América Latina, Política

11 de setembro – 19 de dezembro: 3 meses ou meio século?

Antes que os americanos da parte norte do continente pudessem legitimar definitivamente a caça às bruxas terroristas do mundo islâmico, houve outro 11 de setembro. Em 1973, o primeiro 11barra9 instalou uma das ditaduras mais sanguinárias da história recente da (des)humanidade. Ao dizer isso, é importante observar que os mais cruéis regimes desde a segunda metade do século 20 têm em comum o fato de se localizarem na América – aquela que os americanos do norte insistem em desconhecer como tal -, e contaram com o apoio em todas as instâncias da América – a autodeclarada como legítima.

Após duas décadas e meia de regimes comandados por generais treinados e orientados pela CIA, teve início um período que apontava para uma virada, a partir dos processos de redemocratização iniciados nos anos finais do 1900, cujo fato mais significativo talvez possa ser a primeira eleição de Lula à presidência, já no novo milênio. Porém, não muito depois, o Brasil (ou braZil), viveu uma espécie de revirada, com o golpe de 2016. Na verdade, a defenestração de Dilma Rousseff foi o contrapiso de uma base autoritária e com tendências ao fascismo que se construiu no continente, cuja camada de cimento e acabamento se deu com a chegada ao poder dos bolsonaros, dois anos depois. Mas o que parecia ser o plano perfeito da extrema direita talvez não previsse a incompetência da família. Essa incompetência, aliada à arrogância e à autossuficiência de quem não se aceita como mero peão no tabuleiro de xadrez operado por quem realmente tem o poder, colocaram em cheque o projeto ultraliberal que se urdia no país já desde os anos da privataria tucana. Isso permitiu um esboço de rearticulação das forças de resistência ligadas aos campos democráticos, que conseguiram mobilizar o povo nas ruas por mudanças. Se esses movimentos não tiveram a força suficiente para derrubar o desgoverno genocida, há que se considerar as restrições impostas pela pandemia, que acabaram por cair como uma luva para a sustentação do bolsonarismo, o que explica, em parte, o boicote às medidas de segurança na área da saúde.

Voltando um pouco no tempo, se pensarmos na origem recente dessa escalada nazifascista, pode e deve ser questionado o fato dos governos petistas deixarem aberto flancos importantes para ação das elites, que deram suporte para o golpe jurídico-parlamentar que tirou do poder uma presidenta sem nenhuma comprovação de crime (marcas do machismo estrutural?). As articulações políticas, a necessidade de formar uma base de sustentação para a eleição e no segundo momento para a governabilidade, fizeram com que os governos do PT cometessem erros cruciais para a sua própria desintegração. Erros que parecem não ter sido suficientes para ensinar ao partido que o a força está na retomada dos seus processos históricos de constituição e na retorno às bases, como preconizam lideranças históricas, como Olívio Dutra, e militantes do peso de Mano Brown. Pensar em aliança Lula e Alckimin é considerar a possibilidade de novamente vender a alma e algo a ser muito debatido nas organizações das forças de Esquerda.

Imagem copiada de: <https://pt.org.br/nossa-historia/.&gt; Acesso em: 6 de jan. 2022.

Contudo, em que pesem os equívocos petistas e a aparente falta de coesão do campo democrático, há pouco menos de um ano da eleição, os prognósticos indicam a queda do império messiânico bolsonarista. Muito ainda há que se analisar, pensar, articular para que isso se torne realidade, principalmente sobre como se dará essa transição do modelo protofascista para algo mais próximo do começo do restabelecimento da democracia. Uma boa prática certamente é dar atenção ao vento da mudança que começa a soprar a partir da Cordilheira.

Na primeira metade do ano, o povo chileno já anunciava ao mundo o desejo de romper definitivamente com a história macabra iniciada em La Moneda naquele 11 de setembro. A escolha de Elisa Loncón, professora, mulher, Mapuche, para presidir a assembleia constituinte, emitia um claro sinal que a era pinochet, estava chegando mesmo ao fim. E quando se fala em período de terror, ditadura Pinochet, esses termos terríveis, enfim, não podemos esquecer que a desgraça chilena, que acabou com a autonomia de uma das economias mais sólidas do mundo e levou milhões de pessoas à ruína, inclusive com ondas de suicídio entre pessoas aposentadas, foi escorada nas políticas econômicas da escola Chicago Boy, com a orientação do superministro braZileiro Paulo Guedes.

Se o povo chileno começou a sair do estado de letargia a partir da eleição da assembleia constituinte, essa retomada de rumos está se confirmando com a eleição presidencial ocorrida no último fim de semana. Mas a ferrugem não dorme e o inimigo está sempre à espreita. O que parecia ser um processo relativamente tranquilo de consolidação de uma contraofensiva democrática, durante o primeiro turno da eleição que se encerrou no último domingo trouxe grande apreensão. A extrema direita, que parecia ter sido enterrada, mostrou que não está pra brincadeira, e o bolsonaro chileno, José Antônio Kast, chegou vivo e forte no segundo turno. A possibilidade de eleição do ultraconservador punha em risco o próprio processo de elaboração da nova Constituição, já que, por óbvio, ele era contrário. E continua sendo, afinal a sua derrota eleitoral não significa o fim da ideologia e das pretensões políticas dos grupos que representa.

Ainda assim, não obstante algumas previsões pessimistas e os receios de um contra-ataque fulminante da direita, a vitória de Gabriel Boric foi obtida até com uma margem segura diante do quadro que se temia: 55,8 por cento contra 44,1 do projeto fascista. Mas, por óbvio, não são números que possam inspirar tranquilidade ao campo democrático. Pelo contrário, se em termos práticos, diante das dificuldades que se apresentavam, a vantagem nos números eleitorais foi comemorada, há que se considerar que quase a metade da população votante parece ter optado pela manutenção e o recrudescimento da nefasta política pinochetiana. A relativização que considero ao dizer que essa apenas PARECE ter sido a vontade de quem votou em Kast, se deve menos a uma demonstração efetiva de força da extrema direita do que a uma certa desconfiança com as plataformas e práticas dos governos mais à Esquerda. E isso é muito preocupante, porque aponta para as dificuldades que tem o campo democrático de vender o seu peixe. É mais ou menos como algumas análises que atribuem a vitória de Bolsonaro em 2018 ao antipetismo, ideia da qual eu tenho sérias discordâncias, mas que em alguns pontos tem sentido. De qualquer forma, tanto os percalços no sepultamento do pinochetismo, quanto o fato da família bolsonaro ainda não ter sido apeada do poder, mesmo com elementos mais do que suficientes para isso, mostram que a luta pela redemocratização efetiva no continente latino é árdua e jamais pode ser considerada páreo corrido.

A mudança de ares nas políticas latino-americanas podem se expressar em um frase de Gabriel Boric, após a confirmação da vitória: “Hoje a esperança venceu o medo!” Não sei quem faz o papel de Regina Duarte no Chile, mas tenho muita esperança que os ventos da cordilheira inspirem a vassourada necessária por aqui e que os bolsonaros, os paulo guedes, os… sérgios moros e outros tantos a partir de 2023 sejam apenas personagens de livros de história. Como disse León Gieco:

“Solo le pido a Dios,

Que el engaño no me sea indiferente,

Si un traidor puede más que unos cuantos,

Que esos cuantos no lo olviden fácilmente”

Imagem copiada de: <https://www.youtube.com/watch?v=Gvyl_zdji2k&ab_channel=Mat%C3%ADasJim%C3%A9nez.&gt; Acesso em: 6 de jan. 2022.

*Imagem de destaque copiada de: <https://oglobo.globo.com/fotogalerias/povo-chileno-festeja-vitoria-da-esquerda-na-eleicao-para-presidente-veja-fotos-25326400.&gt; Acesso em: 6 de jan. 2022.

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América Latina, bolsonarismo, Política

Cristóvão ou Jorge, que santo salvará Bolsonaro?

NENHUM!

Os acontecimentos políticos mais recentes na América do Sul escancaram que o braZil de Bolsonaro insiste em andar na contramão da estrada. Essa desorientação pode ter motivos religiosos. A tradição católica consagra o dia 25 de julho a São Cristóvão, que em algum momento foi designado pelo papa da hora para representar os interesses das e dos motoristas no plano divino. Como se sabe, Bolsonaro é terrivelmente evangélico e, portanto, professa fé numa vertente do cristianismo que não reconhece os santos e as santas do panteão católico. Se bem que, se pensarmos melhor, porque deveria aceitar a ajuda de algum intermediário de segundo escalão se ele é o próprio Messias? Crendo ou não nos santos, a vida de Bolsonaro parece estar sob a guarda das Armas de Jorge, já que nem mesmo um vírus letal ou facas pontiagudas podem derrubá-lo.

Em que pese o motivo, se por falta de ajuda espiritual ou mera incompetência, sem descartar a possibilidade de puro banditismo de quem o dirige, o fato é que o carro brasileiro segue em alta velocidade e sem freio ladeira abaixo, ao contrário do que acontece em alguns vizinhos nossos.

Uma breve cronologia (meramente exemplificativa):

  • 8 de novembro de 2020: o nascer do sol viu o povo boliviano reunido na praça Murillo, onde se localiza a sede do governo, celebrando e pedindo a proteção da Pachamama. Naquele momento, a Whipala tremulava forte, altaneira e feliz pelo fim do golpe de 2019 (mais um nessa longa estrada), com a eleição de Luis Arce, professor universitário com histórico político de comprometimento com as causas sociais. O (des)governo brasileiro não mandou representação para a posse;
  • 21 de julho de 2021: Alberto Fernández, que, é bom que se diga, recentemente andou se atrapalhando com palavras e referências, anunciou a reformulação dos registros civis, com um novo DNI (Documento Nacional de Identificação), que vai garantir o direito de não identificação de gênero às pessoas que não se consideram nem homens nem mulheres. Acertando a fala desta vez, o presidente argentino disse: “Existem outras identidades além do homem e da mulher que devem ser respeitadas”. E perguntou: “O que importa para o Estado saber a orientação sexual de seus cidadãos?” Corre à boca pequena que Bolsonaro encaminhou essa pergunta à ministra Damares…
  • 28 de julho de 2021: Pedro Castillo vai tomar posse na presidência do Peru. Se vai fazer um bom governo ou não é coisa que os próximos tempos dirão, mas não é pequeno o simbolismo dele ter derrotado o sangue Fujimori na eleição. Desta vez o Brasil (ou seria o braZiu?) vai estar representado na cerimônia. Bolsonaro designou o general Mourão para o encargo. Um observador incauto poderia pensar que o vice-presidente foi escolhido a fim de prestar um tipo de homenagem ao povo peruano, por conta da sua ancestralidade indígena. Eu tenho cá minhas dúvidas quanto a isso.

Há um fato, porém, que tem uma carga simbólica ainda maior. No ano que vem, quando se espera que pela vacina e conscientização o mundo esteja livre da ameaça do Corona, o Chile vai iniciar um movimento decidido para livrar o país de outro vírus, tão ou mais mortal: o fantasma Pinochet. Em maio foi eleita a assembleia que vai escrever a nova constituição, que substituirá a carta de 1980, um libelo antipovo e lesa-pátria, que só consolidou a política neoliberal do governo fascista e promoveu a entrega do estado às elites econômicas, inclusive, e principalmente, estrangeiras. É bom que nunca esqueçamos que a plataforma entreguista ultraliberal pinochetiana, origem do suicídio de milhares de pessoas que ficaram sem perspectiva diante da destruição das políticas sociais, teve participação efetiva do execrável Paulo Guedes, o “nosso” chicago boy. Mas o Chile está superando essa fase de obscurantismo e violência golpista. Isso se comprova na forte representação popular que terá a constituinte, principalmente dos povos originários. É histórico o fato que a assembleia vai ser presidida por uma Mapuche, a professora universitária Elisa Loncón. Isso mostra que a irresignação do povo diante da opressão pode demorar a mudar o rumo das coisas, afinal as forças do capital são poderosas, mas um dia os ventos mudam de direção. E os ventos que sopram da Cordilheira recolocam o automóvel chileno na estrada da sua história de grandeza.

Imagem copiada de https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2021/07/4936829-elisa-loncon-constituicao-deve-reconhecer-a-pluralidade-do-chile.html

Acervo do autor

Comecei essa conversa com uma efeméride religiosa. Acontece que o mesmo dia de São Cristóvão marca outra celebração, muito mais significativa: 25 de julho é o DIA DA MULHER NEGRA, LATINA E CARIBENHA. No Brasil, a celebração faz referência à Tereza de Benguela. Não vou aprofundar a data e nem a biografia da homenageada, porque implicaria em estender demais o texto. Uma pesquisa na internet é suficiente para conhecer melhor a história dessa celebração e da gigante braSileira que foi Tereza. A relação que faço aqui diz respeito ao que vi no último sábado nas ruas de Porto Alegre: milhares de mulheres negras, caminhando ao lado de outras e outros, e outres, brancas, brancos, negros, negres, indígenas, asiáticas, para derrubar o governo desgovernado de Jair Bolsonaro. O vento sul-americano sopra forte em alguns países vizinhos e aqui está começando a se transformar no furacão que vai varrer o fascismo que resiste no braZil e empurrar o carro que transporta Bolsonaro e seu exército de bandidos para a lata de lixo da história.

¡VIVA EL PUEBLO LATINOAMERICANO!

*Imagem de destaque copiada de https://www.grupoescolar.com/pesquisa/a-america-latina-e-suas-lutas-sociais.html

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Educação, História, Literatura, Política, Republicados

O racismo (do pai) do Pedrinho*

Eu adorava ver “O Sítio do Pica-pau Amarelo” na TV. Não li, quando criança, os livros do Monteiro Lobato porque eles eram muito caros pra gente ter em casa e até a minha adolescência eu não tinha o hábito de frequentar bibliotecas, a não ser por imposição no colégio. E também durante muito tempo não pensava nas relações entre o autor e a sua obra ou o quanto da própria vida do autor estaria representado no seu trabalho. Esse é o gancho que eu preciso pra fazer um corte e transcrever algumas palavras do criador da Emília, que não estão nas obras literárias propriamente ditas.

Em carta a Godofredo Rangel:

(…)Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível Rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas – todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. E vão apinhados como sardinhas e há um desastre por dia, metade não tem braço ou não tem perna, ou falta-lhes um dedo, ou mostram uma terrível cicatriz na cara. “Que foi?” “Desastre na Central.” Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problema terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança!…” (em “A barca de Gleyre”. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. p.133).

Sobre a escrita:

“é um processo indireto de fazer eugenia, e os processos indiretos, no Brasil, ‘work’ muito mais eficientemente”.

Em carta ao médico eugenista Renato Kehl, sobre o livro “O presidente negro ou o choque das raças”: 

“Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. (…) Precisamos lançar, vulgarizar estas idéias. A humanidade precisa de uma coisa só: póda. É como a vinha”.

Em outra carta a Godofredo Rangel, sobre a impossibilidade de encontrar editora para a publicação do livro nos EUA:

“Meu romance não encontra editor. […]. Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente, cometer a sangue frio o belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros.” 

Tempos depois:

“Um escândalo literário equivale no mínimo a 2.000.000 dólares para o autor (…) Esse ovo de escândalo foi recusado por cinco editores conservadores e amigos de obras bem comportadas, mas acaba de encher de entusiasmo um editor judeu que quer que eu o refaça e ponha mais matéria de exasperação. Penso como ele e estou com idéias de enxertar um capítulo no qual conte a guerra donde resultou a conquista pelos Estados Unidos do México e toda essa infecção spanish da América Central. O meu judeu acha que com isso até uma proibição policial obteremos – o que vale um milhão de dólares. Um livro proibido aqui sai na Inglaterra e entra boothegued como o whisky e outras implicâncias dos puritanos”.

Em carta a Arthur Neiva, desde Nova Iorque, em 1928:

“Diversos amigos me dizem: Por que não escreve suas impressões? E eu respondo: Porque é inútil e seria cair no ridículo. Escrever é aparecer no tablado de um circo muito mambembe, chamado imprensa, e exibir-se diante de uma assistência de moleques feeble-minded e despidos da menos noção de seriedade. Mulatada, em suma. País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Kux-Klan é país perdido para altos destinos. André Siegfred resume numa frase as duas atitudes. “Nós defendemos o front da raça branca – diz o sul – e é graças a nós que os Estados Unidos não se tornaram um segundo Brasil”. Um dia se fará justiça ao Kux-Klan; tivéssemos aí uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destroem (sic) a capacidade construtiva.” 

Tudo isso aí eu retirei de uma carta aberta destinada ao cartunista e escritor Ziraldo, escrita pela escritora Ana Maria Gonçalves, por ocasião da publicação desta charge do criador pai do Menino Maluquinho:

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A íntegra da carta está em http://banhodeassento.wordpress.com/2011/02/19/lobato-ziraldo-e-a-carnavalizacao-do-racismo%E2%80%8F/  e a celeuma toda pode ser melhor entendida em http://opiniaoenoticia.com.br/brasil/politica/monteiro-lobato-ziraldo-e-o-racismo-maluquinho/.

Hoje, no STF, às 19h30min, haverá uma audiência de conciliação, convocada pelo ministro Luiz Fux, sobre o Mandado de Segurança nº 30.952, impetrado pelo Instituto de Advocacia Racial – Iara e pelo professor Antônio Gomes da Costa Neto, em que é questionada a liberação do livro “As caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, para uso nas escolas públicas do país. Alegam os autores da ação que o livro contém mensagens racistas explícitas.

Por trás dessa discussão há muito mais coisas e coisas muito mais complexas do que se pode imaginar a uma primeira leitura. Há quem diga que esse tipo de posicionamento e ação está no contexto do patrulhamento politicamente correto, que se disseminou na nossa sociedade nos últimos tempos. Não se pode mais contar piada de negro, não se pode mais chamar um homossexual de bixa, não se pode, enfim, fazer mais nada, sob pena de se estar ferindo a cartilha dos preceitos politicamente corretos. O cerceamento de certas espontaneidades é muito chato e acaba por transformar a vida numa caretice sem fim, mas isso não se aplica quando a tal espontaneidade é, na verdade, a manifestação de uma prática que se consolidou na sociedade. Piadas preconceituosas sempre serão preconceituosas, mesmo quando ditas por alguém que não é preconceituoso e/ou para pessoas não preconceituosas. Eu já contei? Sim, muitas. Conto ainda? Às vezes, infelizmente, escapa alguma coisa, mas não me omito e tento mudar. Entretanto, não é exatamente disso que se está tratando nessa questão. O problema é bem mais amplo. Há ainda quem diga que, no caso concreto, se trata de uma tentativa de censurar uma obra literária, impedindo que próprio público ao qual é destinada tenha contato com ela. Também não é por aí que a coisa se explica, creio eu.

Como ficou claro pelas declarações transcritas aí em cima, o Monteiro Lobato era um racista convicto e tinha muita consciência de como a mensagem poderia ser passada de forma bem sutil (ou não) através dos textos. É ele próprio quem diz que a escrita é um processo indireto de fazer eugenia. Evidentemente não se pode desconsiderar a questão do momento em que ele viveu. Era uma sociedade abertamente racista, cuja abolição da escravatura ainda não havia sido bem digerida. Como, aliás, ainda não foi, não acho que aquele momento histórico seja muito pior do que o racismo velado que existe hoje, mas a pregação segregacionista do escritor transcende a questão temporal, em virtude da sua postura abertamente preconceituosa.

Por outro lado, como defendeu Ziraldo, na manifestação que gerou a carta aberta da escritora Ana Maria Gonçalves, não se pode se desconsiderar a qualidade da obra literária do Monteiro Lobato, que introduziu em muitas gerações o gosto pela leitura, que poderia ser responsável por capacitar as crianças que se alfabetizavam a partir de suas obras para que tivessem elas próprias, quando atingissem a maturidade, a consciência crítica de analisar o teor de um texto literário. Concordo com isso e quero dizer que acredito que dificilmente um adulto se tornaria racista por ter lido Monteiro Lobato, da mesma forma que nenhum adolescente sairia matando lobos por aí porque leu isso na Chapeuzinho Vermelho. Isso parece evidente, mas não deve afastar a necessidade de que se façam observações acerca do que diz um livro quando este é apresentado a uma criança. Quando aparece lá no livro uma alusão à Tia Anastácia como uma macaca que pode facilmente trepar em árvores, cabe ao professor dizer algo sobre isso, sob pena da criança ficar com essa ideia introjetada e tê-la realimentada quando for a um jogo de futebol e ouvir uma torcida chamar a outra de macacada imunda ou ainda quando escutar na rua a famosa expressão “isso é serviço de nego”.

A questão suscitada lá em cima, sobre a relação do autor com a sua obra, é por demais complexa pra ser analisada nesse momento em que o objeto central é outro. Mas, a título de ilustração, grandes nomes da cultura mundial têm seus trabalhos questionados a partir das suas ideologias. Elia Kazan, autor da obra-prima “Sindicato de ladrões”, até hoje é visto com desconfiança por suas supostas colaborações com o macartismo; dizem algum analistas que se encontram nas obras do magistral Richard Wagner faíscas que acenderiam a chama do ideário nazista; Jorge Luís Borges era sabidamente admirador de Videla e Pinochet, e assim teríamos inúmeros exemplos de artistas cuja qualidade da obra poderia ser relativizada pelas suas convicções políticas. Entendo isso como uma visão bastante limitada, mas não quero estender esse debate agora.

A censura não é, por óbvio, a melhor maneira de se corrigir distorções que podem ser encontradas nas obras de arte. No que tange à questão das manifestações racistas que podem ser observadas em textos de Monteiro Lobato ou em outros, a censura teria, inclusive, um efeito adverso. Não se pode simplesmente varrer a sujeira para debaixo do tapete e dizer que a casa está limpa. A negação do racismo tem efeitos tão maléficos quanto ele próprio e essa é, provavelmente, uma das maiores dificuldades do combate ao preconceito, porque se quer passar a ideia de que vivemos uma democracia racial e que o racismo não existe no Brasil. Ele existe sim e está presente diariamente nas nossas vidas e nas coisas que ouvimos, vemos e lemos, inclusive nos livros do Monteiro Lobato. A maneira certa de trabalhar pela erradicação do racismo é apresentá-lo, contextualizá-lo e deixar bem claros os seus efeitos nocivos. Por isso acho que os livros dele, Monteiro Lobato, e outros que tenham qualidades literárias inegáveis, devem sim fazer parte do currículo da rede pública de ensino e servir, também, como um importante instrumento para mostrar uma realidade histórica que persiste até hoje, ainda que se queira varrer tudo para debaixo do tapete. Ou queimar, à moda Rui Barbosa…

 

*Publicado originalmente no blog Na Cidade de Cabeça pra Baixo, em 11/9/2012.

NOTA: como eu já expliquei aqui no blog, quando fiz a migração dos textos para esta plataforma, optei por não alterar o original. Isso faz com que algumas coisas já não estejam de acordo com o que eu penso agora, considerando vários aspectos, tanto na forma quanto  no conteúdo. quando houver alguma necessidade de atualização, o farei em nota apartada, colocada ao final do texto. 

No caso deste texto, revejo o que escrevi neste parágrafo:

Como ficou claro pelas declarações transcritas aí em cima, o Monteiro Lobato era um racista convicto e tinha muita consciência de como a mensagem poderia ser passada de forma bem sutil (ou não) através dos textos. É ele próprio quem diz que a escrita é um processo indireto de fazer eugenia. Evidentemente não se pode desconsiderar a questão do momento em que ele viveu. Era uma sociedade abertamente racista, cuja abolição da escravatura ainda não havia sido bem digerida. Como, aliás, ainda não foi, não acho que aquele momento histórico seja muito pior do que o racismo velado que existe hoje, mas a pregação segregacionista do escritor transcende a questão temporal, em virtude da sua postura abertamente preconceituosa.

O contexto histórico deve ser considerado quando se faz uma análise de algo que já está distante no tempo, mas é necessário que se explique que os costumes de uma época não podem justificar comportamentos como o descrito, pois, como dizer o Professor Juremir Machado da Silva acerca do sistema escravagista brasileiro, que se tanta muitas vezes justificar pelo contexto da época, se apenas uma pessoa contemporânea aos fatos acusa a iniquidade, nenhuma das outras pode ser absolvida. Ou seja, se as práticas do racismo e da eugenia eram correntes e aceitas na época em que Monteiro Lobato vivia, isso não torna a sua postura e a sua militância justificáveis. 

*https://www.geledes.org.br/o-memorial-de-cacadas-de-pedrinho-no-supremo-tribunal-federal/?utm_source=pushnews&utm_medium=pushnotification

*Atualizado em 14/5/2020.

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