O Brasil (BraZil?) é um país estranho. Recentemente a panela virou instrumento político. Ou dito de outra maneira, ideológico. Uma bateção de panelas sem nenhum ritmo foi a forma de manifestação encontrada pela classe média brasileira, essa entidade tão esquisita quanto o próprio país, para derrubar uma Presidenta da República. A Presidenta Dilma Rousseff, legitimamente eleita para o seu segundo mandato, o quarto do Partido dos Trabalhadores, era a representante de um processo de implementação de políticas sociais no governo federal. Isso é fato inconteste que as elites – as genuínas e as que sonham em ser – teimam em contestar. Para maiores informações, sugiro a leitura do livro “Dez anos que abalaram o Brasil. E o futuro?: Os resultados, as dificuldades e os desafios dos governos de Lula e Dilma”, do Economista e Professor João Sicsú, lançado em 2013.
Percebam que eu não estou qualificando os governos petistas como Socialistas ou Comunistas, mas sim governos que implementaram políticas sociais importantes, o que é bem diferente. Tais políticas sociais deslocaram uma expressiva parcela da população do contexto da iminência da morte por fome para uma condição um pouco mais digna. Nova condição que estava ainda longe da ideal, por óbvio, mas ao menos um pouco mais distante da miséria absoluta e da total falta de perspectiva. Por conta disso, na época dos panelaços criou-se uma figura interessante: as pessoas pobres não poderiam bater as panelas, porque pela primeira vez nas suas vidas elas estavam cheias.
Pois bem, a orquestra de panelas, que, repito, não tinha nenhum ritmo, foi viabilizada por um movimento que aconteceu algum tempo antes, que surgiu de forma legítima, mas que pela falta de uma consciência política mais refinada, foi absorvido por quem andava há alguns anos sem rumo. A juventude que foi às ruas no outono/inverno de 2013, pautando políticas importantes, como a redução das tarifas de transporte público, rechaçou o apoio de partidos políticos e qualquer entidade similar. Infelizmente o que poderia ter sido um grande movimento, talvez de características Anarquistas (sem deuses nem mestres), acabou por se transformar no mecanismo de apropriação dos discursos reivindicatórios por parte daquela elite que já estava há algum tempo vagando solitária, à procura de um caminho. Ao levantar a bandeira do antipartidarismo, aquela gente jovem que mostrava coragem suficiente para sair às ruas e fazer o enfrentamento com as forças que seriam naquele entendimento de opressão e repressão, não percebeu que eram justamente as verdadeiras forças opressivas e repressivas que acabariam por encampar os seus protestos. Porém essa apropriação do discurso não tinha o objetivo de colaborar e reforçar a luta, mas de assumir o protagonismo, com vistas a incluir na ordem do dia a retórica burguesa da luta contra a corrupção e da busca por melhores equipamentos de segurança pública, principalmente. À narrativa urdida nos gabinetes políticos e salas empresariais, que já vinha, num recorte curto, desde o processo do “mensalão do PT” – e aqui cabe lembrar que o mensalão tucano nunca saiu do papel -, juntou-se a insatisfação de boa parte da juventude, com suas pautas legítimas. Estava anexado o componente fundamental, sem o que não se faz qualquer movimento de mudança: o apoio popular.
É importante estabelecer essa relação com a ação da população jovem, porque, sendo da natureza da juventude a rebeldia e a contestação, ela andava já há alguns anos sem causa. Ao longo a história do Brasil, como no mundo todo, a juventude sempre andou do “lado de lá”, na oposição aos regimes. Acontece que naquele momento, o regime havia deixado de ser autoritário e conservador, como sempre fora, e o governo tinha tendências socializantes. Jovens agora não tinham mais as bandeiras da Esquerda, que sempre foram as causas que moviam as ações e movimentos para contrapor o poder, pois, em tese – e friso a observação: em tese – ali o poder era da Esquerda.
Retornando para o “caso das panelas”. A cada pronunciamento da Presidenta Dilma, a elite ia às janelas para bater panela. Por certo eram panelas compradas especificamente para isso em lojas populares, porque não se valeriam dos seus jogos “Le Creuset, para esse fim. E, mais, a compra dessas panelas de alumínio baratas evidentemente ficou a cargo das domésticas, porque as patroas, mulheres belas, recatadas e do lar, não se dignariam a ir ao comércio inferior adquirir a preços módicos os equipamentos adequados para que pudessem externar a sua revolta. E era preciso que assim fosse, porque para recolocar as coisas em ordem (e progresso) era necessário que essas pessoas, as empregadas, compreendessem o seu lugar no espaço social, que não era o dos aeroportos e dos hotéis turísticos em Paris. (Lembram da revolta de uma certa socialite ao dizer que não achava mais graça de viajar à França, pois sempre corria o risco de encontrar o porteiro do prédio no aeroporto? Aqui: https://www.brasil247.com/cultura/danuza-lamenta-que-todos-possam-ir-a-paris-ou-ny , consultado em 2/9/2020.)
O que aconteceu e vem acontecendo nesse tempo que vai dos protestos de 2013 aos dias de hoje é sabido por todes. A resistência ainda tentou se apropriar do já icônico instrumento das elites, a panela, que voltou a algumas janelas quando dos pronunciamentos do atual presidente. Mas essa capacidade de incorporar elementos e armas de outros exércitos não é o nosso forte e o “panelaço da Esquerda” não vingou. Talvez porque a população mais pobre naquele momento já nem tivesse mais panelas, furadas que deveriam estar de tanto serem raspadas para tentar buscar restos e enganar a fome.
Sobreveio, porém, a pandemia, que mudou tudo. Tudo mesmo. Ou quase. A necessidade de isolamento tirou as pessoas da rua e sem o povo na rua a gente já sabe que as coisas não mudam. Os protestos e manifestações passaram a ser virtuais. Só que quem têm acesso às plataformas digitais não são as pessoas das panelas vazias e furadas, então o movimento fica muito restrito e quase sem efeito. A cada notícia de crime ou patrolada do presidente e seu séquito em cima do povo, chovem manifestos, notas de repúdios, cartas abertas etc., que não têm nenhum efeito que não seja talvez uma demarcação de terreno das entidades, algo do tipo: “Estamos atentos!”. Mas esse estado de alerta permanente por si só não muda nada, o povo não está nas ruas e a marcha fascista segue livre, leve e solta. (Continua)
*Imagem de destaque copiada do site https://www.dw.com/pt-br/antipartidarismo-%C3%A9-perigoso-para-a-democracia-alertam-especialistas/a-16910048, consultado em 2/9/2020.