega às mãos. Pretendo falar brevemente sobre um dos tantos argumentos usados pelos que são contrários ao sistema de cotas e que me causa um pouco de perturbação, que é a ideia que as cotas raciais deveriam ser simplesmente substituídas pelas cotas sociais, privilegiando o aspecto econômico, que, segundo alguns, nivela brancos e negros na pobreza. Na minha ótica, como se verá adiante, não é assim que a coisa funciona.

Começo por examinar o termo “universidade”, cujo primeiro significado no dicionário Hoauiss é “qualidade ou condição do que é universal”, página 2.807, da 1ª edição, de 2001. A segunda definição faz referência à ideia de instituição de ensino. Ou seja, a universidade, como instituição de ensino, deve, na medida do possível, como denota a origem da sua denominação, fazer uma reprodução do universo social, e esse inclui brancos, negros, amarelos, vermelhos, etc. Todavia, não é preciso muita pesquisa de campo para se verificar que não é essa a realidade da UFRGS, que é a que nos interessa no momento por ser a mais próxima de nós. Cursei alguns semestres de Letras e me lembro de pouquíssimos colegas negros. A bem da verdade, apenas de uma. Pobres, ou pessoas com condições econômicas desfavoráveis, havia em número considerável, se bem que longe do que talvez seja o ideal. Por outro lado, quando a minha esposa estava na faculdade de Odontologia, nunca vi um negro que fosse seu colega. E ela própria pode servir como representação de alguém que veio de uma classe social pouco ou quase nada privilegiada e chegou à universidade. De novo se observa que pobres há, ainda que poucos, mas negros inexistem. Conheci, em diversas áreas, inclusive na Faculdade de Letras, professores e profissionais que vieram de famílias pobres. Não me lembro de nenhum negro. Isto é, ainda que longe do que se espera, as classes economicamente desfavorecidas têm alguma representação na universalidade da universidade, com o perdão da redundância. Os negros não têm nenhuma. Pelo menos não que se possa considerar como tal.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal pôs fim a uma discussão sobre a constitucionalidade do sistema de cotas. Era o julgamento de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo DEM – Democratas – partido sucedâneo da ARENA –Aliança Renovadora Nacional -, de saudosa memória para alguns, que tem um programa extremamente conservador e que congrega em seus quadros políticos e militantes que defendem a pena de morte, a esterilização em massa, etc. Ideologias à parte, para quem tiver interesse, sugiro a leitura dos votos dos ministros, que está disponível no site http://www.stf.jus.br, e, no caso de desejarem um aprofundamento, há textos bastante esclarecedores,  com ótimas remissões, disponíveis em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa.

O professor Hélio Santos, doutor em Economia e Administração, e negro, tem uma frase muito significativa e sugestiva: “O problema foi o dia 14.” De fato, se pensarmos no dia 13 de maio como um marco da disseminação da luta contra o preconceito racial, tudo fica muito bonito. Mas e o dia 14? O que aconteceu a partir daí? Negros libertos? Sim! Trabalho, terras, bens, dignidade, condições mínimas para uma vida decente? NÃO!! E observem que não foi por questão estilística que optei por usar o termo libertos quando poderia dizer livres. Há uma sutil distinção entre libertos e livres. Os negros, ex-escravos, estavam, pós-abolição, fisicamente livres, mas na prática apenas deixaram de morrer pelo açoite para morrer de fome, pois não lhe foram dadas as mínimas condições para que pudessem levar uma vida que se pudesse dizer humana. Os que sobreviveram deram origem aos guetos e favelas que existem e se proliferam ainda nos nossos dias, em nossa sociedade “livre do preconceito racial”. E hoje estamos distantes apenas 124 da Lei Áurea, o que significa dizer que há entre nós descendentes diretos de escravos. Bisnetos, netos, até mesmo filhos. Eu, que não tenho ascendentes negros, senão que talvez remotamente, posso saber com exatidão das dificuldades que sente um desses, cuja origem escrava está logo ali, há pouco mais de um século? Obviamente não. Por outro lado, posso me considerar exatamente igual, no sentido de ter as mesmas condições de vida, como preconiza a Constituição Federal (“Todos são iguais perante a lei.”) a um negro com esse histórico? Também não. Diante dessa simples constatação, cai por terra o mito da igualdade racial no Brasil.

Vejamos o que diz o psicanalista Contardo Calligaris:

 

“Em meus primeiros contatos com a cultura brasileira, acreditei inevitavelmente ter encontrado o paraíso de uma democracia racial. (…) Mas essa sensação inicial não demorou muito tempo, pois logo tive a oportunidade, ao me estabelecer no Brasil, de analisar alguns pacientes negros. Bastou para descobrir imediatamente que minha impressão de uma paradisíaca democracia racial devia ser perfeitamente unilateral. (…) O mito da democracia racial é fundado em uma sensação unilateral e branca de conforto nas relações inter-raciais. Esse conforto não é uma invenção. Ele existe de fato: é o efeito de uma posição dominante incontestada. (…) Sonhar com a continuação da pretensa ‘democracia racial brasileira’ é aqui a expressão da nostalgia do que foi descrito antes, ou seja, de uma estrutura social que assegura a tal ponto o conforto de uma posição branca dominante, que o branco – e só ele – pode se dar ao luxo de afirmar que a raça não importa.” (CALLIGARIS, Contardo. “Notas sobre o desafio para o Brasil.” In: Anais do Seminário Internacional “Multiculturalismo e racismo: o papel da Ação Afirmativa nos estados democráticos contemporâneos.” Brasília: Ministério da Justiça/Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 1997. p. 243-245.)

Em 2004, a UFRGS convidou o então presidente da República Popular de Moçambique, Joaquim Alberto Chissano, um homem com um grande currículo de lutas pela emancipação dos países africanos, para ministrar uma Aula Magna, com o tema Cooperação África e Brasil no âmbito da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD). E vejam  o que ele disse:

“(…) E quero destacar um ponto que até pode ser polêmico mas eu sempre gostei de dizer coisas chocantes, inclusive para os meus colegas brasileiros presidentes da República e ministros das Relações Exteriores. Dessa forma, tenho ouvido que o Brasil é um país multirracial, um país onde não há racismo, um país de igualdade, onde cada habitante se sente com sangue brasileiro. Porém, muitas vezes me senti incomodado com essas expressões pois me pareciam não corresponder à realidade. A primeira vez que aqui estive, fui a Bahia e lá vi muito negro na rua, vi muito negro no mercado e Salvador me pareceu uma parte da África. Depois, tive encontros, reuniões de ‘business’ e senti-me, de novo, na Europa. Lá não vi nenhum negro, não senti a igualdade, o sangue brasileiro estava camuflado.” (“Cooperação África e Brasil no âmbito da nova parceria para o desenvolvimento da África (NEPAD): aula magna UFRGS 2004/ Joaquim Alberto Chissano”. – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.)

            As palavras do mandatário moçambicano, pessoa insuspeita para tratar do assunto, escancaram a realidade brasileira, que muitos tentam mascarar. Nas ruas, nos locais públicos, onde seria impossível evitar a convivência, os negros estão por todas as partes. Nos locais restritos, porém, palcos das discussões políticas e econômicas, que decidem como vai ser a vida da população, eles estão alijados da participação. Que “democracia racial” é essa que só se exerce onde é impossível evitar a sua prática? Mesmo lá, nos locais em que os negros estão, é pouco provável que os “democratas raciais” estejam à vontade dividindo seus espaços com essa “subclasse de cidadãos”.

Sobre o que diz o David Coimbra, referido antes, que a solução está na oferta de vagas reservadas para estudantes oriundos de escolas públicas, basta que se faça um pequeno resgate histórico de alguns anos, nos tempos em que o nível da escola pública era considerado bom, para que observemos que naquela época os negros não tinham acesso ao ensino proporcionado pelo Estado, pois não podiam dividir o espaço com os brancos. E isso não faz muito tempo. Expandindo a questão, há que se dizer que uma coisa são as cotas sociais e outras são as de recorte racial. Elas têm base em problemas diferentes e, consequentemente, visam à correção de distorções distintas. Se o problema fosse meramente econômico, me parece que seria razoável que o “Dr.” Coimbra defendesse também a reserva de vagas em concursos públicos não para portadores de deficiência e mulheres, mas apenas para portadores de deficiência pobres e mulheres pobres. Observe-se que temos aqui quatro tipos diferentes de discriminação: contra portadores de deficiência, contra mulheres, contra pobres e contra negros. Cada tipo com as suas particularidades, o que enseja a adoção de iniciativas próprias para combater cada um deles.

No início do ano, quando se discutia a adoção de reserva de vagas para negros nos concursos públicos estaduais no Rio Grande do Sul, a Procuradoria-Geral do Estado emitiu extenso parecer, do qual resgatei o trecho a seguir:

 “Diga-se, ainda, que as cotas raciais, se por um lado não são incompatíveis com as denominadas cotas sociais, por outro lado não as substituem nem por elas podem ser substituídas, sendo possível, isto sim, associação de critérios entre estas e aquelas. Mas há que se advertir que as cotas étnico-raciais, especificamente as dirigidas às pessoas negras, se justificam mesmo diante da possibilidade de adoção do critério de cotas sociais. Pois como demonstram os dados estatísticos e demais estudos sociológicos aqui trazidos ou referidos, há na realidade da exclusão e de desigualdades sociais uma perversa tônica em desfavor das pessoas negras. Mesmo dentro das margens de maiores desigualdades em que também pessoas brancas são abarcadas, as pessoas negras são as mais inferiorizadas, as mais discriminadas e as que estão submetidas às maiores desigualdades.

Por outro lado, as cotas raciais não têm objetivo único de atacar as desigualdades sofridas por negros e negras em seu viés econômico, senão que para além disso, buscam também sanar os aspectos culturais mórbidos de discriminação fundados no preconceito de cor, que é onde residem muitas das determinantes da própria desigualdade social e econômica.”  (Carlos César D’Elia, Procurador do Estado, Coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Parecer nº 15.703/PGE, 16/03/2012. www.pge.rs.gov.br/upload/estudosdireito1[1]cotasraciais.pdf.)

                Ou seja, um estudo abalizado, feito por uma entidade da estatura da PGE/RS, aponta que a discriminação racial vai além da questão econômica. Brancos pobres são segregados, mas negros pobres são mais ainda. Brancos ricos têm situação favorável na sociedade, negros ricos, porém, por maior destaque que obtenham, não escaparão dos olhares desconfiados. Alguém se lembra daquele caso, ocorrido há alguns anos, em que dois jovens negros que corriam para evitar o atraso para o vestibular da UFRGS foram abordados por brigadianos e acabaram de fato perdendo a prova? Eles eram filhos de um engenheiro, portanto a sua situação social certamente não era das piores. O que fez com que os policiais desconfiassem deles? Fossem brancos, o fato teria ocorrido? Foi a triste consumação daquela piada que diz: “branco correndo está atrasado, negro correndo está fugindo da polícia.” Diante dessa realidade, cotas sociais resolveriam o problema?

                Quando se diz que um aluno cotista está tirando a vaga de outro que apresentou melhor desempenho e por isso o sistema é injusto, apenas se está buscando uma simplificação do problema. Como bem observou o Ministro Marco Aurélio Mello, no seu voto por ocasião da ADPF citada:

“A meritocracia sem ‘igualdade de pontos de partida’ é apenas uma forma velada de aristocracia”. 

Ou seja, não basta apenas criar uma situação fictícia de igualdade, pela qual negros e brancos concorreriam nas mesmas condições. É preciso que essa igualdade seja alcançada lá nos pontos de partida e as cotas podem representar um instrumento muito eficaz para que se logre êxito nesse objetivo. A conta de mais negros nas universidades emana seus reflexos na sociedade, com mais negros com maior nível de esclarecimento em suas comunidades, que serão capazes de transmitir valores mais elevados aos seus pares. Em algum tempo teremos mais professores negros, mais médicos negros, mais dentistas negros (a propósito, alguém conhece algum?), enfim, mais negros ocupando posições de destaque e prestígio social e, como consequência disso, as práticas de preconceito e segregação tenderão a ser enfraquecidas.

                No mesmo sentido da argumentação do Ministro Marco Aurélio, está o posicionamento do renomado jurista Dalmo de Abreu Dallari:

 

“O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os primeiros em situação de privilégio, mesmo que sejam socialmente inúteis ou negativos.” (DALLARI, Dalmo de Abreu. “Elementos da Teoria Geral do Estado.” 25ª ed. São Paulo: Saraiva. P. 309. In voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186, em 25/04/2012.)

                Defendendo a adoção de medidas que, embora aparentemente contrárias ao princípio constitucional da igualdade formal, que é fictício e precário diante da realidade social, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos diz:

 

“(…) temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.” (SANTOS, Boaventura de Sousa. “Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural.” Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P.56. in voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186, em 25/04/2012.)

                      Não basta que sejamos iguais perante a lei. É preciso que sejamos iguais perante a sociedade, visto que não há um fator genético de diferenciação entre negros e brancos, segundo o qual estes supostamente teriam maiores aptidões ao desenvolvimento intelectual. É o que diz o representante da Fundação Ford, Jean Dassin:

 

“Em nove anos de funcionamento, o IPF comprovou definitivamente que talento intelectual e compromisso social abundam nas comunidades marginalizadas de todo o mundo em desenvolvimento e que o acesso à educação superior pode ser ampliado sem prejuízo dos padrões acadêmicos.” (DASSIN, Jean. “Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação da Fundação Ford.” In: “Acesso aos direitos sociais: infância, saúde, educação, trabalho.” São Paulo: Fundação Ford/Fundação Carlos Chagas. 2010.)

                Assim, a ideia que defendo, cuja validade pretendi certificar com a argumentação feita, é que as cotas sociais e raciais não são excludentes. Pelo contrário, elas se complementam e devem ser adotadas até o momento em que as discriminações sociais de toda a ordem tenham sido erradicadas, no caso particular do preconceito pela cor, que a democracia racial deixe de ser uma ficção jurídica e passe a ser uma realidade.

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça Pra Baixo, em 26/6/2012.

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