Em outro texto, falei sobre o livrinho (ão) “Língua e liberdade”, do professor Celso Pedro Luft. Hoje vou falar sobre outro livro, que pelo tamanho é um livrinho, mas pelo conteúdo é um LIVRÃO (ÃO, ÃO, ÃO…). Trata-se do “Preconceito linguístico: o que é, como se faz”, do pesquisador, cientista, linguista, escritor, poeta… ufa!, enfim, do PROFESSOR Margos Bagno. A minha edição é a 21ª, de 2003, da editora Loyola.
O livro do Professor Luft e este têm muita coisa em comum, a começar pela escolha muito feliz dos títulos. Em “Língua e liberdade”, é demonstrada de maneira muito simples e direta, em linguagem acessível a todos, inclusive, e talvez principalmente, a leigos – se é que existem brasileiros leigos em relação ao português – como a língua, tomada em sentido amplo, pode ser ao mesmo tempo um poderoso instrumento de opressão e um artefato libertador, pelo qual qualquer pessoa, desde uma criança de 3 ou 4 anos até um idoso que nunca aprendeu a ler ou escrever, manifesta-se, comunica-se e expõe os seus pensamentos, desejos, anseios, posições, ideologias etc. Neste “Preconceito linguístico”, o Professor Marcos Bagno apresenta, escancara, desmascara, desmitifica e propõe formas para erradicar este que é um dos mais odiosos preconceitos sociais, que é usado de forma muito consciente pela elites dominantes, mas que, infelizmente, é disseminado de forma ingênua por milhões de brasileiros, que são convencidos de forma nefasta que não sabem o português, sua língua materna, com a qual se comunicam perfeitamente desde a mais tenra infância.
Decidi adotar o mesmo sistema do texto referido anteriormente, citando trechos do livro e fazendo alguns comentários quando achar necessário. Os grifos estão no original, exceto quando indicado. As minhas intervenções aparecem em negrito. A grafia foi mantida como no original.
Não sendo linguista, sem formação na área, mas tendo muita preocupação com os preconceitos generalizados que a nossa sociedade propaga, especificamente este, valho-me da técnica de reproduzir o pensamento de estudiosos para tentar apresentar os fatos e fazer com que as pessoas tomem consciência e, se acharem por bem (e devem achar), engajem-se na luta contra as discriminações, que representam entraves para a construção de uma sociedade mais justa e que se constituem no arsenal das elites para a manutenção do estado atual das coisas. Muitos já disseram que a grande revolução não está em somente seguir as palavras dos grande líderes, mas que começa dentro de cada um de nós. Disse certa vez o meu Mestre: “Antes de escrever o livro que o guru lhe deu você precisa escrever o seu.” Sendo assim,
À REVOLUÇÃO!
Capítulo I – A mitologia do preconceito lingüístico
Mito nº 1 – “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”
Este mito é muito prejudicial à educação porque, ao não reconhecer a verdadeira diversidade do português falado no Brasil, a escola tenta impor a sua norma lingüística como se ela fosse, de fato, a língua comum a todos os 160 milhões de brasileiros, independentemente de sua idade, de sua origem geográfica, de sua situação socioeconômica, de seu grau de escolarização etc. (p. 15)
Mito nº 2 – “Brasileiro não sabe português/Só em Portugal se fala bem português”
O brasileiro sabe português, sim. O que acontece é que nosso português é diferente do português falado em Portugal. Quando dizemos que no Brasil se fala português, usamos esse nome simplesmente por comodidade e por uma razão histórica, justamente a de termos sido uma colônica de Portugal. Do ponto de vista lingüístico, porém, a língua falada no Brasil já tem uma gramática – isto é, tem regras de funcionamento – que cada vez mais se diferencia da gramática da língua falada em Portugal. Por isso os lingüistas (os cientistas da linguagem) preferem usar o termo português brasileiro, por ser mais claro e marcar bem essa diferença. (p. 24)
Mito nº 3 – “Português é muito difícil”
Está provado e comprovado que uma criança entre os 3 e 4 anos de idade já domina perfeitamente as regras gramaticais de sua língua! O que ela não conhece são sutilezas, sofisticações e irregularidades no uso dessas regras, coisas que só a leitura e o estudo podem lhe dar. Mas nenhuma criança brasileira dessa idade vai dizer, por exemplo: “Uma meninos chegou aqui amanhã”. (p.35)
Por quê? Porque toda e qualquer língua é “fácil” para quem nasceu e cresceu rodeado por ela! (p. 36)
Se tanta gente continua a repetir que “português é difícil” é porque o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português. (p. 36)
O professor pode mandar o aluno copiar quinhentas mil vezes a frase: “Assisti ao filme”. Quando esse mesmo aluno puser o pé fora da sala de aula, ele vai dizer ao colega: “Ainda não assisti o filme do Zorro!” (…)
(…) aquelas mesmas pessoas que, por causa da pressão policialesca da escola e da gramática tradicional, usam a preposição a depois do verbo assistir, também dizem que “o jogo foi assistido por vinte mil pessoas”. Ora, se o verbo assistir pede um preposição é porque ele não é transitivo direto, e só os verbos transitivos diretos podem, segundo as gramáticas assumir a voz passiva. Desse modo, quem diz “assisti ao jogo” não poderia, teoricamente, dizer “o jogo foi assistido”. (pp. 36 e 37)
No fundo, a idéia de que “português é muito difícil” serve como mais um dos instrumentos de manutenção do status quo das classes sociais privilegiadas. (p. 39) (Grifos meus.)
Mito nº 4 – “As pessoas sem instrução falam tudo errado”
(…) do mesmo modo como existe o preconceito contra a fala de determinadas classes sociais, também existe o preconceito contra a fala característica de certas regiões. É um verdadeiro acinte aos direitos humanos, por exemplo, o modo como a fala nordestina é retratada nas novelas de televisão, principalmente da Rede Globo. Todo personagem de origem nordestina é, sem exceção, um tipo grotesco, rústico, atrasado, criado para provocar o riso, o escárnio e o deboche dos demais personagens e do espectador. No plano lingüístico, atores não-nordestinos expressam-se num arremedo de língua que não é falada em nenhum lugar do Brasil, muito menos no Nordeste. Costumo dizer que aquela deve ser a língua do Nordeste de Marte! Mas nós sabemos muito bem que essa atitude representa uma forma de marginalização e exclusão.(pp. 43 e 44) (Grifo meu.)
Abro um parêntese para acrescentar que esse artifício de exclusão utilizado de forma muito consciente pela Rede Globo vai muito além do preconceito linguístico. Até pouco tempo, aos atores negros eram sempre reservados os papéis de empregados, motoristas, ladrões etc. Esse panorama mudou. Hoje negros ocupam papéis de protagonismo. Contudo, examinemos um pouco melhor essa “mudança”. Na última novela das sete, um dos personagens principais era interpretado pela negra Thaís Araújo. Em outro folhetim, coube ao ator negro Lázaro Ramos o protagonismo. O que têm em comum esses dois atores, além do fato de serem negros e marido e mulher? Ambos são exemplos típicos da beleza padronizada pelo mundo ocidental, têm rostos e corpos bonitos, dentes perfeitos, cabelos perfeitamente ajustados. Atores negros, cuja beleza não possa ser facilmente reconhecida pelo senso comum, continuam a desempenhar papéis secundários ou que representem elementos negativos em relação ao caráter, conduta social etc. Caso alguém tenha algum exemplo em contrário, um único, por favor me aponte. Um negro “feio” que seja o mocinho da novela. Uma negra “gorda” a quem não seja destinado o papel da cozinheira. Não que ser cozinheira desmereça qualquer mulher, branca, negra, vermelha, mas a forma estereotipada com que é apresentado o papel faz com que o imaginário popular solidifique a ideia distorcida de que essas profissões são menos importantes e, portanto, possíveis a pessoas a quem faltem “maiores qualificações”, entre elas um “melhor trato com a língua”.
Mito nº 5 – “O lugar onde melhor se fala o português no Brasil é no Maranhão”
Convém salientar que a determinação das normas culta e não-culta é uma questão de grau de freqüência das variantes (o que os normativistas consideram erros ou acertos). Por exemplo, coisas como “os menino tudo” ou “houveram fatos” podem aparecer na fala de brasileiros cultos.
É preciso abandonar essa ânsia de tentar atribuir a um único local ou a uma única comunidade de falantes o “melhor” ou o “pior” português e passar a respeitar igualmente todas as variedades da língua, que constituem um tesouro precioso de nossa cultura. Todas elas têm o seu valor, são veículos plenos e perfeitos de comunicação e de relação entre as pessoas que as falam. Se tivermos de incentivar o uso de uma norma culta, não podemos fazê-lo de modo absoluto, fonte do preconceito. Temos de levar em consideração a presença de regras variáveis em todas as variedades, a culta inclusive. (p. 51)
Mito nº 6 – “O certo é falar assim porque se escreve assim”
O que acontece é que em toda língua do mundo existe um fenômeno chamado variação, isto é, nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares, assim como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico. (p. 52)
É claro que é preciso ensinar a escrever de acordo com a ortografia oficial, mas não se pode fazer isso tentando criar uma língua falada “artificial” e reprovando como “erradas” as pronúncias que são resultado natural das forças internas que governam o idioma. Seria mais justo e democrático dizer ao aluno que ele pode dizer BUnito ou BOnito, mas que só pode escrever BONITO, porque é necessária uma ortografia única para toda a língua, para que todos possam ler e compreender o que está escrito, mas é preciso lembrar que ela funciona como a partitura de uma música: cada instrumentista vai interpretá-la de um modo todo seu, particular! (pp. 52 e 53) (Grifo meu.)
Com esta afirmação e esta orientação, o professor Bagno destrói o argumento raso dos conservadores e reacionários “defensores” da “Ultima Flor do Lácio”, que sempre dizem que os linguistas estão propondo uma deturpação total da língua portuguesa, que busca incutir na cabeça das pessoas a ideia de que vale tudo na língua. Não! O que se propõe é que a língua seja analisada e estudada como um organismo vivo e, como tal, em constante modificação, sem que se criem visões anacrônicas e preconceituosas de que a única forma correta de utilizar a língua é aquela de que se valem os detentores do conhecimento da gramática normativa. Mesmo porque esse suposto domínio total das regras gramaticais é impossível, mesmo aos gramáticos prescritivos e dicionaristas.
A língua escrita, por seu lado, é totalmente artificial, exige treinamento, memorização, exercício, e obedece a regras fixas, de tendência conservadora, além de ser uma representação não exaustiva da língua falada.
Faça você mesmo o teste: pegue uma palavra bem simples – fogo, por exemplo – e pronuncie-a com todas as inflexões e tons de voz que conseguir: espanto, medo, alegria, tristeza, saudade, ira, remorso, horror, felicidade, histeria, pavor… Depois tente reproduzir por escrito essas mesmas inflexões e tons de voz. É impossível. O máximo que a língua escrita oferece são os sinais de exclamação e de interrogação! A mera forma escrita não é capaz de traduzir as inflexões e as intenções pretendidas pelo falante. Por isso, os autores de textos teatrais indicam, entre parênteses, a emoção, sensação ou sentimento que o ator deve expressar numa dada fala. (p. 55)
A espécie humana tem, pelo menos, um milhão de anos. Ora, as primeiras formas de escrita, conforme a classificação tradicional dos historiadores, surgiram há apenas nove mil anos. A humanidade, portanto, passou 990.000 anos apenas falando! (p. 56)
Mito nº 7 – “É preciso saber gramática para falar e escrever bem”
É muito comum, também, os pais de alunos cobrarem dos professores o ensino dos “pontos” de gramática tais como eles próprios os aprenderam em seu tempo de escola. E não faltam casos de pais que protestaram veementemente contra professores e escolas que, tentando adotar uma prática de ensino da língua menos conservadora,não seguem rigorosamente “o que está nas gramáticas”. Conheço gente que triou seus filhos de uma escola porque o livro didático ali adotado não ensinava coisas “indispensáveis” como “antônimos”, “coletivos” e “análise sintática”…” (p. 62)
Acrescento às palavras do autor a observação que, em geral, nem os pais aprenderam de fato os “pontos” de gramática na escola. No máximo eles decoraram algumas regras arbitrárias, que, no mais das vezes, servem para muito pouca coisa além de demonstrar uma suposta erudição e… excluir os que não “dominam” essas regras.
O que aconteceu, ao longo do tempo, foi uma inversão da realidade histórica. As gramáticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como “regras” e “padrões” as manifestações lingüísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração, modelos a ser imitados. Ou seja, a gramática normativa é decorrência da língua, é subordinada a ela, dependente dela. Como a gramática, porém, passou a ser um instrumento de poder e de controle, surgiu essa concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam da gramática, como se ela fosse uma espécie de fonte mística invisível da qual emana a língua “bonita”, “correta” e “pura”. (p. 64) (Grifo no original e meu.)
As plantas só existem porque os livros de botânica as descrevem? É claro que não. Os continentes só passaram a existir depois que os primeiros cartógrafos desenharam seus mapas? Difícil acreditar. A Terra só passou a ser esférica depois que as primeiras fotografias tiradas do espaço mostraram-na assim? Não. Sem os livros de receita não haveria culinária? (p. 66)
Mito nº 8 – “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social”
Ora, se o domínio da norma culta fosse realmente um instrumento de ascensão na sociedade, os professores de português ocupariam o topo da pirâmide social, econômica e política do país, não é mesmo? (p. 69)
(…) um grande fazendeiro que tenha apenas alguns poucos anos de estudo primário, mas que seja dono de milhares de cabeças de gado, de indústrias agrícolas e detentor de uma grande influência política em sua região vai poder falar à vontade sua língua de “caipira”, com todas as formas sintáticas consideradas “erradas” pela gramática tradicional, porque ninguém vai se atrever a corrigir seu modo de falar.
O que estou tentando dizer é que o domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha todos os dentes, que não tenha casa decente para morar, água encanada, luz elétrica e rede de esgoto. O domínio da norma culta de nada vai servir a uma pessoa que não tenha acesso às tecnologias modernas, aos avanços da medicina, aos empregos bem remunerados, à participação ativa e consciente nas decisões políticas que afetam sua vida e a de seus concidadãos. O domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha seus direitos de cidadão reconhecidos plenamente, a uma pessoa que viva numa zona rural onde um punhado de senhores feudais controlam extensões gigantescas de terra fértil, enquanto milhões de famílias de lavradores sem-terra não têm o que comer. (p. 70) (Grifos meus.)
Capítulo II – O círculo vicioso do preconceito lingüístico
1. Os três elementos que são quatro
(…) o sujeito que usa um termo em inglês no lugar do equivalente em português é, na minha opinião, um idiota. (p. 78) [Referência à afirmação de Pasquale Cipro Neto em uma entrevista concedida à revista Veja, edição de 10/09/1997.]
2. Sob o império de Napoleão
Os delinqüentes da língua portuguesa fazem do princípio histórico “quem faz a língua é o povo” verdadeiro moto para justificar o desprezo de seu estudo, de sua gramática, de seu vocabulário, esquecidos de que a falta de escola é que ocasiona a transformação, a deterioração, o apodrecimento de uma língua. Cozinheiras,babás,engraxates, trombadinhas, vagabundos, criminosos é que devem figurar, segundo esses derrotistas, como verdadeiros mestres da nossa sintaxe e legítimos defensores do nosso vocabulário. (p. 79) [Referência ao verbete “VERNÁCULO”, no “Dicionário de questões vernáculas”, de Napoleão Mendes de Almeida (2ª ed.: 1994. São Paulo, LCTE)]
Napoleão Mendes de Almeida, um dos expoentes da “língua pura” mais cultuados pelos que acreditam e defendem essa monstruosidade, considerado por eles um verdadeiro repositório do saber contido nas raízes latinas do idioma oficial do Brasil, oferece uma prova substancial de que o preconceito linguístico não anda sozinho. Vejam que ele associa cozinheiras, babás e engraxates a trombadinhas, vagabundos e criminosos, todos responsáveis pelo “apodrecimento” da língua portuguesa. Um sujeito desses ainda hoje é (muito) citado como referencial de amor à língua e cultivo das formas mais elevadas de utilização do português. Ao perceber isso, tenho que me socorrer do calendário para me certificar que estamos em 2012 e não na Idade Média…
3. Um festival de asneiras
(…) tenta ensinar coisas perfeitamente inúteis, como a pronúncia “correta” do nome inglês do modelo de um carro que, por sinal, já deixou de ser fabricado (Monza Classic SE) e também das siglas FNM e DKW (igualmente extintas), a grafia “correta” do apelido da apresentadora de televisão Xuxa (que, segundo ele, deveria se escrever Chucha), ou a conjugação apropinquar-se, que ninguém em sã consciência usa no Brasil, a menos que queira provocar risos ou passar por pedante… (p. 83) [Referência ao livro “Não erre mais!”, de Luiz Antônio Sacconi (23ª ed.: 1998. São Paulo, Atual)
Julgo importante reproduzir na íntegra um texto da lavra de Dad Squarisi, famosa colunista que fornece dicas de português em conceituadas publicações do país. Segundo o autor, a coluna foi publicada no “Correio Braziliense”, de 22/06/1996, e no “Diário de Pernambuco”, em 15/11/1998. Vamos, então, a algumas dicas da professora Squarisi:
Português ou caipirês?
Dad Squarisi
Fiat lux. E a luz se fez. Clareou este mundão cheinho de jecas-tatus. À direita, à esquerda, à frente, atrás, só se vê uma paisagem. Caipiras, caipiras e mais caipiras. Alguns deslumbrados, outros desconfiados. Um – só um – iluminado. Pobre peixinho fora d’água! Tão longe da Europa, mas tão perto de paulistas, cariocas, baianos e maranhenses.
Antes tarde do que nunca. A definição do caráter tupiniquim lançou luz sobre um quebra-cabeça que atormenta este país capiau desde o século passado. Que língua falamos? A resposta veio das terras lusitanas.
Falamos o caipirês. Sem nenhum compromisso com a gramática portuguesa. Vale tudo: eu era, tu era, nós era, eles era. Por isso não fazemos concordância em frases como “Não se ataca as causas” ou “Vende-se carros”.
Na língua de Camões, o verbo está enquadrado na lei da concordância. Sujeito no plural? O verbo vai atrás. Sem choro nem vela. Os sujeitos causas e carros estão no plural. O verbo, vaquinha de presépio, deveria acompanhá-los. Mas se faz de morto. O matuto, ingênuo, passa batido. Sabe por quê?
O sujeito pode ser ativo ou passivo. Ativo, pratica a ação expressa pelo verbo: Os caipiras (sujeito) desconhecem (ação) o outro lado. Passivo, sofre a ação: O outro lado (sujeito) é desconhecido (ação) pelos caipiras. Reparou? O sujeito – o outro lado – não pratica a ação.
Há duas formas de construir a voz passiva:
a. com o verbo ser (passiva analítica): A cultura caipira é estudada por ensaístas. Os carros são vendidos pela concessionária.
b. com o pronome se (passiva sintética): estuda-se a cultura caipira. Vendem-se carros. No caso, não aparece o agente. Mas o sujeito está lá. Passivo,mas firme.
Dica: use o truque dos tabaréus cuidadosos: troque a passiva sintética pela analítica. E faça a concordância com o sujeito. Vende-se casas ou vendem-se casas? Casas são vendidas (logo: Vendem-se casas). Não se ataca ou não se atacam as causas? As causas não são atacadas (não se atacam as causas). Fez-se ou fizeram-se a luz? A luz foi feita (fez-se a luz). Firmou-se ou firmaram-se acordos? Acordos foram firmados (firmaram-se acordos).
Na dúvida, não bobeie. Recorra ao truque. Só assim você chega lá e ganha o passaporte para o mundo. Adeus, Caipirolândia. (pp. 95 e 96)
Na sequência da reprodução do texto, além de discorrer sobre o preconceito explícito que escorre como veneno das palavras da colunista, o autor explica detalhadamente porque as dicas gramaticais não funcionam sob nenhum aspecto, mesmo à luz da gramática normativa. Como o meu objetivo é chamar a atenção para as formas preconceituosas com que se utiliza a língua, vou me abster de transcrever as lições do Professor Bagno, limitando-me a reproduzir um trecho do conto “O contador de pronomes”, de Monteiro Lobato,publicado em 1924. Neste conto, o professor Aldrovando Cantagalo, gramático normativista ortodoxo, depara-se com uma placa com os dizeres “Ferra-se cavalos” e tenta explicar ao ferreiro que o verbo deveria estar no plural, porque o sujeito da frase está no plural. Ao que o ferreiro respondeu:
– V. Sa. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele SE da tabuleta refere-se cá a este seu criado. (p. 104)
Capítulo III – A desconstrução do preconceito lingüístico
1. Reconhecimento da crise
Uma coisa não podemos deixar de reconhecer: existe atualmente uma crise no ensino da língua portuguesa. (p. 105)
Não é difícil perceber que a norma culta – por diversas razões de ordem política, econômica, social, cultural – é algo reservado a poucas pessoas no Brasil. (p. 105)
A norma culta, como vimos, está tradicionalmente muito vinculada à norma literária, à língua escrita. Com tantos analfabetos, lamentar a “decadência” ou a “corrupção” da norma culta no Brasil é, no mínimo, uma atitude cínica. (p. 107)
2. Mudança de atitude
Enquanto essa gramática [gramática da norma culta brasileira] não chega, temos de combater o preconceito lingüístico com as armas de que dispomos. E a primeira campanha a ser feita, por todos na sociedade, é a favor da mudança de atitude. Cada um de nós, professor ou não, precisa elevar o grau da própria auto-estima lingüística: recusar com veemência os velhos argumentos que visem menosprezar o saber lingüístico individual de cada um de nós. Temos de nos impor como falantes competentes de nossa língua materna. Parar de acreditar que “brasileiro não sabe português”, que português é muito difícil”, que os habitantes da zona rural ou das classes sociais mais baixas “falam tudo errado”. Acionar nosso senso crítico toda vez que nos depararmos com um comando paragramatical [nome que o autor dá aos consultórios gramaticais, colunas de auxílio gramatical em jornais e revistas, programas de correção gramatical na televisão etc.] e saber filtrar as informações realmente úteis, deixando de lado (e denunciando, de preferência) as afirmações preconceituosas, autoritárias e intolerantes. (p. 115)
Se milhões de brasileiros de norte a sul, de leste a oeste, em todas as regiões e em todas as classes sociais falam e escrevem Aluga-se salas ou se há flutuação no uso de onde e aonde, o problema, evidentemente, não está nesses milhões de pessoas, mas na explicação insuficiente (errada, até, nesses casos) dada a esses fenômenos pela gramática tradicional. (p. 116)
3. O que é ensinar português?
Esforçar-se para que o aluno conheça de cor o nome de todas as classes de palavras, saiba identificar os termos da oração, classifique as orações segundo seus tipos, decore as definições tradicionais de sujeito, objeto, verbo, conjunção etc. – nada disso é garantia de que esse aluno se tornará um usuário competente da língua culta.
Quando alguém se matricula numa auto-escola, espera que o instrutor lhe ensine tudo o que for necessário para se tornar um bom motorista, não é? Imagine, porém, se o instrutor passar onze anos abrindo a tampa do motor e explicando o nome de cada peça, de cada parafuso (…) Esse aluno tem alguma chance de se tornar um bom motorista? Quando muito, estará se candidatando a um emprego de mecânico de automóveis… Mas quantas pessoas existem por aí, dirigindo tranqüilamente seus carros, tirando o máximo proveito deles, sem ter a menor idéia do que acontece dentro do motor? (…)
(…) E então? O que pretendemos formar com nosso ensino: motoristas da língua ou mecânicos da gramática? (pp. 119 e 120)
Quando digo coisas assim em público, algumas pessoas levantam a objeção de que o ensino da nomenclatura tradicional, das definições, das classificações, da análise sintática é necessário porque são essas coisas que serão cobradas ao aluno no momento de fazer um concurso ou de prestar o vestibular. Se é assim, cabe a nós, professores, pressionar pelos meios de que dispomos – associações profissionais, sindicatos, cartas à imprensa – para que as provas de concursos sejam elaboradas de outra maneira, trocando as velhas concepções de língua por novas. Não temos de nos conformar passivamente com uma situação absurda e prosseguir na reprodução dos velhos vícios gramatiqueiros simplesmente porque haverá uma cobrança futura ao aluno. (p. 121)
Nunca consegui entender por que uma pessoa que quer estudar Direito precisa fazer prova de física, química, biologia e matemática, se o que ela prendeu dessas matérias já foi avaliado na conclusão do 2º grau.
Com o fim do vestibular, desaparecerá também – assim esperamos ardentemente – toda a indústria que se formou em torno dele: os nefandos “cursinhos” onde ninguém aprende nada, onde não há nenhuma produção de conhecimento mas apenas reprodução de informações desconexas, onde centenas de alunos se apinham numa sala, onde tudo o que se faz é entupir a cabeça do aluno com “truques” e “macetes” que em nada contribuem para a sua verdadeira formação intelectual e humanística. (pp. 122 e 123)
4. O que é erro?
(…) uma elevada porcentagem do que se rotula de “erro de português” é, na verdade,mero desvio da ortografia oficial. (p. 122)
(…) em cartazes e placas não aparecem “erros de português” e, sim, “erros” de ortografia. Escrever, digamos, LOGINHA DE ARTEZANATO onde a lei obriga a escrever LOJINHA DE ARTESANATO em nada vai prejudicar a intenção do autor da placa: informar que ali se vende objetos de artesanato. (p. 123)
No início do século XX o “certo” era escrever: EM NICHTEROY ELLE POUDE ESTUDAR SCIENCIAS NATURAES, CHIMICA E PHYSICA. Se hoje o “certo” é escrever: EM NITERÓI ELE PÔDE ESTUDAR CIÊNCIAS NATURAIS, QUÍMICA E FÍSICA, isso não altera a sintaxe nem a semântica do enunciado: o que mudou foi só a ortografia. (p. 123)
Todo falante nativo de uma língua é um falante plenamente competente dessa língua, capaz de discernir intuitivamente a gramaticalidade ou agramaticalidade de um enunciado, isto é, se um enunciado obedece ou não às regras de funcionamento da língua.
Ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna, assim como ninguém comete erros ao andar ou ao respirar. (p. 124) (Grifo meu.)
(…) podemos até dizer que existem “erros de português”, só que nenhum falante nativo da língua os comete! Por exemplo, seriam “errados” os enunciados abaixo (o asterisco indica construção agramatical)
(1) *Aquela garoto me xingou
(2) *Eu nos vimos ontem na escola
(3) *Júlia chegou semana que vem
(4) *Não duvido que ele não queira não vir aqui
(5) *Que o livro que a moça que Luís que trabalha comigo me apresentou escreveu é bom não nego
Esses enunciados, precisamente por serem agramaticais, isto é, por não respeitarem as regras de funcionamento da nossa língua, não aparecem na fala espontânea e natural de falantes nativos do português do Brasil, mesmo que sejam crianças pequenas que ainda não freqüentam escola ou adultos totalmente iletrados. (p. 125)
5. Então vale tudo?
Algumas pessoas me dizem que a eliminação da noção de erro dará a entender que, em termos de língua, vale tudo. Não é bem assim. Na verdade, em termos de língua, tudo vale alguma coisa, mas esse valor vai depender de uma série de fatores. Falar gíria vale? Claro que vale: no lugar certo, no contexto adequado, com as pessoas certas. E usar palavrão? A mesma coisa.
Uma das principais tarefas do professor de língua é conscientizar seu aluno de que a língua é como um grande guarda-roupa, onde é possível encontrar todo tipo de vestimenta. Ninguém vai só de maiô fazer compras num shopping-center, nem vai entrar na praia, num dia de sol quente, usando terno de lã, chapéu de feltro e luvas… (p. 130)
6. A paranóia ortográfica
Essa Gramática [“Gramática da língua portuguesa”, de Pasquale Cipro Neto & Ulisses Infante] filia-se à tradição que atribui ao domínio da escrita um elemento de distinção social, que é na verdade um elemento de dominação por parte dos letrados sobre os iletrados.
Existe um mito ingênuo de que a linguagem humana tem a finalidade de “comunicar”, de “transmitir idéias” – mito que as modernas correntes da lingüística vêm tratando de demolir, provando que a linguagem é muitas vezes um poderoso instrumento de ocultação da verdade, de manipulação do outro, de controle, de intimidação, de opressão, de emudecimento. (p. 133) (Grifo meu.)
O aprendizado da ortografia se faz pelo contato íntimo e freqüente com textos bem escritos, e não com regras mal elaboradas ou com exercícios pouco esclarecedores. (p. 138)
7. Subvertendo o preconceito lingüístico
(…) talvez tenhamos de continuar ensinando aquelas coisas que nos são cobradas pela sociedade, pela direção das escolas, pelos pais dos nossos alunos. Mas podemos ensinar essas coisas criticando-as ao mesmo tempo e deixando bem claro que aquilo ali não é tudo o que se pode saber a respeito da língua, que há um milhão de outras coisas muito mais interessantes e gostosas para descobrir no universo da linguagem. (p. 141)
Capítulo IV – O preconceito contra a lingüísitca e os lingüistas
1. Uma “religião” mais velha que o cristianismo
A Gramática Tradicional permanece viva e forte porque, ao longo da história, ela deixou de ser apenas uma tentativa de explicação filosófica para os fenômenos da linguagem humana e foi transformada em mais um dos muitos elementos de dominação de uma parcela da sociedade sobre as demais. (p. 149) (Grifo meu.)
Querer cobrar, hoje em dia, a observância dos mesmos padrões lingüísticos do passado é querer preservar, ao mesmo tempo, idéias, mentalidades e estruturas sociais do passado. (p. 150)
Ora, o novo assusta, o novo subverte as certezas, compromete as estruturas de poder e dominação há muito vigentes. (150)
(…) grupos de pessoas que dizem promover ridículos “movimentos de defesa da língua portuguesa”, como se fosse necessário defender a língua de seus próprios falantes nativos, a quem ela pertence de fato e de direito. (p. 151)
(…) o simples fato de pertencer à Academia Brasileira de Letras é exemplo de sua filiação a um ideário conservador e elitista – ele já declarou, por exemplo, que a função da escola é levar os alunos a falar “melhor e com os melhores” (…) (p. 158) [Referindo-se a Evanildo Bechara.]
No mesmo momento em que eu escrevo, ou transcrevo, leio a frase para a Patrícia, minha esposa, e ela me faz a pergunta, um tanto quanto retórica, mas que inevitavelmente salta à mente de quem tenha uma mínima capacidade de reflexão: “Quem são os melhores?” Eu respondo simplesmente, numa respeitosa “homenagem” ao professor Evanildo: “Os que sabem falar…”
4. A quem interessa calar os lingüistas?
(…) se um deputado sem formação em medicina inventasse um projeto de lei que tivesse relação com a prática cirúrgica e se todos os médicos do país se manifestassem contra o projeto, será que ele conseguiria ser aprovado? Por que toda e qualquer pessoa se acha no direito de dar palpites infundados e preconceituosos sobre as questões que dizem respeito à língua? (p. 164) [Referindo-se ao projeto do então deputado federal Aldo Rebelo, atual Ministro dos Esportes, de 1999, sobre “a promoção , a proteção, a defesa e o uso da língua portuguesa”.]
O autor lembra que o então deputado se refere à Napoleão Mendes de Almeida (aquele mesmo que comparou babás e engraxates com trombadinhas e criminosos) como um dos nossos maiores linguistas, sendo que na visão deste mesmo Napoleão, os linguistas são responsáveis, ao lado das babás, engraxates e criminosos, pelo apodrecimento da língua portuguesa.
Que ameaça ao tipo de sociedade em que vivemos representa a democratização do saber lingüístico, a divulgação ampla das descobertas deste campo científico, a liberação da voz de tantos milhões de pessoas condenadas ao silêncio por “não saber português” ou por “falar tudo errado”? A quem interessa defender o “português ortodoxo” de uns pouquíssimos “melhores” contra a suposta “heresia gramatical” de muitos milhões de outros? (p. 165)
Na parte final de “Preconceito linguístico”, o autor transcreve uma carta que enviou ao editor da Veja, em resposta a uma matéria publicada na edição de número 1.725 (novembro de 2001), intitulada “Falar e escrever bem, eis a questão”, na qual o jornalista João Gabriel de Lima destila o mesmo veneno preconceituoso examinado ao longo do livro. Da extensa missiva, destaco dois trechos que de certa forma sintetizam tudo o que eu pretendi dizer com este texto e as transcrições nele feitas:
Segundo a reportagem, as críticas que o Sr. Pasquale Cipro Neto recebe dessa “corrente relativista”deixam-no “irritado”. Ora, o que parece realmente irritar o Sr. Pasquale é o fato de que, apesar de obter tanto sucesso entre os leigos, nada do que ele diz ou escreve é levado a sério nos centros de pesquisa científica sobre a linguagem, sediados nas mais importantes universidades do Brasil – centros de pesquisa lingüística, diga-se de passagem, reconhecidos internacionalmente como entre alguns dos melhores do mundo. Muito pelo contrário, se o nome do Sr. Pasquale é mencionado nas nossas universidades, é sempre como exemplo de uma atitude anticientífica dogmática e até obscurantista no que diz respeito à língua e seu ensino (em vários de seus artigos em jornais e revistas ele já chamou os lingüistas de “idiotas”, “ociosos”, “defensores do vale-tudo” e “deslumbrados”). (p. 170)
Se existe, porém, uma grande resistência contra o redimensionamento do lugar do ensino da gramática na escola é porque todos sabemos que, ao longo do tempo, o conhecimento mecânico da doutrina gramatical se transformou num instrumento de discriminação e de exclusão social. “Saber português”, na verdade, sempre significou “saber gramática”, isto é, ser capaz de identificar – por meio de uma terminologia falha e incoerente – o “sujeito’ e o “predicado” de uma frase, pouco importante o que essa frase queria dizer, os efeitos de sentido que podia provocar etc. Transformada num saber esotérico, reservado a uns poucos “iluminados”, a “gramática” passou a ser reverenciada como algo misterioso e inacessível – daí surgiu a necessidade de “mestres” e “guias”, capazes de levar o “ignorante” a atravessar o abismo que separa os que sabem dos que não sabem português…” (p. 182)
Infelizmente o livro não informa se a carta foi ou não publicada, por isso deixo a pergunta:
será que Veja publicou a carta do professor Marcos Bagno ou deixou que as distorções da matéria sobre a língua adquirissem ares de verdade (nazismo?? – sei lá…)?