bolsonarismo, Direitos Humanos, Eleições, Política

E agora, José? A festa acabou (O mundo não é tão bão, Sebastião…)

O ponto alto da extensa agenda oficial de comemorações dos 250 anos (também oficiais) de Porto Alegre foi a apresentação da Maria Rita na Redenção. Grande show, com direito a “Ele Não”, “Fora, Bolsonaro” e outras perigosas subversões. Só tenho dúvida se o prefeito Melo ficou à vontade com isso, já que a sua eleição se deu justamente na onda Bolsonaro. Mas a festa acabou e restou uma cidade para governar. Uma cidade conflagrada.

A mídia grande não tem conseguido dar curvas nos registros de violência na periferia apagada. Ainda hoje pela manhã (segunda-feira), ouvi na rádio que já são 24 mortes no que eles estão chamando de guerra de facções. Qualquer pessoa que more, trabalhe ou de alguma maneira se interesse pelo que acontece nos bairros mais pobres da cidade sabe que essa manchete é risível. O número de pessoas que morre em condições violentas nas comunidades periféricas, de bala “perdida”, de doença que já deveria estar erradicada, de fome, por queima de arquivo, é muito maior do que o que chega ao GZH, ou melhor, do que o que entra na pauta das editorias do grupo. Essas pessoas, porém, integram um grupo social ainda menos considerado pela oficialidade, os órgãos de segurança e a grande mídia: o grupo de quem não vira nem estatística. A diferença agora é que as ações estão sendo articuladas de outra forma, com estratégias de divulgação que ainda não tinham sido exploradas em escala mais ampla. Circulam mensagens em grupos de WhatsApp, cuja autenticidade é muitas vezes questionada e até negada, mas que acabam se mostrando de alguma maneira conectadas com os fatos. Qual o interesse de quem está promovendo a violência em publicizar e anunciar as ações antecipadamente, inclusive com detalhes de local e hora? Não estamos diante de um thriller hollywoodiano, em que o serial killer deixa pistas para a investigação por vaidade e para mostrar que é melhor que o policial. Não, aqui é a vida real e os interesses são outros.

Há quatro anos, um inexpressivo parlamentar do Rio de Janeiro saiu da obscuridade de uma série de mandatos em que pouquíssimos projetos foram apresentados e menos ainda foram aprovados, para ocupar a primeira cadeira do Planalto. A agenda econômica do ultraliberalismo estava na ordem do dia da plataforma bolsonarista. Entretanto, fosse só isso, a elite dispensaria o testa de ferro e lançaria o próprio Paulo Guedes, a cabeça por trás do esquema econômico. Bolsonaro não teve nenhuma vergonha de dizer, em campanha, que não entende nada de economia. Mas uma sucessão presidencial envolve muito mais do que conhecimento teórico e técnico acerca do mercado e dos seus reflexos no bolso da população.

Bolsonaro sabia muito bem que a pauta econômica, tratada em nível mais elevado e complexo, interessa diretamente apenas às elites. Entre o povo, as duas demandas mais caras ao eleitorado, especialmente as classes médias, eram/são: fim da corrupção e segurança. O primeiro item já vinha sendo trabalhado há bastante tempo, desde as investigações que se notabilizaram como mensalão (o petista, não o tucano, por óbvio), depois o petrolão, Lava Jato, Dallagnol, Moro e por aí vai. Quanto à questão da pseudo-segurança, nisso, e provavelmente só nisso, Bolsonaro é bom. Distorcer fatos, mascarar a insegurança em segurança, criar um discurso para convencer uma população descrente das instituições e com sede de justiçamento, tudo isso foi tarefa fácil para ele e uma família com trânsito livre no crime, especialmente entre as milícias do Rio de Janeiro.

E o que isso tudo tem a ver com a nossa “guerra porto-alegrense”? Estamos em ano eleitoral. Mais do que isso, estamos diante das eleições (plural, porque há eleições parlamentares) mais importantes da história do Brasil, porque podemos chancelar de forma irreversível o projeto nazifascista, ultraliberal, entreguista e lesa-pátria do bolsonarismo, ou tentar recolocar o país nos trilhos de um sistema de maior democracia e justiça social. Bolsonaro já não tem o escudo da Lava Jato, o que enfraquece muito um dos flancos mais eficientes do programa. É preciso, então, reforçar outras áreas. Recrudescer o discurso da segurança, que passa pelo armamento em massa da população civil, é uma medida fundamental. Com uma população convencida da falência das instituições e da ineficácia dos órgãos de segurança, que não conseguem evitar o fechamento de escolas, os toques de recolher e muito menos garantir que alguém não seja assassinado, por encomenda ou por engano, ao sair ou voltar do trabalho, torna-se muito mais fácil vender o discurso da “justiça com as próprias mãos”. Não se faz justiça com as próprias mãos sem armar a população. Qual o único programa eleitoral que defende abertamente o armamento civil como forma de garantir a segurança privada?

Embora não haja eleições municipais agora, as relações entre as esferas administrativas exercem muita influência nos pleitos. Ter uma base sólida de apoio nos estados e munícipios é essencial para qualquer candidato/a ao Executivo nacional. Dessa forma, o prefeito Sebsatião Melo vai ter de se posicionar, escolher um lado, e, a julgar pelo histórico da sua eleição em 2020, o apoio à reeleição de Jair Bolsonaro é a perspectiva. Com isso, apresentar a uma cidade assolada pela violência e criminalidade a narrativa de uma solução para a segurança é um prato cheio para o bolsonarismo e, por outro lado, pavimenta o caminho para uma repetição do mandato de Melo, que poderá usar a afinidade com o governo central em sua campanha em dois anos, caso o projeto fascista do bolsonarismo seja novamente bem sucedido.

Por isso, com a clareza de que a violência e a criminalidade não começaram em Porto Alegre há 15 dias, é hora de investigar a razão de somente agora, às portas das eleições nacionais, a atenção da grande mídia ter sido atraída para isso. Observar o posicionamento do prefeito Melo a partir da necessidade de dar uma resposta às demandas de segurança da população é uma boa providência e pode indicar o rumo das ações governamentais da prefeitura a partir de 2023. Se alguém pretende perder tempo dizendo que estou misturando as competências, que segurança pública é atribuição do governo estadual, peço que atente para o fato de ser essa uma discussão de políticas públicas em que todos os entes federativos estão implicados, outra não seria a razão da ampliação da atuação das guardas civis, por exemplo.

Sebastião Melo precisará tirar a máscara que usou no baile da cidade e mostrar a sua verdadeira cara, se é a do bolsonarista autoritário que se elegeu na carona do “mito” ou do democrata e conhecedor dos anseios do povo, cuja imagem ele tenta vender em suas andanças pela cidade. Melo será Lula, Bolsonaro ou observará a tudo do alto do muro da terceira via?

*Imagem de destaque copiada de: https://www.brasildefato.com.br/2020/12/10/bolsonaro-inaugura-ponte-em-porto-alegre-e-diz-que-pandemia-esta-no-finalzinho. Acesso em: 12 de abr. 2022.

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Acorda, amor!*

Jair Bolsonaro e Sérgio Moro têm mais coisas em comum do que a compulsão para a mentira e a notada pouca inteligência. Ambos são produtos dos interesses das elites e, justamente pela baixa capacidade de realizar sinapses, foram escolhidos como testas de ferro de projetos escusos. São, em última análise, marionetes de grupos poderosos. Mas os dois têm muita sorte. Quando parece que vão afundar as suas pretensões na autossabotagem involuntária, provocada pela própria estupidez, algum fator externo surge como bote de salvação. Assim foi, por exemplo, com a crise sanitária, que dominou o noticiário por longo tempo. Aqui é preciso dizer que se trata, a bem da verdade, de mais um paradoxo do bolsonarismo, pois ao mesmo tempo em que o morticínio decorrente da necropolítica do (des)governo fez com que a CPI(zza) o declarasse genocida, a pandemia tirou o povo das ruas, o que garantiu a sobrevivência do sistema e da família.

Por seu turno, caso estivéssemos em país minimamente sério e em que as instituições republicanas cumprissem o seu papel e não fossem verdadeiros bunkers que blindam os crimes praticados no poder, Sérgio Moro estaria preso ou, no mínimo, a caminho da cadeia. Que sistema verdadeiramente democrático jogaria panos quentes em um ex-juiz que assume ter comandado, quando no exercício do cargo, uma operação judiciária destinada a acabar com um partido político? Em que país com um sistema judiciário comprometido com os interesses da nação um homem estaria livre depois de ter sido comprovado que se valeu da atuação no cargo para posteriormente atuar, a peso de ouro, na recuperação das empresas que ajudou a quebrar, levando junto a economia do país para o fundo do poço? Este país por certo não é o braZil do bolsonarismo.

Mas, bafejado pela sorte, Moro foi ajudado por um seu correligionário, que tratou de criar um fato capaz de reconstituir a máscara ética do paladino da justiça e da luta anticorrupção. Arthur do Val, deputado estadual e (agora ex) pré-candidato ao governo de São Paulo pelo Podemos, partido pelo qual Sérgio Moro vai pleitear a presidência da república, um playboy que ganhou notoriedade com o sugestivo apelido de Mamãe Falei, e que foi a representação da juventude reacionária (?) que ajudou a eleger Bolsonaro, se encarregou de levantar a bola para que o ex-juiz, ex-ministro e ex-bolsonarista requentasse um discurso enfático de moralidade, dizendo que não aceita as atitudes do colega de partido e que jamais dividiria o palanque com alguém capaz de tamanha atrocidade.


Sérgio é um homem de fé, daqueles que ainda acreditam na humanidade e na premissa de bom caráter das pessoas. Não fosse assim, não fosse por essa quase ingenuidade, ele teria desconfiado muito antes que os bolsonaros não são a boa gente que ele ajudou a botar no poder. Precisou frequentar os gabinetes do planalto por mais de um ano – e ver frustrado o seu plano de ser nomeado ministro vitalício do STF – para ver que Bolsonaro não era o sujeito impoluto e acima de qualquer suspeita que ele imaginou que fosse. Quando descobriu os flertes do presidente e seus filhos com a corrupção, as milícias e o crime organizado, Moro se afastou da família e foi tratar de ganhar a vida honestamente (??) prestando consultoria na área em que atuou por tanto tempo do lado de lá do balcão. Depois, atendendo a um chamado divino (ou talvez da casa dos marinho), não hesitou em rasgar o discurso de que não seria jamais candidato a cargos políticos. Só que, inepto, não honrou a confiança da rede, deu declarações e praticou atos que colocaram em risco o sucesso do plano e fizeram com que a Globo recuasse na investida do seu nome como a “terceira via”. Até que ele, Moro, e os articuladores da sua campanha fossem agraciados pela imbecilidade de Arthur do Val e, como se viu, o autoproclamado comandante da Lava Jato pudesse reassumir a imagem de homem probo e comprometido com os preceitos éticos e morais que devem nortear a conduta de um potencial governante.

E foi assim que a catástrofe verborrágica de um político inexpressivo e de passagem efêmera pelos círculos de poder resolveu o problema da Globo, do Instituto Millenium, da FGV e das instituições organizadas pela elite. Tudo indica que se o próprio Moro não fizer mais nenhuma bobagem, o que é bastante improvável, está restituído ao posto de representante da terceira via e artífice do projeto ultraliberal entreguista que a Globo um dia imaginou que estaria em boas mãos com Jair Bolsonaro, por conta do aval do Chicago Boy, Paulo Guedes, e do próprio Sérgio Moro. Mamãe Falei a um só tempo implodiu a própria trajetória política, reconstituiu o discurso ético e moralista de Sérgio Moro e, de quebra, livrou a Globo e seus asseclas da penosa tarefa de procurar soluções em alternativas inusitadas, como uma parelha de Temer e Leite, que poderia ser a bola da vez.

Enquanto isso tudo acontece e o noticiário da grande rede se dedica em 80% de tempo para cobrir a guerra de Putin, como tem sido chamada, e divide os 20% restantes entre exaltar a recuperação da economia brasileira (em que pesem o desemprego que cresce em proporções geométricas e a inflação galopante) e a miscelânea, talvez seja prudente que Lula deixe de lado momentaneamente o lobby com as elites e os agentes internacionais e se volte para a conversa com o povo, afinal, alheio a tudo isso, o PDT do interminável Ciro Gomes já botou o bloco na rua. Tempos interessantes de articulações políticas pela frente.

*Julinho da Adelaide

Imagem de destaque copiada de: https://pleno.news/brasil/politica-nacional/moro-rompe-com-mamae-falei-apos-audio-sobre-ucranianas.html. Acesso em: 7 de mar. de 2022.

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Guerras: escolha a sua

Os olhos do planeta se voltam para o leste da Europa. A guerra está deflagrada! Mas será que esta com que os noticiários ocupam 80 por cento ou mais do seu tempo é a única? Ainda, será que ela é a mais importante e a que tem efeitos mais imediatos e impactantes na nossa vida? Não quero nem entrar na questão das guerras que acontecem ininterruptamente há décadas em países africanos e que o ocidente libertador solenemente ignora. Nessas também se disputa fornecimento de energia ou exploração de minérios, mas seus protagonistas são de outra cor e não têm os olhos claros, então não despertam interesses humanitários das ONUs, OTANs e outras organizações do mundo livre, civilizado (e civilizador) e democrático. Eu quero mesmo é falar das guerras que travamos todos os dias, nas periferias das nossas cidades, e que eventualmente ocupam a pauta da grande mídia por terem chegado nas zonas nobres. Vamos ver o que há nisso.

Enquanto a guerra de Putin contra o mundo de bem (coletivo de cidadão de bem) se travava no discurso, um homem negro era espancado até a morte na beira de uma praia chique do Rio; em algum outro lugar, outro homem negro era assassinado por um militar que o confundiu com um assaltante; em outra praia, uma mulher é algemada com a sua amiga e levada à delegacia por ter ousado ficar com os peitos desnudos; em um estado do sul, um adolescente negro é suspeito de assaltar um supermercado, mesmo depois de ter confirmado com os seguranças se podia entrar com a sua mochila; em alguma periferia de alguma cidade, uma bala perdida encontra seu alvo no corpo de uma criança negra e um homem negro é fuzilado pela polícia dentro do seu carro, por que suspeitaram que ele tivesse roubado o veículo; uma mulher é brutalmente violentada e espancada pelo marido, uma menina de 5 anos é abusada pelo próprio pai, uma professora de uma escola tradicional é violentamente atacada nas redes sociais por falar em educação sexual com os seus alunos e alunas, um casal gay é atacado por neonazistas evangélicos…Acho que deu, né? Já tem guerra suficiente pra todo mundo por aqui também.

Imagem copiada de: https://www.oantagonista.com/brasil/moro-se-reune-com-temer/. Acesso em: 1º de mar 2022.

Mas vamos à guerra com o maior potencial destrutivo que está em curso. O Jornal Nacional ocupa o espaço que lhe sobra na narrativa antirrussa batendo em Bolsonaro por cima e por baixo. E, no intervalo, o agro é pop! O desaparecido Chicago Boy andou aparecendo na tela, com ótimas projeções para a economia nacional no pós-pandemia (quando será esse pós?). E a editoria do jornal, de forma (nem tão) sutil, começou a delimitar o que era ruim nos governos petistas, passou a ser bom em 2016 e voltou a ser ruim depois que Bolsonaro deixou de cumprir o que fora programado. Os dois anos do governo golpista foram, de acordo com o que se noticia, uma maravilha. E Bolsonaro estragou tudo ao conferir a si próprio uma autonomia inaceitável. Enquanto essa imagem se constrói veladamente no noticioso diário, a plataforma on demand lança uma série que requenta o Caso Celso Daniel.

Sobre isso, é legal uma atenção especial. Um querido amigo, meu compadre, muito antenado nas questões políticas e ávido consumidor de séries, disse que esta é muito bem feita e que afasta qualquer responsabilidade do PT pela morte do ex-prefeito de Santo André, ocorrida há 20 anos. Coisa que a Justiça já havia feito há bastante tempo, diga-se. Pois é sabido que vivemos tempos de imediatismo, em que as pessoas leem manchetes e saem deitando teses redes afora. Textos cuja leitura demande mais de 3 minutos, o tempo determinado para o sucesso comercial de uma canção pop nos anos 60, são descartados de forma arbitrária e implacável, mesmo que indiquem alguma possibilidade de terem sido bem escritos. Nesse mundo frenético, quem tem tempo de assistir com atenção e capacidade crítica a séries documentais? Um número restrito de pessoas, das que assistem séries, e que é ainda mais restrito em relação ao colégio eleitoral das próximas eleições, formado em sua maioria por pessoas que não têm a menor possibilidade de pagar pacotes de streaming, isso quando têm aparelhos de TV. Talvez se o meu compadre fizer um teste com essas pessoas e perguntar o que elas sabem sobre o caso Celso Daniel, muitas delas vão dizer que ele foi vítima de queima de arquivo do PT. E como elas não vão ver a série, muito menos ler bons textos sobre o tema, não saberão a verdade e ficarão com a mensagem subliminar (a Semiologia e a Linguística explicam) do nome Celso Daniel na cabeça. Então os processos mentais vão recorrer a informações prévias, arquivadas em algum lugar da cabeça, que dirão: Lula é o culpado! Está feita a narrativa e, assim, chegamos finalmente à pior das guerras, a das narrativas.

Imagem copiada de: https://marciokenobi.wordpress.com/tag/partido-da-imprensa-golpista/. Acesso em 28 de fev. 2022.

A partir dessa guerra suja de narrativas criadas ao sabor dos interesses das elites, e que incluem doses cavalares de notícias falsas (denominação antiga e em franco desuso para fake news), se delinearão as pesquisas de intenção de votos do Datafolha e outros. Com isso, a chance de permanecermos nessa marcha acelerada rumo à aniquilação das classes desfavorecidas do país cresce assustadoramente. E essa aniquilação tende a ocorrer muito antes do que o potencial bélico russo destrua o mundo civilizado. Por isso, é mais do que hora de pensarmos sobre que guerra devemos centrar nossa atenção. Não que a eventual terceira guerra mundial não tenha importância, longe disso, tem e muita. E é uma tragédia, como (quase) todas as guerras. Mas temos nossas guerras domésticas, que são diárias e nos impactam de forma muito mais imediata. E não são noticiadas. Quando o são, isso ocorre de forma distorcida e manipulada para embotar a visão da realidade e formar uma ideia míope que vai se refletir nas urnas. É hora, então, de segurarmos um pouquinho o desejo quase irrefreável de nos tornarmos autoridades em geopolítica e nos preocuparmos com a nossa realidade doméstica, que se não tem o glamour e o status de uma guerra nuclear, pode colocar em risco a subsistência de milhões de pessoas que vivem neste braZil nazifascista do bolsonarismo.

Imagem copiada de: https://ptnacamara.org.br/portal/2020/09/02/a-corrupcao-da-familia-bolsonaro/. Acesso em 28 de fev. 2022.

Você decide: qual a sua guerra?

*Imagem de destaque copiada de: https://domtotal.com/fato-em-foco/605/2020/07/violencia-policial-blindada-pela-impunidade/. Acesso em: 28 de fev. 2022.

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bolsonarismo, Política

A hora da elite trocar de posto

O bolsonarismo é um paradoxo em si próprio, a começar pela surreal situação de um sujeito inexpressivo, que não teria as mínimas condições de figurar sequer nos escalões inferiores da política nacional, chegar à presidência da república e emprestar o nome para apelidar um sistema (ou algo próximo disso). Em verdade, essa é uma das chaves de compreensão da conjuntura política brasileira hoje. Era preciso exatamente uma figura como Bolsonaro, com ares de novidade, devido à sua própria incompetência, já que em décadas de parlamento nunca fez absolutamente nada digno de nota, mas com toda a carga de conservadorismo capaz de atingir em cheio uma parte da população envolvida no discurso fácil da corrupção petista. Vale o clichê: Bolsonaro era o cara certo na hora certa.

O bolsonarismo – novo paradoxo – é um sistema simples com aparência complexa e por isso mesmo muito perigoso. A base discursiva está naquilo que o professor João Cezar de Castro Rocha chama de sistema de crenças Olavo de Carvalho, que nos anos 1990 surgiu como o porta-voz de uma nova direita, ou melhor, de uma velha direita repaginada, já que a essência da direita é a mesma desde que se pensou nela. Esta direita, que no fim daquela década ocupava o estranho posto de oposição, precisava se rearticular, mas para isso carecia de uma retórica que lhe desse sustentação, porque desde alguns anos já se via que o campo da esquerda transitava com desenvoltura na academia e nos espaços da cultura e, com Lula, um retirante nordestino, trabalhador braçal, começava a ocupar um espaço na população que não frequentava esses ambientes e que se via retratada naquela figura. Era, então, na guerra cultural que estava o caminho, e aí a participação de Olavo de Carvalho passou a ser decisiva.

A produção literária do guru dos bolsonaros está longe de ser desprezível, assim como é um grave equívoco (arrogância?) da elite intelectual carimbá-lo como um ignorante, charlatão etc. O homem era muito inteligente. Não no sentido tradicional da inteligência acadêmica, que estuda a vida toda, analisa tudo em pormenores à luz da ciência, discute os temas mais elevados entre pares; não, nada disso, a inteligência de Olavo de Carvalho era de outra natureza, muito mais pragmática e por isso mesmo próxima do que interessava aos inteligentes do poder, que detinham desde sempre o capital. Olavo muito cedo percebeu que a melhor maneira de vencer uma discussão era não dar ao adversário, transformado em inimigo, a chance de falar. Quantas vezes hoje, mesmo depois da extinção física do guru, se diz que com “bolsominion não tem como debater”? O próprio Bolsonaro venceu uma eleição sem participar de debates. Isso é um tipo de inteligência, e aqui não falo de Bolsonaro, que este é burro como uma porta, tanto que está botando a perder o projeto a que emprestou o nome, mas de Olavo de Carvalho. Tenho convicção que a arrogância e a megalomania de Bolsonaro teriam feito com que ele participasse dos debates em 2018, campo em que inevitavelmente seria trucidado, a começar pelo ilusionista Ciro Gomes, que tem na palavra um dos seus pontos mais fortes. Mas a estratégia armada passava por blindar Bolsonaro do debate sério, uma evidente inspiração olaviana. No palanque tudo bem, porque lá o que menos interessa é a solidez do discurso, e se precisa muito mais de algo próximo de um animador de auditório, um incitador de massas, e esse papel qualquer idiota, até Bolsonaro, era capaz de cumprir. E como a tensão era a tônica da política brasileira desde os protestos de 2013 e do golpe de 2016, com o discurso da corrupção petista consolidado pela Globo, nesse circo de horrores Bolsonaro não precisou sequer de grandes talentos dramáticos teatrais para simular o golpe decisivo na escalada ao poder. A sua atuação no atentado mais fake da história política mundial, quando o Messias foi atacado pelo Bispo, foi digna de um figurante das pornochanchadas do cinema brasileiro setentista. O resto já se sabe como foi.

Traçado esse breve desenho do esqueleto do sistema, é interessante pensar em mais um paradoxo, este que vai interromper a trajetória da famiglia no poder, o que não significa, como tenho repetido de forma enfática, o fim do bolsonarismo. A estrutura rasa do projeto, como se viu, foi dada por Olavo de Carvalho, com base na retórica do ódio (outro termo emprestado ao professor Castro Rocha), que passa pelo requentamento da paranoia do ataque comunista, o qual leva a uma revisitação da doutrina de segurança nacional, que depende das forças armadas etc. e tal. Entretanto, além de aniquilar o inimigo, seja pela impossibilidade do debate ou pela lavagem cerebral em torno da retomada dos valores tradicionais da família, feita em grande parte nos templos neopentecostais, era preciso também atender aos donos do poder no que têm de mais valioso, literalmente, que é o dinheiro. Assim, o bolsonarismo precisava de um anteparo econômico que estivesse habilitado a dar ao mercado, essa entidade etérea que domina o mundo, a segurança para apostar na plataforma protofascista do bolsonarismo. Entra em cena o posto ipiranga, com sólida formação na escola de Chicago e que já fizera o serviço no Chile: Paulo Guedes.

Ao mesmo tempo em que este representa um paradoxo, já que pode decretar o fim da continuidade do governo pelo que de mais sólido ele tinha, Guedes é, para mim, uma incógnita. Ele foi escolhido por quem escolheu Bolsonaro para dar a sustentação teórica e prática à agenda ultraliberal do projeto de governo. E foi blindado pelo governo e pelas suas forças de sustentação, a fim de poder fazer o trabalho sujo com tranquilidade. A Globo, que pelo menos desde o início da pandemia tem sido cruel com os bolsonaros, não disse até hoje uma só palavra contra o superministro, e o próprio Bolsonaro tratou de dizer, na reunião que derrubou o paladino da justiça e ex-potencial “terceira via”, que o único ministro com quem não precisava se preocupar era ele. Só que Guedes não conseguiu avançar quase nada em quase quatro anos além do que Michel Temer tinha conseguido em dois. As grandes reformas que destruíram a economia e a classe trabalhadora brasileira são obra feita no governo golpista de 2016-2018. O Chicago Boy, com todo o arcabouço técnico e doutrinário, não conseguiu levar ao cabo os projetos reformistas iniciados com Temer. E é aqui que as coisas ficam estranhas. Será que com toda a experiência e com a confiança que as elites econômicas lhe deram, Guedes foi incompetente para implementar com eficácia e na integralidade a parte econômica da plataforma (des)governista? Ou será que ele é mais diabo que o próprio diabo e usou os quatro anos de poder, a serem completados em breve, para fazer a sua própria política e engordar de maneira inimaginável as contas nos paraísos fiscais?

Eu tendo, neste momento, a pensar que o posto ipiranga é o grande golpista dessa fantástica equipe de golpistas. Tal como um roteiro pobre da tradição hollywoodiana de filmes destinados ao corujão, o inimigo estava no quarto ao lado e vai ser o único a sair ileso da implosão do desgoverno bolsonaro. Isso explicaria, talvez, o desespero da Globo e seus think tanks na busca por uma alternativa viável ao prosseguimento do projeto de poder que Guedes parece ter tomado para si. É preciso um novo posto, já que o ipiranga falhou. E talvez por aí, e só por aí, se tenham chaves pra entender o flerte de Lula com Alckmin e outras representatividades da direita. Esta última ainda não me parece a melhor estratégia, mas alguma coisa começa a se desanuviar no intricado tabuleiro de xadrez que as próximas eleições apresentam. Vamos manter os olhos vigilantes e a mente aberta às possibilidades mais impensáveis. Nunca se sabe de onde pode sair o próximo golpe.

*Imagem de destaque copiada de: https://www.apostagem.com.br/2021/03/20/guedes-assume-que-a-politica-economica-do-governo-bolsonaro-fracassou/. Acesso em: 6/2/2022.

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América Latina, Política

11 de setembro – 19 de dezembro: 3 meses ou meio século?

Antes que os americanos da parte norte do continente pudessem legitimar definitivamente a caça às bruxas terroristas do mundo islâmico, houve outro 11 de setembro. Em 1973, o primeiro 11barra9 instalou uma das ditaduras mais sanguinárias da história recente da (des)humanidade. Ao dizer isso, é importante observar que os mais cruéis regimes desde a segunda metade do século 20 têm em comum o fato de se localizarem na América – aquela que os americanos do norte insistem em desconhecer como tal -, e contaram com o apoio em todas as instâncias da América – a autodeclarada como legítima.

Após duas décadas e meia de regimes comandados por generais treinados e orientados pela CIA, teve início um período que apontava para uma virada, a partir dos processos de redemocratização iniciados nos anos finais do 1900, cujo fato mais significativo talvez possa ser a primeira eleição de Lula à presidência, já no novo milênio. Porém, não muito depois, o Brasil (ou braZil), viveu uma espécie de revirada, com o golpe de 2016. Na verdade, a defenestração de Dilma Rousseff foi o contrapiso de uma base autoritária e com tendências ao fascismo que se construiu no continente, cuja camada de cimento e acabamento se deu com a chegada ao poder dos bolsonaros, dois anos depois. Mas o que parecia ser o plano perfeito da extrema direita talvez não previsse a incompetência da família. Essa incompetência, aliada à arrogância e à autossuficiência de quem não se aceita como mero peão no tabuleiro de xadrez operado por quem realmente tem o poder, colocaram em cheque o projeto ultraliberal que se urdia no país já desde os anos da privataria tucana. Isso permitiu um esboço de rearticulação das forças de resistência ligadas aos campos democráticos, que conseguiram mobilizar o povo nas ruas por mudanças. Se esses movimentos não tiveram a força suficiente para derrubar o desgoverno genocida, há que se considerar as restrições impostas pela pandemia, que acabaram por cair como uma luva para a sustentação do bolsonarismo, o que explica, em parte, o boicote às medidas de segurança na área da saúde.

Voltando um pouco no tempo, se pensarmos na origem recente dessa escalada nazifascista, pode e deve ser questionado o fato dos governos petistas deixarem aberto flancos importantes para ação das elites, que deram suporte para o golpe jurídico-parlamentar que tirou do poder uma presidenta sem nenhuma comprovação de crime (marcas do machismo estrutural?). As articulações políticas, a necessidade de formar uma base de sustentação para a eleição e no segundo momento para a governabilidade, fizeram com que os governos do PT cometessem erros cruciais para a sua própria desintegração. Erros que parecem não ter sido suficientes para ensinar ao partido que o a força está na retomada dos seus processos históricos de constituição e na retorno às bases, como preconizam lideranças históricas, como Olívio Dutra, e militantes do peso de Mano Brown. Pensar em aliança Lula e Alckimin é considerar a possibilidade de novamente vender a alma e algo a ser muito debatido nas organizações das forças de Esquerda.

Imagem copiada de: <https://pt.org.br/nossa-historia/.&gt; Acesso em: 6 de jan. 2022.

Contudo, em que pesem os equívocos petistas e a aparente falta de coesão do campo democrático, há pouco menos de um ano da eleição, os prognósticos indicam a queda do império messiânico bolsonarista. Muito ainda há que se analisar, pensar, articular para que isso se torne realidade, principalmente sobre como se dará essa transição do modelo protofascista para algo mais próximo do começo do restabelecimento da democracia. Uma boa prática certamente é dar atenção ao vento da mudança que começa a soprar a partir da Cordilheira.

Na primeira metade do ano, o povo chileno já anunciava ao mundo o desejo de romper definitivamente com a história macabra iniciada em La Moneda naquele 11 de setembro. A escolha de Elisa Loncón, professora, mulher, Mapuche, para presidir a assembleia constituinte, emitia um claro sinal que a era pinochet, estava chegando mesmo ao fim. E quando se fala em período de terror, ditadura Pinochet, esses termos terríveis, enfim, não podemos esquecer que a desgraça chilena, que acabou com a autonomia de uma das economias mais sólidas do mundo e levou milhões de pessoas à ruína, inclusive com ondas de suicídio entre pessoas aposentadas, foi escorada nas políticas econômicas da escola Chicago Boy, com a orientação do superministro braZileiro Paulo Guedes.

Se o povo chileno começou a sair do estado de letargia a partir da eleição da assembleia constituinte, essa retomada de rumos está se confirmando com a eleição presidencial ocorrida no último fim de semana. Mas a ferrugem não dorme e o inimigo está sempre à espreita. O que parecia ser um processo relativamente tranquilo de consolidação de uma contraofensiva democrática, durante o primeiro turno da eleição que se encerrou no último domingo trouxe grande apreensão. A extrema direita, que parecia ter sido enterrada, mostrou que não está pra brincadeira, e o bolsonaro chileno, José Antônio Kast, chegou vivo e forte no segundo turno. A possibilidade de eleição do ultraconservador punha em risco o próprio processo de elaboração da nova Constituição, já que, por óbvio, ele era contrário. E continua sendo, afinal a sua derrota eleitoral não significa o fim da ideologia e das pretensões políticas dos grupos que representa.

Ainda assim, não obstante algumas previsões pessimistas e os receios de um contra-ataque fulminante da direita, a vitória de Gabriel Boric foi obtida até com uma margem segura diante do quadro que se temia: 55,8 por cento contra 44,1 do projeto fascista. Mas, por óbvio, não são números que possam inspirar tranquilidade ao campo democrático. Pelo contrário, se em termos práticos, diante das dificuldades que se apresentavam, a vantagem nos números eleitorais foi comemorada, há que se considerar que quase a metade da população votante parece ter optado pela manutenção e o recrudescimento da nefasta política pinochetiana. A relativização que considero ao dizer que essa apenas PARECE ter sido a vontade de quem votou em Kast, se deve menos a uma demonstração efetiva de força da extrema direita do que a uma certa desconfiança com as plataformas e práticas dos governos mais à Esquerda. E isso é muito preocupante, porque aponta para as dificuldades que tem o campo democrático de vender o seu peixe. É mais ou menos como algumas análises que atribuem a vitória de Bolsonaro em 2018 ao antipetismo, ideia da qual eu tenho sérias discordâncias, mas que em alguns pontos tem sentido. De qualquer forma, tanto os percalços no sepultamento do pinochetismo, quanto o fato da família bolsonaro ainda não ter sido apeada do poder, mesmo com elementos mais do que suficientes para isso, mostram que a luta pela redemocratização efetiva no continente latino é árdua e jamais pode ser considerada páreo corrido.

A mudança de ares nas políticas latino-americanas podem se expressar em um frase de Gabriel Boric, após a confirmação da vitória: “Hoje a esperança venceu o medo!” Não sei quem faz o papel de Regina Duarte no Chile, mas tenho muita esperança que os ventos da cordilheira inspirem a vassourada necessária por aqui e que os bolsonaros, os paulo guedes, os… sérgios moros e outros tantos a partir de 2023 sejam apenas personagens de livros de história. Como disse León Gieco:

“Solo le pido a Dios,

Que el engaño no me sea indiferente,

Si un traidor puede más que unos cuantos,

Que esos cuantos no lo olviden fácilmente”

Imagem copiada de: <https://www.youtube.com/watch?v=Gvyl_zdji2k&ab_channel=Mat%C3%ADasJim%C3%A9nez.&gt; Acesso em: 6 de jan. 2022.

*Imagem de destaque copiada de: <https://oglobo.globo.com/fotogalerias/povo-chileno-festeja-vitoria-da-esquerda-na-eleicao-para-presidente-veja-fotos-25326400.&gt; Acesso em: 6 de jan. 2022.

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Bet: que bicho é esse?

Na semana passada, o prefeito de Porto Alegre participou do programa Dus2 Podcast, apresentado pelos jornalistas Cristiano Silva e Geison Lisboa. Entre outras coisas, defendeu a liberação do Jogo do Bicho no Brasil. O argumento não é novo: o jogo é sério e os prêmios nunca deixam de ser pagos. Não conheço o suficiente dos meandros do Bicho pra saber se isso é assim mesmo, mas do pouco que sei, a corrupção não está no sistema de apostas propriamente, que, em última análise, trata apenas de sorte e azar, em que pese o que dizem os estatísticos, mas no submundo do jogo, que envolve violência extrema, tráfico (drogas, armas, influência), propinas, lobby etc. Não estou entrando no mérito da opinião do prefeito, se o jogo deve ou não deixar as sombras, isso é assunto pra outro momento. Quero pensar um pouco sobre outra situação que envolve jogos de azar.

Atualmente, vemos o universo do futebol dominado pelas casas de apostas. E elas investem alto. Despejam contêineres de recursos em publicidade nos programas esportivos e patrocinam 19 dos 20 clubes que disputam a série A do campeonato brasileiro neste ano. Alguns inclusive estampam o patrocínio na camisa. Mas que interesses movimentam esse mercado?

De João Havelange a Rogério Caboclo, a história de corrupção no futebol brasileiro é longa. Em 2005, numa das tantas vezes em que deixou de ser campeão brasileiro por fatores extracampo, o Inter foi vítima de uma rede de manipulação de resultados que dentro de campo beneficiou o Corinthians. O Timão, porém, era uma espécie de testa de ferro de um esquema sujo que de novidade não tem nada e muito menos acontece somente no terceiro mundo. Cruzando o oceano, nos anos 1980, o carrasco do escrete canarinho de 82, Paolo Rossi, foi condenado com outros atletas e dirigentes por participação em sistemas fraudulentos semelhantes. Já no século 21, ainda na Itália, a Vecchia Signora, Juventus, foi rebaixada de divisão no campeonato nacional pelos mesmos motivos. E falamos aqui de um dos berços da civilização ocidental. Fazendo o caminho de volta ao país do futebol, no campeonato brasileiro de 2020, que terminou em 2021, novamente o Inter foi prejudicado pela arbitragem e impedido de levantar a taça. Se naquele 2005 a fraude foi comprovada e assumida por alguns dos participantes, desta vez eu penso que a coisa tem alguma relação com os interesses em torno do mundo das bets. Mas é só uma hipótese. Por enquanto.

Engana-se quem pensa que isso só interessa ao espaço do futebol e, portanto, se restringe à esfera privada. Jogos de azar são proibidos no Brasil desde que a primeira-dama da época, 1946, esposa do presidente Eurico Gaspar Dutra, muito católica que era, entendeu que as apostas iam contra os preceitos divinos. O mandatário decretou e os cassinos foram para a clandestinidade. Toda uma época de glamour começou a decair. Na esteira daquelas coisas que só acontecem no Brasil, onde, por exemplo, a agiotagem é proibida, com exceção daquela praticada pelos banqueiros, alguns anos depois a única forma de jogo legalizada passou a ser administrada pelo governo, por intermédio da Caixa Federal. O que temos hoje, porém, é a abertura da concorrência com a jogatina oficial pela atuação das casas de apostas, que praticam jogos de azar amparadas por uma lei do final do governo golpista de 2016 e já na iminência do governo fascista de 2019: Lei 13.756/2018. Acontece que enquanto o serviço não é regulamentado, as operações financeiras do negócio são feitas fora do país, inclusive nos paraísos fiscais, para onde, a propósito, o ministro da economia costuma mandar os seus dólares. É dinheiro do povo brasileiro viajando para o exterior, lavadinho e (mal)cheiroso, livre, leve e solto.

Todo esse contexto aponta para algo daquela mistura que caracteriza as relações entre o público e o privado desde que o escrivão de Cabral por aqui passou, e que foi estudada por Sérgio Buarque de Holanda na primeira metade do século passado. Além da atuação representativa da letra B de bola das bancadas BBB do Congresso Nacional, a lei, que beneficia entidades privadas – e somente elas, porque nesse tipo de aposta o povo sempre perde -, passou pelo ministério atualmente chefiado pelo Paulo Guedes. Em dezembro de 2018, o presidente genocida (dito pela CPI e a ser avaliado pelo tribunal penal internacional), que é palmeirense mas torce pelo Flamengo, já tinha escolhido o seu superministro. Se não me falha a memória, e dificilmente ela me falha nesses casos, o mundo sabia quem seria o chefe da economia bolsonarista já bem antes da divulgação do resultado das urnas. Dizem até que isso até andou ajudando na vitória do capitão. Dessa forma, o acompanhamento e a “fiscalização” dos trabalhos desse novo sistema seria feito pelo Chicago Boy, e, consequentemente, os frutos da lei que libera a carpeta com grife começariam a ser colhidos na nova gestão.

O mundo do futebol de elite no Brasil envolve um mercado bilionário, que é gerenciado por uma das instituições mais corruptas da história do país e que sempre acaba conseguindo se esquivar de uma investigação aprofundada e séria pelos órgãos competentes. É nesse terreno fértil para negócios obscuros que atuam as casas de apostas. Com o aval do governo, elas despejam dinheiro em todos os segmentos do futebol, inclusive nos clubes, e exportam dinheiro brasileiro para o outro lado do Atlântico, numa história que se repete desde que os portugueses (os navegadores, não os técnicos de futebol) avistaram a nossa costa.

Sabemos da paixão do povo brasileiro pelo futebol. Tirando os clubes de aluguel, que existem para os empresários engordarem suas contas e os banqueiros garantirem o seu caviar, torcedores e torcedoras fazem muitos sacrifícios para acompanhar o time do coração. Que ninguém tenha a arrogância de dizer que isso é bobagem, porque a relação de uma pessoa com um time de futebol envolve coisas muito mais profundas do que se pode expressar na máxima pão e circo. O mundo do futebol mexe com o que de mais humano têm as pessoas, futebol envolve amor e vida. Muitas vezes de forma irracional, é verdade, mas não é só a razão que move o ser humano. Só que hoje tudo se resolve em e por interesses que nada têm a ver com esses sentimentos puros e genuínos que atravessam as gerações. É a mercantilização da paixão, a monetização (ah, o linguajar moderno…) do amor. Tudo está no pacote do futebol moderno.

De Aristóteles a Kant, passando pelos teóricos do conceito moderno de estado, não sei se algum estudioso conseguiria dar luz às implicações éticas imbricadas no tipo de relação que se estabeleceu entre clubes, federações, empresários, mídia, governo e casas de apostas. O que sei é que no dia em que se desvelarem as estruturas de funcionamento desse sistema, os criminologistas terão bastante trabalho.

*Imagem de destaque copiada de: <https://noticias.r7.com/economia/protesto-na-faria-lima-poe-guedes-em-nota-de-us-95-milhoes-08102021&gt;. Acesso em: 2 de dez. 2021.

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O Brasil entre a consolidação do fascismo e a retomada do caminho democrático: o que os números mostram

“Meus amigos essa noite eu tive uma alucinação, sonhei com um bando de número invadindo o meu sertão, vi tanta coincidência que eu fiz esta canção.” Assim Raulzito começa a explanação sobre as coisas dos números, que passa pela Bíblia e as crenças populares, o maniqueísmo ocidental e por aí afora.

Eu, a única vez que rodei de ano foi em Matemática. Teve outras, por faltas e desistências, mas isso é outra conversa. A minha administração financeira é caótica e tenho certeza que se não fossem os compassos compostos eu seria um músico razoável. Mas ao contrário do que isso possa indicar, eu gosto dos números e, fundamentalmente, tenho grande respeito e admiração por quem os trata bem, sejam os estatísticos que fazem os cálculos sobre todas as coisas, ou os engenheiros que calculam a exata quantidade de explosivos necessária para abrir um túnel em meio à montanha. Os números dizem coisas interessantes, tanto nas aplicações práticas quanto nas zonas menos racionalmente explicáveis do conhecimento. A Numerologia, gostem ou não, tem estudos sérios. E lembremos que os gregos, Pitágoras e outros, diziam que o Arché, o elemento fundamental, era um número. Talvez não seja bem isso, Filosofia Clássica também não é o meu forte, mas é alguma coisa por aí.

O meu amigo Douglas, letrado e historiador, colabora muito com as ideias colocadas por aqui, mesmo que às vezes ele nem saiba. Dia desses ele disse mais uma frase muito boa. Indo direto ao ponto, como costuma fazer, sem meias palavras: “Se apertou 17 em 2018, que se dane!” Me fez dar uma atenção especial a alguns números. Em 16 o povo sofreu um golpe articulado pelo 15. Já em 18, a facada foi dada pelo 17. Ou seja, os números nos dizem que desde 2016 (pelo menos desde lá) estamos sempre em retrocesso.

Abstrações numéricas à parte, se formos para os números frios e reais não será difícil constatar que a caminhada em marcha à ré é acelerada e se apresenta em regressão geométrica: em relação a 2016, temos hoje muito menos empregos formais, muito menos investimentos em ciência e educação, muito menos comida na mesa, muito menos direitos sociais e muito menos um monte de coisas. Mas, sejamos justos, se a nossa observação tiver outra perspectiva, a constatação é que os números são altos e avançamos nas mesmas proporções: muito mais miséria, muito mais violência de todas as formas, principalmente contra pessoas vulneráveis, muito mais fome, muito mais inflação, muito mais dólares do Chicago Boy nos paraísos fiscais.

O fato é que o número que deveria aumentar exponencialmente é o das pessoas conscientizadas da grande bobagem que fizeram, do crime que cometeram ao apertar 17 em 18. Anuncia-se que o presidente genocida, isso dito pela CPI, vai se filiar a algum partido por esses dias. Talvez até já tenha se filiado. Eu tenderia, no primeiro momento, a dizer que deve ser uma dessas siglas de aluguel. Nenhum partido minimamente sério, mesmo que ultraliberal e com tendências ao fascismo, aceitaria esse sujeito nos seus quadros. Se aceitar, no momento exato da assinatura, mesmo que seja com Bic, o tal partido terá jogado na lixeira da história o mínimo de seriedade possível.

Imagem copiada de: <https://twitter.com/IvanValente/status/1458585513439285249&gt;. Acesso em: 16 de nov. 2021.

Ele andou se oferecendo ao PP, mas a repercussão dentro do partido não foi das melhores. Parece que o caminho é o PL, do Valdemar Costa Neto, que tem uma folha corrida de respeito e é grande aliado do governo ex-17, eleito em 18 para acabar com a corrupção do 13, sem se preocupar com o 45. Nessa miscelânea numérica, o que menos interessa é a sigla, no fim das contas eles, PL e PP, estarão juntos, afinal ambos, como tantos outros, são rebentos da Arena. Arena que, a propósito, uma estudante, cotista social na Universidade de Caxias do Sul, tentou refundar há alguns anos.¹ Parece que não deu muito certo, porque as lideranças do partido novo, quer dizer, Nova Arena andaram se estranhando e o projeto naufragou. O próprio Bolsonaro não conseguiu gente pra endossar a criação de um partido novo. Não o Partido Novo, que este, que se diz novo apesar das velhas práticas, vingou, mas um que não por acaso ele chamaria de Aliança. Voltando aos números, o do PL é 22 e se poderia investigar se isso não é uma tentativa de mudar o padrão. Em 16, o 15; em 18, o 17; o que significa andar pra trás (é a Matemática que diz), então talvez eles queriam se livrar desse estigma e pelo menos ficar na mesma. Só uma hipótese. Mas prefiro pensar a coisa por outro lado.

Bolsonaro precisa de um partido pra tentar a reeleição. Ele já transitou por vários, inclusive o PP, e se elegeu por um alugado, que logo em 2019 chutou. Agora a coisa é um pouco diferente, ao que tudo indica. Diante da tentativa frustrada de ter um partido pra chamar de seu, o que seria uma prova clara de força, o bolsonarismo deve estar pensando que desta vez vai precisar de uma estrutura mais forte. Quando um político tenta a reeleição, especialmente no Executivo, o seu principal cartão de visitas é o trabalho já realizado. Em três anos de mandato presidencial, Bolsonaro só fez autopropaganda negativa, por isso precisa reverter a própria imagem. A chance de fazer isso num partido sem expressão diminui. Por outro lado, um partido maior, mais estruturado, com trajetória consolidada nos estados e municípios e uma ideologia conservadora e autoritária à prova de qualquer refutação, pode dar melhor sustentação ao prosseguimento da implantação da plataforma nazibolsonarista.

Tudo isso se diz e se analisa em tese, muita coisa ainda vai rolar até as eleições. Mas é preciso que as forças de resistência resolvam esse problema, que é muito mais do que meramente matemático. O nome de Lula está longe de ter a aprovação pacífica da Esquerda. Isso mostra uma certa incapacidade do campo democrático de produzir novas lideranças. Estamos sempre às voltas com as mesmas figuras. Entretanto, sem a Rede Globo e o Instituto Millenium no apoio, construir um nome em pouco menos de um ano é impensável. E aqui há outro ponto nevrálgico: qual a ideia da Globo? Pedro Bial lançou um balão de ensaio com o governador gay que não se quer gay governador, mas a coisa não andou, ao que parece. Talvez estejam pensando na refundação da república de curitiba, com os lavajatianos paladinos da cruzada moralizadora. É difícil saber o que passa na casa marinho, mas é preciso atenção, porque a rede mafiomidiática costuma resolver o X da equação a partir dos ajustes na sua matemática privada.

Assim, talvez devamos fazer uma concessão aos aspectos subjetivos e supersticiosos dos números e aceitar o 13 como a possibilidade de travar a escalada fascista. A partir daí, em 2023 começamos a fazer cálculos para traçar a rota rumo ao retorno da democracia. É um caminho longo, não podemos nos iludir, mas em algum momento precisaremos botar o pé nessa estrada. Os números do tempo correm contra nós.

¹(Para maiores informações: https://oximarraoalucinogenocom.wordpress.com/2018/06/12/a-arena-que-nao-e-pro-futebol/)

*Imagem de destaque copiada de: <https://www.metropoles.com/brasil/secretarios-de-saude-lamentam-as-600-mil-mortes-por-covid-negacionismo-perverso&gt;. Acesso em 16 de nov. 2021.

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Entre tapas e beijos, a roda da economia gira

Em tempos de séries sobre tudo, ainda há espaço para os filmes? Acho que sim, sempre haverá. Um filme dirigido por Martin Scorsese e estrelado por Leonardo DiCaprio, por exemplo, é um filme que deve ser visto. Na pior das hipóteses será um filme bem feito. Sugiro, então, O Lobo de Wall Street, de 2013, que permite que a gente comece a entender um pouco mais o funcionamento do mundo dos altos negócios.

Mudando de saco pra mala – pero no mucho -, vou transcrever um trecho de um livro que estou terminando de ler:

“Cerca de de dois meses depois disso, pedi ao senhor Hugh o privilégio de alugar meu tempo. (…) após alguma reflexão, ele me concedeu o privilégio e propôs os seguintes termos: eu teria todo o meu tempo para mim, faria todos os contratos com aqueles para quem eu trabalhasse e procuraria meu próprio trabalho; e, em retribuição por essa liberdade, eu deveria lhe pagar 3 dólares ao final de cada semana; arranjar-me com as ferramentas de calafetar e com pensão e roupas. (…) Chova ou faça sol, com ou sem trabalho, ao final de cada semana, o dinheiro deveria ser entregue, ou eu perderia meu privilégio. Esse acordo, será percebido, era decisivamente em favor de meu senhor. Aliviava-o de toda a necessidade de cuidar de mim. Seu dinheiro era certo. Ele receberia todos os benefícios de possuir um escravo sem seus ônus; enquanto eu suportaria todos os ônus de um escravo e sofreria todos os cuidados e ansiedades de um homem livre. Achei que era um negócio ruim. Mas, ruim como era, achei-o melhor do que o antigo método de me arranjar.”

O que está descrito acima aconteceu mais de um século e meio antes do advento da uberização da economia e é o relato feito por Frederick Douglass, no livro “Autobiografia de um escravo”, publicado este ano pela Editora Vestígio, cuja leitura é impactante, dada a riqueza com que o autobiografado detalha os seus tempos de escravidão, nos Estados Unidos do começo do século 19. Esta e outras passagens do livro acabam tratando por linhas diversas de questões da economia, do funcionamento do mercado, de como os interesses das elites econômicas determinam os acontecimentos políticos. Algo que também é retratado no filme de Scorsese.

Os dois séculos e tanto que separam as duas obras, uma de ficção e outra uma biografia verdadeira, mostram que o que muda é apenas a tecnologia e os atores sociais, nunca a lógica do sistema: tudo gira em torno do capital. No Brasil, o processo de colonização teve motivações econômicos, a independência teve motivações econômicos, a abolição do regime escravagista teve motivações econômicas, até mesmo a (nada) heroica Guerra Farroupilha, que está em plena celebração, teve motivações econômicas. Por que hoje as coisas seriam diferentes?

Quando assumiu o governo, o caçador de marajás confiscou a poupança do povo. Não sem antes avisar alguns privilegiados. Por sua vez, o príncipe da privataria, que outrora foi um acadêmico (quase) comunista, promoveu o desmonte de setores importantíssimos da economia do país, fazendo doações ao capital (às vezes nem tão) estrangeiro. Aliás, Raulzito já vinha dizendo desde o final dos 70’s que a solução é alugar o braZil. Já no nosso século, o ativismo judicial e o seu lavajatismo derrubaram uma presidenta e depois elegeram um presidente da república. As motivações? O desmanche dos setores energético, da construção civil, da indústria frigorífica e outros podem dar pistas. Levar ao Planalto um plano de governo cuja agenda econômica privilegia os interesses dos articuladores do ultraliberalismo era mais do que necessário depois de alguns anos de programas políticos com algum comprometimento com causas sociais. Era preciso romper essa estrutura, e para isso, nada melhor que um golpe, honrando a tradição democrática braZileira.

Em se tratando de golpes, a família Marinho tem know-how. As organizações Globo têm atuação decisiva nessa seara desde 64 pelo menos. De uns tempos pra cá, o Jornal Nacional, principal noticioso televisivo do país, pelo menos o mais assistido, bate forte em Bolsonaro. O seu ministério não é poupado, com uma única exceção, justamente a pasta da Economia. Acontece que nos últimos tempos o Chicago Boy vem mostrando falta de força para levar em frente com a rapidez necessária as políticas entreguistas que beneficiam as elites econômicas, que esperavam que tudo fosse mais fácil e ágil, diante do cenário que antecedeu a chegada do governo protofascista ao poder central. Paulo Guedes já não é unanimidade entre o alto empresariado, é questionado pelos banqueiros, enfim, a economia não anda muito bem. Nesse estado de coisas, Bolsonaro passa os últimos dois meses promovendo procissões de morte braZil afora, levando motociclistas enlouquecidos às ruas e estradas, conclamando caminhoneiros a pressionar as instituições, elevando a temperatura no meio rural, literalmente, com as queimadas na Amazônia, e metaforicamente, a partir de discursos virulentos de reis da soja e outros tocadores de berrante golpistas. (Mais um parêntese: aprofunde-se o que há de obscuro no Caso Lázaro.) Um dos objetivos desses movimentos era preparar os grandes atos do dia da independência.

No tão esperado Sete de Setembro, Bolsonaro foi aos palanques com um discurso enfurecido. O alvo principal era Alexandre de Moraes e, por consequência, o STF, que não é outro senão aquele tribunal referido por Romero Jucá na célebre frase: “Com supremo com tudo.” Jucá, como sabe, foi homem forte do governo golpista. A loucura bolsonariana por óbvio teve reflexos na economia, com fuga de investimentos, índice baixo na Bovespa, ações de grandes empresas brasileiras despencando, dólar subindo e tudo aquilo que se sabe que acontece quando a instabilidade política é forte. Apenas dois dias depois, entra em cena o pacificador. Este sujeito, que em 2016 foi declarado inelegível pela Justiça Eleitoral de São Paulo, mas que mesmo assim assumiu a presidência da república pouco depois, e que depois de ganhar o noticiário sendo preso pela PF chefiou uma missão humanitária do braZil em Beirute, preparou o fornilho do cachimbo da paz que selou o armistício entre Bolsonaro e Moraes no Nove de Setembro.

O tempo que vai durar o discurso moderado de Bolsonaro não se sabe, muito menos o namoro com o ministro, mas no aspecto político as repercussões já se fazem notar, com pedido de impeachment engavetado sem prazo, investigação do PGR suspensa, revogação de mandados de prisão e HCs impetrados e por aí vai. Mas isso são detalhes, desdobramentos naturais dos fatos, o mais importante para a felicidade geral da nação é que os investidores que compraram as ações de empresas brasileiras em baixa pela crise provocada por Bolsonaro, abnegados patriotas que amam esta terra acima de tudo (ou seria Deu$?) e que não se importam em perder dinheiro para ajudar o país a sair da crise, devem ter ficado surpresos com o “golpe de sorte” da elevação do Ibovespa e a queda do dólar na quinta-feira. Se vão ganhar algum nessa ciranda econômica, ora é merecido. Ou não é?

Imagem copiada de: <https://www.poder360.com.br/opiniao/governo/o-coronavirus-e-a-crise-que-vai-testar-bolsonaro-e-guedes-escreve-thomas-traumann/&gt;. Acesso em: 14 de set. 2021.

*Imagem de destaque copiada de: <https://steemit.com/pt/@aldenio/com-o-supremo-com-tudo&gt;. Acesso em: 14 de set. 2021.

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A fantástica fábrica de fumaça: ou de como se arma um golpe

O assunto do momento é a promoção dos generais ao marechalato. Ou era, já que a produção de bombas de fumaça tem ritmo industrial e enquanto este texto estiver no prelo talvez já haja outro tema fundamental a ser discutido nas rodas e nas redes. Verdade? Mentira? Está no portal da transparência, este sistema hermético a que só iniciados têm pleno acesso? Não está? É legal? O Dr. Tibiriçá pode ser marechal, furando a fila, já que encerrou a carreira como coronel? Enquanto a opinião pública entra na onda da mafiomídia, sempre ávida por assuntos que distraiam a audiência enquanto a pátria é subtraída em tenebrosas transações, e se perde nesse debate que parece que sai de lugar nenhum e chega a nenhum lugar, a boiada vai passando, e pastando. Sim, é importante saber a verdade sobre esse absurdo, mas a GUERRA do momento se trava em outras frentes.

Na semiótica perversa do bolsonarismo, esta é mais uma “mensagem subliminar”. O pressuposto para a existência dessa excrescência bem ao gosto da caserna, uma patente extraordinária concedida a militares com “notáveis serviços prestados à nação”, é a guerra. A guerra pode viver sem marechais, embora isso seja improvável, mas marechais não vivem sem guerra. Estamos em guerra. Com ou sem novos marechais.

Entendido que o tempo é de guerra, vamos para outra ponta da análise. A narrativa da ameaça vermelha, que esteve na base de todos os golpes aplicados na democracia brasileira desde a república – também ela originada num golpe – foi requentada por Olavo de Carvalho nos anos 90 e levou Bolsonaro ao poder. Pouco menos de um século antes, um dos maiores embustes da história mundial foi engendrado a partir dessa retórica fantasiosa: o Plano Cohen, que sustentou a instalação do Estado Novo. É possível pensar no discurso do voto impresso como um plano cohen bolsonarista, guardado na manga como uma carta a ser lançada na mesa, caso a lavagem cerebral de parte da população que pode sustentar a reeleição seja refreada e o resultado seja adverso? Desconfio que sim. Não com a sofisticação do mentiroso documento getulista, que os generais (seriam marechais?) de agora são bem menos inteligentes que os de 30. Mas a ameaça que ele encerra tem a mesma essência golpista.

Em O Presidente Negro, escrito nos anos 1920, Monteiro Lobato já antevia em mais de 300 anos o sistema eletrônico de votação como um mecanismo de extrema segurança na eleição estadunidense de 2228¹:

– Eram ainda as eleições no nosso sistema de hoje?

– As eleições do século 23 em nada lembravam as de hoje, consistentes na reunião dos votantes em pontos prefixados e no registro dos votos. Tudo mudara. Os eleitores não saíam de casa – radiavam simplesmente os seus votos com destino à estação central receptora de Washington. Um aparelho engenhosíssimo os recebia e apurava automática e instantaneamente, imprimindo os totais definitivos na fachada do Capitólio.

De há muito se havia eliminado as hipóteses de fraude, não só porque a seleção elevara fortemente o nível moral do povo, como ainda porque a mecanização dos trâmites entregava todo o processo eleitoral às ondas hertzianas e à eletricidade, elementos estranhos à política e da mais perfeita incorruptibilidade.

Como convinha a um racista empedernido e entusiasta da eugenia, a temática central do livro é a supremacia branca (e também masculina), visível no trecho em destaque, que coloca a seleção racial como elemento central na erradicação da corrupção, mas que atribui, também, à inviolabilidade do sistema eletrônico a impossibilidade de fraudes. Hoje, cada meme que as brilhantes mentes brasileiras lançam nas redes com esse motivo, longe de desagradar Bolsonaro e seus sequazes, mostram que a estratégia diversionista é cada vez mais certeira. Não há dúvida da grande capacidade do nosso povo de fazer piada de quase tudo. E isso é bom. É bom rir. Mas enquanto se perde um precioso tempo tratando a volta do voto impresso como mais uma das patacoadas risíveis de bolsonaro, e inventando piadas sobre isso, deixa-se de pressionar efetivamente o aparelho parlamentar bolsonarista a instaurar um, somente um, dos cento e tantos pedidos de impeachment engavetados pelo presidente da Câmara, que alguns reputam somente como um sabujo do (des)governo no Legislativo.

Não sou bom em cálculos, mas não tenho receio de afirmar que o tempo que demanda a discussão sobre o voto impresso é imensamente superior ao debate, se é que existe, sobre a recondução do emissário bolsonarista à PGR. Aliás, qual a parcela do eleitorado que conhece minimamente a função do Ministério Público da União e do seu chefe, o Procurador-Geral da República, na estrutura democrática do país? Alguém sabe que essa conversa absurda de volta a voto impresso poderia ser facilmente encerrada se houvesse um PGR autônomo e zeloso das suas funções determinadas pela Constituição Federal e não fosse apenas uma espécie de posto avançado da presidência no Ministério Público?

Imagem copiada de: https://eassim.com.br/para-aras-e-lira-bolsonaro-nao-comete-crimes-ao-atacar-democracia-e-ofender-autoridades/. Acesso em: 9/8/2021.

De outro lado, vejo pouquíssimo debate sobre o avanço ianque na Amazônia, que atenta ostensivamente contra a soberania nacional, e ainda menos sobre as reformas devastadoras que a agenda do chicago boy promove, que entregam o estado brasileiro ao capital privado, e contam com forte apoio do Congresso golpista.

No Judiciário, a reação patética do presidente do STF aos ataques bolsonaristas à Corte foi mais um ato dessa ópera bufa (que sequer merece essa comparação) e escancarou a covardia das instituições diante da violência do monstro fascista. E neste caso mostra que o filho número 171 tinha razão quando disse que não precisa nem de um jeep pra fechar o Supremo. Enquanto isso é visto como uma verborragia estúpida do sujeito que disputa com o pai e os irmãos o posto de demente maior da familícia, o efeito prático é o mesmo, porque escancara um tribunal acovardado e inerte, que se limita a pronunciamentos que provocam tantas gargalhadas na canalha quanto os memes do voto impresso. Tribunal que aceita com naturalidade um dos seus ministros, não por acaso o presidente do TSE, ser chamado de filho-da-puta pelo mandatário genocida (https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/bolsonaro-chama-barroso-de-filho-da-puta-mas-apaga-video-assista/).

Talvez tenhamos nos próximos dias (mais) uma poderosa nota oficial da OAB exigindo respeito às instituições, (mais) um forte manifesto da ABI pela liberdade de imprensa, ou (mais) uma carta aberta conjunta de entidades que pregam a manutenção do estado democrático de direito, que não servirão para mais do que provocar boas doses de risadas do exército bolsonarista, que, como disse o seu messias, caga pra essas coisas.

É preciso mais do que nunca abandonar os eufemismos e dar nomes claros e entendíveis às coisas, para que se possa entender a verdadeira dimensão que elas têm. Rachadinha, de que, a propósito, já não se fala (as bombas de fumaça…), é ROUBO e CORRUPÇÃO; ruptura institucional é DITADURA; voto impresso e auditável é GOLPE. Está na hora do campo político progressista entender a retórica do bolsonarismo e encontrar o caminho em meio à fumaceira dos balões de ensaio que a cada dia são disparados na mídia e nas redes e que têm o objetivo único de desviar a atenção da destruição do país pela cavalgada fascista ultraliberal. A pensão das filhas solteiras é distorcida e se constitui numa vergonha nacional, isso não se discute, mas enquanto este for o assunto dominante, estamos cada vez mais próximos de um golpe oficializado. O plano do voto impresso, ao mesmo tempo em que funciona como mais uma das tantas manobras diversionistas dos criminosos que comandam o país, tece lentamente e com cuidado a teia que vai sustentar a quartelada de outubro de 2022. O povo tem pouco mais de um ano para entender essa lógica e fazer o que é preciso para derrubar o governo facínora. A alternativa é continuar se debatendo entre fakenews e cortinas de fumaça e acreditando que o talento das instituições para produzir notas e manifestos bonitos e bem escritos vai salvar o país do abismo para que ele está sendo empurrado em marcha acelerada.

Imagem copiada de: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50810066. Acesso em: 9/8/2021.

¹LOBATO, Monteiro. O presidente negro. Jandira, SP: Ciranda Cultural, 2019. p. 93.

Imagem de destaque: acervo do autor





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Agronegócio, bolsonarismo, Direitos Humanos, Política, Rio Grande do Sul

A neve nos campos de soja: ou o estado das três capitais

O que não tem faltado ultimamente é assunto para a crônica política. Hoje poderia especular, por exemplo, o que está por trás do suposto desentendimento entre Bolsonaro e o chicago boy na taxação das elites. Poderia fazer um crossover de esporte e política, pensando que a rede goebbels, ops, Globo, poderia terminar de vez com o discurso quadrienal hipócrita da superação e do heroísmo dos e das atletas olímpicas do BraSil – que se superam e são heróis e heroínas – e usar todo o seu poder para cobrar incentivos reais dos governos e da classe empresarial para que o esporte seja realmente um caminho para melhorar o país. Seria legal ir mais especificamente a um ponto alto desta olimpíada, onde tem aqui sim um crossover maravilhoso que une Bach e MC João. E o Mário Frias? Não daria pano pra manga falar sobre a desgraceira cultural no braZil com essa gente no poder?

Imagem copiada de https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/07/4940245-planalto-homenageia-dia-do-agricultor-com-imagem-de-homem-armado.html

Só que esta semana um amigo me mandou por WhatsApp algo que ele escreveu. Este meu amigo é uma das referências mais importantes no meu envolvimento com coisas da política, desde as lutas sindicais do serviço público federal nos anos 90 e da formalização do Diretório Acadêmico Osvaldo Oppitz, no velho colegião do Direito da Ritter dos Reis, em Canoas, ainda nos 90’s. A análise que ele faz da conjuntura política do enclave europeu em terras brazilis é preciosa. Pedi autorização para compartilhar o texto e ele disse que sim, mas que por algumas razões não queria que fosse revelada a autoria dele. Sugeriu que eu assinasse como meu. Jamais faria isso! Seria uma sacanagem com ele, que mesmo com a sua decisão de anonimato respeitada, claro, é o autor; mas seria uma sacanagem ainda maior comigo mesmo, porque as pessoas que me leem esperariam daqui pra diante que eu escrevesse dessa maneira e eu preciso de muita estrada pra chegar perto do que o A… – ops, quase entreguei a rapadura! – faz. E, ademais, a proposta aqui é divulgar ideias e não autorias. Então, muito obrigado pela generosidade de partilhar o teu pensamento, meu querido amigo, e me permitir a honra de ser o teu porta-voz neste momento! Segue aí o teu texto, que agora é de todes.

“Hoje no Rio de Janeiro, faz 32 graus e quem pode, se mandou para a praia. Mais tarde, os infelizes cariocas vão tomar uma cerveja antes de dormir, escutando os inúmeros tiroteios que já fazem parte da ecologia acústica local. Quem sobreviver à Guerra Civil, poderá ver reality shows idiotas com pessoas mascaradas cantando.

O gaúcho empobrecido não se importa em andar de Havaianas no meio da chuva congelada. Importante mesmo é saber que os estancieiros da Farsul estão produzindo soja pelos poros e pressionando pela dragagem do Super Porto. Enquanto o gaúcho pobre, separatista de Extrema Direita e chauvinista odeia a China e denuncia o seu vírus fabricado em laboratório, os estancieiros gaúchos supremacistas brancos, risonhos e rechonchudos vendem soja para Pequim.

Imagem copiada de https://oglobo.globo.com/brasil/em-campanha-no-sul-bolsonaro-diz-que-nao-sera-jairzinho-paz-amor-23020818

É fato: os cariocas e os fluminenses são analfabetos políticos porque conseguiram eleger Jair Bolsonaro, seus filhos sádicos e o pastor Marcelo Crivella. Os cariocas gostam de figuras sebosas e criminosas que usam a política para se valer do Foro privilegiado. São portanto diferentes dos gaúchos: os gaúchos são politizados, e elegeram Antônio Britto, Germano Rigotto, Yeda Crusius, Lasier Matins, Ana Amélia Lemos, e o garoto do governo perfeito sem questionamentos, Eduardo Leite. Também conseguiram transformar em deputados Onyx Lorenzoni e Danrlei de Deus, e catapultaram ao senado o líder da SS local, Luis Carlos Heinze.

Heinze é um racista patético, bolsonarista inflamado e que não nega a gloriosa tradição ariana: lidera pesquisas para o governo do estado. Em 2014, então deputado federal, Heinze se referiu aos quilombolas, indígenas e homossexuais como “tudo o que não presta”. Eleito pelos europeus “o racista do ano” naquele longínquo 2014, Heinze agora se tornou famoso por dizer que Cloroquina cura de berne no gado à Covid. Naquele ano, nosso vereador de Rio Grande, Wilson Batista (PMDB), vulgo Kanelão, se nivelou a Luis Carlos Heinze ao dizer que na Democracia rural gaúcha, os negros podiam até comer em restaurantes. Os gaúchos elegem esta gente graças ao seu projeto: uma pátria que seja um Reich. Avante gaúchos da Gestapo!

Imagem copiada de https://www.correiodopovo.com.br/colunistas/eduardo-conill/senador-heinze-recebe-condecora%C3%A7%C3%A3o-1.511846

Os gaúchos colocaram Heinze no senado porque são politizados e inteligentes. São inteligentes graças à sua genealogia, pois conforme a RBS são todos brancos, não fazem parte do Brasil e estão no topo da ciência vitoriana, com sangue caucasoide. No Rio Grande do sul da RBS, qualquer um que morrer de hipotermia, estará dando a sua vida pelo grande projeto da pátria pampeana: o sonhado Reich local.

Enquanto as multinacionais lavam dinheiro em consórcios nacionais, e compram nossas estatais por preços de terrenos nos subúrbios de Rio Grande, os gaúchos empobrecidos, sem bombachas e sem chimarrão, guardam para si o único souvenir da enorme pátria pampeana que lhes resta: o frio. Há frio para todos aqui. Falo de frio de verdade. Há muito frio hoje no Rio Grande do Sul. O povo gaúcho é frio: odeia o magistério, odeia os indígenas, odeia os sem terra. O gaúcho não tem onde morar, mas defende o direito dos latifundiários armados. O gaúcho também é homofóbico, mas engole Eduardo Leite, porque ele é o gay que não afronta os estancieiros heteronormativos que manobram o relho no interior.

Nossas frentes frias não vêm da Terra do fogo e nem do pampa argentino, mas sim da nossa gênese positivista: os gaúchos acreditam na meritocracia e quem nela não se encaixa, que seja banido pelo Darwinismo social, com a nossa seleção natural. Educados pela Farsul e pela RBS, conglomerado do jornalismo canalha e conservador, boa parte dos gaúchos é separatista e quer expulsar daqui índios e negros. Nesta lógica, a lógica patife da Rede Brasil Sul, o estado terá 3 capitais: Porto Alegre será a capital administrativa, para o empresariado negociar como comprará nossa infraestrutura a preços baixos. Torres será a capital no verão, para receber turistas brancos. Milícias de brigadianos cercarão Gramado, que será a capital de inverno: uma cidade fortificada onde pobres não entram.

Ao lembrar que logo será setembro, e que milícias de bombachudos gaúchos sairão a dar relhadas em gays que se atreverem a desfilar com a bandeira LGBT, lembro enfim do que fizeram deste estado e da propaganda do McDonald´s: Eu odeio muito tudo isto.”

Imagem copiada de https://www.portaldasmissoes.com.br/noticias/view/id/3608/pobre,-mestico,-sem-terra,-marginalizado…–o-gau.html

*Imagem de destaque copiada de https://domtotal.com/artigo/7517/2018/06/latifundio-violencia-campesinato-classe-social-que-luta-pela-terra/

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