Agronegócio, bolsonarismo, Direitos Humanos, Eleições, Política, Povos originários

19 de Abril: ainda vamos comemorar esta data

“No Brasil não há nenhum representante indígena federal ou estadual eleito. O que temos no Congresso Nacional é uma frente parlamentar de apoio aos povos indígenas.
O sistema político eleitoral inviabiliza por completo a eleição de representação indígena, porque o perfil dos eleitos é de candidatos que conseguem financiamentos vultosos de empresas privadas que dificilmente se interessariam por financiar lideranças indígenas, especialmente se tiverem a perspectiva de lutar pelos povos indígenas.”

Essa declaração foi dada pelo então Secretário-Geral do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Cléber Buzatto, em entrevista ao Jornal Extra Classe (edição número 194, de junho de 2015, p. 16-17).

As pessoas mais antigas certamente lembrarão da estranheza que provocava nos anos 1980 a presença do deputado Mário Juruna na Câmara Federal. Quantos deputados e deputadas indígenas exerceram mandatos desde então?

No dia 4 de setembro de 1987, uma jovem liderança indígena ocupou a tribuna do plenário do Congresso Nacional (1). Enquanto proferia um discurso contundente, vestido conforme o protocolo da casa, de paletó e gravata, Aílton Krenak pintava o rosto com uma tintura preta feita à base de jenipapo, num ritual tradicional de seu povo em momentos de luto. A manifestação de Krenak dizia respeito à possibilidade de não aprovação do capítulo que trata dos direitos dos povos originários na Carta Constitucional que estava sendo gestada e que no ano seguinte seria promulgada por Ulysses Guimarães sob a proteção de Deus. Um deus de pele e longas barbas brancas, por certo, que, do alto da sua benevolência cristã, e pelo trabalho de pessoas como Krenak, permitiu a inclusão no texto constitucional de um capítulo (VIII) intitulado “Dos índios”, com dois artigos, 231 e 232. Parece pouco, poderia ser mais, deveria ser mais, mas mesmo assim foi uma grande conquista, de acordo com o próprio Aílton Krenak, hoje reconhecido como uma das maiores lideranças indígenas da história recente do Brasil.

Imagem copiada de: http://bienal.org.br/post/7985. Acesso em: 20 de abr. 2022.

Hoje, 19 de abril de 2022, uma pergunta se impõe: os dispositivos constitucionais que garantem direitos aos povos originários, chamados pela assembleia constituinte meramente de índios, têm efeitos práticos? Já li e ouvi gente dizer que a inclusão de artigos protetivos aos indígenas é uma forma de discriminação, porque o artigo 5º e os demais que tratam dos direitos e garantias fundamentais se aplicam a todo o povo brasileiro. Isso é como falar em pessoas negras praticando racismo reverso. Retórica finamente construída para manter os privilégios das classes dominantes (sempre brancas), sob a máscara de pluralismo e universalidade de direitos, bem ao gosto de Gilberto Freire e sua teoria do paraíso da democracia racial no Brasil. Somos todos um único povo brasileiro; não há raça branca ou preta, há raça humana; e coisas desse tipo.

Voltando ao tempo das discussões constituintes, em 27 de maio de 1988, alguns meses antes da promulgação da Carta, O Estado de São Paulo publicava um pequeno texto que falava sobre a atuação de representantes das comunidades tradicionais na assembleia. A matéria, se é que assim pode ser chamada, recebeu o sugestivo título de “Índio fica bravo com os constituintes e a imprensa”. Uma das frases é esta: “Os índios querem ainda ter usufruto exclusivo das riquezas naturais e dos cursos de água existentes nas terras que ocupam. (2)” Usufruto exclusivo e nas terras que ocupam são palavras-chave para compreender o “modus operandi” da grande mídia, que desde aquela época, ou melhor, desde sempre, esteve ao lado das elites. “Usufruto exclusivo” poderia ser traduzido em sobrevivência e “terras que ocupam” quer dizer terras em que vivem desde muito antes de 1500.

Que grupo político atuante no Congresso se beneficiava com esse discurso deturpado de um dos maiores jornais do país à epoca? Essa é fácil: Centrão. “O Centrão aceita retirar do texto a expressão aculturação, mas não admite que os índios que não vivam permanentemente em suas terras também possuam os benefícios adquiridos.”, diz a mesma matéria. Passadas mais de três décadas, o Centrão continua firme e forte, como a maior bancada do Congresso Nacional. Continua minando as lutas pela demarcação das terras indígenas. E continua garantindo legitimidade (ainda que redundante, importa dizer que se trata de legitimidade legal e não ética) ao governo nazifascista de Bolsonaro para seguir dizimando a pouca representação das nações originárias que ainda insistem em sobreviver no braZil de hoje.

Mas infelizmente não é só no legislativo e no (des)governo bolsonaro que as elites do agronegócio, da mineração, da grande indústria encontram defensores das suas bandeiras. As instituições republicanas também estão contaminadas. Galdino não resistiu ao fogo ateado em seu corpo, mas seus assassinos seguiram a vida numa boa; os responsáveis pelo incêndio que destruiu a casa de reza dos Guaranis em Itapuã/RS não foram importunados pelas autoridades; as dezenas de denúncias de violência levantadas pelo CIMI (3) não têm investigação policial, inquéritos determinados pelo MPF, processos, nada. Se têm, acabam não dando em lugar algum.

Então, lembro que este ano teremos eleições. De importância igual à escolha do sucessor de Bolsonaro e dos governos estaduais, é a eleição de parlamentares para as assembleias, Câmara e Senado. Deputadas/os, Senadores/as fazem leis, homologam a nomeação do/da PGR, ministras/os do STF, cassam (ou não) os mandatos de bandidos/as que nas suas respectivas casas legislativas, abrem (ou não) e julgam processos de impeachment de presidentes corruptos e genocidas, enfim… De nada adianta interromper a marcha fascista, impedindo a família bolsonaro de seguir no poder, se forem eleitos deputados/as e senadoras/es comprometidos/as com os interesses das elites. É hora de mostrarmos que a afirmação do ex-secretário do CIMI, que abriu este texto, ficou no passado. Quem sabe até tenhamos motivos relevantes para comemorar o próximo 19 de abril.

(1) https://www.youtube.com/watch?v=kWMHiwdbM_Q&ab_channel=%C3%8DNDIOCIDAD%C3%83O%3F-OFILME

(2) https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/106820/1988_26%20a%2031%20de%20Maio_%20066e.pdf?sequence=1&isAllowed=y

(3) https://cimi.org.br/2020/09/em-2019-terras-indigenas-invadidas-modo-ostensivo-brasil/

Imagem de destaque copiada de: https://www.sohistoria.com.br/ef2/descobrimento/p2.php. Acesso em 20 de abr. 2022.

Padrão
bolsonarismo, Direitos Humanos, Política, Povos originários

Brasil de Jesus X braZil de Messias: nações em chamas

Na madrugada de 13 para 14 de novembro, uma semana atrás, um incêndio destruiu a casa de orações da Aldeia Guarani Pindó Mirim, aqui em Itapuã. Não deu no Fantástico, não teve espaço na editoria local do G1.

Este crime, que também atingiu um local usado para a guarda de alimentos, não é um fato isolado. Na página do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) podem ser encontradas várias notícias de atentados recentes contra áreas indígenas. Raríssimos desses casos têm alguma repercussão na grande mídia e, quando isso acontece, é de passagem e sem que se dê o devido acompanhamento aos desdobramentos, principalmente no âmbito penal, se é que os há.

Proponho um teste rápido para ilustrar a minha afirmação: qual a primeira lembrança que traz o nome Galdino Jesus dos Santos? Apesar do sobrenome, Galdino é um cidadão indígena, nascido na nação Pataxó. E por que ele é chamado de Jesus dos Santos? Porque os indígenas precisam adotar um nome ocidental para o registro civil na terra que desde sempre foi deles. Trata-se de uma das mais cruéis expressões de violência humana, pois age diretamente na subjetividade, na construção identitária da pessoa, que é obrigada a ser reconhecida por um nome que não tem nenhuma relação com a sua cultura. Mas não é exatamente este o ponto que quero tocar agora. Interessa lembrar que em 19 de abril de 1997, data que integra o calendário civil brasileiro como Dia do Índio (“todo dia era dia de índio”, diziam Pepeu e Baby), Galdino se abrigou em uma parada de ônibus da capital federal, já que por conta do horário não tinha conseguido retornar para a pensão em que estava hospedado. Estava em Brasília para tratar com o governo FHC de questões indígenas. E, naquela madrugada, dormindo na parada de ônibus foi que encontrou o seu trágico destino, pelas mãos de alguns jovens de classe média, que resolveram “tirar uma onda” e tacaram gasolina e fogo nele. Galdino morreu no dia seguinte, com 95% do corpo queimado. No julgamento, os “meninos” alegaram que pensavam se tratar de um “mendigo” e resolveram fazer uma brincadeira com ele. Vale dar uma olhada na sentença que desclassificou o crime para “lesão corporal seguida de morte” (https://archive.md/lijQe).

Imagem copiada de: <https://www.brasildefato.com.br/2021/08/31/governo-bolsonaro-designou-assassino-do-indio-galdino-para-cargo-de-confianca-na-prf&gt;. Acesso em: 24 de nov. 2021.

Revoltante essa história, né? E que tal saber que um dos assassinos, Gutemberg Nader de Almeida Júnior, exerceu um cargo de confiança na Polícia Rodoviária Federal, na gestão do paladino da justiça Sérgio Moro à frente do Ministério da Justiça? Pois é, definitivamente o Brasil de Galdino Jesus não é o mesmo braZil de Messias Bolsonaro.

Vamos pegar um fato mais recente pra ver se alguma coisa mudou do final dos anos 90 pra cá. Lembram do então deputado que discursou para ruralistas dizendo que “índios, quilombolas e homossexuais são tudo o que não presta”? Minha memória, assim como meus dentes, às vezes me trai, mas disso eu me lembro: chama-se Luiz Carlos Heinze, foi eleito senador, é uma das vozes mais inflamadas na defesa do governo bolsofascista e é pré-candidato ao governo do RS. Na minha perspectiva, com boas chances de ser eleito, diante do poder da classe que representa, afinal, o agro é pop.

Nessa altura, alguém já estará dizendo que é uma injustiça (ou mimimi) afirmar que a grande mídia não se interessa pelas causas humanitárias, afinal o próprio Fantástico andou denunciando crimes e problemas graves em terras Yanomamis. Parece até que depois dessas matérias o Ministério Público Federal resolveu cobrar das autoridades providências para a saúde das comunidades noticiadas. Vamos colocar alguns pingos em alguns is e, pra não perder o hábito, lançar uma dúvida: (1) o MPF tem gente e estrutura suficiente, inclusive de inteligência, para não depender do Fantástico para agir nesses casos; (2) considerando que os crimes contra os povos originários não começaram a acontecer na semana passada, talvez seja interessante investigar o que está por trás do súbito interesse da casa dos marinhos na questão indígena. Diz a sabedoria popular que não há almoço de graça, enfim.

Pelo menos desde que os astecas pagaram caro a ingenuidade de Montezuma ao receber Hernan Cortez como um deus, os velhos habitantes do novo mundo são assassinados. Algumas vezes de forma ostensiva e coletiva, como se fazia na época das conquistas ultramarinas, outras pelo fogo, que é ateado contra a própria pessoa ou que destrói os seus locais sagrados e os reservatórios de alimentos nos espaços onde estão aldeados. Acontece que nos séculos passados o povo não podia decidir nada, a não ser pelas armas. Hoje também precisamos de arma, mas temos uma mais poderosa do que qualquer outra, que devemos a quem lutou e até morreu para que pudéssemos dispor dela: o voto. A questão que se impõe agora é que temos pouco menos de um ano para decidir, pelo voto, como queremos passar à história frente à questão indígena: se na condição de copartícipes do extermínio das nações que já estavam por aqui muito antes de nós, em pleno curso há 500 anos e em marcha acelerada no governo fascista atual; ou como pessoas que lutaram para o restabelecimento da democracia e dos caminhos para a construção de uma sociedade mais justa, em que todas e todos, independente de etnia ou cor, gênero ou afetos, filosofia ou credo, tenham direito a uma vida digna. Está nas nossas mãos dar um passo na direção de um país em que pessoas, mesmo que de fato sejam moradoras de rua (ou mendigas, como preferem aqueles ex-jovens mas sempre assassinos), não tenham seu corpo carbonizado por mera diversão. E em que mulheres não sejam estupradas apenas por não merecer, e em que quilombolas e homossexuais não sejam tratados como lixo, e por aí vai.

No caminho do voto, tudo aponta que Bolsonaro, acusado pela CPI de genocida de indígenas, seja candidato. Moro, seu ex-aliado de primeira hora, em cuja gestão como ministro da… justiça, um assassino cruel ganhou cargo de confiança, também será. Na esfera estadual, Heinze, que disse aquelas barbaridades antes citadas e considera a demarcação das terras indígenas um crime contra o país, disputará o pleito. E assim como esses, tantos e tantas candidatos/as comprometidos/as com os (mais sórdidos) interesses das elites concorrerão aos cargos no legislativo. Urge, então, que as forças de resistência assumam o compromisso de combater de forma séria e organizada essa escalada nazifascista e ponham termo ao incêndio que destrói a mata, as terras, as comunidades e as pessoas.

Enquanto nós, que temos o poder de usar o voto para mudar esse quadro, continuarmos acreditando que o massacre dos povos originários e as barbaridades cometidas contra as pessoas que a elite nazi considera diferentes não nos diz respeito, ou apenas olharmos com algum sentimento de pena e sem nenhuma intenção de assumir a culpa que temos pela omissão frente aos fatos revoltantes, como o assassinato de Galdino ou o atentado sofrido pelos Guaranis de Itapuã na semana passada, o risco da história nos carimbar como apoiadores de assassinos nos assombrará. E não adianta terceirizar a luta para o Fantástico ou o Jornal Nacional, que as pautas das editorias da rede são muito voláteis (ah, os eufemismos…) e talvez daqui a um ano ou menos os Yanomamis já tenham caído no esquecimento (de novo), como caíram Galdino e seus assassinos.

Quanto ao crime em Itapuã, nem no Jornal do Almoço…

*Imagem de destaque copiada de: <https://www.abrasco.org.br/site/comissaodecienciassociaisehumanasemsaude/o-que-se-trama-contra-os-povos-indigenas/716/&gt;. Acesso em: 24 de nov. 2021.

Padrão